Boa noite, o meu nome é João Pacheco e venho aqui contar ... · PDF...

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  • Boa noite, o meu nome Joo Pacheco e venho aqui contar-vos umas histrias, na condio de no-

    crente a falar aos crentes.

    A propsito, o meu interesse por Deus nulo, imagino que seja um sentimento recproco. J quanto

    religio catlica, a diferente, porque parte da minha educao foi catlica e sobretudo porque

    em Portugal vivemos numa cultura em que a herana judaico-crist tem muito peso.

    Na prtica, fui baptizado, fiz a primeira comunho e uma vez em mido - fizeram de mim So

    Joo numa festa de aldeia no Minho, vestido com peles felpudas e atrelado a uma ovelha enorme e

    impaciente. Atrelado ovelha seguia tambm outro So Joo da minha idade, que praguejava o

    tempo todo.

    O prometido era uma ovelhinha - naquele dia acabou por no se arranjar - e depois claro que no

    tivemos mo na ovelhona.

    Nunca a procisso do Requeixo chegou to depressa capela como naquele ano.

    Na minha famlia mais prxima, a nica pessoa que parecia acreditar em Deus era a Biz, a antiga

    mademoiselle que tomou conta primeiro dos meus tios e da minha me e que muitos anos depois

    por azares da vida dela e para nossa sorte - acabou por ir viver para casa dos meus pais, tomando

    assim conta das minhas cinco irms e de mim. Morreu h dez anos quase centenria, quando eu

    comecei a trabalhar como jornalista. Tinha cumprido o papel at ao fim.

    Era uma espcie de av adoptiva - quando eu nasci, a Biz j andava pelos setentas. E ali pelos

    meus quatro ou cinco anos, parecia-me que tnhamos a mesma idade. Todas as noites, a Biz ia

    deitar-me e contava-me histrias na cama. Sendo semi-analfabeta, sabia assinar (Oflia Aldemira

    Gomes Soares), sabia ler uns missais com dificuldade e pouco mais.

    O que a Biz sabia mesmo bem era muitas histrias de cor. E contava-as sempre da mesma maneira,

    quase sempre de luz apagada. Usava as mesmas palavras de todas as outras noites, fazia vozes

    consoante as personagens, era uma grande contadora de histrias. E eu l ia pedindo sempre mais

    uma, mais uma, mais uma.

    Conta-se na famlia que s vezes eu voltava do quarto para a sala de jantar e quem tinha adormecido

    era a Biz, a meio da sexta histria ou coisa assim.

    A partir de um momento qualquer escolhido pela Biz, comecei a rezar todas as noites. Acho que

    era um Pai Nosso, que eu rezava a toda a pressa mas sem me enganar.

    S depois tinha direito s histrias contadas com a luz j apagada.

  • Nessa altura eu era to pequeno que no sabia ainda ler.

    O meu pai contava-me histrias tarde, em dias de sorte. Eu corria para a poltrona dele, acertava-

    lhe mais ou menos nos joelhos, sentava-me ao colo e ouvia as histrias, que eram sempre histrias

    inventadas no momento. S se repetia a personagem principal: o macaquinho Salustiano. Salvo erro

    o macaquinho Salustiano era um saguim, esperto como um rato.

    A minha me contava-me - e conta-me - histrias da famlia.

    Foi atravs da minha me que eu fui conhecendo os meus bisavs, os meus tios avs, a vida em

    Angola durante a guerra, o meu av Joo.

    O meu av Joo estudou Literatura, Direito e Teologia e casou-se aos quarenta, com uma menina

    bonita, rica e de vinte anos - a minha av Germana.

    Antes disso, o meu av Joo morava com uma senhora e com um gato, mas isso outra histria.

    O que eu queria agora contar que s tantas os meus avs vieram morar para Lisboa e decidiram

    construir a casa da famlia perto do Largo da Estrela.

    A minha av Germana gostava do stio escolhido, mas queixava-se ao marido que era pena no se

    ver o Tejo dali. E ela que nascera perto da Madragoa, com o Tejo ali to perto... O meu av

    prometeu logo que nesse caso no haveria qualquer problema:

    Construimos a casa e entretanto eu mando desviar o Tejo para aqui.

    As palavras tero sido mais ou menos essas, segundo a minha me. Depois deve ter havido

    qualquer problema logstico, porque da ltima vez que vi o Tejo continuava sempre l por baixo,

    longe do Largo da Estrela.

    O meu av Joo seria um bom contador de histrias, s pode.

    Mais tarde comecei a aprender a ler livros e terei dispensado as histrias contadas. Deve ter sido por

    essa altura que a Biz desistiu do meu futuro como catlico, mas ensinou-me a fazer arroz apesar de

    ser rapaz, porque nunca se sabe para onde isto tudo caminha (Elas, agora...).

    Quando a Biz me ensinou a cozinhar coelho, percebi que isto c para os meus lados era campo

    mais dado ao pecado.

    A propsito, o meu pai ia sempre renovando a minha biblioteca com livros escolhidos mais ou

    menos para a idade. Primeiro dinossauros e homens pr-histricos. Depois banda-desenhada,

    Emilio Salgari, escritores sul-americanos, s tantas o meu pai acelerou... Acho que nunca li tanto na

    vida como entre os 11 e os 13 anos. Claro que alguns livros tiveram que ser revisitados uns anos

  • depois, j com outros olhos.

    Lembro-me de um dia ter ficado espantado com um livro que o meu pai me deu.

    Uma Bblia? Eu sabia perfeitamente como o meu pai no queria ter nada a ver com missas. E devo

    ter ficado com cara de parvo, a olhar para aquela encadernao pirosa. O meu pai ter dito qualquer

    coisa como - Um dia vais ler e vais perceber que este um grande romance.

    Outro contador de histrias que me marcou muito foi Antnio Celestino, um grande brasileiro

    portugus do Minho que era amigo dos meus pais. E que acabou por ser para mim mais um tio av

    adoptivo.

    Est para nascer pessoa que encarne o trabalho de narrar uma histria com pulso mais forte que o

    Celestino.

    Era l na Casa do Ribeiro - em So Joo de Rei - que eu comia tanto nas semanas de frias que

    acabava acusado de exagero, ao mesmo tempo que me serviam mais uma pratada de arroz de feijo.

    Com panados de porco, daqueles fininhos. E bem temperados com sumo de limo:

    mais barato alimentar um burro a po-de-l, dizia.

    O que aprendi de mais importante com o Celestino? difcil escolher, talvez o facto de que para

    sabermos contar uma histria tambm temos que saber ouvir.

    Sempre que eu caa no erro de o interromper com perguntas, l vinha a deixa obrigatria:

    Mas afinal quem que est a contar esta histria?

    Sou eu ou s tu?

    Hoje, quando entro numa igreja para acompanhar uma cerimnia de familiares ou amigos. Prefiro

    sempre os casamentos aos funerais, os baptizados caso a caso.

    Claro que no participo na missa, nem saberia rezar mesmo que quisesse.

    Levanto-me, sento-me, levanto-me, sento-me.

    Tenho apanhado grandes secas, posso dizer-vos, aqui que ningum nos ouve. Mas pelo meio h uma

    parte que me interessa sempre. Sim, a parte das histrias. A propsito, o vosso romance to grande

    e to bom que seria boa ideia comearem a variar mais na escolha das passagens. Seno quase

    sempre andamos a ver os mesmos cromos repetidos.

    E melhor ainda do que eu gosto mesmo quando tenho a sorte (muito rara) de me calhar um

    padre contador de histrias.

    Para contarmos boas histrias basta estarmos atentos ao que nos rodeia, o resto vem com a prtica.

    A Igreja catlica sempre foi uma grande formadora de contadores de histrias, que pena estar agora

  • a perder essa capacidade.

    Servem estas histrias para ir ao assunto de que vos quero falar hoje, que poderia ser resumido em

    trs mandamentos, se no tivessem tido a simpatia de me oferecer vinte minutos:

    Primeiro Mandamento - Conhece a tua prpria histria.

    Segundo Mandamento - Faz por conhecer a histria dos que te rodeiam no quotidiano.

    Terceiro Mandamento - Tenta conhecer e dar a conhecer a histria daqueles por quem passas sem

    notar.

    Estes trs mandamentos poderiam ser teis numa aula de iniciao ao jornalismo ou num encontro

    de formao desenhado para futuros polticos profissionais. Mas tambm me parecem trs

    mandamentos muito teis a qualquer catlico que queira ajudar a Igreja catlica a existir e a

    desempenhar um dos seus papis mais importantes:

    no deixar ningum para trs.

    H quem lhe chame a maior e mais antiga multinacional da Histria, h quem a acuse de ser mais

    lucrativa que benfeitora.

    Mas numa coisa acho que podemos concordar: a Igreja catlica ser a organizao importante que

    mais influncia perdeu em todo o mundo nos ltimos cinquenta anos.

    E eu - que a vejo de fora - diria que pelo menos uma parte da explicao a pouca capacidade de

    adaptao s formas actuais de comunicao, a pouca capacidade de adaptao a uma nova

    realidade em que cada vez mais pessoas tm acesso a informao, a pouca capacidade de adaptao

    a este contexto em que cada vez mais aberto o acesso cultura que antigamente se considerava

    alta cultura.

    A Igreja no se adaptou televiso - e j teve tanto tempo. A Igreja tem tido muita dificuldade na

    adaptao Internet.

    H uns sculos, para algum chegar com palavras a muita gente precisaria de um auditrio, se

    possvel protegido do frio, da chuva ou do calor, consoante a poca do ano. Hoje em dia no faz

    tanta falta o edifcio, no faz tanta falta a igreja-edifcio. Qualquer mido de qualquer ponto do

    mundo pode chegar com um vdeo, com uma histria ou com uma fotografia a mais gente do que o

    Papa actual com um discurso retalhado nos telejornais.

    Bem sei que o desafio difcil, mas aceit-lo a nica hiptese que resta a qualquer organizao

    que queira mesmo existir.

    Os catlicos tm que aprender a participar na actualidade, com os utenslios de hoje. A Igreja ir

  • atrs, que remdio.

    As razes para eu no vir aqui hoje seriam