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AMB CULTURA Este caderno é parte do Jornal da Associação Médica Brasileira (JAMB) – Coordenação: Hélio Barroso dos Reis Bimestral novembro / dezembro de 2013 – nº 24 Jamb Cultura 2013; 6(24): 185-192 185 Elcy Silva Hercos nasceu em maio de 1936 em Faria Lemos, Minas Gerais. Médica, formou-se pela turma de 1960 da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro (Praia Vermelha), época em que casou-se com um colega de faculdade e mudou-se para a cidade de Uberaba, Minas Gerais. Especializada em Ginecologia, foi professora titular da Cadeira de Histologia da Faculdade Federal de Medicina de Uberaba (FMTM). Hoje, já aposentada, dedica-se mais intensamente às pinturas em aquarela e óleo, atividade que desempenha desde 1987. Recebeu vários prêmios em exposições pela União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP) desde 2006, e pela Fundação Cultural de Uberaba nos anos de 1995 1996 e 1997. Fez parte do Anuário Brasileiro de Artes Plásticas em seis edições e na 1ª Edição do Livro Consulte Arte – Roteiro, em 2012, e de várias exposições coletivas e individuais. Uma característica marcante, sempre presente em seus quadros, são as flores, o que reflete uma intensa paixão pela natureza. boa leitura A bela obra que abre esta página do Jamb Cultura é “Jardim de Keukenhof”, da médica ginecologista mineira Elcy Silva Hercos. Dando continuidade à série “História da Medicina Brasilei- ra”, o ginecologista Mário Guimarães apresenta, em mais um texto primoroso, Sorano de Éfeso, o Pai da tocoginecologia. Outro texto que merece atenção é do colega especializado em medicina do trabalho Antonio R. Batista, com sua “Crô- nica do Natal já em pleno Ano Novo”. Vale a pena a sua leitu- ra. Da mesma forma, o anestesiologista mineiro Sérgio José Torres nos brinda com “O Vaso”. Outro conto desta edição é “Consulta com o enfermeiro”, do ortopedista Nelson Jacintho, de Ribeirão Preto, no interior paulista. O Espaço Poético desta edição foi aberto ao otorrinolarin- gologista baiano Sérgio Perazzo, que nos contempla com a obra “Na noite”. Há ainda o Acróstico, com versos em redon- dilho maior, para “Ortopedia do vale do Aço”, de Arnóbio Mo- reira Félix, de Belo Horizonte, e “Complexidade”, do psiquiatra baiano Ronaldo Ribeiro Jacobina. Nesta edição, também temos a honra de anunciar a aber- tura do II Concurso Nacional de Contos e Crônicas da AMB, cujo prazo de inscrição se encerra em 30 de junho de 2014. A participação é gratuita, porém restrita aos associados da As- sociação Médica Brasileira, que poderão inscrever um traba- lho por modalidade. Os ganhadores, além de premiação, terão o direito de publicar suas obras em nosso suplemento cultu- ral. Informações mais detalhadas sobre o regulamento pode- rão ser obtidas pelo e-mail [email protected]. Na próxima edição, a primeira de 2014, traremos o relato da 3ª Viagem Cultural da AMB, promovida pelo nosso depar- tamento, com destino à Terra Santa, em Israel, e à cidade de Petra, na Jordânia. Boa Leitura! Hélio Barroso dos Reis Diretor Cultural da AMB Ortopedia e Traumatologia Vitória, ES Autora: Elcy Silva Hercos Título: Jardim de Keukenhof Dimensões: 0,80 x 1,00 Técnica: óleo sobre tela Ano: 2012 Acervo: pessoal jamb_cultura_ed23.indd 185 11/21/13 12:09 PM

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amb culturaEste caderno é parte do Jornal da Associação Médica Brasileira (JAMB) – Coordenação: Hélio Barroso dos Reis

Bimestral novembro / dezembro de 2013 – nº 24

Jamb cultura 2013; 6(24): 185-192 185

Elcy Silva Hercos nasceu em maio de 1936 em Faria Lemos, Minas Gerais. Médica, formou-se pela turma de 1960 da Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro (Praia Vermelha), época em que casou-se com um colega de faculdade e mudou-se para a cidade de Uberaba, Minas Gerais. Especializada em Ginecologia, foi professora titular da Cadeira de Histologia da Faculdade Federal de Medicina de Uberaba (FMTM). Hoje, já aposentada, dedica-se mais intensamente às pinturas em aquarela e óleo, atividade que desempenha desde 1987. Recebeu vários prêmios em exposições pela União Nacional dos Artistas Plásticos (UNAP) desde 2006, e pela Fundação Cultural de Uberaba nos anos de 1995 1996 e 1997. Fez parte do Anuário Brasileiro de Artes Plásticas em seis edições e na 1ª Edição do Livro Consulte Arte – Roteiro, em 2012, e de várias exposições coletivas e individuais. Uma característica marcante, sempre presente em seus quadros, são as flores, o que reflete uma intensa paixão pela natureza.

boa leituraA bela obra que abre esta página do Jamb Cultura é “Jardim de Keukenhof”, da médica ginecologista mineira Elcy Silva Hercos.

Dando continuidade à série “História da Medicina Brasilei-ra”, o ginecologista Mário Guimarães apresenta, em mais um texto primoroso, Sorano de Éfeso, o Pai da tocoginecologia.

Outro texto que merece atenção é do colega especializado em medicina do trabalho Antonio R. Batista, com sua “Crô-nica do Natal já em pleno Ano Novo”. Vale a pena a sua leitu-ra. Da mesma forma, o anestesiologista mineiro Sérgio José Torres nos brinda com “O Vaso”. Outro conto desta edição é

“Consulta com o enfermeiro”, do ortopedista Nelson Jacintho, de Ribeirão Preto, no interior paulista.

O Espaço Poético desta edição foi aberto ao otorrinolarin-gologista baiano Sérgio Perazzo, que nos contempla com a obra “Na noite”. Há ainda o Acróstico, com versos em redon-dilho maior, para “Ortopedia do vale do Aço”, de Arnóbio Mo-reira Félix, de Belo Horizonte, e “Complexidade”, do psiquiatra baiano Ronaldo Ribeiro Jacobina.

Nesta edição, também temos a honra de anunciar a aber-tura do II Concurso Nacional de Contos e Crônicas da AMB, cujo prazo de inscrição se encerra em 30 de junho de 2014. A participação é gratuita, porém restrita aos associados da As-sociação Médica Brasileira, que poderão inscrever um traba-lho por modalidade. Os ganhadores, além de premiação, terão o direito de publicar suas obras em nosso suplemento cultu-ral. Informações mais detalhadas sobre o regulamento pode-rão ser obtidas pelo e-mail [email protected].

Na próxima edição, a primeira de 2014, traremos o relato da 3ª Viagem Cultural da AMB, promovida pelo nosso depar-tamento, com destino à Terra Santa, em Israel, e à cidade de Petra, na Jordânia.

Boa Leitura!

Hélio Barroso dos ReisDiretor Cultural da AMB

Ortopedia e TraumatologiaVitória, ES

Autora: Elcy Silva HercosTítulo: Jardim de KeukenhofDimensões: 0,80 x 1,00Técnica: óleo sobre telaAno: 2012Acervo: pessoal

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História da medicina brasileira

Sorano de Éfeso, o pai da Tocoginecologia

Infelizmente, só com o passar de muitos anos dedicados prio-ritariamente à nossa rotina diária profissional é que atenta-mos para a beleza e sobretudo para a importância da His-tória da Medicina, donde tiramos as respostas para muitas das nossas dúvidas quando no exercício da profissão. Ve-mos, então, que muitas dessas respostas nasceram de ob-servações e pesquisas de mais de 2000 anos atrás, como é o caso dos celebrados aforismos de Hipócrates – por todos nós tido e considerado o Pai da Medicina – datados de 300 anos a.C., e muitos outros de remotas épocas como os de Herófilo – hoje tido como o Pai da Obstetrícia –, que já no século I afirmava que o cérebro era a sede do pensamento. Os exemplos são muitos e curioso é que os grandes nomes da Medicina de então circulavam prioritariamente no eixo Atenas-Alexandria-Roma, como se houvesse entre eles um pacto de cooperação.

Nos séculos I e II da nossa Era Cristã, evidenciou-se a fi-gura de Sorano ou Soranus de Éfeso (há dúvidas sobre o pe-ríodo exato em que ele viveu, que oscila entre 70 e 130 para alguns pesquisadores, e 98 e 138 para outros), tido como precursor da Ginecologia e da Obstetrícia. Grego, nascido em Éfeso e formado em Alexandria, exerceu a profissão em Roma como médico dos imperadores Trajano e Adriano. No final de sua vida, ainda veio a ser contemporâneo de Galeno, nova estrela da época (129-201), cujo nome também chegou até nós pelo papel desempenhado na medicina.

Sorano, com inúmeros trabalhos publicados em toda a esfera médica, distinguiu-se como pioneiro nos estu-

dos sobre o raquitismo e escreveu sobre diversas outras áreas biológicas: Ginecologia, Obstetrícia, Higiene, Of-talmologia, Pediatria, Farmacologia e Fraturas. Foi autor, ainda, de uma biografia de Hipócrates. Perdurou por cer-ca de 15 séculos entre suas obras o trabalho “As doenças da Mulher”, fonte de consulta indispensável que aborda em detalhes toda a patologia tocoginecológica, inclusive estabelecendo paralelismos entre as funções ovarianas e testiculares, e descrevendo as mais diversas intervenções obstétricas. Inventou ainda um espéculo vaginal e suge-riu métodos anticoncepcionais à base de gorduras. Até o atendimento ao recém-nascido na sala de parto foi obje-to de seus estudos.

Hoje, lamenta-se profundamente a perda da grande maioria dos seus escritos e de outros dados sobre a sua vida. Sorano deu muita importância às atividades das par-teiras, realçando a necessidade de boas qualidades f ísi-cas e espirituais para o seu exercício. Foi adepto da Escola Metodista, fundada por Themisson de Laodicéia, baseada na procura de métodos que facilitassem o aprendizado e a prática médica, assim como foi discordante da teoria platô-nica-aristotélica acerca do que chamavam “útero vacante”.

Morreu em Roma, em data ainda a ser comprovada.

Mário V. GuimarãesGinecologia

Recife, PE

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Eu sou um homem de amores definitivos. Creio mesmo que o que não for definitivo não é amor, no que repito, à minha ma-neira, a convicção do velho Nelson Rodrigues, que usava termos mais dramáticos para declarar que todo amor era eterno e quan-do assim não fosse, amor não seria.

Isso tem uma consequência: ir vergando ao longo da vida sob o peso acumulado das lembranças, das perdas, das ausências. Elas são, por um lado, uma carga, mas por outro, a bagagem que nos garante termos vivido e nos justifica continuarmos vivendo.

Muitos têm ex-mulheres, mas essa carga por vezes terrível não me aflige. Tenho ex-namoradas, é certo, mas como diz o cineasta Woody Allen: os católicos e os pombos se unem para sempre. Os fi-lhos, por motivo mais óbvio ainda, são irrenunciáveis. Independen-te da idade ou de se espalharem pelo Google Earth afora não tenho um dia completo se não falar com cada um e não souber dos netos. Tenho uma boa porção de amigos essenciais – acumulados ao lon-go dos anos, mas principalmente nas primeiras décadas da vida – aos quais um fio invisível mas inquebrantável me liga neste mundo e talvez no próximo. Por que não citar os cães que tive e cuja pre-sença na memória e nas conversas constantes persiste notavelmen-te? Quantas vezes ainda não lanço, instintivamente, os olhos para o jardim como se fosse localizar o meu último Rottweiler que há me-nos de um ano me deixou?

Mas meus amores não se limitam aos seres humanos e aos ani-mais. Sinto um carinho, às vezes dif ícil de justificar, pelos luga-res que frequentei ou em que residi. Ruas, casas, armazéns, esco-las, salas, lojas, calçadas e escritórios que fazem parte das minhas lembranças. Diversos lugares em que estive ou que visitei têm, em muitos casos, um espaço irrevogável entre os meus afetos.

Entre tudo, o que de mais marcante associo com os velhos e de-finitivos amores são os Natais, que durante a maior parte da minha vida tiveram o formato e o estilo dados pela minha mãe. As comidas portuguesas e, particularmente, os bolinhos de bacalhau, obedeciam a um ritual quase mágico. Até onde a ingenuidade da infância preva-leceu, os presentes apareciam, misteriosamente, graças à onipresença do bom velhinho naquela data. Nada mais definitivo que os Natais da minha infância, que se estendiam como um contínuo até a passagem de ano, quando se repetia uma ceia um pouco diferente da semana anterior. À meia noite, beijos e abraços, um brinde e uma oração. Mi-nha mãe sempre se emocionava ao pedir saúde para todos e meu pai se mantinha tímido, esperando que os demais o viessem abraçar. Ía-mos sempre, principalmente eu e minha irmã, resgatá-lo da sua soli-dão voluntária, e os seus olhos azuis ficavam úmidos, felizes e pensati-vos. O Natal, para nós, ia até o dia primeiro do ano, portanto. Era uma renovação completa, desde a comemoração do símbolo maior da es-perança renovada – o nascimento do Menino salvador – até o início de um novo ano civil, com seus planos e compromissos.

crônica

Crônica de Natal já em pleno Ano NovoNão posso ignorar que desde a infância até a meia idade, fazia par-

te do ritual assistir à Corrida de São Silvestre, que a TV Globo matou tornando-a um evento esportivo como outro qualquer, no meio do dia, para colocar os seus artistas falando asneiras à meia-noite. Um golpe de lesa-tradição que eu nunca perdoei.

Até o dia de hoje, esse continua sendo o meu Natal interior. Os sentimentos e os símbolos são moldados pelos Natais da minha in-fância: preenchidos por personagens novos e mesmo por aqueles que não se encontram mais aqui; são eternos; alheios às degradações da data; imunes às tristezas do entorno, onde se observa um esforço mal disfarçado de reduzi-lo a mais uma variante de carnaval, onde Papai Noel faria as vezes de um Rei Momo com cartão de crédito, como se nunca tivesse sido São Nicolau. Hoje, não se precisa mais merecer os presentes de Papai Noel, como se costumava ensinar às crianças. Basta o décimo terceiro, ou algo assim, antes que os diver-sos impostos do princípio do ano cheguem.

Estamos falando de uma comemoração eminentemente cristã, mas cuja descaracterização não vem ocorrendo apenas pelo efei-to casual do desleixo a que todos estamos mais ou menos sujei-tos. Ocorre, também, pela malícia daqueles que não abrem mão da orgia gastronômica, nem da estação de consumo, mas detes-tam a sua conotação cristã. Detestam, portanto, o seu significa-do humano e rejeitam a sua carga histórica. Chega a ser doen-tio o esforço para abolir o Merry Christmas e substituí-lo pelo Happy Holidays. Tão doentio quanto inútil, porque o Natal, com fé ou sem fé, carrega uma narrativa única onde ressalta os nossos mais caros e definitivos sentimentos e simbolismos. Lá está ex-pressa toda a fragilidade e incerteza da condição humana; a vul-nerabilidade evidente dos humildes; a nossa aventura fundamen-tal de amor e solidariedade; a esperança contida no surgimento de uma nova vida, com sua extrema dependência da devoção ma-terna e da proteção do pai. Lá está o mais doce arquétipo da famí-lia humana. Na imagem do presépio, as estrelas do firmamento e as várias manifestações da natureza rendem homenagem ao Pe-queno que nasce antes do alvorecer, numa paisagem de encanto suave, despertando a curiosidade dos animais, vigiado pelos an-jos. Embora o parto sempre seja um esforço vigoroso, ele ocorre em uma noite de Paz, antecedendo o novo dia. Tudo se une em torno do milagre de uma nova vida humana, tendo o nascimen-to como momento inteiramente especial e a criança como uma promessa sem fim. Nos presépios mais completos, mais próximos ou mais distantes da manjedoura, aparecem os sábios do oriente a que chamamos reis, guiados pela estrela de Belém para prestar as suas homenagens. São, talvez, os personagens mais humildes de coração porque, sendo reis ou sendo sábios, percorrem dis-tâncias desconhecidas para se comoverem com o que havia de ainda mais especial naquele nascimento.

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crônica

conto

O vaso

Jamais poderei acreditar em uma humanidade que não se reco-nheça nessa cena. Hoje, o tempo passou, e quem ocupa o lugar do meu pai, aguardando quieto os abraços e beijos das pessoas que ama, sou eu. Quem rasga ansiosamente o papel dos pacotes são meus ne-

Não foi por falta de falar: “Eu quero o meu vaso aqui em baixo, na mesa da sala”. Mas a mulher insistia que ele deveria ficar na banca-da, lá no alto da escada.

Eu voltava a dizer: “Eu quero aqui”. E ela: “ele vai ficar lá”.Sabe como é mulher, né? Tem essa mania de mandar nas coisas da

gente, na vida inclusive. Implica com o que é seu só para aporrinhar. Só para atazanar e mostrar que pode mais...

Eu cansei de discutir. Não concordei, mas fiquei calado. Eu tinha certeza do que ia acontecer, e aconteceu.

Nas discussões, ela sempre perguntava: “mas o que tem de tão importante nesse vaso?”.

Eu respondia: “não é de sua conta”, quando estava de péssimo humor, ou “são coisas de minha vida, não abra”, quando estava melhorzinho.

Na verdade, ganhei o vaso de uma ex-namorada. E essa parte eu não contei. É uma louça bonita, antiga, de uma cor amarelada bem interessante, liso em baixo e, na parte superior, tem um re-levo sem formato definido. A tampa tem um puxador diferente e um quebradinho na beirada. E ele me acompanha há muitos anos.

Lá dentro, para você eu digo, ia colocando lembranças de momen-tos que vivi. Uma medalha que ganhei no concurso de redação da escola. Um bilhete da viagem da Maria Fumaça de Tiradentes com a Kika. Uma estrelinha vermelha do PT que o Patrus me deu. Uma rolha de cham-pagne que esqueci quando, onde e com quem bebi. E pedras e pedras. De cada lugar onde fui neste mundo, vim trazendo uma pedrinha. Até de onde não fui tem pedra.

Uma vez, pedi ao meu filho para trazer uma lembrança do deser-to de Atacama e ele trouxe uma pedra escura. As outras, não iden-tifiquei, de maneira que o planeta está bem misturado naquele vaso.

Tem também um ingresso de um filme do Hitchcock que assis-ti em Paris. Outro do Cirque du Soleil, este o Bernardo me levou. Um autografo do Ziraldo, que conheci em um casamento, e todas essas coisas me trazem uma lembrança.

Contam uma história.São um pedacinho da minha vida.E mais, muito mais. Tem o broche do CDR, Comitê de Defesa

da Revolução, de Cuba. Moedas estrangeiras. Uma correntinha de ouro que a – como era o nome dela? – me deu.

E o inventário é grande.

tos. O volume de lembranças se acumula a cada ano, mas em essência nada mudou. E isso é bom.

Antonio R BatistaMedicina do Trabalho

São Paulo, SP

Agora ficou lá em cima. Como ela queria. Eu só olhando e prevendo.

Não deu outra.A faxineira arrumou logo um jeito de bater nele com a vassou-

ra e paf!, foi uma queda livre até o pé da escada.Minha mulher veio correndo e gritando: “meu Deus!”. E ficou

olhando do alto. Percebi que ela estava era mais interessada em exa-minar o conteúdo do que ver a bagunça que ela mesma provocou.

Não xinguei, não briguei, não abri a boca. Apenas peguei o jor-nal que estava lendo, pus ao lado dos cacos, que eram muitos, e fui recolhendo as lembranças.

Do alto da escada, empregada e patroa me observavam. Aga-chado, recolhia os pedaços da minha vida. Eu não via as duas, mas podia sentir o olhar de curiosidade nas minhas costas.

Elas viam um homem pegando cada peça e colocando meticu-losamente no jornal. Não viam o meu rosto, os meus sentimen-tos, a minha alma partida. Não percebiam que não era apenas um vaso que se quebrara, mas toda uma existência. Não enten-diam que eu recolhia não apenas objetos e cacos. Recolhia lem-branças, paixões, amores, saudades, alegrias, sonhos.

Não percebiam que o vaso, ao espatifar, também espalhara o meu ódio por aquela mulher intrometida; a inveja que ela tinha da minha vida, muito mais interessante do que a dela; a dor que sen-tia a cada respiração; a loucura que fiz ao casar; o nosso amor. O pouco que dele restava estava agora escorrendo pelo tapete, assim como a mentira que ouviria para explicar o ocorrido.

O vaso estava perdido.A empregada, despedida.A nossa vida a dois acabou ali.Minha vida espalhada e exibida publicamente. Minha inti-

midade, violada.Tudo isso perdi pela imprudência das mulheres.E tentava, agora, avaliar o prejuízo, secar com a barra da ca-

misa as minhas lágrimas, colocar um pouco de ordem na vida espalhada pela sala, mas principalmente, não deixar escapar o que de mais importante havia ali dentro: a esperança.

Vou precisar muito dela para recomeçar minha vida. 

Sérgio José TorresAnestesiologia

Belo Horizonte, MG

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conto

Consulta com enfermeiroCaros amigos enfermeiros, companheiros de várias décadas de trabalho! Todos vocês sabem do apreço que tenho pela clas-se da enfermagem, classe de valor incomensurável na saúde do Brasil e do mundo! A medicina ficaria incapacitada de so-breviver se não tivesse a seu lado o auxílio da enfermagem! Esta crônica não foi elaborada para ofendê-los, e sim para de-fendê-los! Dito isto, quero salientar que não é pelo fato de ser médico que vou puxar a brasa para a minha sardinha, pois depois de mais de quarenta anos de profissão, não tenho ne-cessidade disso!

A vida e a carreira de médico me ensinaram que quanto mais trabalho em minha profissão, mais sinto necessidade de es-tudar. A medicina é uma ciência tão dinâmica que não se pode ficar um dia sem estudar. Os seis anos do curso curricular, mais os três ou quatro anos de especialização, dão apenas o começo do aprendizado para que o médico comece a praticar a medicina, com alguma dificuldade. Ninguém sai da faculdade, mesmo de-pois da residência médica, um sábio. A sabedoria vem (em par-te) com a convivência, a prática, a evolução da ciência médica. Todo médico necessita de pelo menos duas horas diárias para fi-car informado dos avanços de sua especialidade. Tenho certeza de que boa parte dos colegas médicos não tem esse tempo para se atualizar de maneira adequada.

O médico tem de estudar diariamente para atender o pa-ciente, descobrir o diagnóstico por intermédio do exame clíni-co e dos exames complementares, prescrever os medicamentos e dar alta ao paciente. Em caso de insucesso, é ele o responsável por tudo o que acontecer e até por assinar o atestado de óbito, se for o caso. Quero enfatizar que o médico funciona para o pa-ciente como se fosse o seu anjo da guarda. Somente quem teve uma doença grave vai saber interpretar o que estou dizendo. As pessoas criam pelo médico uma atração quase que divina. O médico passa a ser o irmão, o pai, a mãe, o filho, quase um san-

to. Enganam-se as autoridades quando querem tachar o médi-co como um número.

“Precisamos de não sei quantos médicos.” Como se médi-co fosse comprado como bananas ou laranjas na feira. Provavel-mente, os que fazem isso nunca tiveram uma doença grave, nun-ca tiveram que ficar na fila do SUS, nunca tiveram que esperar uma consulta por três, quatro meses, como acontece no Brasil. Eles não sabem, ou fingem não saber, a real função do médico!

Enfermeiro tem outra função. Foi formado para prestar atendimento junto ao paciente nos casos de internação ou não, como coadjuvante do tratamento médico. Cabe a ele ministrar os medicamentos prescritos pelo médico, colher material para exames, vigiar o paciente, além de outros trabalhos. Enfermei-ro tem uma carreira tão nobre quanto à do médico, mas deve fi-car trabalhando naquilo que ele conhece e sabe fazer com efici-ência e dignidade. Não queiram complicar a vida do enfermeiro! Enfermeiro não foi formado para brincar de médico! Enfermei-ro é pessoa séria e deve ser respeitada! Não queiram conspurcar a vida digna do enfermeiro, dando-lhe obrigações para as quais ele não está preparado para exercer! Quem vai assinar o atesta-do de óbito de um paciente que for atendido e tratado pelo en-fermeiro, sem ter a assistência médica, caso ele venha a falecer?

Não está na hora de se pensar seriamente sobre a responsa-bilidade de cada um, antes de se começar a soltar leis dessa natu-reza? Quero perguntar às nossas autoridades se eles deixariam de se consultar os médicos dos famosos hospitais da capital pau-lista, dos quais tanto gostam, para procurarem um enfermeiro para as suas consultas.

Não somos todos iguais perante a lei?

Nelson JacinthoOrtopedia

Ribeirão Preto, SP

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Espaço Poético

Na hora em que a casa acalma,que o abajur se acende,que a mesa se põe,que a cama se arruma,na hora que a noite se instalacomo um cão de guarda,que o silêncio é todo ouvidosquando a casa se acalmaem todos os sentidose o relógio madrugaàs doze, às duas, à uma,um fantasma,um espectro,um vulto,um aspecto,um espelho,um gesto,uma alma penadajanta de farda cáquino meio da sala,comensal sem companhia,no mais fundo desapego,carrasco de capuz pretoapertando o nó e a cordano pescoço roxo do enforcado,aparição que se afastado ponto morto da encruzilhadacheia de mistério e medo.

Na hora que a casa acalma,a asa da coruja empalaa fresta e o vinco da vidraça,num clarão desapareceo contorno de todos os males,de todos os fantasmas,monstros, aparições, rascunhos,apenas sombras benfazejas,anjos, duendes, fadas,inocentes, alienadas,ilusões da noiteinofensivas, chamuscadasdos terrores mais secretos,apenas vento, apenas sustos efêmeros,apenas delírios amenos,teatro de absurdos,de gestos obscenos,pingos de chuva dissolvidosna lágrima pura do serenoenxotando a alma desgarrada,empapando o lenço de cambraiabem na hora não marcadaque, enfim, a casa acalma.

Sérgio PerazzoOtorrinolaringologia

Salvador, BA

Na NoiTE

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Acróstico com versos em redondilho maior para:Ortopedia do Vale do AçoPalestra realizada em 24/08/13, na oitava jornada de ortopedia, no Hospital Márcio Cunha, em Ipatinga, MG.

O rtopedistas de brio,R egião valorizada.T em meta, tem desafio,O trabalho é de vanguarda.

P lantões...consultas...escalas...E quipes de muito talento.D renos...gessos...bengalas...I mpulsionam o tratamento.

A ulas...cursos...Residência...D ebates, Jornada  e Congresso.O usadia e experiênciaV oltadas para o progresso.

A s parcerias afirmam,L egado de competênciaE sses doutores confirmam,D edicação e ciência.

O s hospitais são o Norte,A liança que só cresce.C onvênios dão o suporte,O “Vale” todo agradece!!!       

Arnóbio Moreira FélixOrtopedia

Belo Horizonte, MG

acróstico

Venera-se agora, em detrimentoDas novas gerações do Ser Humano, A última geração de sofisticados equipamentos.

Não, meu caro, o nervo não é de aço.Complexo mesmo é o humano, demasiado humano.Complexidade, em bom latim, é abraço.

Aos MédicosQue não se vendem (Éticos)

Ao Complexo assistencial-industrial-financeiro.

Ronaldo Ribeiro JacobinaPsiquiatria

Salvador, BA

COm- plExi- dade

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Dicas culturais

ColABoRAçãoO Jamb Cultura é um espaço aberto que estimula a produção literária e valoriza as manifestações culturais do Brasil. Para isso, convidamos os médicos a enviar artigos, crônicas, poesias, textos sobre cultura e história da Medicina para o Conselho Editorial.A/C Hélio Barroso dos Reis (Diretor Cultural)Rua São Carlos do Pinhal, 324, Bela Vista – São Paulo, SPCEP 01333-903Ou pelo e-mail: [email protected] e colecione!

Normas para publicação de artigo no Jamb Cultura1. Ser médico(a) associado(a) à Associação Médica Brasileira pela Federada de sua região.2. Enviar texto de aproximadamente uma lauda (2.100 caracte-res com espaço), na fonte Arial 12.3. Se houver fotografias, favor identificá-las, colocar o crédi-to e enviar em 300 dpi, à parte (anexada ao e-mail ou em CD, ou pen-drive).4. O material será apreciado pelos membros do Conselho Edi-torial antes de sua publicação.5. Ao enviar ao Conselho, informar autorização de publicação.6. Assinar o artigo com: nome, especialidade, cidade, estado e endereço para correspondência.

JAMB CULTURAEdição Bimestral | NOVEMBRO e DEZEMBRO de 2013

www.amb.org.br | [email protected]: Florentino de Araújo Cardoso Filho

Coordenador e Diretor Cultural: Hélio Barroso dos ReisDiretora de Comunicações: Jane Maria Cordeiro LemosDiretor de Marketing: José Carlos Vianna Collares Filho

Conselho Editorial (2011-2014): Antonio Roberto Batista (Campinas/SP – região Sudeste)Armando José China Bezerra (Brasília/DF – região Centro-oeste)

Arnóbio Moreira Félix (Belo Horizonte/MG – região Sudeste)Carlos David Araújo Bichara (Belém/PA – região Norte)

Gilson Barreto (Campinas/SP – região Sudeste)Giovanni Guido Cerri (São Paulo/SP – região Sudeste)Guido Arturo Palomba (São Paulo/SP – região Sudeste)

Hélio Barroso dos Reis (Vitória/ES – região Sudeste)José Luiz Gomes do Amaral (São Paulo/SP – região Sudeste)

Murillo Ronald Capella (Florianópolis/SC – região Sul)Roque Andrade (Salvador/BA – região Nordeste)Yvonne Capuano (São Paulo/SP – região Sudeste)

Apoio cultural: Departamento de Comunicações da AMB

Editora ManoleEditor gestor: Walter Luiz Coutinho

Editora: Karin Gutz InglezProdução editorial: Julia Carvalho, Cristiana Gonzaga S. Corrêa e Juliana Morais

Projeto gráfico e diagramação: Sopros DesignTratamento de imagens: Sopros Design

O Jamb Cultura somente publica matérias assinadas, as quais não são de responsabilidade da Associação Médica Brasileira, nem da Editora Manole.

Já estão abertas as inscrições para o III Concurso Na-cional de Contos e Crônicas. Os interessados deverão enviar os trabalhos até o dia 30 de junho de 2014 para a sede da AMB, na rua São Carlos do Pinhal, 324, em São Paulo – SP, CEP 01333-903, aos cuidados do Departa-mento Cultural.A participação é gratuita e restrita aos associados da As-sociação Médica Brasileira, que poderão inscrever somen-

III concurso Nacional de contos e crônicas da amb

Preencha a ficha de inscrição, recorte-a e envie em envelope lacrado.

III cONcurSO NacIONal DE cONtOS E crÔNIcaS Da ambNOME COMPLETO: SEXO: DATA NASCIMENTO:

Nº CRM: ESPECIALIDADE:

ENDEREÇO: CEP: CIDADE:

FONE: PSEUDÔNIMO:

NOME DO TRABALHO:

Estou ciente do regulamento e autorizo a publicação do trabalho, por tempo indeterminado, sem ônus para a Associação Médica Brasileira.

Assinatura do autor

te um trabalho por modalidade, com tema livre e inédito, assinado obrigatoriamente por pseudônimo. Os textos devem ser de no máximo duas páginas digitadas, envia-dos em cinco cópias em envelope único, legível, também identificado por pseudônimo. Outras informações sobre as inscrições, regras do con-curso e premiação poderão ser obtidas pelo e-mail [email protected] ou pelo site www.amb.org.br.

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