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BOBBIO - DEMOCRACIA – a democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si mesmo. Os escritores democráticos do fim do Setecentos contrapunham a democracia moderna (representativa) à democracia dos antigos (direta) precisamente de "degeneração" da democracia, mas sim de adaptação natural dos princípios abstratos à realidade ou de inevitável contaminação da teoria quando forçada a submeter-se às exigências da prática. Todas, menos uma: a sobrevivência (e a robusta consistência) de um poder invisível ao lado ou sob (ou mesmo sobre) o poder visível, como acontece por exemplo na Itália. Pode-se definir a democracia das maneiras as mais diversas, mas não existe definição que possa deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade ou transparência do poder definição mínima de democracia, segundo a qual por regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados. Sei bem que tal definição procedimental,* ou formal, ou, em sentido pejorativo, formalística, parece muito pobre para os movimentos que se proclamam de esquerda. Porém, a verdade é que não existe outra definição igualmente clara e esta é a única capaz de nos oferecer um critério infalível para introduzir uma primeira grande distinção (independentemente de qualquer juízo de valor) entre dois tipos ideais opostos de formas de governo. Por isto, é bom desde logo acrescentar que, se se inclui no conceito geral de democracia a estratégia do compromisso entre as partes através do livre debate para a formação de uma maioria democracia tem um porvir e qual é ele, admitindo-se que exista, responderia tranqüilamente que não o sei. democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que

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BOBBIO - DEMOCRACIA –

a democracia é dinâmica, o despotismo é estático e sempre igual a si mesmo. Os escritores democráticos do fim do Setecentos contrapunham a democracia moderna (representativa) à democracia dos antigos (direta)

precisamente de "degeneração" da democracia, mas sim de adaptação natural dos princípios abstratos à realidade ou de inevitável contaminação da teoria quando forçada a submeter-se às exigências da prática. Todas, menos uma: a sobrevivência (e a robusta consistência) de um poder invisível ao lado ou sob (ou mesmo sobre) o poder visível, como acontece por exemplo na Itália. Pode-se definir a democracia das maneiras as mais diversas, mas não existe definição que possa deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade ou transparência do poder

definição mínima de democracia, segundo a qual por regime democrático entende-se primariamente um conjunto de regras de procedimento para a formação de decisões coletivas, em que está prevista e facilitada a participação mais ampla possível dos interessados. Sei bem que tal definição procedimental,* ou formal, ou, em sentido pejorativo, formalística, parece muito pobre para os movimentos que se proclamam de esquerda. Porém, a verdade é que não existe outra definição igualmente clara e esta é a única capaz de nos oferecer um critério infalível para introduzir uma primeira grande distinção (independentemente de qualquer juízo de valor) entre dois tipos ideais opostos de formas de governo. Por isto, é bom desde logo acrescentar que, se se inclui no conceito geral de democracia a estratégia do compromisso entre as partes através do livre debate para a formação de uma maioria

democracia tem um porvir e qual é ele, admitindo-se que exista, responderia tranqüilamente que não o sei.

democracia, entendida como contraposta a todas as formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimentos

a regra fundamental da democracia é a regra da maioria, ou seja, a regra à base da qual são consideradas decisões coletivas — e, portanto, vinculatórias para todo o grupo — as decisões aprovadas ao menos pela maioria daqueles a quem compete tomar a decisão. Se é válida uma decisão adotada por maioria, com maior razão ainda é válida uma decisão adotada por unanimidade4

: na direção que vai do liberalismo à democracia, no sentido de que são necessárias certas liberdades para o exercício correto do poder democrático, e na direção oposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que é necessário o poder democrático para garantir a existência e a persistência das liberdades fundamentais.

DEMOCRACIA É PARA O ESTADO LIBERAL, ESTADOS NÃO LIBERAIS NÃO SÁO DEMOCRÁTICOS

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A democracia nasceu de uma concepção individualista da sociedade, isto é, da concepção para a qual — contrariamente à concepção orgânica, dominante na idade antiga e na idade média, segundo a qual o todo precede as partes — a sociedade, qualquer forma de sociedade, e especialmente a sociedade política, é um produto artificial da vontade dos indivíduos.

democracia dos antigos, deveria ser caracterizada pela representação política, isto é, por uma forma de representação na qual o representante, sendo chamado a perseguir os interesses da nação, não pode estar sujeito a um mandato vinculado

A democracia representativa, que é a única forma de democracia existente e em funcionamento, é já por si mesma uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia

. Nada ameaça mais matar a democracia que o excesso de democracia.

democracia moderna nasceu como método de legitimação e de controle das decisões políticas em sentido estrito, ou do "governo" propriamente dito (seja ele nacional ou local), no qual o indivíduo é considerado em seu papel geral de cidadão e não na multiplicidade de seus papéis específicos de fiel de uma igreja, de trabalhador, de estudante, de soldado, de consumidor, de doente, etc

. democracia num dado país o certo é procurar perceber se aumentou não o número dos que têm o direito de participar nas decisões que lhes dizem respeito, mas os espaços nos quais podem exercer este direito.

democracia nasceu com a perspectiva de eliminar para sempre das sociedades humanas o poder invisível e de dar vida a um governo cujas ações deveriam ser desenvolvidas publicamente

PLATÃO - denegri-la, Platão (que era um antidemocrático) a havia chamado de "teatrocracia" (palavra que se encontra, não por acaso, também em Nietzsche).

Uma das razões da superioridade da democracia diante dos estados absolutos

nos discursos apologéticos sobre a democracia, jamais esteve ausente o argumento segundo o qual o único modo de fazer com que um súdito transforme-se em cidadão é o de lhe atribuir aqueles direitos que os escritores de direito público do século passado tinham chamado de activae civitatis [Em latim no original: cidadania ativa, direitos do cidadão. (N. do T.)]; com isso, a educação para a democracia surgiria no próprio exercício da prática democrática.

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A democracia sustenta-se sobre a hipótese de que todos podem decidir a respeito de tudo

apenas a democracia permite a formação e a expansão das revoluções silenciosas, como foi por exemplo nestas últimas décadas a transformação das relações entre os sexos — que talvez seja a maior revolução dos nossos tempos

CONTATAÇÃO - democracia exprime-se como exigência de que a democracia representativa seja ladeada ou mesmo substituída pela democracia direta

O QUE HÁ MODERNAMENTE, É UMA ETAPA ADAPTATIVA DO PROCESSO DEMOCRÁTICO - Em outras palavras, podemos dizer que o que acontece hoje quanto ao desenvolvimento da democracia não pode ser interpretado como a afirmação de um novo tipo de democracia, mas deve ser entendido como a ocupação, pelas formas ainda tradicionais de democracia, como é a democracia representativa, de novos espaços, isto é, de espaços até agora dominados por organizações de tipo hierárquico ou burocrático.

O pluralismo enfim nos permite apreender uma característica fundamental da democracia dos modernos em comparação com a democracia dos antigos: a liberdade — melhor: a liceidade — do dissenso

Esta característica fundamental da democracia dos modernos baseia-se no princípio segundo o qual o dissenso, desde que mantido dentro de certos limites (estabelecidos pelas denominadas regras do jogo), não é destruidor da sociedade mas solicitador, e uma sociedade em que o dissenso não seja admitido é uma sociedade morta ou destinada a morrer.

Para que exista uma democracia basta o consenso da maioria. Mas exatamente o consenso da maioria implica que exista uma minoria de dissentâneos

Por isto afirmo existir uma relação necessária entre democracia e dissenso, pois, repito, uma vez admitido que democracia significa consenso real e não fictício, a única possibilidade que temos de verificar se o consenso é real é verificando o seu contrário. Mas como poderemos verificá-lo se o impedirmos?

Entre o despotismo em estado puro e a democracia em estado puro existem centenas de formas diversas mais ou menos despóticas e mais ou menos democráticas. E pode inclusive acontecer que uma democracia controlada seja o início do despotismo, bem como que um despotismo atenuado seja o início de uma democracia. Mas o critério discriminante existe e é a maior ou menor quantidade de espaço reservado ao dissenso.

ATUALMENTE - democracia medíocre, e que não estão dispostos a aceitar o argumento do mal menor

CONTATAÇÃO DE DISCURSO - democracia consiste em afirmar que ela é o governo do "poder visível". Que pertença à "natureza da democracia" o fato de que "nada pode permanecer confinado no espaço do mistério

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Que a democracia tenha nascido da concepção individualista, atomista, da sociedade, não há dúvida (de onde nasceu o individualismo é um outro problema mais difícil de resolver, pois são muitos os aspirantes ao papel de fundadores). Não há também dúvida de que a democracia representativa nasceu do pressuposto (equivocado) de que os indivíduos, uma vez investidos da função pública de escolher os seus representantes, escolheriam os "melhores".

Que a democracia tenha nascido da concepção individualista, atomista, da sociedade, não há dúvida (de onde nasceu o individualismo é um outro problema mais difícil de resolver, pois são muitos os aspirantes ao papel de fundadores). Não há também dúvida de que a democracia representativa nasceu do pressuposto (equivocado) de que os indivíduos, uma vez investidos da função pública de escolher os seus representantes, escolheriam os "melhores".

princípio fundamental da democracia, segundo o qual fonte de poder são os indivíduos uti singuli e cada indivíduo vale por um (o que, entre outras coisas, justifica a aplicação da regra de maioria para a tomada das decisões coletivas).

E o que é a democracia se não um conjunto de regras (as chamadas regras do jogo) para a solução dos conflitos sem derramamento de sangue? e em que consiste o bom governo democrático se não, acima de tudo, no rigoroso respeito a estas regras? Pessoalmente, não tenho dúvidas sobre a resposta a estas questões. E exatamente porque não tenho dúvidas, posso concluir tranqüilamente que a democracia é o. governo das leis por excelência. No momento mesmo em que um regime democrático perde de vista este seu princípio inspirador, degenera rapidamente em seu contrário, numa das tantas formas de governo autocrático de que estão repletas as narrações dos historiadores e as reflexões dos escritores políticos.