Bolaño e o Romance
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Bolaño e o Romance
Pedro Dolabela Chagas1 (UFPR)
Resumo: Discute-se o impacto de Roberto Bolaño na cena literária latino-americana sob um triplo viés: 1) o seu distanciamento de certas características de longa duração da tradição continental mediante a sua reiteração de outras tantas, operado 2) pelo recurso a certas características formais do romance moderno que não haviam sido privilegiadas na América Latina, revelando como 3) a sua interpretação da história do continente levou-o a aproximar-se do componente político de certo romance europeu alto-modernista, renovando o pertencimento do romance latino-americano ao “registro elevado” da literatura global. Palavras-chave: Romance Latino-Americano, História do Romance, Roberto Bolaño. Abstract: The article discusses the impact of Roberto Bolaño’s work in Latin America’s literary scene under three different perspectives: 1) its distancing from some longstanding characteristics of the continental tradition and its reiteration of some others, which he operated 2) through the appeal to some formal traits of the modern novel that had not been privileged in Latin America, revealing how 3) his interpretation of the continent’s history brought him close to the political component of some high-modernist trends of the European novel, renewing the Latin-American novel’s belonging to global literature’s “high register”. Keywords: Latin-American Novel, History of the Novel, Roberto Bolaño.
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Exercício de história do romance: leremos a obra de Roberto Bolaño como uma reação
à tradição romanesca da América Latina, operada mediante a ênfase de características do
gênero que não haviam sido priorizadas por gerações anteriores e que revelava uma
apreciação cética da história e do pensamento político no continente. A relação de Bolaño
com o gênero romanesco e com a história recente da América Latina caracterizaria assim a
diferença que a sua obra inaugura na história regional do romance: para descrevê-lo,
discutiremos 1) certas características gerais do gênero discerníveis desde o século XVII, que
colocarão em relevo, no momento oportuno, as escolhas estilísticas de Bolaño; 2) a tradição
regional da qual ele se distanciava, consolidada a partir do século XIX e flexionada pela
geraç~o do “boom” dos anos 60; 3) certos temas e procedimentos característicos da sua
obra; 4) a diferença histórica que emerge desta combinação de elementos, em sua
aproximação (estética e política) a certa vertente do modernismo europeu.
[1] Em Before Novels, J. Paul HUNTER (1990) elenca as características que
diferenciavam o romance, em seu crescimento de popularidade no século XVIII, dos demais
gêneros literários. A lista é praticamente consensual: diferentemente de outros gêneros,
romances apresentavam um forte senso de pertencimento ao presente, suscitavam
credibilidade ao apresentarem enredos de alta probabilidade potencial (i.e. física e
psicologicamente verossímeis), despertavam familiaridade ao representarem a existência
cotidiana de “pessoas comuns”, ignoravam as expectativas normativas das tradições
literárias codificadas, eram modernos em seu senso de individualismo e subjetivação,
procuravam suscitar empatia ao estimularem o leitor a assumir o lugar das personagens,
revelavam certa unidade de concepção em sua coerência interna, eram formalmente
inclusivos, abrindo espaço para a digressão, para a fragmentação, para a incorporação de
outros discursos... Integradas ao repertório genético do gênero, estas são características
ainda hoje pertinentes ao romance; Hunter faz questão, porém, de elencar outras nove
propriedades menos frequentemente debatidas. Três delas envolvem a relação com o
inverossímil e temas considerados “tabu”, outras três envolvem os pressupostos do
romance sobre o público leitor, as demais se referem ao seu tom e estrutura.
No primeiro grupo, Hunter inclui 1) a presença, no romance, do acidental, do
aleatório, da sorte, do inexplicável, do incerto e do estranho, elementos que levam o
realismo ao limiar da inverossimilhança ao decidirem o enredo em encontros fortuitos ou
em quaisquer outros tipos de evento que, por serem apenas minimamente prováveis,
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excedem a explicação baseada na probabilidade (pressionando a credibilidade do leitor ao
limiar da pura crença), ainda que sem rompê-la por completo; 2) a aborgem, em
representações gráficas e ampliações microscópicas, do pornográfico, do obsceno e de toda
ordem de comportamento privado “desviante”, incluindo a violência física (a brutalidade, o
assassinato, o estupro...), o que faz do romance um gênero diretamente envolvido com o
proibido, com o reprimido, com segredos da vida e da mente que são dispostos como
cotidianamente integrados à vida de pessoas comuns, e portanto permanentemente
próximos do leitor; por isso o romance 3) tende muitas vezes ao confessional ou/e à
espetacularização, numa concepção do relacionamento entre o público e o privado que
proporciona ao leitor certa observaç~o “em primeira m~o” de intimidades doutro modo
“indevass|veis”.
Quanto aos pressupostos sobre o público, se o romance jamais pôde contar com uma
comunidade estabelecida de leitores, ele explorava, em direção francamente contrária, um
senso de comunidade interrompida ao 4) estimular a leitura individual das estórias de
personagens igualmente solitários, colocados diante de barreiras sociais que os tornavam
incompletos, frustrados, não-integrados, pressupondo-se então que a leitura solitária
fomentaria reações pessoais, e não coletivas, às condições representadas, estimulando a
empatia (íntima, pessoal) em lugar da condenação moral ao desvio individual que tende a
caracterizar o juízo de grupo. Segue-se ainda que, 5) dada a ausência inicial de públicos que
compartilhassem a priori expectativas comuns, o romance aprendeu a categorizar os seus
leitores potenciais para tentar mediar entre os seus gostos e interesses, colocando-se o
desafio de suscitar a identificação de leitores diferentes. Por fim, 6) a verossimilhança
impunha o problema epistemológico colocado por questões do tipo: “como é possível saber
que algo de fato aconteceu?”, “como interpretar as motivações dos outros?”, e outras afins;
para enfrentá-las, romances constroem narradores investidos de certa autoridade e
pressupõem a capacidade de interpretação do leitor como um aspecto essencial da
compreensão da psicologia das personagens e dos sentidos das suas ações, em seus
horizontes específicos de pertencimento social.
Quanto {s características estruturais, Hunter destaca 7) aquelas “estórias dentro da
estória” que pouco têm a ver com o enredo principal, mas que recebem destaque pelo
interesse que despertam nas demais personagens e, presume-se, também no leitor. Ele
destaca também a 8) apropriação, pelo romance, de todo tipo de discurso, em sequências
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(ensaísticas, muitas vezes) que não fazem o enredo progredir e podem sequer parecer
literatura, conferindo à leitura rumos imprevistos que atendem, no entanto, aos interesses
de públicos heterogêneos ao permitirem tratar realidades comuns sob ângulos variados.
Por fim, sobre o tom do romance, Hunter destaca o seu 9) componente didático, que se
colocava de maneira intensa no século XVIII, mas que seria camuflado em épocas
posteriores. O didatismo do século XVIII estabelecia divisões binárias entre o bem e o mal,
numa linguagem que buscava afetar o comportamento do leitor de maneiras previsíveis:
ancoradas na tradição, noções claras de honestidade, caráter e compromisso eram
veiculadas com simplicidade. Decerto esta crença na moral codificada e no papel
transformador da linguagem entrou em descrédito, revestindo de ingenuidade o tom
elevado e o senso de urgência daquela retórica direta – ainda assim, o didatismo jamais
desapareceu por completo. No romance, ele se insinuava como uma espécie de casuística
ao aproximar princípios abstratos de casos individuais (o que é dificilmente operado no
registro filosófico, em sua circunscrição a assertivas gerais): o seu apelo vem da capacidade
de encenar princípios gerais em situações empíricas, observando como eles funcionam na
concretude de vidas imaginadas e não no plano da abstração, sob um esforço de
representação da cultura e do tempo presente. Por isso o romance é sempre, nalguma
medida, social e intimista: focado no indivíduo, ele deriva da sua leitura da sociedade e da
cultura os termos de juízo das ações das personagens, num tipo de organização da
interpretação da realidade cotidiana que decerto se sofisticou e se complexificou desde o
século XVIII, mas que jamais desapareceu do romance – que segue ativo como
entretenimento e fonte de orientação, como companhia e estímulo à introspecção, ao
fomentar a experiência imaginada de situações potenciais de vida nas desventuras e nas
escolhas das personagens. É virtualmente impossível dissociar esta propriedade de uma
propensão ao didatismo, pelo qual um romance afirma, mesmo que discretamente, certos
conjuntos de valores.
Hunter sugere que, em conjunto, todas as características mencionadas contribuíram
para definir o romance como fato cultural, do século XVIII ao presente. Se aceitarmos essa
proposição, o que ela nos revelará sobre as escolhas de Roberto Bolaño? Decerto não é
necessário que todas aquelas características estejam presentes, e tampouco em igual
medida, em todas as produções do gênero; com isso, a melhor pergunta seria: quais delas
foram marginais no romance latino-americano do século XX, tendo sido retomadas por
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Bolaño como reação ao seu legado? Na resposta a esta pergunta, é preciso entendermos
como Bolaño reagiu a um século XX integrado ao “longo século XIX” do romance regional.
[2] Pela nossa proposiç~o, o “longo século XIX” do romance latino-americano foi
demarcado pela persistência, entre o romantismo e o “boom” dos anos 1960, da tem|tica
identitária, não raro permeada pela remissão ao futuro como horizonte utópico de redenção
das limitações do presente. A tematização da condição nacional – da sua trajetória histórica
e dos conflitos predominantes na sua realidade prosaica – estiveram no cerne da produção
romanesca após os processos de independência, período em que a literatura serviu à
pesquisa identitária ao projetar ideais de conciliação simbólica das fraturas sociais das
jovens repúblicas: em tantos dos “romances de fundaç~o” discutidos por Doris Sommer
(2004), a união amorosa era colocada a serviço da conciliação não apenas de diferentes
classes, mas dos diferentes “povos” de cada país (i.e. populações lingüística, geográfica
étnica e culturalmente apartadas), de ordinário agrupados, no enredo, em pólos em
conflito, o enlace amoroso apontando a direção pela qual o estrato politicamente
inferiorizado poderia incorporar o ethos e o habitus do estrato dominante – assim
submetendo-se ao impulso civilizatório que as elites não deixariam de conduzir –, enquanto
estas, por sua vez, reconheceriam o valor orgânico, telúrico, da cultura do estrato
historicamente subjugado – admitindo a sua contribuição à construção de um novo povo –;
no enredo romântico, o enlace afetivo superava, pelo menos utopicamente, a propensão à
manutenção das diferenças.
A partir deste impulso inicial, a representação da identidade nacional conheceria
várias transições e inflexões no tom, e ao apontarmos a sua vitalidade ainda nas décadas de
1960 e 1970 não estamos a sugerir que o boom obedecia ao mesmo esforço oitocentista de
simplificação do quadro simbólico. Pelo contrário, a sua especificidade esteve na
multiplicação dos estratos (históricos, sociais, culturais, discursivos...) a serem incluídos na
representação social, o que implodia a conciliação identitária em sínteses interpretativas
simplificadas (porquanto reduzidas a um contingente limitado de referências), como ainda
ocorria, afinal, nas novelas de la tierra das décadas de 1920 e 1930. Os romances do boom
aglutinavam, num único enredo, tamanha quantidade de lugares, referências e chaves
interpretativas, que nenhuma síntese da experiência social do continente poderia emergir: a
realidade simplesmente não era a mesma para cada agente ou segmento envolvido. Na
condiç~o de prolongamento de uma tendência história de “longa duraç~o”, ele a teria
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complexificado ao máximo, e talvez não surpreenda que a problemática identitária
começasse então (em meados dos anos 70) a perder momento – o que demarcaria,
retrospectivamente, o início do fim do “longo século XIX” do romance latino-americano.
Não é coincidência, por exemplo, que um crítico como Gerald Martin (1989) sugerisse, em
finais dos anos 80, que o romance latino-americano teria encerrado, por volta de 1975, o
ciclo iniciado em 1925, que fora deflagrado pelo abandono do compromisso do romance
oitocentista com a ordenação social (de cunho liberal) e da sua suposta submissão a
modelos estéticos europeus, em nome da busca de estéticas próprias, o que teria motivado
uma forte renovação teórica amparada num senso elevado de importância da literatura
para o debate intelectual corrente. Todo um movimento de refundação teria transcorrido
entre o modernismo e os anos 70, quando a geração de Fuentes, Cortázar, García Márquez e
Vargas Llosa, recém-canonizada, aparecia como o ápice do amadurecimento de um
romance que, desde os anos 20, estivera em busca da expressão adequada à matéria local.
Esta miragem teleológica pressupunha também que o romance, na América Latina,
abandonara a sua circunscrição nacional para tornar-se continental no decorrer destes
cinqüenta anos de auto-problematização intensa, desembocando no boom – miragem que
produziu conseqüências práticas, pois os próprios escritores, no decorrer dos anos 60,
sentiam-se na culminância de um longo processo. Caberia aos seus sucessores sofrer a
dificuldade de dar prosseguimento à escritura do romance latino-americano como produto
da experiência do continente, agregando o seu percurso no tempo (passado, presente e
promessa de futuro) a uma leitura crítica do seu arsenal de símbolos e mitos: não teria esse
projeto chegado ao limite em Terra Nostra, obra enciclopédica de Fuentes e aparente ponto
de chegada de um longo processo de maturação? Para onde ir, a partir daí?
Em suma, a geração do boom teria encontrado o lugar próprio do romance latino-
americano no centro da literatura global ao produzir estéticas adequadas à representação
da nossa condição social, histórica e política. Isso teria sido inicialmente alcançado por
algumas figuras isoladas (Carpentier, Borges, Astúrias), mas sem impacto sistêmico
imediato, pois a busca de novas estéticas capazes de expressar a singularidade de um
continente complexo internamente, mas unificado ideologicamente, teria sido refreada
pela retomada do naturalismo nos anos 20 e 30. As possibilidades abertas por Astúrias,
Borges e Carpentier alcançariam efeitos macroscópicos apenas no espírito de renovação
dos anos 60: tal era o tom dos panoramas históricos de Roberto González Echevarría (2000
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[1990]) e Gerald Martin (1989). Se o regionalismo representava realidades locais como
fragmentos de totalidades nacionais em obras inscritas em sistemas literários locais e
voltadas para o debate interno, realidades afins seriam ideologizadas, a partir da década de
1950, como fragmentos de uma totalidade continental, em sua posição periférica no
sistema-mundo: a partir deste input, diferenciaria o boom a sua abordagem da problemática
identitária sob um viés meta-crítico, compreendendo-a autorreflexivamente como
produção de discurso ao mesmo tempo em que, no plano da composição, a apropriação das
estéticas de Faulkner e Joyce parecia renovar o modernismo no momento mesmo em que
ele se estagnava na Europa. As obras do boom multiplicavam pontos de vista, enredavam a
passagem do tempo, complexificavam o juízo moral das ações das personagens, colocando
em prática a teorização de Cortázar, em O jogo da amarelinha, do romancista como
manipulador de códigos e construtor de realidades, concepção raríssima nas gerações
anteriores e que inauguraria o giro de auto-teorização no romance latino-americano que,
numa escala jamais vista, fomentaria a escritura de obras programaticamente meta-
literárias – faulknerianas, joyceanas, borgianas... Ironicamente ou não, tais obras, ao
diluírem a temática identitária como componente regular do nosso romance, contribuiram
para fazer com que o ciclo transcorrido entre 1925 e 1975 desse passagem a outra coisa;
com a publicação, em 1999, de Os detetives selvagens, ficava claro que ele estava encerrado.
A obra reivindicava visibilidade: como tantos romances que antes haviam reivindicado
o status de caleidoscópio do mundo atual – Middlemarch, Guerra e Paz, A montanha mágica,
O homem sem qualidades... –, tratava-se de uma grande obra que queria impor-se como
obra grande, demandando ao leitor uma dedicação especial – impondo a leitura como
trabalho – e prometendo alguma recompensa, expectativa que, para a crítica, Os detetives
selvagens atendia. Da nossa perspectiva, o seu impacto se relacionava ao fato de que ali
parecia encerrar-se o “longo século XIX” do romance latino-americano, a obra de Bolaño
oferecendo a resposta que ele até então não havia recebido: era um marco de
encerramento onde antes pululavam apenas reações pontuais, afinal permitindo identificar
um autor que, tal como o Joyce de Ulysses, operava dentro de certas inscrições locais do
romance (no caso de Joyce, o romance “europeu ocidental” do século XIX) para identificar
os seus pontos de saturação e abrir-lhe uma nova história possível. Em Bolaño a identidade
– nacional ou continental – não era mais objeto de busca, mesmo que permanecesse certa
nostalgia da energia política que a crença na “latino-americanidade” proporcionara num
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certo momento. Mesmo esta nostalgia era, porém, objeto de autoironia, percebendo-se
uma crítica ácida à pouca produtividade política daquela crença durante o auge da sua
aceitação: afora a retórica da vitimização e um apelo vago à solidariedade transnacional,
nos anos 60 e 70 ela pouco produziu de efetivo, e em Bolaño o seu descrédito vai pari passu
com o reconhecimento, não-dramatizado, da diminuição do senso de importância – do
esgotamento do “senso de miss~o” – do intelectual latino-americano: a figura do escritor
como homem público, que falava em nome de países inteiros, desapareceu com o fim das
grandes profecias políticas nos anos 80. Sob este prisma específico, ao pensar como latino-
americano para escrever contra a escritura latino-americana, confrontando como latino-
americano o conceito de América Latina, Bolaño teria encerrado o século XX e aberto o
campo para algo novo – daí, segundo Volpi (2012), o seu sucesso entre a geração que hoje
chega ao livro. Mas o que havia exatamente de tão especial na sua literatura? Para sabê-lo,
precisamos observá-la de perto.
[3] Existem fortes recorrências em sua obra. É recorrente a presença do mal: um mal
absoluto, quintessencial, universalizado e não particularizado como fenômeno local – um
Mal que não é propriamente mexicano ou chileno, mesmo quando ele se manifesta por lá.
Em 2666, por exemplo, o feminicídio endêmico numa região do México é espelhado, numa
analepse inesperada, a um campo de concentração nazista, ambos dispostos como
manifestações do mal num grau de pureza que excede a explicação contextualizada. Este
ponto é importante, pois Bolaño não explica o mal pela pobreza, pelo atraso, pela
ignorância, pelo descaso político, embora tudo isso apareça na sua América Latina. Tudo
está lá, mas não basta para explicar um Mal que, em sua plena potência, não pode ser
resumido à explicação estrutural. Universalizado como ato de poder, mesmo que as suas
manifestações variem em cada tempo e lugar ele é, em si, sempre semelhante, apesar das
diferenças de superfície. Daí a importância do tom: diante da frieza tecnocrática do horror
nazista e da indiferença produzida pela rotinização do Mal na América Latina, a narração é
distante, contida, operando num limiar tenso entre a indignação e a resignação –
explicitando o horror em detalhes, mas ao mesmo tempo sugerindo que o poder do Mal (ou
o Mal como poder) extrapola a nossa capacidade de intervenção. Este é um tom que não
existia nas narrativas do boom, onde a política costumava evocar alguma sugestão de
engajamento – mas engajamento, em Bolaño, não existe.
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Outra recorrência é que, quase invariavelmente, o leitor conhece os personagens
principais apenas indiretamente. Em Os detetives selvagens, eles são vistos através de uma
multiplicidade de relatos que, muitas vezes divergentes, ignoram informações elementares:
ficamos sem saber de muita coisa. Bolaño simula um enredo policial para criar a expectativa
de uma revelação que, ao final, não acontece: a atmosfera de suspense sugere uma
recompensa – a solução do enigma – que o enredo acintosamente não cumpre, as
informações chegando sob camadas de mediações e os personagens centrais quase não
têm voz própria, sendo apresentados por figuras que os conheceram mais ou menos de
perto e cujas opiniões revelam muito, afinal, sobre elas mesmas – o que não se assemelha,
mais uma vez, às estratégias do realismo, do naturalismo ou do boom, com seus
personagens dispostos inequivocamente no primeiro plano (se A morte de Artemio Cruz é o
romance de Artemio Cruz, 2666 não é o romance de Benno von Archimboldi, mas ao redor
de Archimboldi).
Ainda um terceiro elemento nos chama a atenção: Bolaño toma a literatura como
tema; não como produção, mas como sistema. Em Os detetives selvagens desfilam agentes
do sistema literário: poetas, críticos, editores, acadêmicos, jornalistas, aspirantes a escritor,
autores de manifestos, funcionários de arquivos e bibliotecas, autores de um livro só,
historiadores, compiladores de antologias, membros de círculos literários e oficinas de
poesia, eruditos de mesa de bar, jovens que vivem a vida poeticamente, jovens que se
manifestam politicamente através da literatura, autores canonizados que se sentem donos
do campo literário, seus rivais excluídos de posições de influência... A lista segue. Não é a
literatura como objeto, mas o mundo que ela cria – via de regra, o mundinho que ela cria,
pleno de autoritarismo, rancor, vaidade e paranóia, o romance apresentando personagens
que, das suas diferentes posições no sistema literário, dão a ver a mesquinharia de
pequenas ações justificadas por grandes valores. É por meio destas pequenas disputas e
rivalidades que Bolaño critica a autoreferencialidade das poéticas do alto modernismo, em
sua permanência anacrônica na América Latina, bem entrados os anos 70. Escancara-se
com isso a ingenuidade das pretensões da “alta literatura” { participaç~o social ativa
durante a década dos ditadores: um modernismo anacrônico que pretendia intervir na
sociedade, mas que se isolava em seu pequeno mundo, eis uma versão irônica da solidão do
intelectual latino-americano. Numa inversão radical, a solidão, que em Octavio Paz (1998)
era remediada pela literatura, aparece, em Bolaño, como resultado da literatura. Em Paz, a
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solidão do intelectual latino-americano, “porta-voz da cultura” isolado em sociedades
iletradas demais, indiferentes demais ou corruptas demais para ouvi-lo, era sanada
utopicamente pelo engrandecimento da sua autoridade – como “autor” – e do horizonte de
remissão da sua fala. Mas nos anos 70 esta pretensão à importância, ainda reivindicada por
Fuentes, García Márquez e Carpentier, não aliviava a solidão, mas sim verticalizava-a diante
da crescente indiferença pela literatura, na América Latina como em toda parte.
A partir destes três elementos – a crítica à vida literária, o Mal como manifestação
quintessencial do poder e a apresentação indireta dos personagens principais por uma
multiplicidade de vozes – podemos colocar uma pergunta que Franco Moretti faria: quais
são as angústias latentes às quais Bolaño responde, e quais são as suas estratégias retóricas
de produç~o de consenso a respeito? Para Moretti, a retórica tem um “car|ter emotivo,
partidário, avaliador. Sua meta é obter apoio para um certo sistema de valores”. (MORETTI,
2007, p.16) Para tanto, ela deve ser discreta quanto a tal intenção: mais persuasivo é o
código que menos atenção chama sobre si mesmo, sendo menos perceptível enquanto
código e dando assim a impressão de colar-nos diretamente à experiência da época
justamente ao veicular, na verdade, valores que pretendem equacionar os seus conflitos da
maneira mais discreta possível. Caberia pensar, então, que latências são essas às quais
Bolaño responde e como funcionam retoricamente os códigos que ele mobiliza.
Uma primeira sugestão é que Bolaño procura globalizar a experiência latino-
americana. O Mal se manifesta na América Latina, mas não é explicado pela singularidade
local, seja pela violência política (do coronel, do ditador), pela violência da terra, pela
violência urbana; em sua versão latino-americana, este Mal arquetípico não contribui para a
representação identitária do continente. A isso somam-se personagens e tramas
apresentados por múltiplas perspectivas, numa narração regida por inúmeras pequenas
vozes: está mitigada a autoridade da grande voz que, na história do romance latino-
americano, pretendia dispor a justa representação do real, com isso desaparecendo a
perspectiva especificamente latino-americana com que se pretendia enquadrar as
realidades locais nos romances canônicos do continente. Por fim, com a pequenez da vida
literária substitui-se a sobriedade da literatura como símbolo máximo da cultura pela
irrelevância do mundinho literário contemporâneo – fenômeno global, não apenas local.
Estas globalizações da perspectiva revelam algo sobre a condição social do escritor no
continente. Nas décadas de 20 e 30, era como se muitos romancistas latino-americanos
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quisessem sair da literatura, mimetizando o discurso das ciências sociais como dispositivo
retórico para a intervenção na realidade local. Nas décadas de 60 e 70, era como se eles
quisessem pertencer programaticamente à literatura como estratégia de pertencimento
social: foram dois romances meta-literários – O jogo da amarelinha e Cem anos de solidão,
cada qual à sua maneira – que catapultaram aquela geração à fama internacional,
atualizando o gesto modernista de reivindicar pertencimento à América Latina pelo pleno
pertencimento à literatura ocidental, em sua máxima atualidade estética. Na virada do ano
2000, porém, romancistas não entravam nem saíam da literatura, pois eles não tinham esta
opção: na América Latina como em qualquer outra parte, o meio literário era-lhes o único
contexto de produç~o disponível. A repercuss~o da “alta literatura” se concentrava entre os
agentes do próprio sistema: jornalistas, acadêmicos, blogueiros, outros escritores, motores
de uma engrenagem que aprendera a se autoalimentar, mas que alcançava pouca
visibilidade social. Em contraste com as figuras públicas de Fuentes e Vargas Llosa, este era
o lugar genérico que Bolaño via-se destinado a ocupar – condição que ele não dramatizava.
Isso não impedia que Bolaño, do seu lugar pequeno, abordasse a condição latino-
americana com grande amplitude de foco: contra a literatura do boom, ele preservava
ambições semelhantes. Ele fazia-o, porém, de maneira diametralmente oposta ao
mimetizar a autoridade do testemunho, à qual ele recorria não para humanizar o impacto da
violência que obscurece a experiência das vítimas no anonimato das grandes estatísticas (tal
humanização não lhe interessava), mas para que a voz individual tomasse o lugar da macro-
história, i.e. das narrativas que pretendiam sintetizar em grandes panorâmicas o sentido
global da realidade observada. Em Bolaño, “amplitude de foco” n~o se confunde com
“síntese interpretativa”, de forma ainda mais radical que na pluralizaç~o da representaç~o
promovida pelo boom. Nos romances do boom os personagens e os conflitos centrais são
claramente destacados; em Bolaño, o leitor se depara com cacofonias de relatos,
impressões sobre fatos, depoimentos, interpretações, em sequências ordenadas de
narrativas pequenas: ao conferir valor de verdade à pequena enunciação, versões
pulverizadas de uma História apenas parcialmente comum compõem, por adição e
sobreposição, painéis (de um lugar e de uma época) formados por uma infinidade de
flagrantes mínimos, muitos deles virtualmente irrelevantes. Esta é a maneira pela qual, em
Os detetives selvagens, “detetives” n~o identificados reconstroem a trajetória de um micro-
movimento de vanguarda dos anos 70, fundado por dois jovens desaparecidos da memória
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do meio literário mexicano e que se haviam mirado noutro micro-movimento dos anos 20,
igualmente esquecido. Eram dois fundadores de uma célula de vanguarda que emulavam a
fundadora de uma célula anterior e que haviam estado à sua procura, e assim
acompanhamos a busca de dois poetas futuramente esquecidos por uma poetisa já-
esquecida enquanto acompanhamos, quase em tempo real, o processo de apagamento de
todos eles da memória contempor}nea. Ao invés do “porta-voz da cultura”, tem-se a queda
no anonimato, e se a era do “autor” produzira narradores atuantes, que organizavam a
matéria de forma orquestrada e segura, tal orquestração faz com que aqui o enredo,
destituído de narradores centrais, emerja de uma polifonia de monólogos.
Ajuda a solucionar a tensão entre a dispersão e o fechamento da ação – equilibrando o
movimento centrífugo dos testemunhos e o movimento centrípeta do fechamento do
enredo – o fato de que as vozes aparecem “prestando depoimento” aos “detetives”: este é
um artifício engenhoso, pois se é altamente improvável que os tais detetives tenham
trabalhado naquilo durante 20 anos, o fato é que o leitor não chega a questionar a
verossimilhança do enredo, uma vez que existem depoimentos e depoentes, mas os
“detetives” jamais são identificados, não passando de abstrações – o ouvinte dos
testemunhos é o próprio leitor. Assim Bolaño resolve o problema do espaço e do tempo:
como aglutinar tantas figuras num único enredo, ao longo de 20 anos e ao redor do mundo?
O problema desaparece à medida que cada voz surge do nada e dá o seu depoimento num
momento qualquer, ali mesmo onde está: as personagens ficam estáticas, enquanto os
ouvintes se deslocam. Como num documentário filmado, elas não integram
necessariamente uma estória comum, mas reconstroem-na fragmentariamente em
depoimentos independentes, recolhidos pela câmera. O que confere a esta multiplicidade
uma densidade histórica comum é a percepção de que, nesses flagrantes de vidas banais em
momentos banais das suas trajetórias, Bolaño apresenta o cotidiano da história como perda
da história pelo agente individual: incapazes de se verem como heróis da suas próprias
narrativas, limitados a lugares pequenos no mundo, as vozes se diluem numa História –
latino-americana, global – que, vista de perto, é composta por uma miríade de pequenos
fracassos, enquanto o Grande Vencedor permanece fora de cena. Dessas narrativas que não
produzem coerência, mas que oferecem o máximo de totalização que a experiência da
História pode produzir, emerge uma imagem borrada do tempo produzida por uma
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infinidade de pequenas verdades. É uma visão confusa, mas uma visão mesmo assim: o
máximo de visão possível.
Certa totalização transparece então no mosaico de Bolaño: a bem da verdade,
emerge uma leitura ampla da história, não exatamente dos testemunhos em si, mas da sua
organização como texto – como livro, como romance. Há uma identificação renitente com
valores de esquerda, que é, porém, mitigada pela frustração com a esquerda real,
insinuando uma compreensão da história latino-americana centrada no trauma de 1968 e
na desorientação posterior: em Os detetives selvagens, a tensão reside na contradição entre
o engajamento do autor e a irrelevância prática da literatura, situando-se 1968 como a
explosão de utopia que geraria a desorientação da década seguinte, a partir do corte
representado por Pinochet, à direita, e pela decepção com o autoritarismo cubano, à
esquerda. Desse modo a crise da narrativa identitária do continente se afirmava, em
Bolaño, dentro de outra “grande narrativa”: seria porque a história produziu grandes
decepções que ela não pode ser representada da velha maneira; é porque as grandes
utopias perderam crédito que a grande interpretação e o grande narrador também
perderam crédito, cedendo autoridade ao testemunho individual. Toda fragmentação é
reintegrada numa História que teve na década de 1970 a origem da impossibilidade do
engajamento que chega ao presente: ali morreu a “América Latina” como ficç~o unificadora
da experiência do continente; rompida a sua última grande roupagem – o terceiro-
mundismo revolucionário de Che Guevara –, a unidade ideológica da região se dissolveria na
banalidade (da cultura, do consumo, das rotinas políticas...) dos anos 80 e 90. Ao
desacreditar, de maneira t~o definitiva, a nobreza e a validade do conceito de “América
Latina”, Bolaño se colocava fora do “longo século XIX” da literatura latino-americana, ao
mesmo tempo em que justificava a inação de uma geração assolada pelo sentimento de
culpa – reconciliando toda uma geração consigo mesma ao sugerir que o seu pecado não
fora a covardia, mas a ingenuidade, dado que o Mal desde sempre havia excedido o seu real
poder de reação.
Façamos um último teste sobre a diferença que a sua obra representava. Retomo
certa previsão que Carpentier (1981) fizera ainda nos anos 80, ao mencionar os três
elementos que, segundo ele, estariam para sempre presentes no romance latino-
americano: a sua tendência ao “maniqueísmo”, ao “melodrama” e ao engajamento político.
O maniqueísmo viria da percepção da atuação, na América Latina, de forças políticas
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positivas e negativas, que indefinidamente impeliriam os escritores a tomarem partido. O
melodrama viria do recurso a dramas pessoais como matéria ideal para a tematização da
manifestação daquelas forças na realidade social. O engajamento, por fim, seria uma
solicitação constante ao intelectual latino-americano, cuja abstenção política costuma ser
vista com desconfiança. Tudo isso fazia sentido na década de 1980 – mas não mais para
Bolaño. Em relação ao melodrama, se um Mal impessoal incide sobre personagens
distantes, não se estabelecem cadeias de identificação entre os leitores e as vítimas: nós
mal as conhecemos, pouco sabemos sobre elas, e ficamos apenas com o dado material de
uma violência que decerto produz indignação, mas não é personalizada na sua incidência.
Quanto ao engajamento, Bolaño parece condenado à resignação – a descrença na utopia
não o levou à imaginação de alternativas ou sequer à disposição, em negativo, de ideais
morais aproximáveis a modelos concretos de ação. E isso tensiona o maniqueísmo: a
América Latina continua dominada pelo Mal, mas é difícil identificar o Bem; o Mal vitimiza
os fracos sem receber explicações ou vinculações contextuais, assim como o Bem não é
encarnado em agentes que se prestem ao papel de oposição ou resistência. O Mal existe,
mas um Bem contraposto é algo que não se materializa: ele subsiste como ideia vaga, a ser
potencialmente suscitada no leitor apenas em negativo, diante da visão do Mal.
Isto pode ser interpretado como uma justificativa retórica da inação: um Mal
inevitável, onipresente e invencível, a sugerir a inutilidade da resistência... Seja como for,
com a recusa do maniqueísmo, do melodrama e do engajamento Bolaño quebrava as
expectativas de Carpentier, formadas, como elas foram, numa reflexão sobre a trajetória do
romance latino-americano entre 1925 e 1975 e sobre a relação do romancista com o seu
entorno social imediato: eis que Bolaño contradizia aquelas expectativas, fugindo ao
horizonte imaginativo de um dos nomes centrais do “longo século XIX” do romance latino-
americano. Este desvio na história regional do romance foi operado, porém, pelo manuseio
de propriedades desde sempre características do gênero (como aquelas elencadas por
Hunter), com a intenção de reconstruir o pertencimento do romance latino-americano ao
registro mais elevado do romance moderno: a recusa do maniqueísmo, do melodrama e do
engajamento político era parte, ao fim e ao cabo, de um movimento de retirada do romance
regional da sua história local para a renovação da sua integração à sua história global – tal
como a geração do boom quisera fazer nos anos 60. Vejamos como isso se processou.
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[4]1 A história aponta como no século XIX, no contexto de mudança social acelerada
em países como a Inglaterra e a França, o romance desenvolveu um forte senso de
consciência histórica do presente, consolidando – em Scott, em Balzac – a noção de que
cada sociedade, em cada período histórico, é organizada de maneira específica: tal
sensibilidade (na Europa como na América Latina) fundamentaria a consciência nacional
que, no romance, nasceu entrelaçada à observação da sociedade atual em suas
características sedimentadas e em seus movimentos recentes de transformação. Nos
enredos, personalidades individuais e códigos de conduta coletivos se confrontavam em
ambientes histórico-sociais precisos, as ações e qualidades das personagens fundando-se
não apenas em propriedades íntimas, mas enraizando-se num certo solo social, cultural e
histórico.
Isso reforçava a propensão ao realismo: se normas sociais são histórica ou
culturalmente específicas, para perspectivá-las era preciso desenhar retratos acurados da
sociedade (onde certo componente crítico se insinuava na distância revelada entre ideais
morais e verdades sociais). Comportando-se como fontes de saber confiáveis, romances
tornaram-se inventários de sistemas políticos, tipos sociais, profissões, arranjos familiares e
hábitos sexuais; romancistas, não raro, sentiam-se autorizados a dar lições aos leitores
(PAVEL, 2013, p. 173), naquele momento em que a sua presença no debate público chegava
ao máximo. Mesmo quando o escritor não apresentava diretamente o seu juízo, ele não
abria mão da sua autoridade: supunha-se que o saber histórico e social estivesse tão
integrado à tessitura do texto que a presença do autor não precisava ser enfatizada,
podendo permanecer silenciosamente presente; afora as exceções de praxe, na América
Latina este posicionamento do autor como “fantasma” entraria o século XX afora, agindo
para elevar a grandeza de personagens modelares e rebaixar a imoralidade e a injustiça,
para tanto mobilizando a autoridade do “homem de letras” na defesa de ideais políticos
numa época em que, na Europa, o idealismo enfraquecera há muito. Enquanto o giro anti-
idealista do romance europeu (iniciado em Flaubert e radicalizado nas primeiras décadas do
século XX) enfatizaria as falhas e a obscuridade de personagens socialmente irrelevantes, o
romance latino-americano seguiria projetando valores e condutas ideais mesmo quando,
1 Logo antes do início da seção, indico a influência de trabalho de Thomas Pavel (2013) sobre todo o seu
argumento. Referências pontuais foram incluídas aqui e ali, mas a importância de Pavel se estende a cada linha do texto – tornando obrigatória esta nota.
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em nome da plausibilidade, apresentava-se personagens imperfeitos, responsáveis por
erros no passado e no presente, ou então demasiado tímidos, impulsivos, imprudentes ou
indecisos – mas ainda assim indiscutivelmente mais nobres que as personagens colocadas
no pólo negativo. Em outras palavras, enquanto o romance europeu dava testemunho do
“mal-estar na civilizaç~o” ao tornar-se a contra-face da imagem que o presente fazia de si
mesmo – trocando o idealismo pela exposição da fraqueza moral, sugerindo a
impossibilidade de escape da mediocridade contemporânea, eliminando a utopia da Bildung
ao denunciar as aspirações sociais como instâncias de deformação moral... –, na América
Latina os insucessos econômicos, educacionais, institucionais e civilizatórios forçavam o
confronto com uma autoimagem que demandava não a sua “desconstruç~o” como “auto-
ilusão”, mas a crítica empiricamente fundada das condições que condenavam a região ao
atraso, fomentando não a denúncia da falsa impressão de sucesso, mas a construção de
ideações que permitissem alcançá-lo pela rejeição do existente – tal era a condição
majoritária ainda em meados dos anos 60 (quando era forte o pensamento utópico), com
desdobramentos ainda hoje.
Diferentes condições históricas, portanto, conferiram orientações diferentes ao
romance na Europa e na América Latina durante boa parte do século XX. Por analogia, é
como se aqui muitos romances tivessem mantido viva a promessa de redenção ao
evocarem, mesmo que subliminarmente, visões utópicas que mesclavam certo cientificismo
e certo romantismo ao sugerirem, mesmo que em negativo, imagens de reconciliação
futura (não por acaso, os espectros de Marx e Rousseau se fariam sentir por tanto tempo).
Daí o ar de engajamento observado por Carpentier, que o romance europeu do século XX
apenas esporadicamente apresentaria: seguindo uma orientação inversa, na Europa o
esfacelamento da crença na redenção histórica – que se disseminaria no último quarto do
século XIX, e com particular intensidade após a Primeira Guerra – levaria uma parcela
importante do seu modernismo a encontrar num Schopenhauer a fundamentação filosófica
e a legitimação moral para uma atitude de distanciamento do mundo. (PAVEL, 2013, p. 215)
Se, para Schopenhauer, todas as ações humanas através da história são meras encarnações
da Vontade, força cósmica que produz conflito e sofrimento intermináveis e perpetua a
discórdia e a angústia, o único escape possível estaria no auto-distanciamento do mundo e
na compaixão pelas suas vítimas (vítimas da Vontade, vítimas da própria ingenuidade).
Retraimento e compaixão seriam as respostas adequadas ao desafio da história: para
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Schopenhauer, “grandes almas” s~o “prisioneiras do mundo” e apenas a arte pode abrir-
lhes uma existência elevada, mostrando o caminho para uma “salvaç~o secular”; mesmo
que ela n~o produza salvaç~o coletiva, na condiç~o de “religi~o ascética” a arte pode trazer
consolo a uns poucos, libertando-os das amarras do real... (PAVEL, 2013, p. 267) Um ethos
como este, disseminado no modernismo europeu, estimularia o menosprezo pela literatura
comercial, pelo realismo social e pela produção de empatia, fomentando um romance
“autônomo” que exigiria do leitor um alto grau de devoção – num culto da arte que, naquele
momento, não se reproduziu no modernismo latino-americano, sendo possível argumentar
que mesmo a produção estética e intelectualmente mais erudita das décadas de 1950 e
1960 (aquela de Guimarães Rosa, Cortázar, Cabrera Infante...) não se sentiria confortável
com aquele auto-distanciamento, preservando certa expectativa de participação do
romancista na auto-produção social. Se, diante disso, a obra de Bolaño parecia nova, é
porque nela a redenç~o naufragava no “governo da Vontade” e o auto-distanciamento se
legitimava tanto na relação com o presente, quanto na ideação do futuro. Pavel (2013, p.
267) indica que romances “schopenhauerianos” costumam apresentar um tom irônico
perpassado por uma sofisticaç~o intelectual estranha, com enredos “labirínticos” próximos
e distantes do mundo real e cheios de personagens solitários, resignados ou retraídos que
não conhecem a si mesmos nem dominam suas próprias ações, mas que se mostrariam
superiores à mediania ao menosprezarem as leis sociais: as obras de Bolaño são assim, e
nelas a América Latina permanece, insistente, mas agora suscitando a acusação das suas
ilusões constitutivas, das suas promessas não cumpridas, da sua ausência de futuro, da sua
modernidade como prisão.
Nisso n~o mais reconhecemos o “longo século XIX” do romance latino-americano,
mesmo que Bolaño tenha reiterado uma das suas características mais determinantes de
longa duração: a tematização, de cunho historiográfico, da condição política do continente.
Ele se distanciava, porém, da tradição local ao abandonar o realismo (e o real maravilloso), a
representação da vida comum e a produção de empatia, para privilegiar outras
características do gênero: a preferência pelo acidental e pela coincidência em detrimento da
verossimilhança baseada na probabilidade, a representação gráfica da violência sexual e
física, a irrupção de estórias paralelas cujas relações com o enredo principal nem sempre se
explicitam, em conjunto com a apropriação livre de discursos não-literários e a construção
de personagens solitários em meio a sociedades hostis – que, em Bolaño, parecem escolher
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a solidão como alternativa moralmente digna de pertencimento ao presente. Seja no plano
estético, seja no plano político, as seleções de Bolaño entre as possibilidades
historicamente pertinentes ao romance como gênero diferenciavam-no frontalmente do
cânone latino-americano, mesmo que o seu distanciamento da tradição local obedecesse
aos limites que as estruturas do gênero impõem à sua prática, em qualquer época e lugar.
Permanecia, por exemplo, o problema epistemológico da credibilidade da apresentação da
informaç~o: daí composiç~o “documentarista” de Os detetives selvagens. De maneira
criptografada, permanecia a propensão ao didatismo: mesmo que não haja retórica direta
em Bolaño, o componente casuístico inerente à apresentação das manifestações concretas
do Mal transcendente provoca repulsa, o que basta para evocar, por contraste, uma noção
vaga de Bem. E com ela permanecia o senso de comunidade fraturada que Bolaño tanto
explorava: mesmo que não mais existam utopias redentoras às quais possamos apelar,
ideias rarefeitas de Bem podem subsistir como afirmações pessoais de resistência.
Dispostas sobre o pano de fundo da história do gênero, inovações perdem o ar de
“ruptura”. Romances inovadores fazem aquilo que romances sempre fizeram, renovando o
gênero a partir de potencialidades que há muito eram-lhe imanentes – o que não diminui a
carga de inovação, mas faz situá-la em meio a longas continuidades, dentro do movimento
reiterado de auto-negação que caracteriza a história da literatura. Pensar o romance latino-
americano a partir da teoria e da história do gênero facilita também a abordagem das bases
materiais e políticas que têm influenciado as suas transformações: romances não
respondem direta e imediatamente às condições sócio-econômicas ou ao debate político-
ideológico sincrônico, reagindo a eles enquanto romances, i.e. de acordo com estruturas que
vêm cristalizando-se desde o século XVII. A história é sempre velha e nova, e por isso as
formas produzem reconhecimento mesmo quando elas nos surpreendem: somada a
afirmação do seu pertencimento ao gênero à sua reação à tradição local (fomentada pela
interpretação da história recente do continente), a novidade, em Bolaño, pode ser descrita
como um gesto de renovação (estética e política) de condições locais mediante a
apropriação pessoal, e altamente singularizada, de possibilidades ancestrais. Toda
singularidade emerge da preservação de possibilidades há muito pertencentes ao campo,
associada à torção seletiva e localizada dos seus meios convencionais de atualização – é o
que a obra de Bolaño nos mostra.
151 Eutomia, Recife, 13 (1): 133-151, Jul. 2014
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1 Pedro DOLABELA CHAGAS, Prof. Dr.
Universidade Federal do Paraná Departamento de Linguística, Letras Clássicas e Vernáculas [email protected]
Recebido em 20/06/2014 Aprovado em 30/06/2014