Boquilobo: a maior área protegida de paul em Portugal
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Junto à Golegã,
a Reserva Natural
do Paul do Boquilobo
estende-se ao longo
de 816 hectares: nutrida
pelo rio Almonda,
um afl uente do Tejo
nascido na serra de
Aire, esta zona húmida é
«um dos poucos locais
do território português
em que nidifi ca o zarro
e o colhereiro»
Boquilobo Wetland Natural ReserveBoquilobo Bog belongs to a area of wetlands that have not yet disappeared. Whether one celebrates the International Year of Water Cooperation in 2013 or the World Wetlands Day on February 2nd, the truth is that water is essential for life and the ecosystems that preserve it deserve our best interests. That is why this protected area has so much Biodiversity.
54 • Parques e Vida Selvagem primavera 2013
54 REPORTAGEM
Boquilobo A maior área protegida de paul em Portugal
Uma pergunta pousa na paisagem:
«Não sei se já reparou nas
cegonhas. Sabe o que estão a
fazer?».
Sob a copa de um velho sobreiro vê-se a colina
a descer, suave, e a esconder-se por baixo do
paul.
Na superfície inundada surgem linhas dominadas
por freixos e por várias espécies de salgueiro.
Em dezembro ainda há folhas amareladas
no arvoredo, um efeito causado pela clorofi la
sempre que esta molécula complexa desatina e
enrubesce a vegetação.
A voz que lança a dúvida é de Fernando Faria
Pereira, supervisor da Reserva Natural do Paul do
Boquilobo.
Sobre o horizonte há aves de larga envergadura
a rodarem sem pressa em espirais
ascendentes: «Ganham altura numa coluna
de ar quente», respondi.
Estamos no ponto mais elevado das
proximidades, a partir do qual é possível ver
além da imensa zona alagada a Golegã e,
mais longe ainda, as colinas da Chamusca.
Fernando trabalha no Boquilobo desde 85.
Nessa altura, «na região havia dois casais de
cegonha, hoje são centenas», refere.
Aquelas cegonhas serão as mesmas que se
veem na primavera?
«Não sabemos. Estas podem ter vindo do
Norte e as que estiveram aqui a criar poderão
ter ido para sul...», diz Fernando.
Se algumas tivessem passado pela anilhagem
científi ca conseguir-se-ia identifi car alguns
indivíduos ao longo do ano.
Seja como for, esta área de montado, em
matéria de humidade, é o oposto de um paul.
A vegetação mediterrânica impera, sendo
indisfarçáveis as folhas da cebola-albarrã, a
afl orarem da terra: «Julguei que era invenção,
mas um historiador confi rmou. O bolbo desta
planta é venenoso e, quando das Invasões
Francesas, contava-se que uma noite tinham
furtivamente metido na cozinha do exército
inimigo bolbos de albarrã». Os cozinheiros
confundiram-nos com a cebola comestível e os
estragos sentiram-se na batalha...
Em piso de terra batida, os solavancos do jipe
atiram a voz do condutor, António Figueiredo,
guarda da natureza: «Vai ali um saca-rabo!».
Refere-se a um mangusto habitual neste habitat.
Parques e Vida Selvagem primavera 2013• 55
56 • Parques e Vida Selvagem primavera 2013
O pequeno mamífero corre até que se perde de
vista por trás dos sobreiros. «É uma fêmea!»,
completa.
O domínio da águaHá dois tipos de cheias no Boquilobo. Um resulta
das chuvas absorvidas pela bacia hidrográfi ca
do Tejo. Outro chega à área protegida através
do maciço calcário estremenho, representado
pela serra de Aire, cheia de fi ssuras e canais
subterrâneos.
Perto de uma casa típica, branca com rebordo
azul, há um marco com as datas gravadas
segundo os níveis das cheias. António recorda:
«Há uns anos atraquei aqui o barco à janela. O sr.
José servia o copito de vinho de galochas...».
Em volta, há oliveiras antigas, espaçadas
com qualidade, não como hoje se planta à
maneira industrial, densa, com perdas claras de
biodiversidade.
Este espaço protegido tem características
próprias: «A área mais baixa do paul está a cerca
de dez metros de altura em relação ao nível médio
das águas do mar» e «o rio Almonda que passa
aqui vai desaguar a cerca de 12 metros de altura».
Isto signifi ca «que antes da intervenção humana
possivelmente o rio Almonda espraiava-se por
aqui e depois teria um esquema de drenagem
para o Tejo porventura não muito bem defi nido».
Quando «o homem intervencionou este espaço
em termos históricos para viabilizar a agricultura
deixou uma evidência expressiva: a regularização
do traçado do rio Almonda, que passa segundo
linhas retas aqui no paul e que aceleram o
escoamento».
Mais perto de Torres Novas este rio ainda é muito
meandrizado.
Na área que hoje está sob alçada da Reserva
Natural elevaram outrora as margens e
minimizaram o transbordo para os campos:
«Grande parte do ano o rio corre mais alto que o
paul mas como as margens estão elevadas não
há contacto com a reserva. Construíram uma
rede de valas que permite a drenagem e serve
igualmente para rega».
Na Reserva, há peixes habituais, como uma
das espécies de tainha, conhecida e comida na
região como fataça, ou a enguia, que elege um
festival regional, mas há também «endemismos
lusitânicos, o ruivaco e a boga-portuguesa».
Em toda a área protegida, há níveis diversos de
conservação.
A reserva natural abriga «a área de proteção
complementar que possui mecanismos de
Bando de abibes
Cebola-albarrã
As cegonhas-brancas hospedam-se o ano inteiro no paul
Águia-sapeira: a rapina mais dependente das zonas húmidas
56 REPORTAGEM
Parques e Vida Selvagem primavera 2013• 57
proteção menos apertados — permite-se a
agricultura dentro de algumas condições». Este
espaço «envolve os núcleos principais da reserva e
são propriedade de particulares».
Há também «a área de proteção parcial, que
permite o pastoreio mas não a agricultura. É aqui
que se desenrola o trilho de conservação da
natureza».
Segue-se «a área de proteção total, sendo cerca
de 80% deste espaço pertença do Estado. Está
quase sempre alagada».
O plano de ordenamento «prevê ainda as áreas
de intervenção específi ca, que correspondem
aos núcleos urbanos das quintas que ocupam a
maior parte dos terrenos que são área protegida,
nomeadamente a quinta do Paul, a da Broa e a de
Miranda».
Céu cinzento. Hoje o sol não rompe as nuvens e o
frio ainda está para norte.
O Boquilobo padece de alguma poluição, cujos
efeitos estão a caminho de diminuir: «Está previsto
o melhoramento da ETAR de Torres Novas e
a remodelação da estação dos Riachos. Com
esta janela descortina-se a despoluição do rio
Almonda».
Outro problema emergente, não só deste paul,
«é uma dor de cabeça mundial em termos
de conservação da natureza: a introdução de
espécies exóticas». É o caso «do lagostim-
vermelho-da-louisiana: não o introduzimos aqui
obviamente, mas esse crustáceo chegou ao
Boquilobo e trouxe muitos problemas».
Quem mais os sente são «as espécies de anfíbio
e de peixe que aqui vivem. O lagostim alimenta-se
das larvas desses organismos».
A verdade é que o paul é um ecossistema
muito produtivo como é habitual nas zonas
húmidas. Além de purifi car a água e de reter a
biodiversidade, ajuda a regular as cheias no inverno
e, no estio, favorece a disponibilidade de água
doce ao ser humano e aos outros seres vivos.
Trilho pedestreAinda o ano não terminou e já há freixos em fl or...
Vamos agora a pé num percurso de terra batida
à face do paul. O ar tépido traz laivos de calmaria
depois das chuvadas do dia anterior.
Súbito, «Olhe: uma pegada de texugo!», diz
Fernando Faria Pereira.
Observa atentamente o recorte fresco da pressão
exercida na lama pelo mamífero notívago pintado
a preto e branco, nem por isso menos castiço.
«E está aqui outra!».
Caminhamos pelo trilho de descoberta
da natureza. Em volta as ervas dominam,
verdejantes, ao nível do solo emerso e, acima
delas, a copa despida dos salgueiros desenha
um túnel espontâneo.
À distância, o espelho de água é uma paisagem
tranquila, onde se sucedem várias cortinas de
vegetação: «Podemos ver em certas alturas
uma quantidade de aves apreciável no paul»,
mas «vir aqui apenas pela observação de aves é
um bocado enganador», sublinha o guia.
No paul «há perto de 250 espécies
ornitológicas, isso é verdade, só que grande
parte do ano a maioria dessas aves estão
concentradas na área de proteção integral».
Ao longe, patas imersas, há garças e cegonhas
à procura do almoço.
Junto de plantas que emergem do espelho
de água andam felosas, em voo acrobático, a
petiscar insetos. Mais acima, canta um cartaxo
exibicionista, como é típico da espécie.
«Este trilho está intransitável nalgumas partes do
ano – fi ca coberto de água». Não é o que ocorre
neste dia. As bagas rubras dos pilriteiros, que
aqui ainda têm muitas folhas por cair, juntam
mais cor ao passeio.«Uma espécie de mamífero
também frequente é o toirão», adianta.
António Figueiredo assinala níveis de água mais antigos
Gansos-bravos
Carvalho-cerquinho: quercínea mediterrânica
58 • Parques e Vida Selvagem primavera 2013
Além do abrigo que proporciona «o paul é o mais
importante garçal do país e funciona como zona
de concentração para espécies invernantes»,
sendo disso exemplo as várias espécies de patos-
bravos, galeirões e limícolas, como os bandos
fuselos que ali pousam em passagem no inverno.
«O ano passado andaram por cá grous.
Chegaram por altura do S. Martinho e fi caram
até março», altura em que terão procurado o
Norte da Europa para nidifi car.
O estatuto de proteção do paul do Boquilobo
acumula a designação de sítio Ramsar, de
Reserva da Biosfera e de Zona Especial de
Proteção para as Aves.
Ao longo do ano, entre os grupos que visitam o
paul do Boquilobo dominam as crianças, sem
exclusividade. Além deste trilho pedestre, que
excede três quilómetros, os visitantes podem
fazer um outro pelas estradas da periferia da
Reserva.
Ao fi m da tarde, viram-se aí bandos de garça-
boieira, de abibes e tarambolas, duas espécies
de peneireiros, búteos, águias-sapeiras, entre
outras aves.
Fernando Faria Pereira recorda que uma vez
orientou a visita de um grupo de militares:
«Estávamos no observatório. Às tantas há um
militar que fi xa o olhar e diz: «Estou a ver ali
um bicho dentro de água, mas aquilo não é
um cão, é uma lontra!». Penso eu cá para os
meus botões – eu nunca vi aqui uma lontra, só
vestígios, deve estar a ver mal».
Alterca a voz de um camarada: «Estás maluco.
As lontras são difíceis de ver. Mostra lá os
binóculos!».
Assim que espreitou deu o braço a torcer: «Ó
pá, tens razão! É mesmo uma lontra!».
Fernando apressou-se: «Empreste-me os
binóculos!», conta numa gargalhada, e explica:
«Já se tinha ido embora...».
Era uma lontra. O militar que confi rmou sabia
distingui-la. Sorte de principiante!
Mesmo que não o seja, quem sabe se quando
visitar o paul não lhe acontece também algo do
género?
Texto Jorge Gomes
Fotos João L. Teixeira
58 REPORTAGEM
Vê-se a colina a descer, suave, e a esconder-se por baixo do paul
39º 23’N e 8º 32’W
Centro administrativo
Edifício Equuspólis
Rua D. João IV • 2150-170 Golegã
Telefone
249 820 550
Correio eletrónico
www.icnf.pt
Reserva Natural do Paul do Boquilobo
As garças-boieiras são aves que abundam na região
Observatório do Braço do Cortiço: Fernando
Faria Pereira
Centro de Interpretação
Início do trilho de descoberta da natureza do paul