BONITO, CAVERNAS E TRENS - perse.com.br · 4 apresentável o suficiente ao menos para despertar o...
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NOTA DO AUTOR
Esta segunda edição difere da primeira, de novembro de 2004,
pelos seguintes aspectos básicos:
1º) pelo tipo de formatação adotado (margens mais largas,
texto menos congestionado, variações de fontes, espaçamentos,
alinhamentos, etc.), coisa que não pude fazer na primeira edição por
questões financeiras uma vez que a mesma foi financiada com recursos
próprios, bastante escassos, o que impôs limites à sua publicação, tendo
eu que me preocupar até mesmo com o número de páginas, para
economizar papel.
2º) pela maior conformidade com os padrões editoriais
vigentes (folha de rosto, ISBN, código de barras, etc.);
3º) por conter um posfácio, que foi escrito originalmente para
ser um prefácio;
E no que se refere ao posfácio julgo ser necessária uma
explicação mais detalhada.
Este romance foi elaborado a partir de um simples diário de
viagem escrito ainda no ano seguinte ao término da mesma. Mas,
ainda na forma crua e descomprometida de um diário, foi lido por boa
parte das pessoas que faziam parte dos meus círculos de convivência,
tanto familiares quanto profissionais e sociais, e com tamanha
receptividade que decidi transformá-lo num livro e publicá-lo.
Consumi cerca de quatro anos nessa tarefa, principalmente
por falta de tempo. Trabalhava durante o dia, fazia faculdade à noite e
ainda fazia ‘bicos’ durante os finais de semana em leilões de gado, o
que me deixava com menos de duas tardes e noites de folga por
semana para estudar e ao mesmo tempo pesquisar gramática,
ortografia e redação; e eu queria redigir um texto que fosse
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apresentável o suficiente ao menos para despertar o interesse de algum
editor. É claro, eu sabia que o texto precisaria de uma revisão e/ou
correção profissional, por parte de um especialista devidamente
qualificado; mas eu achava que, se o texto fosse atraente ou ao menos
vendável, alguma editora haveria de se manifestar e me oferecer algum
tipo de suporte profissional, ainda que pago. Lancei-me ao trabalho de
romancear o diário e já no começo dos anos 1990 dei início à procura
de uma editora que se dispusesse publicá-lo.
Em vão.
A recusa foi generalizada, e o argumento principal era quase
sempre o mesmo: uso excessivo de palavrões, de “palavras de baixo
calão”, de “vocabulário chulo” e outras tantas formas mais de se
enunciar a mesma coisa.
Por isso, e acreditando firmemente que o livro, apesar de tudo,
despertaria interesse, resolvi escrever um prefácio, cerca de dez anos
depois de o livro já ter sido composto. Não como uma justificativa
teórica, já que não me considero erudito o suficiente para tanto; mas
como o desabafo sincero de quem, sinceramente, não vê problema
algum nisso quando se está simplesmente reproduzindo uma realidade.
Não o publiquei na primeira edição, como já disse, por falta de
recursos; mas o estou publicando agora, nesta segunda edição, mais
por capricho que por qualquer outra razão, na forma de um posfácio; e
acrescido de alguns poucos enxertos posteriores que, a meu ver,
complementam e reforçam o teor original das ideias expostas no
mesmo quando o elaborei, tempos atrás. Perdoem-me, portanto, o leitor
e os eruditos se a argumentação do referido posfácio for mero
devaneio; mas, parafraseando Mário de Andrade, se eu sou um gênio,
aponto um rumo a seguir; e se sou uma besta, um naufrágio a evitar.
O AUTOR
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PRELIMINARES
TTRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMM!! !!
― Alô.
― Paulo?
― Eu mesmo. Quem é?
― É o Adair…
― Fala, Dadá, que é que manda?
― Ó, tô te ligando pra dizer que eu não vou mais…
― Ah, é, é? Pra onde?
― Pra Tasmânia. Porra, to falando sério, não vou mais poder
ir, não vai dar…!
― Sem brincadeira, vai, Dadá!
― Não tô brincando, é sério, meu pai vai precisar de mim na
fazenda, tenho que ir com ele amanhã de manhã…
Muita sacanagem! Tudo combinado há um tempão e o safado
vem com essa justo no dia de partir! Quer dizer, não só no dia,
praticamente na hora de partir. Não que eu já não tivesse pensado
nessa possibilidade, muito pelo contrário, há tempos que pescarias e
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viagens minhas vinham sendo estragadas por essas desistências de
última hora. Eu já estava até me acostumando com essas coisas, mas
da última vez, quando deveríamos ir até Ubatuba numa caravana de
onze pessoas e acabamos indo apenas eu e o Osmar, jurei pra mim
mesmo nunca mais combinar nada com ninguém (o que, como se
percebe, não cumpri). E o que realmente me dá mais raiva é que
quando aparece a ideia de viajar é um tal de todo mundo falar “Eu
vou!!!!”, “Não vou dar furo!!!!”, “Pode contar comigo!!!”. Só que
chega bem na hora de partir, depois de tudo arrumado, depois de muito
suor pra conseguir dinheiro e tralhas, é que os putos acham de dizer
com a maior cara de pau: “É, sinto muito, mas desta vez não vai dar
mesmo…”.
Porra, por que é que não avisam antes?
― ADAIR, VOCÊ É UM GRANDESSÍSSIMO FILHO
DA PUTA!!
Desliguei na cara dele.
Não deu nem dez minutos e o telefone tocou de novo: era o
Biro-Biro.
― O QUÊ?? VOCÊ TAMBÉM NÃO VAI?! Seu corno,
veadinho, sem-mãe…!!
― Tô brincando, otário, é claro que eu vou, imagina se eu vou
desistir... Mas por que você falou “também”?
― É que a bicha do Dadá acabou de me ligar dizendo que não
vai mais. Desistiu, o babaca.
― Ué, por quê?
― Sei lá, disse que o pai vai precisar dele na fazenda, mas é
desculpa esfarrapada, tá na cara...
― E agora?
― Agora que se foda, vamos só eu, você e o Osmar... Mas
afinal, Biro, você me ligou pra quê?
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― É que meu violão tá trincado, o som tá horrível e eu queria
saber se dá pra você levar o seu…
― Ué, levo... Só que tá faltando uma corda, a mizinho… Se
você tiver uma pra me arrumar não tem problema, dá pra levar sim…
― De aço?
― É, de aço.
― Eu tenho, pode deixar que eu levo.
― Então tá bom. Daqui a pouco eu tô na estação e a gente se
fala melhor. E o Osmar?
― Pode deixar que eu passo pra apanhar ele, minha mãe vai
me levar de carro. Quer que eu passe aí pra te pegar também?
― Não, pode deixar que eu vou a pé mesmo.
― Então falou. Até mais.
― Tchau.
Desliguei e fui pro chuveiro tomar um banho, pensando na
viagem que estava por vir e que nem tudo estava perdido, mesmo com
a desistência do Dadá. Se tudo continuasse como estava, em menos de
três horas estaríamos na estrada, de novo. Com ou sem o Adair. E é
gozado como essas viagens acabam dando certo. Por causa das
desistências, tudo tem que ser refeito na última hora. O babaca que ia
levar a barraca não vai mais. Não? Vamos procurar outra, então! O
Zagato desistiu, estamos sem bujão de gás e sem fogareiro. Grande! Só
temos três horas e ainda por cima num domingo! O Betinho viajou
com a família e levou a camisinha. Dane-se, se elas engravidarem,
azar! A camisinha do lampião, idiota! Ah, bom.
Mas a gente se vira, na maioria das vezes com pouco dinheiro
e pouco tempo, sem um roteiro claro de viagem e sem nem mesmo um
orçamento aproximado de gastos possíveis. Mas dessa vez, para onde
iríamos, não precisaríamos de barracas ou outras tralhas de
acampamento, estávamos planejando ficar em hotéis, pensões ou
simples casas de família, se nos alugassem um quarto ou edícula.
Nosso destino era Bonito, no Mato Grosso do Sul, cidade que até então
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nenhum de nós três conhecia a não ser por uma publicação do governo
que eu lera em Brasília, onde, na época, eu morava com meu pai. A
ideia de ir pra lá, aliás, era minha; descobri o lugar quase por acaso,
folheando à toa uma publicação do Ministério do Interior, só pra passar
o tempo enquanto esperava meu pai sair do trabalho.
A reportagem descrevia a região de Bonito como belíssima,
cheia de atrativos naturais e ainda não exposta ao turismo de massa, o
que a meu ver a tornava ainda mais interessante. Rios de águas
transparentes, cascatas aos montes, e ainda dezenas de grutas, a
maioria ainda inexplorada e apenas duas disponíveis para visitação
pública: a Gruta do Lago Azul e a Gruta Nossa Senhora da Aparecida.
A primeira, como o próprio nome sugeria, possuía em seu interior um
lago de coloração azulada a uns cento e oitenta metros de profundidade
caverna adentro, lago esse que refletia a luz do sol quando se alinhava
à entrada da gruta, deixando-a colorida com intensa iluminação azul; a
segunda tinha como atrativos principais as diversas formações
rochosas, uma das quais representava a imagem de uma santa que, por
sinal, dera nome à gruta. Além dessas coisas, o texto falava em
especial de uma ilhota no meio do Rio Formoso, chamada Ilha do
Padre, um lugar paradisíaco com flores e plantas das mais variadas
espécies e cores e riachos que entrecortavam a ilha toda formando
pequenas cascatas. E, ainda, rios com águas tão transparentes que dava
pra observar os peixes nadando a metros de distância, fazendas quase
virgens, montanhas de encher os olhos… Pra resumir, enfim, um lugar
de natureza quase virgem que parecia digno de exploração e aventura.
Propus a viagem ao meu pessoal lá de Araçatuba, onde
morava minha mãe, mas só o Biro-Biro e o Osmar toparam ir, além do
Dadá, que na época morava em São Paulo. Combinamos a partida para
o mês de julho, quando todos estaríamos de férias, deixando pra
marcar o dia exato só depois de arrumarmos todos os equipamentos e
todo o dinheiro que pudéssemos conseguir. Sairíamos os quatro de
Araçatuba, no trem que fazia a rota de Bauru a Corumbá,
desembarcaríamos em Aquidauana, depois tomaríamos um ônibus até
Bonito, pernoitaríamos num hotelzinho qualquer e no dia seguinte
faríamos contato com um guia local chamado Sérgio Gonzalez,
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conforme orientação da publicação. E então passearíamos pelas
redondezas por quatro ou cinco dias.
Tudo certo?
Quase.
Nenhum de nós sabia exatamente como seria essa viagem
depois que desembarcássemos do trem em Aquidauana. E pra falar a
verdade ninguém nem procurou saber. Será que os horários de trem e
ônibus vão se combinar na baldeação em Aquidauana? Será que existe
um ônibus de Aquidauana para Bonito? Existe hotel em Bonito? Como
é que a gente vai se locomover por lá para visitar grutas, cachoeiras e
rios? Onde encontrar o tal Sérgio Gonzalez, se é que ainda está por lá?
Principalmente, quanto vai custar tudo isso?
Ninguém sabia de nada e, como já disse, ninguém se
preocupou em descobrir. O negócio era se aventurar e o resto que se
danasse. Marcamos um lugar no mapa, juntamos a miséria de uns
quinze mil cruzeiros cada um, improvisamos um roteiro, enchemos as
mochilas e pronto. Daí pra frente seria confiar na sorte. Se tudo desse
errado, o pior que poderia acontecer seria a gente ter que voltar pra
casa mais cedo, antes dos quatro ou cinco dias previstos; de resto,
coisas como dormir na praça, na cadeia ou na igreja, racionar comida
ou parar de fumar pra economizar já estavam previstas e aceitas por
todos nós. Por fim, acertamos partir com todas essas condições e a
família de cada um de nós, como seria de se esperar, protestou:
— Vocês são loucos?? Nem sabem se o dinheiro vai
ser suficiente e ainda assim vão se enfiando no
meio do país?
Pai, não vamos morrer de fome em quatro dias…
— Que loucura é essa?? Se enfiarem assim no meio do
mato, numa cidade totalmente estranha, sem
conhecer absolutamente nada nem ninguém?
Mãe, não são estranhos, moram no mesmo país, falam a
mesma língua…
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— E se vocês caírem na boca de uma cobra ou de um
jacaré?
Pai, a cidade é pequena, mas é cidade…
— Não sabem que lá as pessoas vivem dando tiros
umas nas outras?
Mãe, cenário de bangue-bangue é lá nos Estados Unidos…
— E os traficantes? E os coureiros? Contrabandistas
de peles e de animais...! Pistoleiros…! A
criminalidade...!? A corrupção das autoridades...!?
E se o lugar for um antro de violência…?
Tá bom!, chega!, que saco!, vocês venceram…! Vamos
formular pelo menos algumas regrinhas básicas pra evitar encrencas
muito grandes:
1º) Um por todos e todos por um;
2º) Se encontrarmos com criminosos, e a
situação for de alto risco, faremos tudo
pra não sermos mortos (menos dar o cu e
coisas desse tipo, preferimos a morte);
3º) Um pé atrás sempre que alguém se
apresentar como representante da Lei; a
ditadura tá acabando mas ainda é uma
ditadura;
4º) Ninguém nunca deda ninguém;
5º) Nunca, jamais, em tempo algum, dar em
cima das meninas da cidade sem antes
saber se elas possuem: namorado, noivo
ou marido; irmão mais velho do tipo
ciumento; pai metido a lavar a honra da
família; mãe casamenteira; militar ou
delegado na família;
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6º) Se a cidade é pequena, com certeza todo
mundo se conhece; por isso, em caso de
confusão, provavelmente não veremos a
turma do ‘deixa-disso’, só a do ‘pega-
eles’; portanto, muita calma sempre e
seja sempre um bom e fervoroso cristão:
se te baterem numa das faces oferece a
outra; pelo menos até segunda ordem.
7º) Se algo der errado pra alguém, lembrar a
primeira regra;
Com isso, mais os acertos sobre não levarmos material de
acampamento e deixar a maioria das coisas por conta da sorte,
estávamos prontos para a viagem. Partiríamos de Araçatuba na terça-
feira, no trem das oito horas da noite.
Terminei meu banho (não sei se você se lembra, mas eu estava
pensando tudo isso debaixo do chuveiro) e fui jantar na sala, vendo
televisão. Ainda estava com o prato na mão quando o Adair entrou
casa adentro com uma mochila nas costas (veado, disse que não ia só
pra me sacanear), todo apressado e dizendo:
― Eu vou me despedir da Marcela (é a namorada dele),
quando você for pra estação passa lá pra gente ir junto. Tchau.
Jogou a mochila em cima do sofá da sala, deu as costas e saiu.
― Veadinho, e eu ainda vou ter que carregar a tua
mochila...?! Folgado...!
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Noite de Terça-Feira
Dia: D.
Hora: H.
Minuto: M.
Segundo: não sei, não uso relógio.
Já na estação ferroviária, eu e o Dadá jogávamos conversa fora
enquanto esperávamos pelo Biro-Biro e pelo Osmar:
― Dadá, por que é que a Marcela não quis viajar com a
gente?
― Cê é bobo? Acha que eu ia colocar minha namorada no
meio dessa canalhada?
― Que é isso, não confia na gente?
― Não.
― Olha que isso ofende...
― E daí?
― Daí que eu te enfio um bicudo na boca...!
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― Duvido.
Em meio a essa conversa amigável e cordial chega o Osmar
espalhando suas tralhas pelo chão da plataforma e, logo atrás dele,
chegam o Biro-Biro e a mãe, dando os últimos conselhos:
― Maurício (é o nome do Biro), cuidado com o tempo, pode
esfriar. Trouxe o seu agasalho? Me dá notícia quando chegar. Não
esqueça o seu antibiótico, tem que tomar dois por dia. E você não pode
beber, hein?! Dá reação. Se acontecer alguma coisa me avisa. Me liga
nem que seja a cobrar, mas me liga. Não esqueceu nada? Toalha,
escova de dente? O cobertor? Documentos? Seu dinheiro está todo aí?
Espalha pelos bolsos, pro caso de assalto. E cuidado pra não perder... E
o seu antibiótico? Não vai esquecer, hein...!?
Quando a conversa materna começou a ficar repetitiva e o
Biro cansou-se de falar “tá, tá, tá...”, ele se virou pra mim e disse:
― Paulo, você trouxe o violão?
― Não, otário, isso ali encostado na parede é um relógio de
pulso.
― Não tinha visto, pô!
― E você? — falei — Trouxe a corda que faltava?
― Trouxe. Tá aqui em algum canto na minha mochila…
Abaixou-se e começou a arrancar um monte de coisas lá de
dentro: sabonete, calça, meia, camiseta, uma porção de tiras de
couro…
Tiras de couro?
― Ô Biro, pra que serve isso?
― Pra proteger contra mordida de cobra. A gente enrola no
tornozelo, assim ó, como se fosse o cano de uma bota...
― Uau!, que homem experiente, sábio e destemido...!
― É, vai tirando sarro, vai! Quero só ver se você vai
continuar sarrando se uma jiboia te agarrar o pescoço...!
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― Ué, mas você não disse que isso vai no tornozelo…?
― Ah, vai se foder, vai...! Achei...! Tomaí. — disse ele
enquanto me estendia um envelopinho com a corda do violão.
Peguei-a e fui me sentar rente à parede da plataforma, para
colocá-la no violão, enquanto a mãe do Biro-Biro se despedia de nós
dando os últimos conselhos:
― Bom, eu já vou indo embora. Cuidem-se vocês todos e se
alimentem direito, tá? Eu fiz uns sanduichinhos pra vocês, estão na
mochila do meu filho, para o caso vocês sentirem fome... E Maurício,
não se esqueça do seu antibiótico, do agasalho, e blá, blá, blá...
Tudo de novo.
Mãe é mãe.
Eu, ainda sentado no meu canto, arrancava os restos da corda
arrebentada da haste do violão para substituí-la, calmamente, até que o
Dadá se aproximou:
― Deixa eu ajudar...
Pegou o envelopinho que o Biro me dera, abriu-o e começou a
desenrolar a corda.
― Cuidado pra não quebrar! — avisou o Biro — Vai com
calma que é de aço!
― Deixa que eu me viro, cê acha que eu não sei diferenciar
uma corda de aço de uma de nylon, otário? — replicou o Dadá.
Foi puxando, puxando, o meio da corda formando um nó e ele
puxando, puxando...
― Vai arrebentar...!
― Eu sei o que eu estou fazendo...!
Puxando, puxando, puxando...
PLIC!
― DADÁ!, SEU CORNO!! Eu não disse que ia arrebentar?!
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― Mas eu não fiz força nenhuma, tava puxando
devagarinho...! Foi sem querer, juro...!!
― Anta!!!
Bom, o que está feito está feito, não adianta mais chorar o
leite derramado. Medimos o comprimento do maior pedaço da corda,
pra comparar com o tamanho do violão e ver se mesmo partida poderia
ser usada. Confirmado. Um nozinho aqui, outro acolá, atarraxa,
atarraxa, mais um nozinho aqui, atarraxa, atarraxa, afina, atarraxa,
afina... Pronto!! Agora é só não usar muita força na hora de tocar, pra
ver se a corda resiste pelo menos até chegarmos a Aquidauana, onde
poderemos comprar outra.
Ouvimos o apito do trem e, ao longe, avistamos seu farol,
enquanto os funcionários da ferrovia já se posicionavam pela
plataforma. O atraso era de meia hora. Começamos a nos preparar para
embarcar, eram mais ou menos oito e meia da noite. Colocamos as
mochilas às costas e nos aproximamos da linha amarela pintada no
chão próxima aos trilhos; comportamento automático para evitar
atropelos na hora do embarque, mas completamente desnecessário
naquele momento uma vez que a estação, costumeiramente lotada de
gente, estava quase vazia. Sorte nossa, pensei, talvez nem tenhamos
que procurar muito por um lugar pra sentar. O trem parou e nós
embarcamos, direto e rápido rumo à segunda classe (é mais barata) pra
garantirmos logo nossas poltronas (na realidade são bancos de
madeira, e não são numerados). Encontramos um vagão quase vazio e
resolvemos nos ajeitar por ali mesmo em quatro lugares contíguos, um
de frente pro outro na mesma fileira. Dei uma rápida olhada ao nosso
redor pra avaliar o ambiente, enquanto colocava a mochila no
bagageiro superior, acima dos bancos, e não vi ninguém que fosse
muito esquisito por perto. Um casal com crianças à frente; ao nosso
lado um cara e duas meninas com jeito de hippie (uma delas até
bonitinha); e um pouco atrás um homem de cerca de cinquenta anos
que acho que pensava estar viajando num avião de luxo: paletó preto,
gravata, cabelo engomado, óculos dégradé, maleta executiva...
Pô, alguém avisa o cara que não estamos na primeira classe de
um Boeing.