Boletim Contexto 2005 - Saudade de Carolina – Deisy Das Graças de Souza PDF.pdf

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  • Saudade de Carolina1 Deisy das Graas de Souza

    Universidade Federal de So Carlos

    Minha esperana a juventude; Os jovens vo levar isso frente Carolina Martuscelli Bori Debatendo a proposta de criao do Curso de Psicologia na UFSCar, em 1993

    Uma imagem que pode representar a atuao de Carolina a de um ponto de luz, uma estrela, cujo ncleo, constitudo por sua conscincia e coerncia em relao ao papel da cincia e dos cientistas na sociedade, se irradia em inmeras direes de atuao. Essa, no entanto, a nica associao possvel entre Carolina e uma estrela: seu comportamento pessoal caracteriza-se antes por sobriedade, moderao, discrio, muito trabalho e pouco alarde. (Carvalho et al., 1998, p.26)

    Minha ltima imagem de Dona Carolina inesquecvel, como muitas outras: de p, elegante e discreta, como sempre se apresentava, ela estava voltada para uma platia de centenas de pessoas que a aplaudiam de p! O dia era 15 de agosto de 2004 e o evento era a sesso de encerramento do ltimo congresso na rea de Psicologia de que ela participou: o segundo congresso internacional da Association for Behavior Analysis, realizado em conjunto com o XIII Encontro da Associao Brasileira de Psicoterapia e Medicina Comportamental2, realizado em Campinas, So Paulo. Ela estava sendo aplaudida no apenas por seu empenho e apoio ativo para a realizao daquele evento, mas sobretudo pelo valor simblico daquele momento, que coroava e reconhecia a excelncia da anlise do comportamento no Brasil. Aquelas

    1 Carolina Martuscelli Bori:(1924-2004). muito difcil falar de Carolina (Dona Carolina,

    Professora Carolina, minha amiga Carolina), mas no posso deixar de atender ao convite para uma homenagem a ela no Boletim Informativo Contexto da ABPMC. A principal referncia para este texto o volume 9, nmero 1, do peridico Psicologia USP, de 1998, editado por Maria Amlia Matos, no qual o Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo e a comunidade cientfica prestaram uma homenagem Professora Emrita Dra. Carolina Martuscelli Bori. O leitor encontra ali o depoimento de pessoas que foram amigas, colegas e colaboradores de Carolina nos mais diversos cenrios da vida cientfica nacional e que evidenciam o espectro e a qualidade de suas relaes com ela, como pessoa, como cientista rigorosa e como cidad engajada. 2 Presididos por Hlio Jos Guilhardi (pela ABPMC) e Linda Hayes (Presidente da ABA), com o

    apoio de Maria Martha Hbner (Presidente da SBP) e da executiva da ABA, Maria Emma Mallot.

  • centenas de pessoas eram, no mnimo, interessadas em ou simpatizantes da anlise do comportamento; uma grande parcela era composta por analistas atuantes em muitas reas do cenrio nacional, todos com uma histria em comum: foram alunos de Carolina ou de algum de seus muitos alunos (mais de 100 realizaram teses e dissertaes sob sua orientao). Uma outra parcela era constituda por analistas do comportamento estrangeiros, que puderam conferir a competncia dos brasileiros, como cientistas e como organizadores de um evento com aquelas dimenses. Quem esteve l, sabe do que estou falando. Sentada ao lado de Carolina, e vendo seu sorriso sereno e seu aceno discreto, de agradecimento, eu me lembro de ter pensado que aquela cena representava, em certa medida, a magnitude dos efeitos da introduo da anlise do comportamento no Brasil, pela qual ela foi responsvel, juntamente com o Professor Fred Keller: aquelas eram pessoas preparadas (ou em preparao) para investigar, ensinar e realizar as promessas e as esperanas que do ao desenvolvimento da anlise do comportamento o sabor de uma grande aventura, que Carolina tanto apreciava. Pensei, tambm, que nossos colegas do exterior certamente estavam podendo se certificar de que o prmio conferido a Carolina dois anos antes, durante a Reunio Anual da ABA, em So Francisco, por sua atuao na difuso internacional da Anlise do Comportamento, havia sido mais do que merecido3.

    Este, certamente, no foi um momento isolado na vida e na carreira da Professora Carolina Martuscelli Bori: ela viveu uma vida plena, produtiva e bem sucedida, dedicada com afinco e paixo Psicologia, em particular, e cincia e educao, de modo geral. Ela tinha plena convico de que sem desenvolvimento cientfico no teramos sada para os graves problemas enfrentados pelo povo brasileiro. Com uma ampla viso do seu espao e do seu tempo, sabia que a Psicologia era nada, se isolada do restante do movimento cientfico do pas e se dedicou plenamente a fazer cincia, a preparar pessoas para fazerem cincia, a gerenciar condies para que a cincia fosse realizada e difundida. A Psicologia era sua paixo e a USP, sua casa, mas sua generosidade se estendeu para muito alm dos limites dessa cincia e desta instituio e ela soube compartilhar com centenas de pessoas, programas e instituies, suas idias e sua experincia e, sobretudo, o exemplo de persistncia e de apego a princpios. Um resumo muito sumrio de sua carreira mostra que ela era licenciada em Pedagogia pela USP (em 1947, quando se formou, ainda no havia curso de Psicologia no Brasil), concluiu mestrado na New School for Social Research nos Estados Unidos, sob orientao de Tamara Dembo e obteve o ttulo de doutora pela USP, em 1954 , com uma tese sobre Os experimentos de interrupo de tarefa e a Teoria de Motivaco de Kurt Lewin, orientada pela Dra. Anita C. M. Cabral. Esse apenas o lado formal da carreira. Foi professora da USP, primeiro na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras (a partir de 1948), depois

    3 Fui acompanhante de Carolina naquela viagem e posso testemunhar como o evento foi emocionante. Ela

    fez um belo discurso, no sem antes l-lo para o Professor Sidman, para se assegurar de que o tom estivesse apropriado audincia. Seu sorriso alegre pode ser conferido na fotografia tirada logo depois da sesso de homenagem.

  • no Instituto de Psicologia, que ajudou a fundar e onde chefiou o Departamento de Psicologia Social e Experimental (1968-1969) e o Departamento de Psicologia Experimental (1969-1971) e instalou e coordenou, de 1970 a 1984, o Curso de Ps-Graduao em Psicologia (e que foi, por muitos anos, o nico programa de doutorado em Psicologia no pas). Nesta Universidade, recebeu o ttulo de professora Emrita, no momento em que era aposentada compulsoriamente (1994), no sem uma boa dose de indignao, expressa com toda a vemencia de que ela era capaz; os 70 anos pareciam no lhe pesar em nada e ela estava disposta a seguir ensinando e militando, como nunca deixou de fazer, a despeito da aposentadoria, at poucas semanas antes de ser vencida pela falncia que a tirou de nosso convvio. Ensinou Psicologia na Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras de Rio Claro (1959). Foi Pesquisadora Associada do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, no Rio de Janeiro (1956-1962). Na Universidade de Braslia (1963-1965), organizou e chefiou o Departamento de Psicologia, quando liderou a criao do curso de Psicologia e a implantao do ensino programado individualizado em todo o ciclo bsico da Universidade; voltou UnB como membro do Conselho Diretor (de 1990 a 2004) e ali recebeu o ttulo de Doutor Honoris Causa, em 2000 (um evento memorvel, na oportunidade em que se realizava na UnB a XXX Reunio Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, da qual ela foi a primeira presidente). Na Universidade Federal de So Carlos, foi Diretora do Centro de Educao e Cincias Humanas (1976-1979), a convite do ento Reitor, Dr. Luiz Edmundo de Magalhes; depois dela, nunca outro diretor foi convidado, porque ela se empenhou fortemente pela implantao dos rgos colegiados na jovem universidade e os diretores, da em diante, passaram a ser democraticamente eleitos. Na Direo do CECH, foi muito alm de uma gesto burocrtica e liderou, entre outros movimentos por um desenvolvimento rigorosamente cientfico da educao, a implantao Programa de Ps-Graduao em Educao Especial (1978), no qual foi Professora Visitante (1982-1983; 1994). Vinte e cinco anos depois, por ocasio das comemoraes nesse Programa, foi homenageada pela UFSCar com o ttulo Doutor Honoris Causa. Essa longevidade na relao com as instituies de ensino e pesquisa no ocorreu por acaso evidncia dos vnculos que ela criou e que nunca se romperam, mesmo quando ela precisava se afastar, porque uma sucesso de pessoas sempre ia em busca de seu retorno, de sua ajuda, de sua participao na vida e na evoluo das instncias e das atividades a que ela deu vida. No cenrio internacional, foi Research Associate, no Institute of Latin American Research, da Universidade do Texas, em Austin (1966) e Visiting Professor (1966-1967); foi tambm vice-presidente da Associao Intercincia (com papel destacado na editorao da revista de mesmo nome) e ministrou cursos para difundir a programao de ensino em vrios pases da Amrica Latina, como bem pode testemunhar o colega Slvio Botom, seu colaborador nessas empreitadas. Sua militncia fica evidente no conjunto de aes para a organizao do movimento pelo desenvolvimento cientfico, liderando a criao de sociedades cientficas e participando do gerenciamento de tantas outras, sobretudo na

  • organizao de eventos para a difuso e a promoo da pesquisa cientfica e na defesa da Psicologia como cincia e profisso autnoma. Na Psicologia, presidiu a Associao Brasileira de Psicologia (1954-1955 e 1963-1965), a Sociedade de Psicologia de So Paulo (1960-1961), a Associao de Modificaco de Comportamento (1969-1973), a Associaco Nacional de Pesquisa e Ps-Graduaco em Psicologia (1984-1986), cuja criao dependeu muito de sua liderana, e a Sociedade Brasileira de Psicologia, que resultou da evoluo da Sociedade de Psicologia de Ribeiro Preto e da qual foi a primeira presidente eleita (1992-1993). No cenrio cientfico mais amplo, foi uma ardorosa militante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Cincia, como associada e como dirigente: Primeira Secretria (1973-1977), Secretria Geral (1977-1981), Vice-Presidente (1981-1986), Presidente (1986-1989) e Presidente de Honra (1989 a 2004). Nas palavras do Professor Aziz AbSaber (1998), seu colega da gerao de 1945 da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras,

    seu trabalho e sua colaboraco permanente com a SBPC incluindo participao inteligente e desassombrada em momentos crticos da vida nacional honram sobretudo sua vida e sua famlia (p.36)

    No movimento docente, foi membro do Grupo de trabalho da Associao de Auxiliares de Ensino da USP, responsvel pela organizao e criao da Associao de Docentes da USP (ADUSP), em 1976, e Segunda Tesoureira da Diretoria Provisria responsvel pela implantao da ADUSP naquele mesmo ano. No que concerne publicao cientfica, foi Co-editora de Psicologia, da Sociedade de Estudos Psicolgicos, uma revista influente e de excelente qualidade e regularidade (quando o cenrio era o de um escasso nmero de peridicos, cuja regularidade era um desafio quase nunca atingido), que ela editava juntamente com Maria Amlia Matos e os ento alunos de ps-graduao Jlio de Rose, Elizabeth Tunes e Marilena Ristum Carli; tambm editou os Catlogos e Resenhas de Trabalhos sobre Ensino de Cincias e Matemtica e foi Membro do Conselho Editorial de Cincia e Cultura (SBPC), Cincia Hoje (SBPC), Arquivos Brasileiros de Psicologia (Fundaco Getlio Vargas), Revista de Psicologia (USP), Revista de Fisioterapia (USP), The Journal of Personalized Instruction (Georgetown University, EUA), Intercincia (Associao Intercincia). Emprestou sua fora, seu prestgio e seu trabalho criterioso s agncias de fomento, ajudando a definir polticas e a implementar programas para o desenvolvimento cientfico nacional: foi membro do Comit Assessor em Cincias Humanas e Sociais do Conselho Nacional de Pesquisa CNPq (1982-1984), membro da Comisso de Implantao do PADCT/CAPES/MEC (1983), e Presidente de rea da Comisso de Acompanhamento e Avaliao de Cursos de Ps-Graduao da CAPES/MEC (1985-1987).

    Defendeu a Psicologia como cincia e como profisso, e sua defesa intransigente foi crucial em momentos decisivos na nossa curta histria, tanto na

  • dcada de 60, quando presidiu a comisso que elaborou o projeto de lei para a regulamentao da profisso no pas (1962) e a constituio do currculo mnimo para o Curso de Psicologia, que vigorou por mais de quarenta anos, como nos momentos mais recentes, de redefinio dos cursos, em que, como Presidente da Comisso de Especialistas de Psicologia do Ministrio da Educao e do Desporto (1995-1996) e membro da mesma comisso nas gestes subsequentes, at 2002, teve um papel destacado na definio das Diretrizes Curriculares para o Curso de Graduao em Psicologia. Defendeu a produo nacional de equipamentos para laboratrios de ensino (como parte das condies essenciais para a formao cientfica) e realizou importante trabalho voltado para o desenvolvimento e o ensino de cincias. Foi Membro do Conselho de Curadores da Fundao Brasileira para o Desenvolvimento de Cincias (1977-1979 e 1983-1985). No Instituto Brasileiro de Educao, Cultura e Cincia (IBECC) Comisso So Paulo, foi Diretora Secretria Geral (1982-1992), era Diretora Cientfica desde 1993 e Coordenadora do Ncleo de Documentao sobre Formao Cientfica por 20 anos (1984-2004). Coordenou, ainda, o Projeto Estao Cincia da Universidade de So Paulo / CNPq (1990-1994). Finalmente, mas no menos importante, foi Coordenadora do Conselho do Ncleo de Pesquisa para o Ensino Superior (NUPES, 1995-1996) e Diretora Cientfica, desde 1996, funo que exerceu at seus ltimos dias. A listagem dos cargos e posies que ocupou, porm, muito pouco para falar de Carolina e s quem a conheceu e com ela trabalhou e conviveu de perto pode ter uma dimenso do carter que ela imprimia a todos esses tipos de atividades e, sobretudo, de como, no exerccio dessas funes, ela dispunha as condies para que as pessoas envolvidas pudessem fazer, realizar.

    Viso de futuro e pensar grande era com ela mesma; eu me lembro de uma conferncia que ela fez em So Carlos, para alunos do Curso de Graduao em Psicologia, quando a primeira turma estava completando o curso. Pensvamos que ela fosse falar sobre um futuro prximo e sobre os rumos que a Psicologia estava tomando. Mas ela nos surpreendeu a todos e foi muito mais longe: fez com a audincia um exerccio de pensar como seria o mundo em 2020 ou 2050 (estvamos em 1997 ou 1998), em como as pessoas viveriam (abordou as possibilidades de transporte, habitao, alimentaco, trabalho, convivncia, criao e cuidados com filhos, educao, comunicao, com uma enorme lucidez e criatividade) e, ento, desafiou a todos, e aos jovens estudantes, em particular, a pensar em quais seriam as exigncias para uma Psicologia que se pretendesse cientfica e til, naquele cenrio.

    Suas contribuies cientficas na Anlise do Comportamento foram originais e imensamente valiosas, tanto na anlise de contingncias na programao de ensino, como na anlise de relatos verbais. Muitos dos que hoje realizam competentes anlises de contingncias nos setores mais variados, tiveram sua iniciao nos clebres cursos de programao que Carolina ministrou na USP. Maria Amlia sintetiza bem o que foi essa contribuio:

  • Deu ao sistema personalizado de ensino (PSI) um novo e inteiramente diferente rumo: a Anlise de Contingncias na Programao de Ensino. Diferententemente da verso do Professor Keller, que centrava-se na anlise dos temas e textos a serem estudados e no como isso seria avaliado, a Anlise de Contingncias em Programao de Ensino voltava-se para a anlise das habilidades e conhecimentos necessrios para o exerccio de uma atividade, e para o planejamento das condies de ensino que favorecessem a aquisio dessas habilidades e conhecimentos. Esse foi, e continua sendo, pois no excedido, o mais pristino exemplo, no Brasil e no exterior, de aplicao dos princpios da Anlise do Comportamtento anlise de contingncias envolvidas no ensinar e no aprender. (Matos, 1998, p.70).

    Foi muito parcimoniosa para escrever, mas criou todas as condies para que outros o fizessem; aquilo que criou na Psicologia mostra-se menos como produto publicado, do que como efeitos no comportamento de outros, que ela modelou e manteve e nas instituies que criou e ajudou a consolidar sociedades cientficas, ncleos de trabalho, departamentos, programas de ps-graduao, veculos de divulgao.

    Foi uma brasileira do seu tempo ou, melhor dizendo, muito frente de seu tempo, e sua obra vai sobreviver no pensamento e na ao das geraes que conviveram e aprenderam. Vamos sentir saudade, muita saudade, mas no menos forte ser o sentimento de que ela segue conosco.

    REFERNCIAS

    AbSaber, A. N. (1998). Carolina Bori: a essncia de um perfil. Psicologia USP, 9 (1), 35-36.

    Carvalho, A. M. A., Matos, M. A., Tassara, E. T. O., Rocha e Silva, M. I., & Souza, D. G. (1998). Carolina Bori, Psicologia e Cincia no Brasil. Psicologia USP, 9 (1), 25-30.

    Matos, M. A. (1998). Carolina Bori: A psicologia brasileira como misso. Psicologia USP, 9 (1), 67-70.