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ISSN: 1984-‐1175 – ANAIS ELETRÔNICOS
Universidade Federal de Pernambuco NEHTE / Programa de Pós Graduação em Letras
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Borges em Jogo
Newton de Castro Pontes (URCA)
Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir as adaptações de obras do escritor argentino Jorge Luis Borges em forma de video games, examinando assim um diálogo possível entre a literatura e os jogos. Como base teórica, partimos das discussões de Robert Wilson sobre o conceito de godgames e sua relação com o símbolo do labirinto, o qual constitui um dos elementos centrais dos contos de Borges; além disso, recorremos à crítica tanto do autor quanto dos jogos em análise, os quais incluem The Intruder, de Natalie Bookchin, Intimate, Infinite, de Robert Yang, e algumas adaptações do conto “La Biblioteca de Babel”. O método de análise é comparativo: partindo das semelhanças e, especialmente, das diferenças que encontramos entre os originais e suas adaptações, discutimos que elementos estéticos nas produções literárias favorecem a criação dos jogos, assim como que elementos dos jogos ressignificam ou expandem a leitura dos textos originais, introduzindo elementos próprios que os estabelecem como uma forma de arte autônoma. Como os próprios textos de Borges lidam com conceitos que posteriormente se tornariam recorrentes em jogos e nas artes eletrônicas em geral (como o de hipertexto), esperamos demonstrar as contribuições teóricas possíveis de uma discussão que aborde simultaneamente a literatura escrita e os video games. Palavras-‐chave: Jorge Luis Borges, Conto, Video Games. Abstract: The objective of this essay is to discuss video game adaptations of literary works written by Jorge Luis Borges, the famous argentinian ficcionist, as we study the possible dialogues between literature and games. Our theoretical basis comes from Robert Wilson’s discussions about godgames and their relation to the labyrinth symbol, as it constitutes a core element in Borges’ short stories; besides that, we refer to the criticism of Borges and the games discussed, which include The Intruder, by Natalie Bookchin, Intimate, Infinite, by Robert Yang, and a few adaptations of “La Biblioteca de Babel”. Our analythical method is comparative: considering the similarities and – especially – differences between the original texts and their adaptations, we discuss which aesthetical elements in literary works favor the creation of those games, and also which elements from the games change or expand the meaning of the original short stories, introducing elements that make them part of an autonomous art form. As Borges’ works themselves deal
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with concepts that would later become recurrent in games and eletronic art in general (as the idea of hipertext), we hope this essay shows the theoretical contributions that emerge from a critical analysis that simultaneously considers written literature and video games. Keywords: Jorge Luis Borges, Short Story, Video Games.
INTRODUÇÃO
“En una adivinanza cuyo tema es el ajedrez ¿cuál es la única palabra
prohibida?” (BORGES, 1956, p. 109) – essa charada, dita por uma personagem de “El
Jardín de Senderos Que Se Bifurcan”, em Ficciones, é sempre um bom ponto de
partida para discutir alguns elementos recorrentes nos contos de Jorge Luis Borges.
Isso porque, em primeiro lugar, percebe-‐se a recursividade que envolve a pergunta: é
uma charada sobre a resposta de uma charada. No lugar de colocar o problema
diretamente, Borges prefere propor um problema acerca do problema, o que acaba
por ampliar a resposta e lhe conferir outros sentidos (“xadrez”, nesse caso, se torna
uma metáfora para o inominável tempo, tema central do conto). Em segundo, tal
recursividade torna a pergunta paradoxal: afinal, a própria pergunta é uma charada
cuja resposta é xadrez, mas isso não a impede de usar a palavra proibida – a situação
paradoxal, ao longo da produção de Borges, tornar-‐se-‐ia um de seus traços relevantes.
Por último, as duas personagens que dialogam no conto tentam compreender uma
obra misteriosa, e fazem-‐no não só pela analogia com uma charada mas também (e
isso é mais importante) com um jogo.
A analogia entre a realidade e o jogo, especialmente o xadrez, foi um elemento
constante na produção ficcional de Borges. O caso mais conhecido e direto é o do
poema “Ajedrez”, no qual se usa a imagem do jogo como reflexo do deus que move os
homens enquanto, possivelmente, é movido por outros deuses, mas tal motivo não se
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limita a essa poesia: a realidade que reproduz uma partida de xadrez é encontrada
também em “Guayaquil”, de El Informe de Brodie, no qual se menciona a lenda galesa
do Mabinogion em que dois reis jogam xadrez enquanto seus exércitos combatem.
“Uno de los reyes gana el partido; un jinete llega com la noticia de que el ejército de
outro ha sido vencido. La batalla de hombres era el reflejo de la batalla del tablero”
(BORGES, 1982, p. 117). Além desses, há o modo como o narrador de “There Are More
Things” aprende sobre os paradoxos de Zenão de Eleia por meio do tabuleiro de xadrez
(BORGES, 2011, p. 59), a menção a um artigo técnico de Pierre Menard que propõe,
recomenda, discute e rechaça a subtração de um dos peões de torre para enriquecer o
xadrez (BORGES, 1956, p. 46), a partida de muitos séculos sonhada por Jaromir Hladik
em “El Milagro Secreto” (BORGES, 1956, p. 159) e a menção ao xadrez que descifra o
mistério do fictício livro The God of the Labyrinth em “Examen de la Obra de Herbert
Quain” (BORGES, 1956, p. 79), afora outras menções ao jogo. E o xadrez não foi o
único: outro jogo, go, também despertou a imaginação de Borges e recebeu sua
própria poesia. “El Go”, presente em La Cifra, diz que o go é “ese otro ajedrez del
Oriente” e que “el tablero es un mapa del universo” (BORGES, 1981, p. 93).
Nota-‐se, então, que há um interesse particular nas ficções de Borges pelo
motivo do universo como um jogo. O jogo, em especial o xadrez, cumpre uma função
similar à dos labirintos e espelhos, outros símbolos conhecidos das obras de Borges:
estes não são apenas imagens ou lugares/objetos recorrentes, mas sim princípios de
construção dos próprios contos; ou seja, há contos que, para além de mencionarem
labirintos e espelhos, são eles mesmos construções labirínticas e reflexivas. O mesmo
acontece, então, com os jogos: naqueles contos, o xadrez não é apenas um elemento
recorrente, mas o símbolo de um modo de compreender e representar a realidade.
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E que modo seria esse? Se a literatura é uma expressão mimética que reproduz
ficcionalmente a realidade por meio da palavra, sendo uma arte verbal, e se a pintura
o faz por meio das cores, sendo arte visual, o jogo o faz na forma de um sistema de
regras definidas que estabelecem um objetivo (entendido em sentido abrangente) e a
relação de uma pessoa com os objetos do jogo e dos objetos entre si, ou seja, o modo
como tais objetos podem ser utilizados (as peças, o tabuleiro, as cartas, os dados etc.).
Assim, o xadrez mimetiza uma batalha não por contar uma história acerca dela ou por
representá-‐la visual ou auditivamente, mas sim pelas regras que definem os
movimentos de cada peça, sua quantidade e posição no tabuleiro e o objetivo de cada
jogador. A peça que representa o rei não o faz por ser visualmente semelhante a um
rei da realidade, mas sim pelo fato de que a sua derrota implica na derrota do exército,
o que obriga os jogadores a instintivamente protegerem tal rei (como um exército
supostamente faria em uma batalha real). Os peões, postos na linha de frente do
exército, são muitos e possuem poucas possibilidades de movimento, sendo peças
dotadas de pouco poder quando isoladas – sua força está na quantidade e no fato de
serem descartáveis, o que provavelmente representa um modo como os soldados a pé
eram percebidos em batalhas medievais. O movimento do cavalo, em L, é capaz de
representar o cavaleiro que, chegando ao seu oponente, vira seu cavalo de lado a fim
de golpeá-‐lo com sua espada ou lança. A capacidade de, por meio de símbolos,
representar uma realidade ficcionalmente faz do xadrez esse tipo de mimesis lúdica,
na qual o próprio conjunto de regras define um modo determinado de perceber e
representar ficcionalmente uma batalha. Dessa maneira, não é uma hipóstase
defender que um jogo, ainda que sem enredo, pode ser uma expressão mimética só
por meio de seu sistema de interações: não que isso impeça que as representações
verbais, visuais e sonoras se tornem parte do todo que é a representação lúdica; a
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questão é que o próprio sistema de interações é capaz de ocupar o centro da forma
artística, indicando um tom emocional-‐volitivo específico no modo como o jogo se
relaciona simbolicamente com a realidade dos atos e da cultura humana.
Voltando a Borges, alguns dos seus contos mais conhecidos não costumam ser
centralizados em enredos, mas sim em sistemas: modos específicos de interagir com o
mundo e de relacionar os elementos da realidade entre si, modos estes que,
normalmente, não seriam possíveis na nossa realidade, mas que na ficção ganham
espaço para se desenvolver. Esse é o caso de “La Lotería en Babilonia”, em que os
indivíduos participam do mundo por meio de uma série infindável de sorteios; também
é o caso de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, em que a realidade material é afetada pelo
ato de pensar sobre ela, a ponto de ser possível criar realidades através de livros;
pode-‐se ainda citar o confuso livro presente em “El Jardín de Senderos Que Se
Bifurcan”, construído em torno da ideia de que todas as possibilidades são realidades e
todas as bifurcações temporais de um evento podem conviver simultaneamente. No
caso de todos esses contos, o enredo parece acessório, enquanto o que mais importa é
a ideia de um mundo como quebra-‐cabeça a ser resolvido, desvendado.
Os contos de Borges sugeriram, então, a construção de realidades a serem
desvendadas por meio do entendimento e domínio de seus sistemas, o que
poderíamos chamar, sem grande compromisso teórico, de realidades lúdicas. Apenas
nos últimos decênios do séc. XX tal conceito poderia ser finalmente concretizado por
meio das realidades virtuais, especialmente aquelas presentes nos video games. O
desenvolvimento tecnológico, assim como de um novo tipo de ludicidade e de
manifestações estéticas que se agregaram a ele, possibilitou que as ideias sugeridas
em Borges não só se realizassem na forma de mundos virtuais como fossem, de fato,
popularizadas. Um “Libro de Arena” que se transforme cada vez que é aberto só pode
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ser sugerido em um texto escrito; por outro lado, é perfeitamente viável programar
um jogo que gere proceduralmente novos espaços, personagens e mesmo enredos
cada vez que uma nova partida é iniciada: os assim chamados roguelikes, gênero de
jogos popularizado por Rogue (1980), de Michael Toy e Glenn Wichman, são
inteiramente baseados nesse princípio. Os múltiplos caminhos simultâneos sugeridos
no livro-‐labirinto de “El Jardín de Senderos Que Se Bifurcan” são comuns em jogos, os
quais podem alterar completamente diversos elementos do enredo para se adaptar às
decisões tomadas no decorrer do jogo – como bem demonstrado por Deus Ex, do
extinto estúdio Ion Storm e dirigido por Warren Ellis em 2000. Os mundos criados e
ligados a partir de livros, como subentendido em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, são uma
realidade em Myst (1993), dirigido por Robyn e Rand Miller, assim como em suas
continuações. O que se argumenta é que assim como as ficções de Borges plasmaram
princípios lúdicos na criação de seus mundos, também se encontram muitos
elementos de seus contos presentes em jogos modernos, especificamente em video
games – embora poucos jogos tenham tentado adaptar diretamente os próprios
contos. De qualquer maneira, tais adaptações diretas, ainda que incomuns e
geralmente restritas a pequenas produções independentes, existem. Discutamos
algumas delas.
Uma das mais antigas, possivelmente a primeira a ser anunciada como
adaptação direta de um conto de Borges, consiste em um jogo independente de
Natalie Bookchin intitulado The Intruder (1999). Essa adaptação do conto “La Intrusa”
consiste em uma sequência de dez jogos inspirados em video games dos anos 1970
(Pong, Gunfight, Avalanche e Galaxian sendo os mais evidentes) ou, de modo geral,
nos mecanismos de interação simples que constituem tais jogos: movimento
normalmente limitado a um eixo e, em alguns casos, um comando para atirar. Sendo
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uma obra feita para a internet, ou seja, para ser executada diretamente nos
extremamente limitados programas de navegação disponíveis em 1999, e criada
gratuitamente por uma única pessoa, The Intruder parece visual e mecanicamente
rudimentar para o período, mais até que alguns dos jogos que lhe servem de
inspiração. É mesmo possível argumentar que, anos depois de sua publicação, o jogo é
melhor apreciado como curiosidade do que como obra em si – mas, ainda assim,
Bookchin realiza algumas conexões criativas entre as suas fontes lúdicas e literárias.
O conto de Borges que lhe dá origem é um dos poucos que evitam a abstração
e enfatizam os atos de suas personagens: narra a história de dois irmãos que, dividindo
a mesma mulher, entram em um ciclo de agressão mútua, até que um deles assassina
“a intrusa” a fim de restaurar o laço fraterno entre os dois. A narrativa, como não
poderia deixar de ser, contém vários subtextos: principalmente, há a sugestão de uma
relação homoafetiva entre os irmãos, a começar pela epígrafe que faz referência a
duas personagens bíblicas (Davi e Jônatas) cuja própria afetividade oscila entre a
amizade e o erotismo. Essa não é a única referência bíblica no conto: o narrador
comenta que o único livro encontrado na casa dos Nielsen era “una gastada Biblia de
tapas negras, com caracteres góticos; en las últimas páginas entrevió nombres y fechas
manuscritas” (BORGES, 1982, p. 18); e se a relação entre os irmãos é comparada à
afetividade entre Davi e Jônatas, também se menciona a competitividade homicida de
Caim e Abel: “Caín andaba por ahí, pero el cariño entre los Nielsen era muy grande –
¡quién sabe qué rigores y qué peligros habían compartido! – y prefirieron desahogar su
exasperación con ajenos” (BORGES, 1982, p. 22). De um ou de outro modo, a sugestão
de sacralidade na fraternidade dos Nielsen parece ser recorrente na narrativa, algo
que se estende à morte de Juliana Burgos, transformando-‐a em um sacrifício.
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Encontra-‐se também entre os subtextos de “La intrusa” um comentário sobre a
cultura dos povos antigos que vivem nas “margens” da Argentina, além do uso
evidentemente irônico de um enunciado narrativo misógino, por meio do qual Juliana
Burgos, a intrusa do título, é tratada menos como um ser humano do que como um
objeto. “Cristián se levantó, se despidió de Eduardo, no de Juliana, que era una cosa”
(BORGES, 1982, p. 20), afirma o narrador sobre a mesma personagem que,
posteriormente, é vendida pelos irmãos à patrona de um prostíbulo, comprada de
volta e assassinada. As idas e vindas de Juliana Burgos são acompanhadas pela
crescente rivalidade, misoginia e violência dos irmãos Nielsen e do ambiente em que
os três habitam.
Como essa agressividade competitiva e o subtexto sexual e de conflitos de
gênero são representados em The Intruder? De modo geral, são realizados de três
maneiras: primeiro, Bookchin seleciona como referência jogos que são competitivos
(os que lhe servem como inspiração são aqueles que destacam a pontuação do
jogador); segundo, substitui a pontuação do jogo por trechos do conto – o jogador é
“premiado” com o conto enquanto joga, o que se dá tanto textualmente quanto
auditivamente (uma voz feminina lê uma versão em inglês de “La Intrusa” e frases da
narrativa vão aparecendo gradativamente na tela); terceiro, certos componentes
visuais dos jogos são substituídos por elementos reminiscentes dos temas explorados
no conto.
As idas e vindas de Juliana Burgos, por exemplo, são representadas usando
Pong como referência: na abertura do jogo, as duas raquetes em lados opostos (uma
delas sendo controlada pelo jogador) “rebatem” o título e a epígrafe do conto, que se
completam a cada rebatida; em momento posterior, Pong será novamente utilizado,
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mas agora com um ícone feminino sendo jogado de um canto a outro enquanto
imagens de um corpo feminino são apresentadas como pano de fundo.
BOOKCHIN, Natalie. The Intruder. 1999. Video game para PC. Registro audiovisual disponível em: <bookchin.net/projects/the-‐intruder>. Acesso em: 16 de Agosto de 2017.
Outro jogo representa a rivalidade entre os dois irmãos: usando Gunfight como
referência, duas silhuetas que representam cowboys armados duelam próximas a uma
terceira silhueta feminina, o que evoca não só a violência e a rivalidade mas também o
ambiente rural em que o conto se passa. Os outros jogos (no total são dez) são
igualmente simples, representando simbolicamente outros elementos do conto
enquanto o texto em si é enunciado por uma voz feminina monótona, a qual evoca
certa frieza e mecanicismo em relação ao texto – do mesmo modo que o próprio
narrador é apático em relação a Juliana Burgos. Em um dos jogos, os irmãos atiram em
naves tendo um céu estrelado como pano de fundo; em outros dois, uma figura
feminina corre e pula sobre obstáculos; em outro, representa-‐se a rivalidade masculina
por meio de um jogo de futebol americano; no último, que representa o momento do
assassinato da mulher, o jogador controla a mira de uma arma e deve atirar em uma
distante figura vermelha que corre sobre uma imagem em preto e branco (a qual
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lembra uma imagem de satélite) – o crime é representado de modo frio e distanciado,
sendo reminiscente das imagens de drones usados em guerras.
The Intruder chamou a atenção de alguns críticos da obra de Borges e de
estudiosos da literatura eletrônica, uma vez que surgiu num período crucial do
desenvolvimento de tal gênero artístico: a popularização da internet no fim dos anos
1990. O jogo foi discutido por Mary Flanagan (2003, p. 363-‐368) em “‘Next Level’:
Women’s Digital Activism Through Gaming”, em que a autora define o abismo entre
conteúdo e métodos de interação como um espaço para a ironia (e aponta que a ironia
é, para o cyberfeminismo, uma estratégia de resistência), raciocínio retomado, ainda
por Mary Flanagan, no livro Critical Play: Radical Game Design, em que se comenta o
abismo entre interação e narrativa como algo deliberado, como uma ironia do jogo:
concluir com sucesso cada seção e avançar na história é “recompensado” com um
comprometimento cada vez maior da situação de Juliana Burgos (FLANAGAN, 2009, p.
226-‐230). Também é relevante a discussão de Frédérique Arroyas (2008) no artigo
“De/generative Narratives: Net Art and Textual Adaptation”, o qual enfatiza a
dimensão participatória que se acrescenta à história original quando o jogador
contribui simbolicamente com suas ações aos comportamentos agressivos dos irmãos
Nielsen. Outras críticas também ressaltaram o fato de ser uma obra de autoria
feminina, apontando a própria Bookchin como uma intrusa no contexto da produção
de video games do fim dos anos 1990 – é o caso de Perla Sasson-‐Henry, autora de
Borges 2.0: From Texts to Virtual Worlds.
Embora The Intruder já aponte algumas das possibilidades de interpretação
criativa da obra de Borges, é em Intimate, Infinite, criado por Robert Yang em 2014,
que se encontra uma adaptação mais elaborada visual e mecanicamente. O jogo se
trata de uma adaptação de “El Jardín de Senderos Que Se Bifurcan”, conto que está
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entre os mais conhecidos de Borges e que lida com alguns dos símbolos recorrentes de
sua produção: o labirinto, o xadrez e o tempo. Passando-‐se na Primeira Guerra
Mundial, o conto propõe, em seu primeiro parágrafo, esclarecer uma passagem de
Historia de la Guerra Europea, de Lidell Hart, em que se comenta sobre uma ofensiva
britânica que foi postergada por poucos dias (nada significativo, segundo o “editor” do
conto) devido a uma chuva torrencial. O que se segue é a narrativa de um espião
chinês chamado Yu Tsun, o qual, sendo descoberto e perseguido por um agente
irlandês a serviço da Inglaterra (Richard Madden), procura uma forma de avisar aos
oficiais alemães em que cidade se encontram as linhas britânicas. Sua solução é
escolher um sobrenome na lista telefônica que coincida com o nome da cidade –
Albert – e assassinar tal pessoa; a notícia no jornal seria decodificada por seus
superiores. O que ocorre é que tal pessoa (Stephen Albert) é um sinólogo que, por
coincidência ou não, estuda a obra do bisavô de Yu Tsun, Ts’ui Pên, o qual gastara seus
dias na produção de um livro e um labirinto – ou melhor, como descobre Albert, um
livro que era um labirinto, o qual narraria as várias soluções possíveis para cada
ramificação na história, resultando em uma obra plena de aparentes contradições e
repetições. Yu Tsun atira em Albert, é preso e condenado à morte, mas conclui que foi
“abominavelmente” vitorioso: nos mesmos jornais que secretamente enviaram sua
mensagem a Berlim, lê que a cidade de Albert foi bombardeada.
A narrativa talvez desvie a atenção do leitor de algo fundamental: o editor
sugere que a declaração de Yu Tsun lançará uma luz sobre o episódio de Lidell Hart; os
dois, no entanto, chegam a conclusões completamente diferentes. Em Hart, um evento
natural atrasa sem nenhum custo a ofensiva britânica; em Tsun, as forças são
bombardeadas e a Alemanha obtém uma vitória, ainda que temporária. Ora, o conto
parece seguir, assim, a proposta do livro labiríntico de Ts’ui Pên: a contradição
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evidente sugere a existência de duas realidades simultâneas, do sucesso e do fracasso
de Yu Tsun em enviar sua mensagem. Como expressa Tsun ainda no início de sua
declaração, “Después reflexioné que todas las cosas le suceden a uno precisamente,
precisamente ahora” (BORGES, 1956, p. 98). Isso é ainda corroborado pela mistura
entre referências reais e ficcionais no conto de Borges: Lidell Hart foi um historiador
real que escreveu diversos livros sobre as guerras europeias; entretanto, como
esclareceu Ethan Weed no ensaio “A Labyrinth of Symbols: Exploring ‘The Garden of
Forking Paths’”, a obra de Hart sobre a Primeira Guerra recebeu vários títulos, mas
nenhum deles coincide com aquele sugerido pelo conto (nem foi traduzido para o
espanhol como tal). Ademais, nenhuma obra de Lidell Hart contém a passagem sobre a
ofensiva na página mencionada pelo conto, 22 ou 242 dependendo da edição. Na
página em que se encontra um evento semelhante – Weed a encontra na página 240
de The History of the First World War –, o registro real contradiz o que é exposto no
conto: o bombardeio teve início em 24 de Junho, com o ataque por terra planejado
para começar no dia 29, mas adiado para 1o de Julho (enquanto a versão do conto
sugere um ataque planejado para 24 de Julho e adiado até o dia 29). O editor diz que o
adiamento não foi significativo, enquanto Hart enfatiza os problemas de falta de
munição e de manter os soldados nas trincheiras por mais dois dias exaustivos,
enquanto eram inundados pelas chuvas torrenciais e sofriam forte retaliação dos
inimigos (WEED, 2004, p. 165-‐166). A obra real de Hart acrescenta, portanto, uma
terceira versão da história. O conto cria ainda outras bifurcações: Yun Tsu especula que
Viktor Runeberg fora preso ou assassinado, ao que se acrescenta uma nota de rodapé
do editor contestando ambas as hipóteses; ao fugir de trem, Yu Tsun afirma que essa
pequena vitória previa uma vitória total sobre Madden, e que de outro modo estaria
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no cárcere ou morto – entretanto, a narração inteira é dada por Yu Tsun depois que já
foi preso e condenado à forca.
A narrativa também explora as simetrias e os espelhos: o doutor Yu Tsun é
chinês e catedrático de inglês, enquanto o doutor Stephen Albert é inglês e sinólogo; o
covarde chinês Yu Tsun serve à Alemanha, uma nação estrangeira que vê seu povo
com desconfiança, enquanto o implacável irlandês Richard Madden serve à Inglaterra,
nação estrangeira que não raramente é preconceituosa com os irlandeses; Ts’ui Pên é
assassinado por um estrangeiro, assim como Stephen Albert. Tais simetrias estão
relacionadas à própria noção de labirinto, assim como do necessário monstro em seu
centro, o minotauro; ambos são conceituais, e não empíricos. O labirinto é
representado pelo conjunto de decisões de quem entra nele e pelo modo como as
suas regras definem tais decisões: o livro de Ts’ui Pên apresenta um labirinto às
personagens, enquanto o próprio conto apresenta outro ao leitor. Acima de tudo, “El
Jardín de Senderos Que Se Bifurcan” demonstra que o labirinto não é um espaço, mas
um conjunto de interações no tempo – e por isso “tempo” é a palavra que resolve a
charada de Ts’ui Pên. Robert Wilson (1982, p. 6) caracterizou tais labirintos conceituais
(strong labyrinths) como, invariavelmente, uma espécie de godgames, categoria de
jogos comum na literatura e definida pela relação entre uma personagem que cria uma
ilusão (na forma de uma estrutura labiríntica) e outra que tenta desvendá-‐la,
reproduzindo a relação entre um game-‐master que inventa as regras e um jogador que
deve compreendê-‐las e interagir com elas a fim de alcançar seu objetivo, que é o
centro do labirinto e o minotauro.
A ideia de que o conto já funciona estruturalmente como um jogo torna a
adaptação de Robert Yang particularmente curiosa. Intimate, Infinite é um jogo em
primeira pessoa que assume o ponto de vista do espião, o qual recebe um nome
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diferente da personagem do conto – Wang Peng, enquanto Stephen Albert vira Alber –
, e, de acordo com a nota do editor apresentada no início do jogo, é professor de uma
universidade alemã, e não chinesa; além disso, o texto inicial comenta um episódio
sobre a Segunda Guerra Mundial da obra The Guns at Last Light: The War in Western
Europe, de Rick Atkinson (no lugar da referência ao livro de Lidell Hart), e, de fato, o
comentário é acompanhado de imagens de arquivo da II Guerra; o editor ainda inclui
uma nota avisando que o “primeiro volume” da declaração de Peng foi destruído em
uma enchente em 1972, enquanto o conto mencionava apenas a falta das duas
primeiras páginas. Essa série de pequenas mas significativas alterações amplia ainda
mais o labirinto de alusões criado pelo próprio conto: se Borges criara, em sua
narrativa, duas versões diferentes do episódio encontrado no livro de Lidell Hart,
Robert Yang faz o mesmo em relação ao próprio conto. Já no início do jogo, quando
uma citação de Borges referente ao tema é traduzida de modo pouco equivalente à
frase original, estabelece-‐se esse uso de alusões intencionalmente modificadas. A
frase, encontrada no ensaio “Sobre el ‘Vathek’ de William Beckford”, diz que “El
original es infiel a la traducción” (BORGES, 2012, p. 315); abaixo dela, a tradução para
o inglês diz “The originals dishonor their translations” (YANG, 2014a) – naquele
momento da discussão, Borges demonstrava que o original poderia ser deslocado por
sua tradução, a qual ganharia seu próprio sentido; tanto a tradução da epígrafe quanto
o jogo inteiro fazem isso com o conto original. De fato, não é impossível imaginar
Intimate, Infinite como mais um conjunto de realidades paralelas que se acrescentam
às do conto.
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YANG, Robert. Intimate, Infinite. 2014. Video game para PC. Disponível em: <radiatoryang.itch.io/intimate-‐infinite>. Acesso em: 16 de Agosto de 2017.
A situação inicial é reminiscente: a primeira imagem é de um homem morto (o
possível aliado do protagonista, como no conto de Borges); ao lado dele há uma arma,
que deve ser tomada pelo jogador. O esquema geral é, por assim dizer, idêntico: há um
documento histórico (as imagens documentais reforçam isso no jogo), a sugestão de
um editor de que um relato incompleto pode esclarecer um episódio de guerra, uma
trama de espionagem, um morto, uma arma e um plano misterioso. Assim como no
jogo de Bookchin, Yang também opta por inserir textos narrativos durante o jogo;
entretanto, o texto é intencionalmente diferente da narrativa de Borges e modifica
tanto o tom quando o caráter das personagens: se a primeira frase da declaração de
Yu Tsun era “...y colgué el tubo” (BORGES, 1956, p. 97), a frase dita por Peng é “... went
to shit” (YANG, 2014a); Peng também parece mais assertivo que Yu Tsun em relação
aos ocidentais, como quando afirma que “But you’re all Westerners, you’re all the
same to me” (YANG, 2014a), ao contrário de Yu Tsun, que agia para provar a
capacidade de seu povo aos ocidentais (embora o jardim-‐labirinto de seu bisavô já
fosse reconhecido por Albert como tal prova). O restante dessa primeira seção do jogo
parece não só ter a intenção de subverter as expectativas dos leitores do conto, mas
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também de jogadores habituados a certas convenções: ao pegar a arma, ela é
apontada e a mensagem “AMMO 0/7” pisca no canto da tela, sugerindo que o jogo se
trata de um first person shooter; no entanto, o protagonista nunca encontra munições
e, ao ser perseguido por algum atirador distante, a única ação possível é correr em
direção a um trem, no qual Peng foge. De fato, nessa seção inteira, a interação é
limitada: a única coisa que pode ser feita pelo jogador é pressionar um botão para
seguir em frente, no único caminho, e mover o mouse para observar os seus
arredores. Mesmo um momento tenso, que parece precisar de uma ação rápida do
jogador, é falso: Peng anuncia que perderá o trem em vinte segundos e começa a
contar regressivamente, enquanto um atirador distante dispara contra ele; entretanto,
mesmo se o jogador não realizar nenhuma ação, Peng ainda assim correrá até o trem a
tempo de fugir. Ou seja: nem mesmo a morte da personagem é uma opção, o
segmento todo é inteiramente linear.
O que acontece depois da fuga contradiz completamente o conto: o portão à
esquerda do caminho, que deveria levar à casa de Steven Alber, está fechado; o
protagonista, resignado com a falha de seu plano, segue em frente e conjectura que
“Perhaps in another life, I would complete my mission” (YANG, 2014a). Mas é nesse
momento que as noções de múltiplas realidades e labirintos começam a ser
representadas no jogo: o jogador é apresentado à imagem de uma sala com três livros,
cada um deles servindo como um link para uma seção diferente do jogo: o livro “I
started down the solitary road” corresponde à seção já vista, mas que pode se
desenvolver de modo diferente dependendo do que for feito nos livros seguintes; “In a
riddle whose answer is ‘chess’” é uma partida de xadrez com Alber; em “The Garden
dreams. I am its dream.”, Peng caminha por num jardim em que o jogador levanta e
derruba as paredes de um labirinto verde. É nesse momento que a linearidade inicial é
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abandonada: o jogador pode alternar livremente entre as seções e, mais importante,
experimentar como elas interagem entre si, uma transformando a realidade da outra.
Se a pistola no início do jogo subvertia as expectativas do gênero, a seção com
o tabuleiro de xadrez faz o mesmo: há um tabuleiro e há peças, mas o jogo não força
as regras do xadrez sobre o jogador. Pode-‐se selecionar qualquer peça (inclusive do
oponente) e movê-‐la em qualquer direção. Alber, sentado do outro lado à mesa, lê um
livro; há uma taça de vinho que pode ser bebida, encerrando a partida, e há outro livro
nas mãos do próprio Peng (aparentemente o mesmo livro de Alber) com instruções
para uma série de movimentos específicos, uma citação da poesia de Borges “Ajedrez”
e a frase “PLAY IT BY TRUST”, em referência à instalação artística de Yoko Ono que
contém um jogo de xadrez gigante sem distinção de cores no tabuleiro ou nas peças
(conforme exibida no Contemporary Art Museum St. Louis em 2011), tornando-‐o
praticamente impossível de ser jogado estritamente de acordo com as regras.
A função do xadrez é sutil: as posições da peça no tabuleiro alteram a posição
de certos obstáculos no jardim acessado pelo livro “The Garden dreams. I am its
dream.” Este representa simultaneamente as noções de jardim e labirinto: Peng
caminha em linha reta pelo jardim (o jogador assume o ponto de vista de alguém que o
observa de uma janela acima); ao encontrar algum obstáculo, ele sempre vira à
esquerda – tal como Yu Tsun comenta, no conto, ser o modo adequado de se resolver
um labirinto. O labirinto de Intimate, Infinite é particularmente engenhoso: exceto
pelos obstáculos remanejados através do xadrez, o jardim é praticamente vazio; cabe
ao jogador criar ou destruir (usando o cursor) as paredes de um labirinto verde que
conduza Peng até uma chave e uma saída no lado esquerdo do jardim. Assim, o
jogador assume o papel de criador de um labirinto que assume diversas formas – como
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se sua posição representasse aquela de Ts’ui Pên, o criador do jardim e do labirinto no
conto.
Resta ao jogador voltar à primeira seção, mas agora ela se passa na realidade
diferente conjecturada por Peng (“Perhaps in another life, I would complete my
mission”): a chave encontrada no labirinto pode ser usada no portão à esquerda que
estava trancado, o que leva Peng à casa de Alber; é necessário, inclusive, percorrer
uma segunda vez o jardim-‐labirinto, mas agora em sentido inverso e assumindo o
ponto de vista de Peng (o mecanismo de levantar/destruir as paredes continua sendo
o mesmo). Dentro da casa, Peng deve caminhar até Alber e atirar nele pelas costas;
durante a caminhada, as imagens de vários cenários diferentes se misturam,
superpondo realidades distintas que terminam sempre na morte do inglês.
Há ainda alguns detalhes que enriquecem a construção visual e semântica de
Intimate, Infinite: há vinhetas entre as seções em que vários rostos superpostos de
Alber ou Peng são mostrados simultaneamente em cenários diversos, enquanto frases
(escolhidas aleatoriamente) adaptam falas das personagens do conto ou se referem
tematicamente a estas; a tela de abertura do jogo superpõe lanternas japonesas sobre
o escritório de Alber, sugerindo a mistura entre realidades e entre Ocidente e Oriente;
depois da morte de Alber, tanto a tela inicial quanto aquela em que se escolhem os
livros ficam cobertas de sangue (um livro para apagar os dados salvos e reiniciar o jogo
é acrescentado). Além disso, uma das frases acrescenta até mesmo um subtexto
homoerótico que, embora pudesse ser inferido no conto, se torna mais claro no jogo:
enquanto Albert de “El Jardín de Senderos Que Se Bifurcan” comenta, sobre os futuros
possíveis, que “En uno de ellos soy su enemigo” (BORGES, 1956, p. 110), o chinês Peng
de Intimate, Infinite sugere que “In one of those futures, he is my loyal companion”
(YANG, 2014a). O design sonoro, por outro lado, é bastante discreto, normalmente
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enfatizando os sons do próprio ambiente (o vento, a folhagem) e apenas em alguns
momentos recorre à música para sugerir tensão (como na cena da perseguição) ou um
sutil senso de horror (durante as vinhetas e no assassinato de Alber).
A obra de Robert Yang encontra, dessa maneira, novos modos de ampliar as
concepções presentes no conto, acrescentando algo à narrativa: longe de ser apenas
uma transposição do texto para outra mídia, utiliza-‐se de convenções próprias dos
jogos para criar novos sentidos e contradizer algumas expectativas dos leitores de
Borges. Obviamente, sendo um jogo experimental breve, possui algumas limitações:
seu enredo é excessivamente enigmático para alguém que não tenha lido o conto; a
seção inicial e sua repetição são lineares a ponto de praticamente prescindirem de
ações do jogador; a partida de xadrez, ainda que ofereça um comentário curioso sobre
os jogos em geral, se relaciona de modo muito limitado com o restante do jogo. Ainda
assim, esta é, entre as poucas adaptações diretas de contos de Borges, a que parece
mais completa e que demonstra maior consciência do modo como mecanismos lúdicos
podem adaptar criativamente conteúdos literários – se The Intruder podia ser
apreciado principalmente por seu pioneirismo, Intimate, Infinite é atrativo em si
mesmo como jogo.
Dentre todos os contos de Borges, aquele que recebeu o maior número de
adaptações foi “La Biblioteca de Babel”, do qual encontramos pelo menos quatro: The
Library of Blabber, de Ivan Notaros (2015), The Unity of Babel, de Agar (2015), Library
of Babel 3D, de Keiwan (2016), e The Exhibition of Babel, de Marcos Donnantuoni
(2016). O que todas possuem em comum é que se tratam de tentativas de criar
espaços virtuais inspirados na biblioteca descrita pelo conto de Borges: nenhuma delas
possui um objetivo que não seja a exploração do próprio espaço e a observação de
seus objetos, e nenhuma possui enredo; além disso, todas investem na geração
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procedural como forma de criar automaticamente o espaço e as quase infinitas obras
sugeridas pela biblioteca ficcional. São video games apenas no sentido mais amplo do
termo, pois são quase ausentes de mecanismos de interação, regras ou objetivos; o
ideal seria compreender todas essas adaptações como, primeiramente, galerias
virtuais inspiradas em Borges – o que, claro, não diminui a sua importância, e
demonstra a possibilidade de utilizar os espaços virtuais como meio de realizar os
mundos fantásticos imaginados nos contos.
NOTAROS, Ivan. The Library of Blabber. 2015. Video game para PC. Disponível em: <nothke.itch.io/library-‐of-‐blabber>. Acesso em: 16 de Agosto de 2017.
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AGAR. The Unity of Babel. 2015. Video game para PC. Disponível em: <agar.itch.io/the-‐
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em: <marcosd.itch.io/the-‐exhibition-‐of-‐babel>. Acesso em: 16 de Agosto de 2017.
unity-‐of-‐babel>. Acesso em: 16 de Agosto de 2017.
Todos esses criadores demonstram as ramificações futuras que os contos de
Borges podem ter: os jogos, cujo poder simbólico já era reconhecido em sua obra,
podem se tornar um dos meios de renovar e popularizar suas concepções, alcançando
efeitos estéticos inesperados. As ideias de Borges tomaram forma principalmente na
literatura, mas certamente não estão restritas a ela – seja nos casos das adaptações ou
dos jogos apenas inspirados no escritor argentino, o que se vê é um universo de
possibilidades artísticas novas, muitas imprevisíveis no período em que os contos
foram escritos. As bifurcações de tal jardim parecem ser infinitas.
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