Boi da macuca uma invenção viva na contemporaneidade

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BOI DA MACUCA UMA INVENÇÃO VIVA NA CONTEMPORANEIDADE: PERSPECTIVAS E TENSÕES PARA OS ESTUDOS DE TRADIÇÃO NA CULTURA POPULAR _______________________________________________________________ FRANCISCO RODRIGO SIMÕES ALVES SILVA Pesquisador em cultura popular. Artigo de conclusão do projeto Boi da Macuca: um brinquedo encangado nas costas. Contemplado pelo Funcultura 2011-2012. Coordenação técnica: Katarina Barbosa. RESUMO A Boi da Macuca é uma manifestação relacionada as práticas do Bumba-meu- boi do nordeste, sendo assim uma brincadeira de cultura popular que surgida em 1989 será analisada neste trabalho a partir do conceito de “tradição viva” inserida no contexto dos processos e transformações das quais constituem a contemporaneidade. Dessa forma, apresentaremos um contexto no qual se originou esta manifestação; discutiremos o conceito de tradição e apresentaremos uma perspectiva para os estudos dos saberes populares focalizando o seu contexto de produção e circulação no presente de seu surgimento relacionando o Boi da Macuca como uma manifestação surgida no seio do capitalismo e que se mantém como tradição viva do agreste meridional. PALAVRAS-CHAVE: Tradição viva, cultura popular, contemporaneidade The Macuca's bull is a sort of manifest relatade to the practice of "Bumba meu boi" in the NE of Brazil, it is knowing as a cultural popular game, since 1989 it has been analized with the conception of "alive tradition" inserted into the conceptions of contemporary. Like that we present this concept on which started this manifest; we will discuss the concepts of tradition and present a perspective to the studies of popular knowledge, giving focus to the concept of production and circulation in the begun of its manifest. The Boi da Macuca started into the capitalism but is still an alive tradition in the "agreste meridional".

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Artigo de conclusão do projeto Boi da Macuca: um brinquedo encangado nas costas. Contemplado pelo Funcultura 2011-2012. pesquisador Francisco Rodrigo Simões Alves Silva.

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BOI DA MACUCA UMA INVENÇÃO VIVA NA CONTEMPORANEIDADE: PERSPECTIVAS E TENSÕES PARA OS ESTUDOS DE TRADIÇÃO NA

CULTURA POPULAR

_______________________________________________________________

FRANCISCO RODRIGO SIMÕES ALVES SILVA

Pesquisador em cultura popular.

Artigo de conclusão do projeto Boi da Macuca: um brinquedo encangado nas costas.

Contemplado pelo Funcultura 2011-2012.

Coordenação técnica: Katarina Barbosa.

RESUMO

A Boi da Macuca é uma manifestação relacionada as práticas do Bumba-meu-boi do nordeste, sendo assim uma brincadeira de cultura popular que surgida em 1989 será analisada neste trabalho a partir do conceito de “tradição viva” inserida no contexto dos processos e transformações das quais constituem a contemporaneidade. Dessa forma, apresentaremos um contexto no qual se originou esta manifestação; discutiremos o conceito de tradição e apresentaremos uma perspectiva para os estudos dos saberes populares focalizando o seu contexto de produção e circulação no presente de seu surgimento relacionando o Boi da Macuca como uma manifestação surgida no

seio do capitalismo e que se mantém como tradição viva do agreste meridional.

PALAVRAS-CHAVE: Tradição viva, cultura popular, contemporaneidade

The Macuca's bull is a sort of manifest relatade to the practice of "Bumba meu boi" in the NE of Brazil, it is knowing as a cultural popular game, since 1989 it has been analized with the conception of "alive tradition" inserted into the conceptions of contemporary. Like that we present this concept on which started this manifest; we will discuss the concepts of tradition and present a perspective to the studies of popular knowledge, giving focus to the concept of production and circulation in the begun of its manifest. The Boi da Macuca started into the

capitalism but is still an alive tradition in the "agreste meridional".

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No interior do agreste meridional de Pernambuco, perto da pequena

comunidade de Poço Cumprido o Boi da Macuca, grupo de Cultura Popular,

surgido em 1989, na Fazenda Macuca, município de Correntes - PE, Região

Nordeste do Brasil, é uma expressão brincante e irreverente que tem nos seus

componentes os elementos vivos da cultura local. Trata-se de uma região onde

a oferta de bens e serviços culturais é bastante carente e onde a agricultura e,

principalmente, a pecuária é base do ordenamento social. Além disso, existe um

precário acesso aos serviços de educação e saúde que também não tem sua

demanda suprida na região.

Este folguedo popular é nascido da imaginação de Zé da Macuca, geólogo

que abandonou uma carreira no grupo João Santos para ocupar o espaço

geográfico herdado de seu pai, foi aprender a cuidar da terra e do gado, mas

descobriu a existência de um boi mítico, presente na imaginação das pessoa. O

Boi da Macuca é uma manifestação cultural do bumba-meu-boi.

Porém, neste artigo pretendemos pensar a ideia de que este brinquedo

popular do agreste é uma tradição viva da cultura popular na medida em que

sofre os processos de sincronicidade do tempo de sua origem. O Boi da Macuca

é uma manifestação que além de preservar elementos tradicionais reelabora-os,

reconfigura-os e num processo de ressignificação criativa pode ser estudada

como um exemplo de manifestação que lida com as forças dinamizadoras no

seio do que acontece as novas tradições inseridas no atual contexto do mundo.

Para entendermos o Boi da Macuca enquanto uma manifestação viva da

cultura popular contemporânea nos apoiamos no referencial teórico-conceitual

ao qual tentaremos detalhar em seguida.

Assim falaremos sobre as perspectivas de analise dos saberes populares

apresentadas pela jornalista Maria Alice Amorim; da Antropóloga. Professora do

Depto. de Antropologia e Museologia e do PPGA/ UFPE, Maria Aparecida Lopes

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Nogueira e da também antropóloga Maria das Graças Vanderlei da Costa,

Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de

Pernambuco (IFPE), que nos seu artigo “Tradição viva: A tradição sob a égide

da ‘razão aberta “ se propõem a analisar sob o conceito de tradição viva a

produção acadêmica desses saberes populares a partir de uma razão aberta,

que leva em conta a dinâmica em que esses saberes estão situados no presente.

Nesse sentido, traremos as reflexões apontadas por Marcos e Maria Ignez

Ayala, pois apresentam questões muito pertinentes à abordagem da cultura no

seu contexto de origem, todas presentes no seu livro A Cultura popular no

Brasil.

Analisaremos esta brincadeira a partir da noção de tradição dada por Erik

Hobsbawn, no seu livro A invenção das tradições. Neste livro o autor pensa a

tradição dentro de uma ideia de processo histórico no qual a reutilização de

dados elementos numa cultura resultam de certa forma, em novas formas de

tradição pois se originam em contextos históricos que acompanham as

transformações a qual estão inteiramente ligadas.

Sendo o Boi da Macuca uma manifestação nascida no epicentro da

origem do capitalismo contemporâneo ( o Boi surge em 1989, ano do fim da

antiga União Soviética ) analisaremos a relação deste folguedo e suas

estratégias de resistência e circulação e de que forma se mantém dentro desse

cenário relacionando-o a obra de Nestor Gárcia Clanclini em Culturas

populares no Capitalismo.

Por fim, tornearemos esta discussão através do levantamento de

questões epistemológicas apoiadas nas reflexões de Gerd Bornhei e José

Américo Pessanha, Tradição/Contradição, obra compilada que traz reflexões

profundas sobre a natureza da tradição, sua relação intrínseca com a ruptura, e

a dinâmica com que estes conceitos sobrevivem de maneira a poder dar

continuidade ao processo da tradição na cultura e de como os processos de

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ruptura são muitas vezes responsáveis pela superação da estagnação e da

morte na cultura.

Não podemos deixar de expor que além de nossa vivência como brincante

desse folguedo popular, contribuiu muito para o nosso interesse sobre questões

que envolvem a cultura popular de forma geral a pesquisa em cultura popular e

tradição contemplada pelo edital do Fundo de incentivo à Cultura –

FUNCULTURA, 2011/2012, denominado “Boi da Macuca: um brinquedo

encangado nas costas!”. Nosso objetivo era de realizar o registro da história dos

vinte e cinco anos do Boi da Macuca e de alguma forma contribuir para o fomento

e a continuidade dos folguedos de tradição da cultura popular pernambucana.

Assim, durante o processo de execução desse projeto nos deparamos

com uma questão intrigante e que naturalmente nos levou a outras: o Boi da

Macuca é uma tradição? O que faz de uma brincadeira popular uma tradição?

Quais são os aspectos que caracterizariam uma tradição? E no percurso da

pesquisa, sempre, durante as abordagens e entrevistas que fazíamos

perguntávamos a outras pessoas as mesmas perguntas e, de onde podemos

perceber que as respostas variavam de acordo com a percepção particular que

cada um tem sobre o que realmente seria tradição. Foi quando nos decidimos

em introduzir em nossa missão de pesquisa o entender o que é tradição e que

se o Boi da Macuca seria uma tradição, porém analisada numa conjuntura que

levasse em conta a sua história singular.

Dessa forma, pretendemos afirmar a partir de uma análise que leve em

conta o contexto do presente no qual este brinquedo popular se originou; que

não leve em conta categorias que apenas engessam conceitos que interagem

no campo simbólico da cultura popular sem percebê-la como ativa dentro de um

processo dinâmico e constante; então veremos esta manifestação de cultura

popular denominada Boi da macuca como uma tradição viva, pois no bojo de sua

invenção ela reelabora os elementos simbólicos da cultura local, os quais se

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utiliza para recriar uma nova tradição que se insere no contexto do mundo

contemporâneo.

Tradição na perspectiva do desengessamento do passado

A análise proposta neste trabalho procura se situar no interior do debate

que envolve várias áreas do conhecimento como a antropologia, a história, a

epistemologia e que oferecem cada uma a sua maneira uma contribuição, no

sentido do fazer-se uma leitura da importância dentro do novo quadro global em

que a tradição popular ou os saberes da tradição se apresentam no contexto da

sociedade contemporânea. Dessa forma, o que se pretende é levantar alguns

questionamentos à respeito de elementos considerados basilares na

determinação daquilo que porventura venha a ser considerado tradição como

por exemplo: as que impõem uma relação com um passado indissociável, e a

necessidade da reprodução mimética das formas originárias de manifestação

das práticas culturais, além de outros elementos engessadores e que anulam a

possibilidade criativa de atualização da cultura popular no tempo. Utilizando o

suporte conceitual da Antropologia, articulando-o e sendo subsidiado por

conhecimentos da história, além do estabelecimentos de pontos de tensões e

aprofundamento das questões a partir de reflexões providas da análise filosófica

epistemológica para entendermos a relação entre a ideia de tradição e em qual

mundo se situam manifestações da cultura popular tradicional e de que forma

as suas características se reelaboram no cenário atual materializadas na

representação do folguedo da região do agreste meridional de Pernambuco

denominado Boi da Macuca. Este folguedo que nasceu em 1989 e é

considerado hoje um dos mais antigos em atuação no estado. É originário das

terras que envolvem o entorno da região onde estão os municípios de

Garanhuns, Palmeirina, Correntes e os distritos de Poço Cumprido e Baixa

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Grande. Esta manifestação da cultura popular nasce a partir das ideias pseudo-

anarquistas de seu idealizador, José oliveira da Rocha, Capitão Zé da Macuca,

que assimilando os elementos da cultura popular local, como por exemplo o

elemento imagético do Boi, extremamente importante para a base da economia

local e num processo sempre presente nas tradições, inventa um elemento

simbólico popular Bumba-meu-boi que alimenta-se desses mesmo elementos

configurando-os numa forma nova de tradição, que absorve a dinâmica do tempo

e do contexto social contemporâneo. Consideramos como tradição nesse

contexto, as práticas culturais que se servem de elementos antigos na sua

elaboração, enquanto novas tradições inventadas para fins originários

(HOBSBAWN, 1984).

Em artigo publicado na revista ANTROPOLÓGICAS de 2010, chamado

“Tradição viva: a tradição sob a égide da ‘razão aberta’” as autoras deste texto

nos apresentam um delineamento de uma nova perspectiva de estudos sobre os

saberes da tradição:

“A produção acadêmica sobre os saberes da tradição na contemporaneidade exige, fundamentalmente, a compreensão de sua força e dinâmica, das formas de produção e circulação dessa cultura. (…). Supõe, também, a apreensão das estratégias de resistência, das questões que envolvem seu encontro com os meios de comunicação de massa, a indústria cultural e o mercado. O pano de fundo das controvérsias que aí subjazem é cravado pela historicidade, por isso

esse tipo de conhecimento requer, sobretudo, a filiação a uma epistemologia calcada numa „razão aberta‟, capaz de enfrentar os processos de reelaboração e ressignificação dos saberes da tradição, reconhecer sua importância, as tensões e os conflitos que – recursivamente – os alimentam.(…) Tais remodelizações optam por focalizar o olhar no encontro deste capital cultural com os demais, que é fomentado pela sutura dos pares de opostos local e global e tradição e contemporaneidade, forjando hologramaticamente

um rico e diverso leque de saberes que constitui

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patrimônio de toda a humanidade.” AMORIM, Maria

alice; NOGUEIRA, Maria Aparecida lopes; DA COSTA, Maria das Graças Vanderlei. “Tradição viva: A tradição sob a égide da ‘razão aberta”. Revista Antropológicas, ano 14,vol 21, 129-155.

A análise deste artigo procura nos permitIr entendermos a tentativa de

construção de uma nova égide para os estudos da tradição, ou melhor dizendo

das “Tradições vivas”, no qual se acredita que não se pode fazer uma análise

dos elementos que caracterizariam o contexto da produção e manifestação dos

saberes antigos na contemporaneidade, levando apenas em consideração o

mesmo construto epistêmico discursivo que encarcera o exame dessas práticas

culturais ao passado. Esta critica, nos ajuda a entender porque manifestações

populares, como as que se originaram a menos de três décadas como é o caso

do Boi da Macuca e que sobrevivem no tempo devem ser reestudadas sobre o

prisma de uma racionalidade menos determinista e fechada; uma racionalidade

que apure, respeitando as novas condicionalidades sociais, políticas,

econômicas e culturais na qual se mostram inseridas ,hoje. Práticas que

entendam a produção do conhecimento como algo que se manifesta em

constante processo de construção, e que tende a assimilar elementos do

desconhecido, pois “o conhecimento é processual, inacabado; portanto

pressupõe a incorporação da incerteza e do erro. Um permanente refinamento,

seiva que transforma e amplia a construção do saber, fortalecendo sua infindável

trajetória” ( BACHERLARD apud AMORIM; NOGUEIRA; DA COSTA, 2010,

p.131). Dessa forma, estes são aspectos que podem traduzir o que está no

entorno da manifestações culturais e com as quais esta em constante processo

de alimentação e conflito.

Também é interessante nos detemos e pensarmos os estudos sobre

tradição no contexto da cultura popular, e isto esta presente nas análises de

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Marcos e Maria Ignez Ayala. Esse autores apontam algumas das bases para

pesquisa sobre a cultura popular brasileira. E para tanto discutem concepções

que provém desde o século XIX, de autores brasileiros e europeus até os dias

atuais. Nessa perspectiva compreendem este fenômeno das praticas culturais

como fenômenos que devem ser estudados na sua forma especifica e dentro do

contexto do presente contingencial que as formam e não imperiosamente presas

e sobreviventes do passado. Assim sintetizamos citando uma passagem do livro

Cultura popular no Brasil: Pois para os autores a pesquisa sobre as

manifestações culturais

“(...) exige que se considere a cultura popular

enquanto produção e no presente. Assim, se a

delimitação da cultura popular não pode estar

exclusivamente baseada no tipo de interesses de

classe que veicula, também não pode ser feita a partir

de características que a veiculem rigidamente ao

passado. Critérios como a origem rural, o caráter

“tradicional”, a “ambiguidade”, a preservação pela

imitação, a manutenção de concepções ou praticas

arcaicas, próprias a condições de existência já

extintas ou em vias de desaparecimento, resultam em

um enfoque que congela a cultura no passado. Além

de implicar uma visão da cultura popular como

anacronismo, como sobrevivência do passado no

presente, tal enfoque fixa-se na cultura popular como

produto, conjunto de objetos ou “bens culturais”.

Esquece-se que, como toda cultura, ela só se mantém

na medida em que for reproduzida, reelaborada

permanentemente, e que necessariamente se

transforma quando se modificam as condições

historicossociais no âmbito das quais é produzida”

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Na citação observamos, o que para nós é a síntese dos pontos da critica

a que nos propomos levantar com neste artigo. Para podermos entender o que

é tradição e os saberes populares hoje, temos que estuda-las como sendo

praticas culturais como frutos simbólicos que nasceram nesse momento da

história. Não adianta comparar, as condições gerais em que um um bumbá-meu-

boi formado a vinte e cinco anos com as praticas culturais de bumbá-meu-boi

formadas no século XIX, e que apesar de sofrerem com as contingências do seu

tempo, tem seu acontecimento realizado num tempo cuja configuração não é

idêntica a de hoje. Outro ponto são os chamados “critérios”, e sempre que

pensamos em critérios nos colocamos a pensar e quem os instituiu? A questão

é que a constante reconstrução das formas de entendimento e analise dos

saberes é a única maneira mantê-los ainda presente e contribuindo para o

norteamento das identidades e do patrimônio cultural historicamente construído.

Não se pode pensar as praticas culturais de uma forma geral, sem a

olharmos dentro da conjuntura em que a história se forma. Vivemos num período

de rupturas. Ou pelo menos num momento em que as rupturas tomam forma

mais intensa do que em outros períodos históricos E manifestações como esta

que estamos refletindo aqui, que nascem dentro de um novo quadro

diferentemente instituído das manifestações que possuem mais de cem anos e

que passaram por períodos de perseguições e perda dos direitos de se

manifestar, precisam terem sobre elas uma nova forma de olhar sobre suas

pratica. Por isso, não é difícil hoje, entre acadêmicos ou mesmo entre aqueles,

que mesmo não tendo acesso a um panorama maior de informação,

compreenderem o espirito do tempo em que vivem, e se aperceberam de forma

mais concreta no seu dia-a-dia as transformações que o mundo e cultura popular

vem passando. Assim, o século XXI é para muitos um tempo de flutuação, de

incertezas. A lógica cartesiana, as ideias de progresso pela crença na razão e

na ciência. Os sistemas de pensamento que poderiam nos ajudar entender o

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que somos e qual a origem dos valores do tempo em que existimos. Conceitos

considerados nucleares com Deus, religião, família, nada escapa ao juízo da

história que crava na sociedade uma interrogação perpetua de medo com

relação ao futuro. Um período onde tudo é desconstruído e questionável. Então

nesse contexto muitos se fazem perguntar o que será que ainda persiste como

uma espécie de valor basilar para a vida do homem contemporâneo? Assim,

para o professor e filosofo brasileiro Gerd Bornhein não seria nada incomum ou

estarrecedor encontrarmos alguém a nos dizer que “ a tradição acabou!” ou que

“tradições não existem mais...! ” pois o que marcaria o nosso momento histórico

nas palavras do professor seria o fato de que “ A novidade hoje está neste ponto:

a experiência da ruptura suplanta em muito a vigência da tradição. No passado,

o surto da ruptura não conseguia prejudicar de modo substancial a estabilidade

da tradição, quando é precisamente essa força da erradicação que vem

caracterizando os novos tempos” (BORNHEIN,1987). De uma forma geral, o

discurso é de que não há mais espaço para a continuidade, a perenidade das

coisas não mais existe. Nosso conhecimento repassado, nossos símbolos,

valores, nada mais tem valor. Na verdade um dos cernes desse projeto está

intrinsicamente subsescrito nas seguintes palavras: “ aquele traço aventado de

querer-se permanente da tradição não exclui a sua própria evolução histórica –

mesmo a permanência tem uma história” (BORNHEIN,1987) . Ou como diria

parafraseando o poeta, “nada permanece inalterado até o fim”. Nesse sentido é

que ressaltamos no pensamento de Gerd Bornhein, a ideia de que no passado

quando a ideia de ruptura não era tão presente na realidade sóciopoliticocultural

dos indivíduos, as transformações pelas quais o mundo e, a nossa visão sobre

este acontecia, tudo isso, se apresentava de forma mais lenta e tudo parecia

ceder menos a transformação. Como exemplo disso, cita o filosofo o que

aconteceu ao estilo gótico durante o período medieval que designa um período

da arte ocidental que dá seus primeiros passos no século XII e que se estende

pela europa até o princípio do século XVI, e que se caracteriza pela conjugação

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entre o contexto social, politico e religioso com os valores estéticos e filosóficos

de seu tempo.

Outro argumento que este autor se utiliza para reforçar a impossível

inalterabilidade das tradições, diz respeito a noção de folclore. Na qual

caracteriza, relacionando-a as categorias de isolamento, atestadas muitas vezes

por conta do contexto de origem, a repetibilidade, a homogeneidade em seus

elementos característicos, e por fim, a invariabilidade. Pois bem para o homem,

o mesmo que é criador de folclore, ou outro, não pode mais pensar o seu fazer

folclórico independente das radicais transformações por que passou o mundo a

partir da revolução industrial. Este mesmo homem vive a se debater sobre

experiências diversas. Assim, conclui que nenhuma experiência de uma pratica

cultural se dá de modo exclusivo, fora das condicionalidades em que o mundo

passou e que depois se intensificou até os dias atuais. E ainda faz um alerta

àqueles que ainda tem uma visão estática de tradição como algo que é sempre

pensado numa correlação imperiosa com o passado, sempre estático,

dessincronizado do tempo quando afirma que “tradição só parece ser

inpertubavelmente ela mesma na medida em que afasta qualquer possibilidade

de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de que a ausência de

movimento termina condenando-a à estagnação da morte” pg.15

História e Antropologia caminham juntas de forma a nos mostrar as novas

relações de força em que os saberes populares e a tradição popular estão

inseridos no contexto da contemporaneidade. Em seu livro Culturas populares

no capitalismo. Nestor Garcia Canclini, nos traz uma visão bastante critica sobre

o que alguns fazem da relação da cultura popular - e não pretendemos aqui

discutir os argumentos pelos quais o autor usa da denominação de culturas

populares-, com a indústria cultural, a qual é motivada pelo capitalismo. Pois o

autor busca fazer com que possamos visualizarmos essas culturas populares

não só em sua definição ou caracterização, mas, procurando entender como elas

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estão inteiramente ligadas nas transformações sociais que surgem, seja no

ambiente urbano ou rural, como também no político cultural (CANCLINI, 1982).

E aqui vale colocar as formas de circulação e nas quais o Boi da Macuca se

utiliza para sua continuidade e sobrevivência estando inserida, enquanto

manifestação popular que se articula com os mecanismos do Mercado da

cultura. O Boi da Macuca, como muitas outras manisfestaçõs populares em

Pernambuco, no Brasil e no mundo tendem a inserir-se na praticas que tem por

fim o angariamento de recursos para sua manutenção e continuidade e correm

assim . A princípio o que era pura brincadeira erra organizado de forma coletiva

e por pouco, muito pouco se faziam toda uma brincadeira sem o peso de

responsabilidades com o futuro. Mas logo as necessidades internas de qualquer

folguedo sobrevieram.

A Fazenda Macuca, local onde se realiza os três cortejos anuais da festa

do Boi torna-se a partir do ano 2000 um espaço de festas muiticulturais onde

coabitam as expressões do Rock’n Roll, no antigo Concerto da Macuca, festival

de bandas relacionadas à mesma linguagem musical o que acaba por tornar este

espaço conhecido por pessoas de outras cidades, estados e regiões, mas que a

partir de 2006 torna-se Festival dos Brinquedos populares da Macuca. Além

dessa festa,que está em plena atuação hoje, e que coexistia junto ao São João

da Macuca, a partir do mesmo ano de 2006 a acontecer o Festival de Jazz e

Improviso da macuca. Pois bem, essa é uma espécie de articulação dos que

fazem o Boi d Macuca, se utilizando que se impõe no local entre diversidade

cultural, a beleza ambiental e relação com uma experiência libertária, pois na

macuca se percebe um grande respeito nas inter-relações dos que lá vão. Junta

tudo isso, e se forma uma quadro onde através da preservação dos elementos

culturais e das riquezas naturais do lugar formam um plano de dimensão atraente

para um público que sai viajando de suas cidades e vem à Macuca, para usufruir

que lhes é oferecido e para tanto recursos de entrada, campim, alimentação,

bebidas, etc. são parte dessa maneira de capitar recursos para o local.

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Também para a manutenção do folguedo existem a formas de circulação

que variam desde pequenas apresentações nas cidades circunvizinhas:

Garanhuns, Palmerina, Correntes, por vezes a valores monetários que não

suprem nem as demandas de alugueis de ônibus, alimentação, a apresentações

no Festival de Inverno de Garanhuns, e o Carnaval do Recife e Olinda, se

articulando entre o palco onde recebem um “pouco melhor”, e a rua. Essas são

as principais estratégias de manutenção dessa brincadeira. Isso as contextualiza

no cenário das praticas culturais inseridas na contemporaneidade onde essas

manifestações se apropriam dos agenciamentos oferecidos sedutoramente pelo

capitalismo como uma maneira de sub- existir num cenário que não respeita a

cultura popular, e possue pesos de diferente medidas para o que popular e o

que é de massa ou que é considerado de “elite”.

E é por isso que Caclini nos mostra os desdobramentos que a atividade

do consumo causa no material simbólico tradicional, ressalta que a cultura

popular procura se adequar ao mercado capitalista, onde acabou, em muitos

casos, tornando-se um simples produto de vendagem, compra e exportação.

Nesse sentido, é que acreditamos que o texto de Canclini se apresenta como

um importante documento que nos instiga a refletir sobre o real valor e sentido

da cultura popular no meio em que vivemos. E para nós esse trabalho é uma

forma de mostrarmos a importância de percebermos o poder da força

sincronizante entre as praticas populares e o atual momento em que estas se

apresentam como manifestação das tradições vivas contemporâneas.

Boi da Macuca: uma invenção viva hoje

O movimento cultural Boi da Macuca, surge das primeiras impressões da

infância de um homem nascido em Palmeirina, em 1954, cidade do agreste de

Pernambuco, onde ainda criança aos seis anos após ver um bumba-meu-boi tem

nas suas primeiras memorias o começa de um caminho de descoberta e

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aprendizado que continua até os dias atuais. Ainda jovem, vai para Garanhuns,

centro urbano um pouco mais desenvolvido, terra do café, onde continua seus

estudos e faz o antigo ginásio. Logo após vai para a capital pernambucana onde

se gradua em geologia e passa a conviver num mundo de constante

descobrimentos.

Começa sua carreira no grupo João Santos, um dos três maiores

conglomerados do Nordeste, produtor do cimento Nassau. Como geólogo onde

junto a amigos de diferentes áreas no campo das artes, já residente na capital

sergipana, começam a articular ações que nascem de uma espécie de

necessidade imperativa de manter vivas as tradições folclóricas populares. Tudo

isso pode ser resumido nas próprias palavras do próprio José Oliveira da Rocha,

que aqui chamaremos de Zé da Macuca e que soam como um resultado

inevitável e irrefreável quando nos diz que “ passados os momentos de

descoberta dos colégios, da geologia... que ajudou muito de estar viajando pelo

Brasil descobrindo outras culturas... ai apareceu a necessidade de dar uma

contribuição cultural não só para o carnaval, mas para toda região onde se

origina o processo... desde o nascimento( no caso o seu próprio )”.

Havia uma necessidade de contribuir para construção de um momento

importante para o pais. Afinal, estamos em 1989, ano das primeiras eleições

diretas para presidente: Lula de um lado e Collor do outro. Era necessário

intervir, era um momento de abertura, de liberdade!. E é nesse ano, o ano da

queda do muro de Berlim, em pleno carnaval de Olinda que surge um estandarte

que anunciava a história de um folguedo vivo da cultura pernambucana: O

Movimento Cultural Boi da Macuca.

Trata-se de uma expressão brincante e irreverente se utilizando de

elementos vivos da cultura local para reinventar o bumba-meu-boi a vinte e cinco

anos. O Boi da Macuca, enquanto uma tradição inventada, é uma pratica cultural

que reutilizando elementos que se remetem a um passado acabam por

reelaborar, ou mesmo inventar novas tradições pois, possuem fins diversos e se

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originam quando uma sociedade passa por transformações (HOBSBAWN,

1984). Nesse sentido, este folguedo popular é nascido da imaginação de Zé da

Macuca, que não deixando de lado a raiz da cultura popular, sincroniza esta

brincadeira de acordo com um contexto de nascimento de abertura para o novo

que se dá no processo de redemocratização do Brasil

O Boi da Macuca é uma manifestação cultural relacionadas as praticas

populares do auto do bumba-meu-boi. Assim sendo preserva alguns elementos

da cultura popular como: a referência ao totem do boi, a disposição do auto com

seus personagens como o Mateus, o Bastião, a Catirina, o capitão, os

personagens encantados como a caipora, o Jaraguá etc. Além disso, este

folguedo mantém da tradição a relação com os cortejos de boi que nesse caso

percorrem as estradas que vão da fazenda até o distrito de Poço Cumprido,

durante as festividades que acontecem pelo menos três vezes ao ano

O Boi da Macuca difere da maioria das brincadeiras de boi de seu estado,

onde vemos muito mais hoje, a prevalência deste auto em sua variação mais

conhecida o Cavalo-marinho, manifestação derivadas das praticas do Bumba-

meu-boi, predominantemente localizadas entre o eixo que vai do extremo norte

da zona da mata pernambucana chegando até cidades circundantes na Paraíba,

indo até o sul da desta região, tendo-se conhecimento da presença dessas em

outros estados que pelas condicionalidades especificas reelaboram esta

variação do bumbá cada uma a sua maneira. O livro A roda do Mundo Gira de

Erico José Souza de Oliveira trata de uma maneira bastante vasta sobre a

origem, discussão de métodos de pesquisa, conceitos de cultura popular,

folclore, festa, mas que na realidade tem um olhar centrado sobre a perspectiva

da brincadeira é um ótimo referencial para os estudos sobre essa variação do

auto do boi.

Algumas características podem ser colocadas para evidenciar o caráter

inventivo e de reelaboração concernente ao bumbá-meu-boi de poço Comprido.

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A figura do Boi enquanto, entidade máxima do auto folclórico é símbolo do plano

social e econômico da região de origem. A região do agreste meridional entre

Garanhuns, Correntes e Palmerina, tem na pecuária e na agricultura a base do

seu ordenamento social. O boi é a força motriz do homem do campo é o seu

fulcro de apoio na lida do campo. É também base de seu alimento, pois do leite

se obtém, o queijo, a manteiga, a coalhada, o doce de leite, além de outros

artigos também característicos da gastronomia e que são derivados desse .

Dessa forma, a utilização de um símbolo-totem como o desse animal

representativo para os valores da região, se fez mais do coerente no processo

de reinvenção de um folguedo que se harmonize com as características

conjecturais dessa região.

Também a musicalidade do Boi da Macuca também preserva suas

singularidades, pois não se utilizando de músicas caracterizadoras do auto do

boi, esta manifestação se utiliza dos elementos rítmicos considerados de raiz

como: o pé-de-serra, o coco de roda, as toadas de gado, o aboio, o reisadi o, o

frevo e muitos outros. Nesse sentido, podemos falar de uma manifestação

tradicional da cultura popular? Em seu processo de origem, estão intrincados os

componentes próprios desse tipo de folguedo? Pois “tradição significa

estabelecer sua ligação com determinadas propostas, com um conjunto de

elementos ou características que é especifico” (AYALA, IGNEZ. 2006, p.39).

Porém, o Boi da Macuca é uma tradição viva da cultura popular na medida

em que sofre os processos de sincronicidade do tempo de sua origem. O Boi da

Macuca é uma manifestação que além de preservar elementos tradicionais

reelabora-os, reconfigura-os e num processo de ressignificação criativa. E dessa

maneira, pode ser estudada como um exemplo de manifestação que lida com as

forças dinamizadoras no seio do que acontece as novas tradições.

Page 17: Boi da macuca uma invenção viva na contemporaneidade

Mas o que faz do Boi da Macuca uma tradição viva inserida no contexto

da contemporaneidade? E qual a importância de se estudar a tradição no atual

contexto da sociedade?

O Boi da Macuca apesar de conter os elementos da tradição não se

prende aos critérios que a subjazem. Pois em sua manifestação não preserva a

totalidade do auto folclórico: não segue a sua encenação, preserva apenas

alguns personagens e caminha livre sobre as veredas dos campos do agreste

como se fosse uma troça de carnaval; não se refere a nenhuma relação de

código religioso, doutrina moral ou ética, sempre presente nas praticas de cultura

popular, inclusive do Bumba-meu-boi, pois não quer mais que preservar a alegria

do seus brincadores e brincantes; não nasce empiricamente de uma origem

rural, apesar de ter fixado morada no Fazenda onde a vinte e cinco anos atua

como articulador de ações culturais, inclusive quando foi instituído como ponto

de cultura em 2007. Pois nasce de um ciclo de amigos de classe média e alta do

Recife e Olinda, porém nesta época seu fundador já residia na zona rural do

agreste.

Outro elemento caracterizador nessa perspectiva são os seus

componentes ritmos que não trazem relação com a musicalidade característica

do folguedos de Boi, e sim, as músicas de Luiz Gonzaga, Trio Nordestino,

Jackson do Pandeiro, ou seja elementos que reconfiguram internamente a

preservação de símbolos tradicionais desse tipo de brinquedo.

Além disso, se seguíssemos à risca o modelo sistêmico fechado, o qual,

obedece aos critérios para o estabelecimento do que é ou não tradição, jamais

poderíamos assim reconhece-la. Um exemplo disso, é a relação que este

conceito tende a manter com determinados critérios como as categorias de

passado ou antiguidade. Geralmente uma manifestação para ser considerada

“tradicional” deve pertencer as que surgiram em um espaço de tempo

incalculável, quase imemorial. Nesse sentido o Boi da Macuca não faria parte

Page 18: Boi da macuca uma invenção viva na contemporaneidade

das manifestações tradicionais, simplesmente por não fazer parte dos

brinquedos que tem na sua origem uma relação com um tempo quase sem

memória. Pois é criada no contexto contemporâneo, e assume um papel

reavivante dos elementos tradicionais do passado, apesar de descontextualizá-

los. Pois hoje, o capitalismo se impõe mais e mais aos processos que envolvem

a cultura popular que estão cada vez mais comprometidos com as demandas do

capitalismo industrial. Sendo assim, torna-se importante para a manutenção das

singularidades dos grupos humanos em seus hábitos, costumes, tradições, os

quais devem permanecer vivos, preservados e a cultura popular é uma grande

aliada para isto já que os constitui em síntese (CANCLINI,1983).

Uma categoria engessadora das praticas tradicionais de cultura é a

urgência em se preservar concepções e práticas similares as realizadas num

contexto arcaico. Chegando ao ponto de ouvirmos discursos de pessoas da

própria região que manifestações como as do Boi da Macuca “não são

tradicionais”, ou que “Boi da Macuca não é uma tradição”. Assim, pensamos que

a cultura popular segue a dinâmica da sociedade na qual está diretamente

inserida. Ela não pode ser vista de forma isolada do contexto do mundo que a

perpassa. As tradições mudam, pois os homens que primeiro as colocaram em

função são diferentes dos homens que as mantém vivas em nosso tempo que é

histórico. Afinal nesse contexto achamos interessantes as palavras Bacherlard,

sendo citado por José Américo Motta Pessanha para quem “Será necessár io,

(...) do ponto de vista da própria vida, tentar compreender o passado pelo

presente, longe de se esforçar incessantemente por explicar o presente pelo

passado” (1987, p. 32).

Essa emergência em pensar a cultura popular fincada no passado e num

contexto temporal anacrônico é para Marcos e Maria Ignez Ayala uma maneira

de pensar a cultura popular como um produto, um acervo de objetos ou bens

culturais, uma forma de sobrevivência do passado no presente. E é dessa

Page 19: Boi da macuca uma invenção viva na contemporaneidade

maneira, que acabamos por negar que a cultura só entra em continuidade

quando se reelabora e se transforma, assim como as condições históricas nas

quais se originou.

Vivemos na sociedade contemporânea do século XXI, um período de

inseguranças com relação aos sistemas de pensamento e representações do

mundo. Desconfiamos da racionalidade científica cartesiana; religiões, quando

não nos enfiam a cabeça na areia, não mais conseguem nos conectar a

dimensão divina do real. Talvez seja a “crise dos universais” (GERD BONRHEIM,

1984). Assim o fundamento maior dos estudos sobre a tradição neste cenário é

a preservação daquilo que torna os homens seres tão diferentemente singulares

e que se relaciona com os processos de construção da nossa identidade. É a

subjetividade, poço profundo e rico manancial das singularidades de

humanidades procriadoras de símbolos para a vida. A capacidade subjetiva de

produzir cultura, que faz do homem um ser não apenas biológico, mas também

simbólico. É o que nos traz para fora da caverna de Platão. A tradição é essa

linha lançada no espaço atemporal que liga os homens de diferentes tempos,

contextos e que afirma a continuidade ressignificada. Afinal são homens de

diferentes subjetividades, em mundos de diferentes condicionalidades históricas,

sociais e culturais. Porém entrelaçados pelo tecido da tradição. E por isso que

deixamos como reflexão as interessantes palavras de Carlos Roberto Drawin

(1998), quando procura legitimar a construção da subjetividade dentro de um

panorama histórico epistemológico quando afirma que

A passagem do Bios ao Ethos implica portanto num processo mais

ou menos longo de aprendizagem do universo simbólico e de

participação na transmissão cultural, resultando não apenas na

adaptação material ao meio e na assimilação material do meio, mas

sobretudo na construção de um mundo, ou seja valores e

representações que fazem da realidade dada uma realidade

mediatizada. Desse modo, cada indivíduo empírico deve mediatizar

Page 20: Boi da macuca uma invenção viva na contemporaneidade

a sua particularidade indiferente na formação de sua identidade

psicossocial através de sua inserção na comunidade e de sua

reinvenção da tradição. Essa mediação tende a ser mais instável à

medida que o universo cultural torna-se mais complexo e cresce,

pela aceleração das mudanças socioculturais, o distanciamento

temporal entre o dado e o adquirido, entre a particularidade do

indivíduo e a universalidade da cultura. (p.26)

Por uma nova perspectiva nos estudos da cultura popular

Cada vez mais se torna necessário uma revisão das formas e

mecanismos de pesquisa e análise das manifestações vivas da tradição cultural

de forma a percebê-las enquanto práticas que se reiteram e assim se atualizam

dento do contexto social, político e cultural no qual estão inseridas.

Entendemos que esse é um mecanismo que impede a estagnação e o

desaparecimento das tradições populares. Somente se reelaborando e

preservando elementos da tradição é que estas manifestações poderão

sobreviver as transformações sociais pelas passam no decorrer de sua história.

É por isso que nesse artigo tentamos levantar alguns pontos que

consideramos de tensão com relação aos estudos sobre os saberes Tradicionais

populares na perspectivas das ações e métodos de estudo dessas

manifestações.

Dessa maneira, acreditamos que o estudo das manifestações populares

devem partir de uma análise calcada no presente de produção e manifestação

desses brinquedos correndo o risco de serem realizadas analises anacrônicas

Page 21: Boi da macuca uma invenção viva na contemporaneidade

com relação ao verdadeiro momento em que se desdobra a função. E assim,

passam a se fazer relatos e descrições que não correspondem a realidade

vivenciadas e que acabam por deturpar as condições em que sobrevivem esses

folguedos.

Outro aspecto é a questão dos critérios categóricos que impõem uma

norma ao conceito de tradição na cultura popular. Foram citados por Marcos e

Maria Ignez Ayala, imperativos como a origem rural, o aprendizado por mimese,

e uma origem relacionada a um passado quase imemorial. Pois bem,sendo

assim, o que será da das manifestações populares que podem e tem o direito

de surgir hoje? Teriam elas condições se preservar as mesmas caraterísticas

das manifestações em que e baseiam? Acreditamos que essas manifestações

teriam sofreriam as influencias de um mundo diferente de homens localizados

num espaço-tempo também diferentes e que teria de se adequar as condições

que a contemporaneidade nos impõe.

O engessamento da tradição é um mecanismo anacrônico de estagnação

e de definhamento das possibilidades de reelaboração e ressignificação dos

folguedos populares. A ruptura dessa forma se faz necessária enquanto

processo de atualização criativa no tempo. Promove a superação das dicotomias

que impõem a cultura popular uma relação de desprestigio com relação a outras

formas de cultura que conseguem se adequarem ao contexto contemporâneo

devido a um certo desprendimento, por exemplo das relações de mercado que

aqui entendemos como necessária para manutenção dessas manifestações,

desde que não promovam uma total descaracterização dos elementos que as

identificam

Por fim, entendemos o Boi da Macuca, manifestação de Bumba-meu-boi,

situada no agreste meridional de Pernambuco, nascida nos anos de 1989, como

uma tradição viva, por incorporar elementos da atual conjuntura, seja pela

aglutinação de elementos tradicionais do bumba-meu-boi como seus elementos

símbolos Boi, personagens, manifestação por cortejo, como também por se

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permitir reelaborar esses mesmos elementos. Além disso, o Boi da Macuca é

uma manifestação contemporânea do Bumba-meu-boi, que organiza sua função

adequando-se às questões de mercado no processo de circulação e se utilizando

das estruturas do mercado como mecanismo de manutenção.

Assim acreditamos que somente com um novo olhar em perspectiva sobre

a maneira como entendemos o conceito de tradição é que poderemos pensar

em novas formas de continuidade das manifestações populares como formas de

continuidade no tempo dos saberes que possibilitam a construção de identidades

e que promovam a construção perpetua desses saberes no futuro

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMORIM, M. A. L., COSTA, M. G. V., NOGUEIRA, M. A.,. Tradição viva: A tradição sob a égide da ‘razão aberta’. Revista Antropológicas, ano 14,vol 21,

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AYALA, M. I., AYALA, M. Cultura popular no Brasil, São Paulo, Ática, 2006.

BONRHEIM, G. Tradição/Contradição, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1984.

CANCLINI, N. G. As Culturas Populares no Capitalismo, São Paulo: Ed.

Brasiliense, 1983.

GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC Editora,

1989.

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HOBSBAWN, Eric. A Invenção das Tradições. Editora Paz e Terra – Rio de

janeiro, 1997.

KISHIDA, C., A., Cultura da Ilusão, Rio de Janeiro, ed. Contra Capa, 1998.