BONITO, CAVERNAS E TRENS - perse.com.br · 4 apresentável o suficiente ao menos para despertar o...

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1 PAULO PUPO BONITO, CAVERNAS E TRENS 2ª edição São Paulo, SP Paulo Roberto Bicalho Pupo 2013

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PAULO PUPO

BONITO, CAVERNAS E TRENS

2ª edição

São Paulo, SP

Paulo Roberto Bicalho Pupo

2013

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NOTA DO AUTOR

Esta segunda edição difere da primeira, de novembro de 2004,

pelos seguintes aspectos básicos:

1º) pelo tipo de formatação adotado (margens mais largas,

texto menos congestionado, variações de fontes, espaçamentos,

alinhamentos, etc.), coisa que não pude fazer na primeira edição por

questões financeiras uma vez que a mesma foi financiada com recursos

próprios, bastante escassos, o que impôs limites à sua publicação, tendo

eu que me preocupar até mesmo com o número de páginas, para

economizar papel.

2º) pela maior conformidade com os padrões editoriais

vigentes (folha de rosto, ISBN, código de barras, etc.);

3º) por conter um posfácio, que foi escrito originalmente para

ser um prefácio;

E no que se refere ao posfácio julgo ser necessária uma

explicação mais detalhada.

Este romance foi elaborado a partir de um simples diário de

viagem escrito ainda no ano seguinte ao término da mesma. Mas,

ainda na forma crua e descomprometida de um diário, foi lido por boa

parte das pessoas que faziam parte dos meus círculos de convivência,

tanto familiares quanto profissionais e sociais, e com tamanha

receptividade que decidi transformá-lo num livro e publicá-lo.

Consumi cerca de quatro anos nessa tarefa, principalmente

por falta de tempo. Trabalhava durante o dia, fazia faculdade à noite e

ainda fazia ‘bicos’ durante os finais de semana em leilões de gado, o

que me deixava com menos de duas tardes e noites de folga por

semana para estudar e ao mesmo tempo pesquisar gramática,

ortografia e redação; e eu queria redigir um texto que fosse

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apresentável o suficiente ao menos para despertar o interesse de algum

editor. É claro, eu sabia que o texto precisaria de uma revisão e/ou

correção profissional, por parte de um especialista devidamente

qualificado; mas eu achava que, se o texto fosse atraente ou ao menos

vendável, alguma editora haveria de se manifestar e me oferecer algum

tipo de suporte profissional, ainda que pago. Lancei-me ao trabalho de

romancear o diário e já no começo dos anos 1990 dei início à procura

de uma editora que se dispusesse publicá-lo.

Em vão.

A recusa foi generalizada, e o argumento principal era quase

sempre o mesmo: uso excessivo de palavrões, de “palavras de baixo

calão”, de “vocabulário chulo” e outras tantas formas mais de se

enunciar a mesma coisa.

Por isso, e acreditando firmemente que o livro, apesar de tudo,

despertaria interesse, resolvi escrever um prefácio, cerca de dez anos

depois de o livro já ter sido composto. Não como uma justificativa

teórica, já que não me considero erudito o suficiente para tanto; mas

como o desabafo sincero de quem, sinceramente, não vê problema

algum nisso quando se está simplesmente reproduzindo uma realidade.

Não o publiquei na primeira edição, como já disse, por falta de

recursos; mas o estou publicando agora, nesta segunda edição, mais

por capricho que por qualquer outra razão, na forma de um posfácio; e

acrescido de alguns poucos enxertos posteriores que, a meu ver,

complementam e reforçam o teor original das ideias expostas no

mesmo quando o elaborei, tempos atrás. Perdoem-me, portanto, o leitor

e os eruditos se a argumentação do referido posfácio for mero

devaneio; mas, parafraseando Mário de Andrade, se eu sou um gênio,

aponto um rumo a seguir; e se sou uma besta, um naufrágio a evitar.

O AUTOR

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PRELIMINARES

TTRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMM!! !!

― Alô.

― Paulo?

― Eu mesmo. Quem é?

― É o Adair…

― Fala, Dadá, que é que manda?

― Ó, tô te ligando pra dizer que eu não vou mais…

― Ah, é, é? Pra onde?

― Pra Tasmânia. Porra, to falando sério, não vou mais poder

ir, não vai dar…!

― Sem brincadeira, vai, Dadá!

― Não tô brincando, é sério, meu pai vai precisar de mim na

fazenda, tenho que ir com ele amanhã de manhã…

Muita sacanagem! Tudo combinado há um tempão e o safado

vem com essa justo no dia de partir! Quer dizer, não só no dia,

praticamente na hora de partir. Não que eu já não tivesse pensado

nessa possibilidade, muito pelo contrário, há tempos que pescarias e

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viagens minhas vinham sendo estragadas por essas desistências de

última hora. Eu já estava até me acostumando com essas coisas, mas

da última vez, quando deveríamos ir até Ubatuba numa caravana de

onze pessoas e acabamos indo apenas eu e o Osmar, jurei pra mim

mesmo nunca mais combinar nada com ninguém (o que, como se

percebe, não cumpri). E o que realmente me dá mais raiva é que

quando aparece a ideia de viajar é um tal de todo mundo falar “Eu

vou!!!!”, “Não vou dar furo!!!!”, “Pode contar comigo!!!”. Só que

chega bem na hora de partir, depois de tudo arrumado, depois de muito

suor pra conseguir dinheiro e tralhas, é que os putos acham de dizer

com a maior cara de pau: “É, sinto muito, mas desta vez não vai dar

mesmo…”.

Porra, por que é que não avisam antes?

― ADAIR, VOCÊ É UM GRANDESSÍSSIMO FILHO

DA PUTA!!

Desliguei na cara dele.

Não deu nem dez minutos e o telefone tocou de novo: era o

Biro-Biro.

― O QUÊ?? VOCÊ TAMBÉM NÃO VAI?! Seu corno,

veadinho, sem-mãe…!!

― Tô brincando, otário, é claro que eu vou, imagina se eu vou

desistir... Mas por que você falou “também”?

― É que a bicha do Dadá acabou de me ligar dizendo que não

vai mais. Desistiu, o babaca.

― Ué, por quê?

― Sei lá, disse que o pai vai precisar dele na fazenda, mas é

desculpa esfarrapada, tá na cara...

― E agora?

― Agora que se foda, vamos só eu, você e o Osmar... Mas

afinal, Biro, você me ligou pra quê?

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― É que meu violão tá trincado, o som tá horrível e eu queria

saber se dá pra você levar o seu…

― Ué, levo... Só que tá faltando uma corda, a mizinho… Se

você tiver uma pra me arrumar não tem problema, dá pra levar sim…

― De aço?

― É, de aço.

― Eu tenho, pode deixar que eu levo.

― Então tá bom. Daqui a pouco eu tô na estação e a gente se

fala melhor. E o Osmar?

― Pode deixar que eu passo pra apanhar ele, minha mãe vai

me levar de carro. Quer que eu passe aí pra te pegar também?

― Não, pode deixar que eu vou a pé mesmo.

― Então falou. Até mais.

― Tchau.

Desliguei e fui pro chuveiro tomar um banho, pensando na

viagem que estava por vir e que nem tudo estava perdido, mesmo com

a desistência do Dadá. Se tudo continuasse como estava, em menos de

três horas estaríamos na estrada, de novo. Com ou sem o Adair. E é

gozado como essas viagens acabam dando certo. Por causa das

desistências, tudo tem que ser refeito na última hora. O babaca que ia

levar a barraca não vai mais. Não? Vamos procurar outra, então! O

Zagato desistiu, estamos sem bujão de gás e sem fogareiro. Grande! Só

temos três horas e ainda por cima num domingo! O Betinho viajou

com a família e levou a camisinha. Dane-se, se elas engravidarem,

azar! A camisinha do lampião, idiota! Ah, bom.

Mas a gente se vira, na maioria das vezes com pouco dinheiro

e pouco tempo, sem um roteiro claro de viagem e sem nem mesmo um

orçamento aproximado de gastos possíveis. Mas dessa vez, para onde

iríamos, não precisaríamos de barracas ou outras tralhas de

acampamento, estávamos planejando ficar em hotéis, pensões ou

simples casas de família, se nos alugassem um quarto ou edícula.

Nosso destino era Bonito, no Mato Grosso do Sul, cidade que até então

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nenhum de nós três conhecia a não ser por uma publicação do governo

que eu lera em Brasília, onde, na época, eu morava com meu pai. A

ideia de ir pra lá, aliás, era minha; descobri o lugar quase por acaso,

folheando à toa uma publicação do Ministério do Interior, só pra passar

o tempo enquanto esperava meu pai sair do trabalho.

A reportagem descrevia a região de Bonito como belíssima,

cheia de atrativos naturais e ainda não exposta ao turismo de massa, o

que a meu ver a tornava ainda mais interessante. Rios de águas

transparentes, cascatas aos montes, e ainda dezenas de grutas, a

maioria ainda inexplorada e apenas duas disponíveis para visitação

pública: a Gruta do Lago Azul e a Gruta Nossa Senhora da Aparecida.

A primeira, como o próprio nome sugeria, possuía em seu interior um

lago de coloração azulada a uns cento e oitenta metros de profundidade

caverna adentro, lago esse que refletia a luz do sol quando se alinhava

à entrada da gruta, deixando-a colorida com intensa iluminação azul; a

segunda tinha como atrativos principais as diversas formações

rochosas, uma das quais representava a imagem de uma santa que, por

sinal, dera nome à gruta. Além dessas coisas, o texto falava em

especial de uma ilhota no meio do Rio Formoso, chamada Ilha do

Padre, um lugar paradisíaco com flores e plantas das mais variadas

espécies e cores e riachos que entrecortavam a ilha toda formando

pequenas cascatas. E, ainda, rios com águas tão transparentes que dava

pra observar os peixes nadando a metros de distância, fazendas quase

virgens, montanhas de encher os olhos… Pra resumir, enfim, um lugar

de natureza quase virgem que parecia digno de exploração e aventura.

Propus a viagem ao meu pessoal lá de Araçatuba, onde

morava minha mãe, mas só o Biro-Biro e o Osmar toparam ir, além do

Dadá, que na época morava em São Paulo. Combinamos a partida para

o mês de julho, quando todos estaríamos de férias, deixando pra

marcar o dia exato só depois de arrumarmos todos os equipamentos e

todo o dinheiro que pudéssemos conseguir. Sairíamos os quatro de

Araçatuba, no trem que fazia a rota de Bauru a Corumbá,

desembarcaríamos em Aquidauana, depois tomaríamos um ônibus até

Bonito, pernoitaríamos num hotelzinho qualquer e no dia seguinte

faríamos contato com um guia local chamado Sérgio Gonzalez,

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conforme orientação da publicação. E então passearíamos pelas

redondezas por quatro ou cinco dias.

Tudo certo?

Quase.

Nenhum de nós sabia exatamente como seria essa viagem

depois que desembarcássemos do trem em Aquidauana. E pra falar a

verdade ninguém nem procurou saber. Será que os horários de trem e

ônibus vão se combinar na baldeação em Aquidauana? Será que existe

um ônibus de Aquidauana para Bonito? Existe hotel em Bonito? Como

é que a gente vai se locomover por lá para visitar grutas, cachoeiras e

rios? Onde encontrar o tal Sérgio Gonzalez, se é que ainda está por lá?

Principalmente, quanto vai custar tudo isso?

Ninguém sabia de nada e, como já disse, ninguém se

preocupou em descobrir. O negócio era se aventurar e o resto que se

danasse. Marcamos um lugar no mapa, juntamos a miséria de uns

quinze mil cruzeiros cada um, improvisamos um roteiro, enchemos as

mochilas e pronto. Daí pra frente seria confiar na sorte. Se tudo desse

errado, o pior que poderia acontecer seria a gente ter que voltar pra

casa mais cedo, antes dos quatro ou cinco dias previstos; de resto,

coisas como dormir na praça, na cadeia ou na igreja, racionar comida

ou parar de fumar pra economizar já estavam previstas e aceitas por

todos nós. Por fim, acertamos partir com todas essas condições e a

família de cada um de nós, como seria de se esperar, protestou:

— Vocês são loucos?? Nem sabem se o dinheiro vai

ser suficiente e ainda assim vão se enfiando no

meio do país?

Pai, não vamos morrer de fome em quatro dias…

— Que loucura é essa?? Se enfiarem assim no meio do

mato, numa cidade totalmente estranha, sem

conhecer absolutamente nada nem ninguém?

Mãe, não são estranhos, moram no mesmo país, falam a

mesma língua…

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— E se vocês caírem na boca de uma cobra ou de um

jacaré?

Pai, a cidade é pequena, mas é cidade…

— Não sabem que lá as pessoas vivem dando tiros

umas nas outras?

Mãe, cenário de bangue-bangue é lá nos Estados Unidos…

— E os traficantes? E os coureiros? Contrabandistas

de peles e de animais...! Pistoleiros…! A

criminalidade...!? A corrupção das autoridades...!?

E se o lugar for um antro de violência…?

Tá bom!, chega!, que saco!, vocês venceram…! Vamos

formular pelo menos algumas regrinhas básicas pra evitar encrencas

muito grandes:

1º) Um por todos e todos por um;

2º) Se encontrarmos com criminosos, e a

situação for de alto risco, faremos tudo

pra não sermos mortos (menos dar o cu e

coisas desse tipo, preferimos a morte);

3º) Um pé atrás sempre que alguém se

apresentar como representante da Lei; a

ditadura tá acabando mas ainda é uma

ditadura;

4º) Ninguém nunca deda ninguém;

5º) Nunca, jamais, em tempo algum, dar em

cima das meninas da cidade sem antes

saber se elas possuem: namorado, noivo

ou marido; irmão mais velho do tipo

ciumento; pai metido a lavar a honra da

família; mãe casamenteira; militar ou

delegado na família;

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6º) Se a cidade é pequena, com certeza todo

mundo se conhece; por isso, em caso de

confusão, provavelmente não veremos a

turma do ‘deixa-disso’, só a do ‘pega-

eles’; portanto, muita calma sempre e

seja sempre um bom e fervoroso cristão:

se te baterem numa das faces oferece a

outra; pelo menos até segunda ordem.

7º) Se algo der errado pra alguém, lembrar a

primeira regra;

Com isso, mais os acertos sobre não levarmos material de

acampamento e deixar a maioria das coisas por conta da sorte,

estávamos prontos para a viagem. Partiríamos de Araçatuba na terça-

feira, no trem das oito horas da noite.

Terminei meu banho (não sei se você se lembra, mas eu estava

pensando tudo isso debaixo do chuveiro) e fui jantar na sala, vendo

televisão. Ainda estava com o prato na mão quando o Adair entrou

casa adentro com uma mochila nas costas (veado, disse que não ia só

pra me sacanear), todo apressado e dizendo:

― Eu vou me despedir da Marcela (é a namorada dele),

quando você for pra estação passa lá pra gente ir junto. Tchau.

Jogou a mochila em cima do sofá da sala, deu as costas e saiu.

― Veadinho, e eu ainda vou ter que carregar a tua

mochila...?! Folgado...!

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Noite de Terça-Feira

Dia: D.

Hora: H.

Minuto: M.

Segundo: não sei, não uso relógio.

Já na estação ferroviária, eu e o Dadá jogávamos conversa fora

enquanto esperávamos pelo Biro-Biro e pelo Osmar:

― Dadá, por que é que a Marcela não quis viajar com a

gente?

― Cê é bobo? Acha que eu ia colocar minha namorada no

meio dessa canalhada?

― Que é isso, não confia na gente?

― Não.

― Olha que isso ofende...

― E daí?

― Daí que eu te enfio um bicudo na boca...!

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― Duvido.

Em meio a essa conversa amigável e cordial chega o Osmar

espalhando suas tralhas pelo chão da plataforma e, logo atrás dele,

chegam o Biro-Biro e a mãe, dando os últimos conselhos:

― Maurício (é o nome do Biro), cuidado com o tempo, pode

esfriar. Trouxe o seu agasalho? Me dá notícia quando chegar. Não

esqueça o seu antibiótico, tem que tomar dois por dia. E você não pode

beber, hein?! Dá reação. Se acontecer alguma coisa me avisa. Me liga

nem que seja a cobrar, mas me liga. Não esqueceu nada? Toalha,

escova de dente? O cobertor? Documentos? Seu dinheiro está todo aí?

Espalha pelos bolsos, pro caso de assalto. E cuidado pra não perder... E

o seu antibiótico? Não vai esquecer, hein...!?

Quando a conversa materna começou a ficar repetitiva e o

Biro cansou-se de falar “tá, tá, tá...”, ele se virou pra mim e disse:

― Paulo, você trouxe o violão?

― Não, otário, isso ali encostado na parede é um relógio de

pulso.

― Não tinha visto, pô!

― E você? — falei — Trouxe a corda que faltava?

― Trouxe. Tá aqui em algum canto na minha mochila…

Abaixou-se e começou a arrancar um monte de coisas lá de

dentro: sabonete, calça, meia, camiseta, uma porção de tiras de

couro…

Tiras de couro?

― Ô Biro, pra que serve isso?

― Pra proteger contra mordida de cobra. A gente enrola no

tornozelo, assim ó, como se fosse o cano de uma bota...

― Uau!, que homem experiente, sábio e destemido...!

― É, vai tirando sarro, vai! Quero só ver se você vai

continuar sarrando se uma jiboia te agarrar o pescoço...!

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― Ué, mas você não disse que isso vai no tornozelo…?

― Ah, vai se foder, vai...! Achei...! Tomaí. — disse ele

enquanto me estendia um envelopinho com a corda do violão.

Peguei-a e fui me sentar rente à parede da plataforma, para

colocá-la no violão, enquanto a mãe do Biro-Biro se despedia de nós

dando os últimos conselhos:

― Bom, eu já vou indo embora. Cuidem-se vocês todos e se

alimentem direito, tá? Eu fiz uns sanduichinhos pra vocês, estão na

mochila do meu filho, para o caso vocês sentirem fome... E Maurício,

não se esqueça do seu antibiótico, do agasalho, e blá, blá, blá...

Tudo de novo.

Mãe é mãe.

Eu, ainda sentado no meu canto, arrancava os restos da corda

arrebentada da haste do violão para substituí-la, calmamente, até que o

Dadá se aproximou:

― Deixa eu ajudar...

Pegou o envelopinho que o Biro me dera, abriu-o e começou a

desenrolar a corda.

― Cuidado pra não quebrar! — avisou o Biro — Vai com

calma que é de aço!

― Deixa que eu me viro, cê acha que eu não sei diferenciar

uma corda de aço de uma de nylon, otário? — replicou o Dadá.

Foi puxando, puxando, o meio da corda formando um nó e ele

puxando, puxando...

― Vai arrebentar...!

― Eu sei o que eu estou fazendo...!

Puxando, puxando, puxando...

PLIC!

― DADÁ!, SEU CORNO!! Eu não disse que ia arrebentar?!

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― Mas eu não fiz força nenhuma, tava puxando

devagarinho...! Foi sem querer, juro...!!

― Anta!!!

Bom, o que está feito está feito, não adianta mais chorar o

leite derramado. Medimos o comprimento do maior pedaço da corda,

pra comparar com o tamanho do violão e ver se mesmo partida poderia

ser usada. Confirmado. Um nozinho aqui, outro acolá, atarraxa,

atarraxa, mais um nozinho aqui, atarraxa, atarraxa, afina, atarraxa,

afina... Pronto!! Agora é só não usar muita força na hora de tocar, pra

ver se a corda resiste pelo menos até chegarmos a Aquidauana, onde

poderemos comprar outra.

Ouvimos o apito do trem e, ao longe, avistamos seu farol,

enquanto os funcionários da ferrovia já se posicionavam pela

plataforma. O atraso era de meia hora. Começamos a nos preparar para

embarcar, eram mais ou menos oito e meia da noite. Colocamos as

mochilas às costas e nos aproximamos da linha amarela pintada no

chão próxima aos trilhos; comportamento automático para evitar

atropelos na hora do embarque, mas completamente desnecessário

naquele momento uma vez que a estação, costumeiramente lotada de

gente, estava quase vazia. Sorte nossa, pensei, talvez nem tenhamos

que procurar muito por um lugar pra sentar. O trem parou e nós

embarcamos, direto e rápido rumo à segunda classe (é mais barata) pra

garantirmos logo nossas poltronas (na realidade são bancos de

madeira, e não são numerados). Encontramos um vagão quase vazio e

resolvemos nos ajeitar por ali mesmo em quatro lugares contíguos, um

de frente pro outro na mesma fileira. Dei uma rápida olhada ao nosso

redor pra avaliar o ambiente, enquanto colocava a mochila no

bagageiro superior, acima dos bancos, e não vi ninguém que fosse

muito esquisito por perto. Um casal com crianças à frente; ao nosso

lado um cara e duas meninas com jeito de hippie (uma delas até

bonitinha); e um pouco atrás um homem de cerca de cinquenta anos

que acho que pensava estar viajando num avião de luxo: paletó preto,

gravata, cabelo engomado, óculos dégradé, maleta executiva...

Pô, alguém avisa o cara que não estamos na primeira classe de

um Boeing.