boaventura de sousa santos - para além do pensamento abissal

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CONFERÊNCIA BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS 20.09.2007 PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL: DAS LINHAS GLOBAIS À ECOLOGIA DOS SABERES 1) Era contemporânea marcada por grandes perplexidades e uma crescente incapacidade da ciência moderna em responder às grandes questões e de apontar caminhos de mudança para a sociedade. Momento de perguntas fortes, porém que nos apresenta respostas fracas e impotentes. Exemplos de perguntas fundamentais às quais são dadas respostas equivocadas: - Se o mundo é um só, se é uno, porque há tanta diversidade cultural e heterogeneidade de modos de organização social ao redor do planeta? Resposta fraca: necessidade de alargar os direitos humanos a todos. Concepção de direitos humanos é eurocêntrica e vazia quando aplicada a diversas sociedades que têm outra idéia de direitos humanos. - Se o capitalismo e o mercado já são hegemônicos e se disseminaram pelo globo, porque há ainda tamanha desigualdade, miséria e pobreza? Resposta fraca: pouca penetração do capitalismo e do mercado nos territórios periféricos é a causa de sua estagnação. Não leva em conta o próprio funcionamento do sistema capitalista global, que permanentemente reproduz desigualdades sociais e regionais para poder sobreviver. 2) Pensamento Abissal: pensamento típico da modernidade, que corta, rasga e secciona a realidade em compartimentos estanques e incomunicáveis. Conhecimento científico como única forma de conhecimento legítimo, como critério único de verdade absoluta. Ideologia do progresso, da emancipação do homem por meio de um destino-manifesto. Modernidade definida em torno de dois eixos dialéticos: regulação (Ordem) e emancipação (Progresso). Pensamento abissal cria um abismo, um rasgo intransponível entre dois mundos concretos e também entre epistemologias e formas de conhecimento díspares. De um lado, reina o ideário moderno da regulação e da emancipação por meio da ciência moderna. Do outro, há a apropriação e a violência contra as vítimas dos processos de colonização e modernização, são as vozes dos outros, que comportam também outros saberes ignorados. Pensamento abissal é o paradigma da modernidade, e como ele não dá conta mais de explicar os fenômenos sociais do mundo deve então ser ultrapassado. 3) Colonização: regulação e emancipação (como promessas da modernidade) para uma elite minoritária na Europa, resultando na imposição da apropriação e da violência para a grande maioria do resto do mundo, colonizado e subjugado. Retorno contemporâneo do colonizador: Guantánamo (onde não se aplica a lei), Iraque,

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CONFERÊNCIA BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS 20.09.2007PARA ALÉM DO PENSAMENTO ABISSAL: DAS LINHAS GLOBAIS À

ECOLOGIA DOS SABERES

1) Era contemporânea marcada por grandes perplexidades e uma crescente incapacidade da ciência moderna em responder às grandes questões e de apontar caminhos de mudança para a sociedade.Momento de perguntas fortes, porém que nos apresenta respostas fracas e impotentes.Exemplos de perguntas fundamentais às quais são dadas respostas equivocadas:- Se o mundo é um só, se é uno, porque há tanta diversidade cultural e heterogeneidade de modos de organização social ao redor do planeta? Resposta fraca: necessidade de alargar os direitos humanos a todos. Concepção de direitos humanos é eurocêntrica e vazia quando aplicada a diversas sociedades que têm outra idéia de direitos humanos.- Se o capitalismo e o mercado já são hegemônicos e se disseminaram pelo globo, porque há ainda tamanha desigualdade, miséria e pobreza? Resposta fraca: pouca penetração do capitalismo e do mercado nos territórios periféricos é a causa de sua estagnação. Não leva em conta o próprio funcionamento do sistema capitalista global, que permanentemente reproduz desigualdades sociais e regionais para poder sobreviver.

2) Pensamento Abissal: pensamento típico da modernidade, que corta, rasga e secciona a realidade em compartimentos estanques e incomunicáveis.Conhecimento científico como única forma de conhecimento legítimo, como critério único de verdade absoluta. Ideologia do progresso, da emancipação do homem por meio de um destino-manifesto.Modernidade definida em torno de dois eixos dialéticos: regulação (Ordem) e emancipação (Progresso).Pensamento abissal cria um abismo, um rasgo intransponível entre dois mundos concretos e também entre epistemologias e formas de conhecimento díspares. De um lado, reina o ideário moderno da regulação e da emancipação por meio da ciência moderna. Do outro, há a apropriação e a violência contra as vítimas dos processos de colonização e modernização, são as vozes dos outros, que comportam também outros saberes ignorados.Pensamento abissal é o paradigma da modernidade, e como ele não dá conta mais de explicar os fenômenos sociais do mundo deve então ser ultrapassado.

3) Colonização: regulação e emancipação (como promessas da modernidade) para uma elite minoritária na Europa, resultando na imposição da apropriação e da violência para a grande maioria do resto do mundo, colonizado e subjugado.Retorno contemporâneo do colonizador: Guantánamo (onde não se aplica a lei), Iraque,

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muro contra a Palestina etc.O retorno do colonizado: imigrantes ilegais e trabalhadores estrangeiros nos países desenvolvidos, e que apresentam grande mobilidade. Reprodução desta dicotomia dialética dentro do espaço das grandes cidades: espaços civilizados (regulação e emancipação) e espaços selvagens (apropriação e violência).

4) Ecologia dos Saberes: aproximação da ciência moderna às outras formas de conhecimento que podem ser enriquecedoras e foram negadas e ignoradas sistematicamente.Conhecimento de populações tradicionais, práticas ancestrais, vida quotidiana etc.Proposta de coexistência entre os dois lados do muro abissal.Necessidade do fim da hegemonia da Ciência Moderna como única forma legítima de conhecimento.Autonomia individual a partir da emancipação coletiva e plural. Autonomia individual (que não significa individualismo, como nas sociedades do capitalismo avançado) deve ser um ponte de chegada e não de partida.Distância abissal entre o direito moderno (legalmente constituído) e o direito dos sem-lei, dos espaços onde a lei institucionalizada não penetra.Existência de um reino da alegalidade, para além da legalidade e da ilegalidade. Exemplo das favelas.Deslocamento da linha abissal da “esquerda” para a “direita”, ampliando a participação dos segmentos majoritários mas que são excluídos e calados pela voz hegemônica da modernidade.Os excluídos e os povos e culturas que se afirmam por suas identidades reivindicam a Regulação e a Emancipação (como promessas da modernidade), mas sem abandonar suas próprias práticas e conhecimentos tradicionais socialmente constituídos.Invenção de um novo mundo não é algo conhecido a priori, não há um modelo único. Pluralidade e democracia no processo de mudança social, caminhando para um novo que não é pré-concebido, não é um destino certo. Importância do processo em si.

5) Debate com Prof. Clélio Campolina DinizNecessidade de reinventar o Estado, e não de extinguí-lo em favor da mera organização espontânea e comunitária da sociedade civil. Instituições são importantes.Marxismo também é um pensamento abissal, pois deixa de fora todas as lutas que não sejam entre o proletariado e a burguesia, e vê a fratura do mundo em apenas classes sociais. Importância de pensar outras formas de desigualdades e de formação de identidades para além das classes sociais: religião, raça, cultura, etnias, família, tribo, gênero etc.Sul e Norte não são categorias territoriais: existência de um Sul dentro do Norte e de um Norte dentro do Sul (como as elites dos países subdesenvolvidos). São na verdade uma grande metáfora da fratura abissal do mundo.Ciência moderna já nasce contaminada por interesses de dominação e poder econômico. Ciência incorporada pelo capitalismo como força produtiva.O projeto de um ecologia dos saberes deve ser e só faz sentido se for coletivo.Universidades devem usar a extensão de fora para dentro, para trazer o “outro”, os movimentos sociais, lideranças indígenas, grupos marginalizados etc, para dentro de si.Colocar professores e alunos para aprenderem os outros saberes. Reinventar a democracia para além da esfera política e dos partidos: necessidade de oportunidades econômicas justas, democratização da justiça, igualdade de gênero, fim do despotismo da família e diversas outras lutas contra qualquer subtração da liberdade humana.Reconhecimento de que a maioria da população humana luta diariamente para manter a sua dignidade mesmo vivendo nas condições mais indignas possíveis.