Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS!...

22
ISSN: 19841175 – ANAIS ELETRÔNICOS Universidade Federal de Pernambuco NEHTE / Programa de Pós Graduação em Letras 573 Borges em Jogo Newton de Castro Pontes (URCA) Resumo: Este trabalho tem como objetivo discutir as adaptações de obras do escritor argentino Jorge Luis Borges em forma de video games, examinando assim um diálogo possível entre a literatura e os jogos. Como base teórica, partimos das discussões de Robert Wilson sobre o conceito de godgames e sua relação com o símbolo do labirinto, o qual constitui um dos elementos centrais dos contos de Borges; além disso, recorremos à crítica tanto do autor quanto dos jogos em análise, os quais incluem The Intruder, de Natalie Bookchin, Intimate, Infinite, de Robert Yang, e algumas adaptações do conto “La Biblioteca de Babel”. O método de análise é comparativo: partindo das semelhanças e, especialmente, das diferenças que encontramos entre os originais e suas adaptações, discutimos que elementos estéticos nas produções literárias favorecem a criação dos jogos, assim como que elementos dos jogos ressignificam ou expandem a leitura dos textos originais, introduzindo elementos próprios que os estabelecem como uma forma de arte autônoma. Como os próprios textos de Borges lidam com conceitos que posteriormente se tornariam recorrentes em jogos e nas artes eletrônicas em geral (como o de hipertexto), esperamos demonstrar as contribuições teóricas possíveis de uma discussão que aborde simultaneamente a literatura escrita e os video games. Palavraschave: Jorge Luis Borges, Conto, Video Games. Abstract: The objective of this essay is to discuss video game adaptations of literary works written by Jorge Luis Borges, the famous argentinian ficcionist, as we study the possible dialogues between literature and games. Our theoretical basis comes from Robert Wilson’s discussions about godgames and their relation to the labyrinth symbol, as it constitutes a core element in Borges’ short stories; besides that, we refer to the criticism of Borges and the games discussed, which include The Intruder, by Natalie Bookchin, Intimate, Infinite, by Robert Yang, and a few adaptations of “La Biblioteca de Babel”. Our analythical method is comparative: considering the similarities and – especially – differences between the original texts and their adaptations, we discuss which aesthetical elements in literary works favor the creation of those games, and also which elements from the games change or expand the meaning of the original short stories, introducing elements that make them part of an autonomous art form. As Borges’ works themselves deal

Transcript of Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS!...

Page 1: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

573  

    Borges  em  Jogo    

Newton  de  Castro  Pontes  (URCA)  

   

Resumo:  Este  trabalho  tem  como  objetivo  discutir  as  adaptações  de  obras  do  escritor  argentino   Jorge   Luis   Borges   em   forma  de  video   games,   examinando   assim  um   diálogo   possível   entre   a   literatura   e   os   jogos.   Como   base   teórica,  partimos  das  discussões  de  Robert  Wilson  sobre  o  conceito  de  godgames  e  sua  relação  com  o  símbolo  do  labirinto,  o  qual  constitui  um  dos  elementos  centrais   dos   contos   de   Borges;   além   disso,   recorremos   à   crítica   tanto   do  autor   quanto   dos   jogos   em   análise,   os   quais   incluem   The   Intruder,   de  Natalie  Bookchin,  Intimate,  Infinite,  de  Robert  Yang,  e  algumas  adaptações  do   conto   “La   Biblioteca   de   Babel”.   O   método   de   análise   é   comparativo:  partindo   das   semelhanças   e,   especialmente,   das   diferenças   que  encontramos   entre   os   originais   e   suas   adaptações,   discutimos   que  elementos  estéticos  nas  produções  literárias  favorecem  a  criação  dos  jogos,  assim  como  que  elementos  dos   jogos   ressignificam  ou  expandem  a   leitura  dos   textos   originais,   introduzindo   elementos   próprios   que   os   estabelecem  como   uma   forma   de   arte   autônoma.   Como   os   próprios   textos   de   Borges  lidam  com  conceitos  que  posteriormente  se  tornariam  recorrentes  em  jogos  e   nas   artes   eletrônicas   em   geral   (como   o   de   hipertexto),   esperamos  demonstrar   as   contribuições   teóricas   possíveis   de   uma   discussão   que  aborde  simultaneamente  a  literatura  escrita  e  os  video  games.  Palavras-­‐chave:  Jorge  Luis  Borges,  Conto,  Video  Games.      Abstract:  The  objective  of   this  essay   is   to  discuss  video  game  adaptations  of   literary  works  written  by  Jorge  Luis  Borges,  the  famous  argentinian  ficcionist,  as  we  study  the  possible  dialogues  between  literature  and  games.  Our  theoretical  basis   comes   from   Robert   Wilson’s   discussions   about   godgames   and   their  relation  to  the  labyrinth  symbol,  as  it  constitutes  a  core  element  in  Borges’  short  stories;  besides  that,  we  refer  to  the  criticism  of  Borges  and  the  games  discussed,   which   include   The   Intruder,   by   Natalie   Bookchin,   Intimate,  Infinite,  by  Robert  Yang,  and  a  few  adaptations  of  “La  Biblioteca  de  Babel”.  Our   analythical   method   is   comparative:   considering   the   similarities   and   –  especially  –  differences  between  the  original  texts  and  their  adaptations,  we  discuss   which   aesthetical   elements   in   literary   works   favor   the   creation   of  those   games,   and   also  which   elements   from   the   games   change   or   expand  the  meaning   of   the   original   short   stories,   introducing   elements   that  make  them   part   of   an   autonomous   art   form.   As   Borges’   works   themselves   deal  

Page 2: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

574  

with  concepts  that  would  later  become  recurrent  in  games  and  eletronic  art  in   general   (as   the   idea   of   hipertext),   we   hope   this   essay   shows   the  theoretical   contributions   that   emerge   from   a   critical   analysis   that  simultaneously  considers  written  literature  and  video  games.  Keywords:  Jorge  Luis  Borges,  Short  Story,  Video  Games.  

 

 

INTRODUÇÃO  

 

“En   una   adivinanza   cuyo   tema   es   el   ajedrez   ¿cuál   es   la   única   palabra  

prohibida?”  (BORGES,  1956,  p.  109)  –  essa  charada,  dita  por  uma  personagem  de  “El  

Jardín   de   Senderos   Que   Se   Bifurcan”,   em   Ficciones,   é   sempre   um   bom   ponto   de  

partida   para   discutir   alguns   elementos   recorrentes   nos   contos   de   Jorge   Luis   Borges.  

Isso  porque,  em  primeiro  lugar,  percebe-­‐se  a  recursividade  que  envolve  a  pergunta:  é  

uma   charada   sobre   a   resposta   de   uma   charada.   No   lugar   de   colocar   o   problema  

diretamente,   Borges   prefere   propor   um  problema  acerca   do  problema,   o   que   acaba  

por  ampliar  a   resposta  e   lhe  conferir  outros   sentidos   (“xadrez”,  nesse  caso,   se   torna  

uma   metáfora   para   o   inominável   tempo,   tema   central   do   conto).   Em   segundo,   tal  

recursividade   torna   a   pergunta   paradoxal:   afinal,   a   própria   pergunta   é   uma   charada  

cuja  resposta  é  xadrez,  mas  isso  não  a  impede  de  usar  a  palavra  proibida  –  a  situação  

paradoxal,  ao  longo  da  produção  de  Borges,  tornar-­‐se-­‐ia  um  de  seus  traços  relevantes.  

Por   último,   as   duas   personagens   que   dialogam   no   conto   tentam   compreender   uma  

obra  misteriosa,  e   fazem-­‐no  não   só  pela  analogia   com  uma  charada  mas   também   (e  

isso  é  mais  importante)  com  um  jogo.  

A  analogia  entre  a  realidade  e  o  jogo,  especialmente  o  xadrez,  foi  um  elemento  

constante   na   produção   ficcional   de   Borges.   O   caso  mais   conhecido   e   direto   é   o   do  

poema  “Ajedrez”,  no  qual  se  usa  a  imagem  do  jogo  como  reflexo  do  deus  que  move  os  

homens  enquanto,  possivelmente,  é  movido  por  outros  deuses,  mas  tal  motivo  não  se  

Page 3: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

575  

limita   a   essa   poesia:   a   realidade   que   reproduz   uma   partida   de   xadrez   é   encontrada  

também  em  “Guayaquil”,  de  El  Informe  de  Brodie,  no  qual  se  menciona  a  lenda  galesa  

do  Mabinogion   em   que   dois   reis   jogam   xadrez   enquanto   seus   exércitos   combatem.  

“Uno  de  los  reyes  gana  el  partido;  un  jinete  llega  com  la  noticia  de  que  el  ejército  de  

outro  ha  sido  vencido.  La  batalla  de  hombres  era  el   reflejo  de   la  batalla  del   tablero”  

(BORGES,  1982,  p.  117).  Além  desses,  há  o  modo  como  o  narrador  de  “There  Are  More  

Things”  aprende  sobre  os  paradoxos  de  Zenão  de  Eleia  por  meio  do  tabuleiro  de  xadrez  

(BORGES,  2011,  p.  59),  a  menção  a  um  artigo   técnico  de  Pierre  Menard  que  propõe,  

recomenda,  discute  e  rechaça  a  subtração  de  um  dos  peões  de  torre  para  enriquecer  o  

xadrez  (BORGES,  1956,  p.  46),  a  partida  de  muitos  séculos  sonhada  por  Jaromir  Hladik  

em  “El  Milagro  Secreto”  (BORGES,  1956,  p.  159)  e  a  menção  ao  xadrez  que  descifra  o  

mistério  do  fictício  livro  The  God  of  the  Labyrinth  em  “Examen  de  la  Obra  de  Herbert  

Quain”   (BORGES,   1956,   p.   79),   afora   outras  menções   ao   jogo.   E   o   xadrez   não   foi   o  

único:   outro   jogo,   go,   também   despertou   a   imaginação   de   Borges   e   recebeu   sua  

própria   poesia.   “El   Go”,   presente   em   La   Cifra,   diz   que   o   go   é   “ese   otro   ajedrez   del  

Oriente”  e  que  “el  tablero  es  un  mapa  del  universo”  (BORGES,  1981,  p.  93).  

Nota-­‐se,   então,   que   há   um   interesse   particular   nas   ficções   de   Borges   pelo  

motivo  do  universo  como  um  jogo.  O  jogo,  em  especial  o  xadrez,  cumpre  uma  função  

similar  à  dos   labirintos  e  espelhos,  outros   símbolos  conhecidos  das  obras  de  Borges:  

estes  não  são  apenas   imagens  ou   lugares/objetos   recorrentes,  mas  sim  princípios  de  

construção  dos  próprios   contos;  ou   seja,  há   contos  que,  para  além  de  mencionarem  

labirintos  e  espelhos,  são  eles  mesmos  construções  labirínticas  e  reflexivas.  O  mesmo  

acontece,  então,  com  os  jogos:  naqueles  contos,  o  xadrez  não  é  apenas  um  elemento  

recorrente,  mas  o  símbolo  de  um  modo  de  compreender  e  representar  a  realidade.  

Page 4: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

576  

E  que  modo  seria  esse?  Se  a  literatura  é  uma  expressão  mimética  que  reproduz  

ficcionalmente  a  realidade  por  meio  da  palavra,  sendo  uma  arte  verbal,  e  se  a  pintura  

o   faz  por  meio  das  cores,  sendo  arte  visual,  o   jogo  o   faz  na   forma  de  um  sistema  de  

regras  definidas  que  estabelecem  um  objetivo  (entendido  em  sentido  abrangente)  e  a  

relação  de  uma  pessoa  com  os  objetos  do  jogo  e  dos  objetos  entre  si,  ou  seja,  o  modo  

como  tais  objetos  podem  ser  utilizados  (as  peças,  o  tabuleiro,  as  cartas,  os  dados  etc.).  

Assim,  o  xadrez  mimetiza  uma  batalha  não  por  contar  uma  história  acerca  dela  ou  por  

representá-­‐la   visual   ou   auditivamente,   mas   sim   pelas   regras   que   definem   os  

movimentos  de  cada  peça,  sua  quantidade  e  posição  no  tabuleiro  e  o  objetivo  de  cada  

jogador.  A  peça  que  representa  o  rei  não  o  faz  por  ser  visualmente  semelhante  a  um  

rei  da  realidade,  mas  sim  pelo  fato  de  que  a  sua  derrota  implica  na  derrota  do  exército,  

o   que   obriga   os   jogadores   a   instintivamente   protegerem   tal   rei   (como   um   exército  

supostamente   faria   em   uma   batalha   real).   Os   peões,   postos   na   linha   de   frente   do  

exército,   são   muitos   e   possuem   poucas   possibilidades   de   movimento,   sendo   peças  

dotadas  de  pouco  poder  quando  isoladas  –  sua  força  está  na  quantidade  e  no  fato  de  

serem  descartáveis,  o  que  provavelmente  representa  um  modo  como  os  soldados  a  pé  

eram  percebidos   em  batalhas  medievais.  O  movimento   do   cavalo,   em   L,   é   capaz   de  

representar  o  cavaleiro  que,  chegando  ao  seu  oponente,  vira  seu  cavalo  de  lado  a  fim  

de   golpeá-­‐lo   com   sua   espada   ou   lança.   A   capacidade   de,   por   meio   de   símbolos,  

representar  uma  realidade   ficcionalmente   faz  do  xadrez  esse   tipo  de  mimesis   lúdica,  

na   qual   o   próprio   conjunto   de   regras   define   um  modo   determinado   de   perceber   e  

representar   ficcionalmente   uma   batalha.   Dessa   maneira,   não   é   uma   hipóstase  

defender  que  um   jogo,  ainda  que  sem  enredo,  pode  ser  uma  expressão  mimética  só  

por  meio  de   seu   sistema  de   interações:   não  que   isso   impeça  que   as   representações  

verbais,   visuais   e   sonoras   se   tornem   parte   do   todo   que   é   a   representação   lúdica;   a  

Page 5: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

577  

questão  é  que  o  próprio  sistema  de   interações  é  capaz  de  ocupar  o  centro  da   forma  

artística,   indicando   um   tom   emocional-­‐volitivo   específico   no   modo   como   o   jogo   se  

relaciona  simbolicamente  com  a  realidade  dos  atos  e  da  cultura  humana.  

Voltando  a  Borges,  alguns  dos  seus  contos  mais  conhecidos  não  costumam  ser  

centralizados  em  enredos,  mas  sim  em  sistemas:  modos  específicos  de  interagir  com  o  

mundo   e   de   relacionar   os   elementos   da   realidade   entre   si,   modos   estes   que,  

normalmente,   não   seriam   possíveis   na   nossa   realidade,   mas   que   na   ficção   ganham  

espaço   para   se   desenvolver.   Esse   é   o   caso   de   “La   Lotería   en   Babilonia”,   em   que   os  

indivíduos  participam  do  mundo  por  meio  de  uma  série  infindável  de  sorteios;  também  

é  o  caso  de  “Tlön,  Uqbar,  Orbis  Tertius”,  em  que  a  realidade  material  é  afetada  pelo  

ato   de   pensar   sobre   ela,   a   ponto   de   ser   possível   criar   realidades   através   de   livros;  

pode-­‐se   ainda   citar   o   confuso   livro   presente   em   “El   Jardín   de   Senderos   Que   Se  

Bifurcan”,  construído  em  torno  da  ideia  de  que  todas  as  possibilidades  são  realidades  e  

todas  as  bifurcações   temporais  de  um  evento  podem  conviver   simultaneamente.  No  

caso  de  todos  esses  contos,  o  enredo  parece  acessório,  enquanto  o  que  mais  importa  é  

a  ideia  de  um  mundo  como  quebra-­‐cabeça  a  ser  resolvido,  desvendado.  

Os   contos   de   Borges   sugeriram,   então,   a   construção   de   realidades   a   serem  

desvendadas   por   meio   do   entendimento   e   domínio   de   seus   sistemas,   o   que  

poderíamos  chamar,  sem  grande  compromisso  teórico,  de  realidades  lúdicas.  Apenas  

nos  últimos  decênios  do  séc.  XX  tal  conceito  poderia  ser  finalmente  concretizado  por  

meio   das   realidades   virtuais,   especialmente   aquelas   presentes   nos   video   games.   O  

desenvolvimento   tecnológico,   assim   como   de   um   novo   tipo   de   ludicidade   e   de  

manifestações   estéticas   que   se   agregaram  a   ele,   possibilitou  que   as   ideias   sugeridas  

em  Borges  não  só  se  realizassem  na  forma  de  mundos  virtuais  como  fossem,  de  fato,  

popularizadas.  Um  “Libro  de  Arena”  que  se  transforme  cada  vez  que  é  aberto  só  pode  

Page 6: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

578  

ser   sugerido  em  um   texto  escrito;   por  outro   lado,   é  perfeitamente   viável   programar  

um   jogo   que   gere   proceduralmente   novos   espaços,   personagens   e   mesmo   enredos  

cada  vez  que  uma  nova  partida  é   iniciada:  os  assim  chamados   roguelikes,   gênero  de  

jogos   popularizado   por   Rogue   (1980),   de   Michael   Toy   e   Glenn   Wichman,   são  

inteiramente  baseados  nesse  princípio.  Os  múltiplos  caminhos  simultâneos  sugeridos  

no  livro-­‐labirinto  de  “El  Jardín  de  Senderos  Que  Se  Bifurcan”  são  comuns  em  jogos,  os  

quais  podem  alterar  completamente  diversos  elementos  do  enredo  para  se  adaptar  às  

decisões   tomadas   no   decorrer   do   jogo   –   como   bem   demonstrado   por  Deus   Ex,   do  

extinto  estúdio   Ion  Storm  e  dirigido  por  Warren  Ellis  em  2000.  Os  mundos  criados  e  

ligados  a  partir  de  livros,  como  subentendido  em  “Tlön,  Uqbar,  Orbis  Tertius”,  são  uma  

realidade   em  Myst   (1993),   dirigido   por   Robyn   e   Rand   Miller,   assim   como   em   suas  

continuações.  O  que  se  argumenta  é  que  assim  como  as  ficções  de  Borges  plasmaram  

princípios   lúdicos   na   criação   de   seus   mundos,   também   se   encontram   muitos  

elementos   de   seus   contos   presentes   em   jogos  modernos,   especificamente   em  video  

games   –   embora   poucos   jogos   tenham   tentado   adaptar   diretamente   os   próprios  

contos.   De   qualquer   maneira,   tais   adaptações   diretas,   ainda   que   incomuns   e  

geralmente   restritas   a   pequenas   produções   independentes,   existem.   Discutamos  

algumas  delas.  

Uma   das   mais   antigas,   possivelmente   a   primeira   a   ser   anunciada   como  

adaptação   direta   de   um   conto   de   Borges,   consiste   em   um   jogo   independente   de  

Natalie  Bookchin  intitulado  The  Intruder  (1999).  Essa  adaptação  do  conto  “La  Intrusa”  

consiste   em  uma   sequência   de  dez   jogos   inspirados   em  video  games   dos   anos   1970  

(Pong,  Gunfight,  Avalanche  e  Galaxian   sendo  os  mais  evidentes)  ou,  de  modo  geral,  

nos   mecanismos   de   interação   simples   que   constituem   tais   jogos:   movimento  

normalmente  limitado  a  um  eixo  e,  em  alguns  casos,  um  comando  para  atirar.  Sendo  

Page 7: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

579  

uma   obra   feita   para   a   internet,   ou   seja,   para   ser   executada   diretamente   nos  

extremamente   limitados   programas   de   navegação   disponíveis   em   1999,   e   criada  

gratuitamente   por   uma   única   pessoa,   The   Intruder   parece   visual   e   mecanicamente  

rudimentar   para   o   período,   mais   até   que   alguns   dos   jogos   que   lhe   servem   de  

inspiração.  É  mesmo  possível  argumentar  que,  anos  depois  de  sua  publicação,  o  jogo  é  

melhor   apreciado   como   curiosidade   do   que   como   obra   em   si   –   mas,   ainda   assim,  

Bookchin  realiza  algumas  conexões  criativas  entre  as  suas  fontes  lúdicas  e  literárias.  

O  conto  de  Borges  que  lhe  dá  origem  é  um  dos  poucos  que  evitam  a  abstração  

e  enfatizam  os  atos  de  suas  personagens:  narra  a  história  de  dois  irmãos  que,  dividindo  

a  mesma  mulher,  entram  em  um  ciclo  de  agressão  mútua,  até  que  um  deles  assassina  

“a   intrusa”   a   fim   de   restaurar   o   laço   fraterno   entre   os   dois.   A   narrativa,   como   não  

poderia  deixar  de  ser,  contém  vários  subtextos:  principalmente,  há  a  sugestão  de  uma  

relação   homoafetiva   entre   os   irmãos,   a   começar   pela   epígrafe   que   faz   referência   a  

duas   personagens   bíblicas   (Davi   e   Jônatas)   cuja   própria   afetividade   oscila   entre   a  

amizade   e   o   erotismo.   Essa   não   é   a   única   referência   bíblica   no   conto:   o   narrador  

comenta  que  o  único  livro  encontrado  na  casa  dos  Nielsen  era  “una  gastada  Biblia  de  

tapas  negras,  com  caracteres  góticos;  en  las  últimas  páginas  entrevió  nombres  y  fechas  

manuscritas”   (BORGES,   1982,   p.   18);   e   se   a   relação   entre   os   irmãos   é   comparada   à  

afetividade  entre  Davi  e  Jônatas,  também  se  menciona  a  competitividade  homicida  de  

Caim  e  Abel:  “Caín  andaba  por  ahí,  pero  el  cariño  entre  los  Nielsen  era  muy  grande  –  

¡quién  sabe  qué  rigores  y  qué  peligros  habían  compartido!  –  y  prefirieron  desahogar  su  

exasperación  con  ajenos”  (BORGES,  1982,  p.  22).  De  um  ou  de  outro  modo,  a  sugestão  

de   sacralidade   na   fraternidade   dos   Nielsen   parece   ser   recorrente   na   narrativa,   algo  

que  se  estende  à  morte  de  Juliana  Burgos,  transformando-­‐a  em  um  sacrifício.  

Page 8: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

580  

Encontra-­‐se  também  entre  os  subtextos  de  “La  intrusa”  um  comentário  sobre  a  

cultura   dos   povos   antigos   que   vivem   nas   “margens”   da   Argentina,   além   do   uso  

evidentemente  irônico  de  um  enunciado  narrativo  misógino,  por  meio  do  qual  Juliana  

Burgos,  a   intrusa  do   título,  é   tratada  menos  como  um  ser  humano  do  que  como  um  

objeto.  “Cristián  se  levantó,  se  despidió  de  Eduardo,  no  de  Juliana,  que  era  una  cosa”  

(BORGES,   1982,   p.   20),   afirma   o   narrador   sobre   a   mesma   personagem   que,  

posteriormente,   é   vendida   pelos   irmãos   à   patrona   de   um   prostíbulo,   comprada   de  

volta   e   assassinada.   As   idas   e   vindas   de   Juliana   Burgos   são   acompanhadas   pela  

crescente  rivalidade,  misoginia  e  violência  dos   irmãos  Nielsen  e  do  ambiente  em  que  

os  três  habitam.  

Como   essa   agressividade   competitiva   e   o   subtexto   sexual   e   de   conflitos   de  

gênero   são   representados   em   The   Intruder?   De  modo   geral,   são   realizados   de   três  

maneiras:   primeiro,   Bookchin   seleciona   como   referência   jogos   que   são   competitivos  

(os   que   lhe   servem   como   inspiração   são   aqueles   que   destacam   a   pontuação   do  

jogador);  segundo,  substitui  a  pontuação  do   jogo  por  trechos  do  conto  –  o   jogador  é  

“premiado”   com   o   conto   enquanto   joga,   o   que   se   dá   tanto   textualmente   quanto  

auditivamente  (uma  voz  feminina  lê  uma  versão  em  inglês  de  “La  Intrusa”  e  frases  da  

narrativa   vão   aparecendo   gradativamente   na   tela);   terceiro,   certos   componentes  

visuais  dos  jogos  são  substituídos  por  elementos  reminiscentes  dos  temas  explorados  

no  conto.  

As   idas   e   vindas   de   Juliana   Burgos,   por   exemplo,   são   representadas   usando  

Pong  como  referência:  na  abertura  do  jogo,  as  duas  raquetes  em  lados  opostos  (uma  

delas  sendo  controlada  pelo  jogador)  “rebatem”  o  título  e  a  epígrafe  do  conto,  que  se  

completam  a  cada  rebatida;  em  momento  posterior,  Pong   será  novamente  utilizado,  

Page 9: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

581  

mas   agora   com   um   ícone   feminino   sendo   jogado   de   um   canto   a   outro   enquanto  

imagens  de  um  corpo  feminino  são  apresentadas  como  pano  de  fundo.  

   

BOOKCHIN,  Natalie.  The  Intruder.  1999.  Video  game  para  PC.  Registro  audiovisual  disponível  em:  <bookchin.net/projects/the-­‐intruder>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  

 

Outro  jogo  representa  a  rivalidade  entre  os  dois  irmãos:  usando  Gunfight  como  

referência,  duas  silhuetas  que  representam  cowboys  armados  duelam  próximas  a  uma  

terceira  silhueta  feminina,  o  que  evoca  não  só  a  violência  e  a  rivalidade  mas  também  o  

ambiente   rural   em   que   o   conto   se   passa.   Os   outros   jogos   (no   total   são   dez)   são  

igualmente   simples,   representando   simbolicamente   outros   elementos   do   conto  

enquanto  o   texto  em   si   é   enunciado  por  uma  voz   feminina  monótona,   a  qual   evoca  

certa   frieza   e   mecanicismo   em   relação   ao   texto   –   do   mesmo   modo   que   o   próprio  

narrador  é  apático  em  relação  a  Juliana  Burgos.  Em  um  dos  jogos,  os  irmãos  atiram  em  

naves   tendo   um   céu   estrelado   como   pano   de   fundo;   em   outros   dois,   uma   figura  

feminina  corre  e  pula  sobre  obstáculos;  em  outro,  representa-­‐se  a  rivalidade  masculina  

por  meio  de  um  jogo  de  futebol  americano;  no  último,  que  representa  o  momento  do  

assassinato  da  mulher,  o  jogador  controla  a  mira  de  uma  arma  e  deve  atirar  em  uma  

distante   figura   vermelha   que   corre   sobre   uma   imagem   em   preto   e   branco   (a   qual  

Page 10: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

582  

lembra  uma  imagem  de  satélite)  –  o  crime  é  representado  de  modo  frio  e  distanciado,  

sendo  reminiscente  das  imagens  de  drones  usados  em  guerras.  

The   Intruder   chamou   a   atenção   de   alguns   críticos   da   obra   de   Borges   e   de  

estudiosos   da   literatura   eletrônica,   uma   vez   que   surgiu   num   período   crucial   do  

desenvolvimento  de  tal  gênero  artístico:  a  popularização  da  internet  no  fim  dos  anos  

1990.   O   jogo   foi   discutido   por   Mary   Flanagan   (2003,   p.   363-­‐368)   em   “‘Next   Level’:  

Women’s  Digital  Activism  Through  Gaming”,  em  que  a  autora  define  o  abismo  entre  

conteúdo  e  métodos  de  interação  como  um  espaço  para  a  ironia  (e  aponta  que  a  ironia  

é,  para  o  cyberfeminismo,  uma  estratégia  de  resistência),   raciocínio  retomado,  ainda  

por  Mary  Flanagan,  no  livro  Critical  Play:  Radical  Game  Design,  em  que  se  comenta  o  

abismo  entre   interação  e  narrativa   como  algo  deliberado,   como  uma   ironia  do   jogo:  

concluir   com   sucesso   cada   seção   e   avançar   na   história   é   “recompensado”   com   um  

comprometimento  cada  vez  maior  da  situação  de  Juliana  Burgos  (FLANAGAN,  2009,  p.  

226-­‐230).   Também   é   relevante   a   discussão   de   Frédérique   Arroyas   (2008)   no   artigo  

“De/generative   Narratives:   Net   Art   and   Textual   Adaptation”,   o   qual   enfatiza   a  

dimensão   participatória   que   se   acrescenta   à   história   original   quando   o   jogador  

contribui  simbolicamente  com  suas  ações  aos  comportamentos  agressivos  dos  irmãos  

Nielsen.   Outras   críticas   também   ressaltaram   o   fato   de   ser   uma   obra   de   autoria  

feminina,  apontando  a  própria  Bookchin  como  uma  intrusa  no  contexto  da  produção  

de   video   games   do   fim   dos   anos   1990   –   é   o   caso   de   Perla   Sasson-­‐Henry,   autora   de  

Borges  2.0:  From  Texts  to  Virtual  Worlds.  

Embora   The   Intruder   já   aponte   algumas   das   possibilidades   de   interpretação  

criativa  da  obra  de  Borges,  é  em   Intimate,   Infinite,  criado  por  Robert  Yang  em  2014,  

que   se   encontra   uma   adaptação  mais   elaborada   visual   e  mecanicamente.  O   jogo   se  

trata  de  uma  adaptação  de  “El   Jardín  de  Senderos  Que  Se  Bifurcan”,   conto  que  está  

Page 11: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

583  

entre  os  mais  conhecidos  de  Borges  e  que  lida  com  alguns  dos  símbolos  recorrentes  de  

sua   produção:   o   labirinto,   o   xadrez   e   o   tempo.   Passando-­‐se   na   Primeira   Guerra  

Mundial,   o   conto   propõe,   em   seu   primeiro   parágrafo,   esclarecer   uma   passagem   de  

Historia  de  la  Guerra  Europea,  de  Lidell  Hart,  em  que  se  comenta  sobre  uma  ofensiva  

britânica  que  foi  postergada  por  poucos  dias  (nada  significativo,  segundo  o  “editor”  do  

conto)   devido   a   uma   chuva   torrencial.   O   que   se   segue   é   a   narrativa   de   um   espião  

chinês   chamado   Yu   Tsun,   o   qual,   sendo   descoberto   e   perseguido   por   um   agente  

irlandês   a   serviço   da   Inglaterra   (Richard  Madden),   procura   uma   forma  de   avisar   aos  

oficiais   alemães   em   que   cidade   se   encontram   as   linhas   britânicas.   Sua   solução   é  

escolher   um   sobrenome   na   lista   telefônica   que   coincida   com   o   nome   da   cidade   –  

Albert   –   e   assassinar   tal   pessoa;   a   notícia   no   jornal   seria   decodificada   por   seus  

superiores.   O   que   ocorre   é   que   tal   pessoa   (Stephen   Albert)   é   um   sinólogo   que,   por  

coincidência  ou  não,  estuda  a  obra  do  bisavô  de  Yu  Tsun,  Ts’ui  Pên,  o  qual  gastara  seus  

dias  na  produção  de  um  livro  e  um  labirinto  –  ou  melhor,  como  descobre  Albert,  um  

livro   que   era   um   labirinto,   o   qual   narraria   as   várias   soluções   possíveis   para   cada  

ramificação  na   história,   resultando   em  uma  obra   plena   de   aparentes   contradições   e  

repetições.  Yu  Tsun  atira  em  Albert,  é  preso  e  condenado  à  morte,  mas  conclui  que  foi  

“abominavelmente”   vitorioso:   nos   mesmos   jornais   que   secretamente   enviaram   sua  

mensagem  a  Berlim,  lê  que  a  cidade  de  Albert  foi  bombardeada.  

A   narrativa   talvez   desvie   a   atenção   do   leitor   de   algo   fundamental:   o   editor  

sugere  que  a  declaração  de  Yu  Tsun  lançará  uma  luz  sobre  o  episódio  de  Lidell  Hart;  os  

dois,  no  entanto,  chegam  a  conclusões  completamente  diferentes.  Em  Hart,  um  evento  

natural   atrasa   sem   nenhum   custo   a   ofensiva   britânica;   em   Tsun,   as   forças   são  

bombardeadas  e  a  Alemanha  obtém  uma  vitória,  ainda  que  temporária.  Ora,  o  conto  

parece   seguir,   assim,   a   proposta   do   livro   labiríntico   de   Ts’ui   Pên:   a   contradição  

Page 12: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

584  

evidente  sugere  a  existência  de  duas  realidades  simultâneas,  do  sucesso  e  do  fracasso  

de   Yu   Tsun   em   enviar   sua   mensagem.   Como   expressa   Tsun   ainda   no   início   de   sua  

declaração,   “Después   reflexioné  que   todas   las   cosas   le   suceden  a  uno  precisamente,  

precisamente   ahora”   (BORGES,   1956,   p.   98).   Isso   é   ainda   corroborado   pela   mistura  

entre  referências   reais  e   ficcionais  no  conto  de  Borges:  Lidell  Hart   foi  um  historiador  

real   que   escreveu   diversos   livros   sobre   as   guerras   europeias;   entretanto,   como  

esclareceu  Ethan  Weed  no  ensaio  “A  Labyrinth  of  Symbols:  Exploring   ‘The  Garden  of  

Forking   Paths’”,   a   obra   de  Hart   sobre   a   Primeira   Guerra   recebeu   vários   títulos,  mas  

nenhum   deles   coincide   com   aquele   sugerido   pelo   conto   (nem   foi   traduzido   para   o  

espanhol  como  tal).  Ademais,  nenhuma  obra  de  Lidell  Hart  contém  a  passagem  sobre  a  

ofensiva   na   página   mencionada   pelo   conto,   22   ou   242   dependendo   da   edição.   Na  

página  em  que  se  encontra  um  evento  semelhante  –  Weed  a  encontra  na  página  240  

de  The  History  of  the  First  World  War  –,  o  registro  real  contradiz  o  que  é  exposto  no  

conto:  o  bombardeio   teve   início  em  24  de   Junho,   com  o  ataque  por   terra  planejado  

para   começar   no   dia   29,  mas   adiado   para   1o   de   Julho   (enquanto   a   versão   do   conto  

sugere  um  ataque  planejado  para  24  de  Julho  e  adiado  até  o  dia  29).  O  editor  diz  que  o  

adiamento   não   foi   significativo,   enquanto   Hart   enfatiza   os   problemas   de   falta   de  

munição   e   de   manter   os   soldados   nas   trincheiras   por   mais   dois   dias   exaustivos,  

enquanto   eram   inundados   pelas   chuvas   torrenciais   e   sofriam   forte   retaliação   dos  

inimigos   (WEED,   2004,   p.   165-­‐166).   A   obra   real   de   Hart   acrescenta,   portanto,   uma  

terceira  versão  da  história.  O  conto  cria  ainda  outras  bifurcações:  Yun  Tsu  especula  que  

Viktor  Runeberg  fora  preso  ou  assassinado,  ao  que  se  acrescenta  uma  nota  de  rodapé  

do  editor  contestando  ambas  as  hipóteses;  ao  fugir  de  trem,  Yu  Tsun  afirma  que  essa  

pequena  vitória  previa  uma  vitória  total  sobre  Madden,  e  que  de  outro  modo  estaria  

Page 13: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

585  

no  cárcere  ou  morto  –  entretanto,  a  narração  inteira  é  dada  por  Yu  Tsun  depois  que  já  

foi  preso  e  condenado  à  forca.  

A   narrativa   também   explora   as   simetrias   e   os   espelhos:   o   doutor   Yu   Tsun   é  

chinês  e  catedrático  de  inglês,  enquanto  o  doutor  Stephen  Albert  é  inglês  e  sinólogo;  o  

covarde   chinês   Yu   Tsun   serve   à   Alemanha,   uma   nação   estrangeira   que   vê   seu   povo  

com  desconfiança,  enquanto  o  implacável  irlandês  Richard  Madden  serve  à  Inglaterra,  

nação  estrangeira  que  não  raramente  é  preconceituosa  com  os  irlandeses;  Ts’ui  Pên  é  

assassinado   por   um   estrangeiro,   assim   como   Stephen   Albert.   Tais   simetrias   estão  

relacionadas  à  própria  noção  de  labirinto,  assim  como  do  necessário  monstro  em  seu  

centro,   o   minotauro;   ambos   são   conceituais,   e   não   empíricos.   O   labirinto   é  

representado   pelo   conjunto   de   decisões   de   quem   entra   nele   e   pelo  modo   como   as  

suas   regras   definem   tais   decisões:   o   livro   de   Ts’ui   Pên   apresenta   um   labirinto   às  

personagens,  enquanto  o  próprio  conto  apresenta  outro  ao  leitor.  Acima  de  tudo,  “El  

Jardín  de  Senderos  Que  Se  Bifurcan”  demonstra  que  o  labirinto  não  é  um  espaço,  mas  

um  conjunto  de   interações  no  tempo  –  e  por   isso  “tempo”  é  a  palavra  que  resolve  a  

charada  de  Ts’ui  Pên.  Robert  Wilson  (1982,  p.  6)  caracterizou  tais  labirintos  conceituais  

(strong   labyrinths)   como,   invariavelmente,   uma   espécie   de   godgames,   categoria   de  

jogos  comum  na  literatura  e  definida  pela  relação  entre  uma  personagem  que  cria  uma  

ilusão   (na   forma   de   uma   estrutura   labiríntica)   e   outra   que   tenta   desvendá-­‐la,  

reproduzindo  a  relação  entre  um  game-­‐master  que  inventa  as  regras  e  um  jogador  que  

deve   compreendê-­‐las   e   interagir   com   elas   a   fim   de   alcançar   seu   objetivo,   que   é   o  

centro  do  labirinto  e  o  minotauro.    

A   ideia   de   que   o   conto   já   funciona   estruturalmente   como   um   jogo   torna   a  

adaptação   de   Robert   Yang   particularmente   curiosa.   Intimate,   Infinite   é   um   jogo   em  

primeira   pessoa   que   assume   o   ponto   de   vista   do   espião,   o   qual   recebe   um   nome  

Page 14: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

586  

diferente  da  personagem  do  conto  –  Wang  Peng,  enquanto  Stephen  Albert  vira  Alber  –

,  e,  de  acordo  com  a  nota  do  editor  apresentada  no  início  do  jogo,  é  professor  de  uma  

universidade   alemã,   e   não   chinesa;   além   disso,   o   texto   inicial   comenta   um   episódio  

sobre  a  Segunda  Guerra  Mundial  da  obra  The  Guns  at  Last  Light:  The  War  in  Western  

Europe,  de  Rick  Atkinson  (no  lugar  da  referência  ao  livro  de  Lidell  Hart),  e,  de  fato,  o  

comentário  é  acompanhado  de  imagens  de  arquivo  da  II  Guerra;  o  editor  ainda  inclui  

uma  nota  avisando  que  o  “primeiro  volume”  da  declaração  de  Peng  foi  destruído  em  

uma   enchente   em   1972,   enquanto   o   conto   mencionava   apenas   a   falta   das   duas  

primeiras  páginas.   Essa   série  de  pequenas  mas   significativas   alterações   amplia   ainda  

mais   o   labirinto   de   alusões   criado   pelo   próprio   conto:   se   Borges   criara,   em   sua  

narrativa,   duas   versões   diferentes   do   episódio   encontrado   no   livro   de   Lidell   Hart,  

Robert  Yang   faz  o  mesmo  em  relação  ao  próprio  conto.   Já  no   início  do   jogo,  quando  

uma  citação  de  Borges   referente  ao   tema  é   traduzida  de  modo  pouco  equivalente  à  

frase   original,   estabelece-­‐se   esse   uso   de   alusões   intencionalmente   modificadas.   A  

frase,   encontrada   no   ensaio   “Sobre   el   ‘Vathek’   de   William   Beckford”,   diz   que   “El  

original  es  infiel  a  la  traducción”  (BORGES,  2012,  p.  315);  abaixo  dela,  a  tradução  para  

o   inglês   diz   “The   originals   dishonor   their   translations”   (YANG,   2014a)   –   naquele  

momento  da  discussão,  Borges  demonstrava  que  o  original  poderia  ser  deslocado  por  

sua  tradução,  a  qual  ganharia  seu  próprio  sentido;  tanto  a  tradução  da  epígrafe  quanto  

o   jogo   inteiro   fazem   isso   com   o   conto   original.   De   fato,   não   é   impossível   imaginar  

Intimate,  Infinite  como  mais  um  conjunto  de  realidades  paralelas  que  se  acrescentam  

às  do  conto.  

Page 15: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

587  

   

YANG,   Robert.   Intimate,   Infinite.   2014.   Video   game   para   PC.   Disponível   em:  <radiatoryang.itch.io/intimate-­‐infinite>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  

 

A  situação  inicial  é  reminiscente:  a  primeira  imagem  é  de  um  homem  morto  (o  

possível  aliado  do  protagonista,  como  no  conto  de  Borges);  ao  lado  dele  há  uma  arma,  

que  deve  ser  tomada  pelo  jogador.  O  esquema  geral  é,  por  assim  dizer,  idêntico:  há  um  

documento  histórico   (as   imagens  documentais   reforçam   isso  no   jogo),  a   sugestão  de  

um  editor  de  que  um  relato  incompleto  pode  esclarecer  um  episódio  de  guerra,  uma  

trama  de  espionagem,  um  morto,  uma  arma  e  um  plano  misterioso.  Assim  como  no  

jogo   de   Bookchin,   Yang   também   opta   por   inserir   textos   narrativos   durante   o   jogo;  

entretanto,   o   texto   é   intencionalmente   diferente   da   narrativa   de   Borges   e  modifica  

tanto  o  tom  quando  o  caráter  das  personagens:  se  a  primeira  frase  da  declaração  de  

Yu  Tsun  era  “...y  colgué  el  tubo”  (BORGES,  1956,  p.  97),  a  frase  dita  por  Peng  é  “...  went  

to  shit”   (YANG,  2014a);  Peng  também  parece  mais  assertivo  que  Yu  Tsun  em  relação  

aos   ocidentais,   como   quando   afirma   que   “But   you’re   all   Westerners,   you’re   all   the  

same   to   me”   (YANG,   2014a),   ao   contrário   de   Yu   Tsun,   que   agia   para   provar   a  

capacidade   de   seu   povo   aos   ocidentais   (embora   o   jardim-­‐labirinto   de   seu   bisavô   já  

fosse  reconhecido  por  Albert  como  tal  prova).  O  restante  dessa  primeira  seção  do  jogo  

parece  não  só  ter  a   intenção  de  subverter  as  expectativas  dos  leitores  do  conto,  mas  

Page 16: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

588  

também   de   jogadores   habituados   a   certas   convenções:   ao   pegar   a   arma,   ela   é  

apontada  e  a  mensagem  “AMMO  0/7”  pisca  no  canto  da  tela,  sugerindo  que  o  jogo  se  

trata  de  um  first  person  shooter;  no  entanto,  o  protagonista  nunca  encontra  munições  

e,   ao   ser   perseguido   por   algum  atirador   distante,   a   única   ação   possível   é   correr   em  

direção   a   um   trem,   no   qual   Peng   foge.   De   fato,   nessa   seção   inteira,   a   interação   é  

limitada:   a   única   coisa   que   pode   ser   feita   pelo   jogador   é   pressionar   um   botão   para  

seguir   em   frente,   no   único   caminho,   e   mover   o   mouse   para   observar   os   seus  

arredores.  Mesmo  um  momento   tenso,   que   parece   precisar   de   uma   ação   rápida   do  

jogador,   é   falso:   Peng   anuncia   que   perderá   o   trem   em   vinte   segundos   e   começa   a  

contar  regressivamente,  enquanto  um  atirador  distante  dispara  contra  ele;  entretanto,  

mesmo  se  o  jogador  não  realizar  nenhuma  ação,  Peng  ainda  assim  correrá  até  o  trem  a  

tempo   de   fugir.   Ou   seja:   nem   mesmo   a   morte   da   personagem   é   uma   opção,   o  

segmento  todo  é  inteiramente  linear.  

O  que  acontece  depois  da   fuga  contradiz  completamente  o  conto:  o  portão  à  

esquerda   do   caminho,   que   deveria   levar   à   casa   de   Steven   Alber,   está   fechado;   o  

protagonista,   resignado  com  a   falha  de  seu  plano,  segue  em  frente  e  conjectura  que  

“Perhaps   in  another   life,   I  would  complete  my  mission”   (YANG,  2014a).  Mas  é  nesse  

momento   que   as   noções   de   múltiplas   realidades   e   labirintos   começam   a   ser  

representadas  no  jogo:  o  jogador  é  apresentado  à  imagem  de  uma  sala  com  três  livros,  

cada   um   deles   servindo   como   um   link   para   uma   seção   diferente   do   jogo:   o   livro   “I  

started   down   the   solitary   road”   corresponde   à   seção   já   vista,   mas   que   pode   se  

desenvolver  de  modo  diferente  dependendo  do  que  for  feito  nos  livros  seguintes;  “In  a  

riddle  whose  answer  is   ‘chess’”  é  uma  partida  de  xadrez  com  Alber;  em  “The  Garden  

dreams.   I  am  its  dream.”,  Peng  caminha  por  num  jardim  em  que  o   jogador   levanta  e  

derruba  as  paredes  de  um  labirinto  verde.  É  nesse  momento  que  a  linearidade  inicial  é  

Page 17: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

589  

abandonada:  o   jogador  pode  alternar   livremente  entre  as  seções  e,  mais   importante,  

experimentar  como  elas  interagem  entre  si,  uma  transformando  a  realidade  da  outra.  

Se  a  pistola  no  início  do  jogo  subvertia  as  expectativas  do  gênero,  a  seção  com  

o  tabuleiro  de  xadrez  faz  o  mesmo:  há  um  tabuleiro  e  há  peças,  mas  o  jogo  não  força  

as   regras   do   xadrez   sobre  o   jogador.   Pode-­‐se   selecionar   qualquer   peça   (inclusive   do  

oponente)  e  movê-­‐la  em  qualquer  direção.  Alber,  sentado  do  outro  lado  à  mesa,  lê  um  

livro;  há  uma  taça  de  vinho  que  pode  ser  bebida,  encerrando  a  partida,  e  há  outro  livro  

nas  mãos   do   próprio   Peng   (aparentemente   o  mesmo   livro   de  Alber)   com   instruções  

para  uma  série  de  movimentos  específicos,  uma  citação  da  poesia  de  Borges  “Ajedrez”  

e   a   frase   “PLAY   IT   BY   TRUST”,   em   referência   à   instalação   artística   de   Yoko  Ono  que  

contém  um  jogo  de  xadrez  gigante  sem  distinção  de  cores  no  tabuleiro  ou  nas  peças  

(conforme   exibida   no   Contemporary   Art   Museum   St.   Louis   em   2011),   tornando-­‐o  

praticamente  impossível  de  ser  jogado  estritamente  de  acordo  com  as  regras.  

A  função  do  xadrez  é  sutil:  as  posições  da  peça  no  tabuleiro  alteram  a  posição  

de   certos   obstáculos   no   jardim   acessado   pelo   livro   “The   Garden   dreams.   I   am   its  

dream.”   Este   representa   simultaneamente   as   noções   de   jardim   e   labirinto:   Peng  

caminha  em  linha  reta  pelo  jardim  (o  jogador  assume  o  ponto  de  vista  de  alguém  que  o  

observa   de   uma   janela   acima);   ao   encontrar   algum   obstáculo,   ele   sempre   vira   à  

esquerda  –  tal  como  Yu  Tsun  comenta,  no  conto,  ser  o  modo  adequado  de  se  resolver  

um   labirinto.   O   labirinto   de   Intimate,   Infinite   é   particularmente   engenhoso:   exceto  

pelos  obstáculos  remanejados  através  do  xadrez,  o  jardim  é  praticamente  vazio;  cabe  

ao   jogador   criar  ou  destruir   (usando  o   cursor)  as  paredes  de  um   labirinto  verde  que  

conduza   Peng   até   uma   chave   e   uma   saída   no   lado   esquerdo   do   jardim.   Assim,   o  

jogador  assume  o  papel  de  criador  de  um  labirinto  que  assume  diversas  formas  –  como  

Page 18: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

590  

se  sua  posição  representasse  aquela  de  Ts’ui  Pên,  o  criador  do  jardim  e  do  labirinto  no  

conto.  

Resta  ao   jogador  voltar  à  primeira  seção,  mas  agora  ela  se  passa  na  realidade  

diferente   conjecturada   por   Peng   (“Perhaps   in   another   life,   I   would   complete   my  

mission”):  a  chave  encontrada  no  labirinto  pode  ser  usada  no  portão  à  esquerda  que  

estava   trancado,   o   que   leva   Peng   à   casa   de   Alber;   é   necessário,   inclusive,   percorrer  

uma   segunda   vez   o   jardim-­‐labirinto,   mas   agora   em   sentido   inverso   e   assumindo   o  

ponto  de  vista  de  Peng  (o  mecanismo  de  levantar/destruir  as  paredes  continua  sendo  

o  mesmo).  Dentro  da   casa,  Peng  deve  caminhar  até  Alber  e  atirar  nele  pelas   costas;  

durante   a   caminhada,   as   imagens   de   vários   cenários   diferentes   se   misturam,  

superpondo  realidades  distintas  que  terminam  sempre  na  morte  do  inglês.  

Há  ainda  alguns  detalhes  que  enriquecem  a  construção  visual  e   semântica  de  

Intimate,   Infinite:   há   vinhetas   entre   as   seções   em  que   vários   rostos   superpostos   de  

Alber  ou  Peng  são  mostrados  simultaneamente  em  cenários  diversos,  enquanto  frases  

(escolhidas   aleatoriamente)   adaptam   falas   das   personagens   do   conto   ou   se   referem  

tematicamente  a  estas;  a  tela  de  abertura  do  jogo  superpõe  lanternas  japonesas  sobre  

o  escritório  de  Alber,  sugerindo  a  mistura  entre  realidades  e  entre  Ocidente  e  Oriente;  

depois  da  morte  de  Alber,   tanto  a   tela   inicial  quanto  aquela  em  que  se  escolhem  os  

livros  ficam  cobertas  de  sangue  (um  livro  para  apagar  os  dados  salvos  e  reiniciar  o  jogo  

é   acrescentado).   Além   disso,   uma   das   frases   acrescenta   até   mesmo   um   subtexto  

homoerótico  que,  embora  pudesse  ser  inferido  no  conto,  se  torna  mais  claro  no  jogo:  

enquanto  Albert  de  “El  Jardín  de  Senderos  Que  Se  Bifurcan”  comenta,  sobre  os  futuros  

possíveis,  que  “En  uno  de  ellos  soy  su  enemigo”  (BORGES,  1956,  p.  110),  o  chinês  Peng  

de   Intimate,   Infinite   sugere  que  “In  one  of   those  futures,  he   is  my   loyal  companion”  

(YANG,   2014a).   O   design   sonoro,   por   outro   lado,   é   bastante   discreto,   normalmente  

Page 19: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

591  

enfatizando  os   sons  do  próprio   ambiente   (o   vento,   a   folhagem)  e   apenas  em  alguns  

momentos  recorre  à  música  para  sugerir  tensão  (como  na  cena  da  perseguição)  ou  um  

sutil  senso  de  horror  (durante  as  vinhetas  e  no  assassinato  de  Alber).  

A   obra   de  Robert   Yang   encontra,   dessa  maneira,   novos  modos   de   ampliar   as  

concepções  presentes  no  conto,  acrescentando  algo  à  narrativa:   longe  de  ser  apenas  

uma   transposição   do   texto   para   outra   mídia,   utiliza-­‐se   de   convenções   próprias   dos  

jogos   para   criar   novos   sentidos   e   contradizer   algumas   expectativas   dos   leitores   de  

Borges.  Obviamente,   sendo   um   jogo   experimental   breve,   possui   algumas   limitações:  

seu  enredo  é  excessivamente  enigmático  para  alguém  que  não  tenha   lido  o  conto;  a  

seção   inicial   e   sua   repetição   são   lineares   a   ponto   de   praticamente   prescindirem   de  

ações  do  jogador;  a  partida  de  xadrez,  ainda  que  ofereça  um  comentário  curioso  sobre  

os  jogos  em  geral,  se  relaciona  de  modo  muito  limitado  com  o  restante  do  jogo.  Ainda  

assim,  esta  é,  entre  as  poucas  adaptações  diretas  de  contos  de  Borges,  a  que  parece  

mais  completa  e  que  demonstra  maior  consciência  do  modo  como  mecanismos  lúdicos  

podem   adaptar   criativamente   conteúdos   literários   –   se   The   Intruder   podia   ser  

apreciado   principalmente   por   seu   pioneirismo,   Intimate,   Infinite   é   atrativo   em   si  

mesmo  como  jogo.  

Dentre   todos   os   contos   de   Borges,   aquele   que   recebeu   o   maior   número   de  

adaptações  foi  “La  Biblioteca  de  Babel”,  do  qual  encontramos  pelo  menos  quatro:  The  

Library  of  Blabber,  de  Ivan  Notaros  (2015),  The  Unity  of  Babel,  de  Agar  (2015),  Library  

of   Babel   3D,   de   Keiwan   (2016),   e   The   Exhibition   of   Babel,   de  Marcos   Donnantuoni  

(2016).   O   que   todas   possuem   em   comum   é   que   se   tratam   de   tentativas   de   criar  

espaços  virtuais  inspirados  na  biblioteca  descrita  pelo  conto  de  Borges:  nenhuma  delas  

possui   um  objetivo  que  não   seja   a   exploração  do  próprio   espaço   e   a   observação  de  

seus   objetos,   e   nenhuma   possui   enredo;   além   disso,   todas   investem   na   geração  

Page 20: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

592  

procedural  como  forma  de  criar  automaticamente  o  espaço  e  as  quase  infinitas  obras  

sugeridas  pela  biblioteca  ficcional.  São  video  games  apenas  no  sentido  mais  amplo  do  

termo,   pois   são  quase   ausentes  de  mecanismos  de   interação,   regras  ou  objetivos;   o  

ideal   seria   compreender   todas   essas   adaptações   como,   primeiramente,   galerias  

virtuais   inspiradas   em   Borges   –   o   que,   claro,   não   diminui   a   sua   importância,   e  

demonstra   a   possibilidade   de   utilizar   os   espaços   virtuais   como   meio   de   realizar   os  

mundos  fantásticos  imaginados  nos  contos.  

   

NOTAROS,  Ivan.  The  Library  of  Blabber.  2015.  Video   game   para   PC.   Disponível   em:  <nothke.itch.io/library-­‐of-­‐blabber>.   Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  

KEIWAN.   Library   of   Babel   3D.   2016.   Video  game   para   PC.   Disponível   em:  <keiwan.itch.io/library-­‐of-­‐babel-­‐3d>.   Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  

   

DONNANTUONI,   Marcos.   The   Exhibition   of  Babel.   2016.  Video   game  para   PC.  Disponível  

AGAR.  The  Unity   of  Babel.   2015.  Video  game  para   PC.   Disponível   em:   <agar.itch.io/the-­‐

Page 21: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

593  

em:   <marcosd.itch.io/the-­‐exhibition-­‐of-­‐babel>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  

unity-­‐of-­‐babel>.  Acesso  em:   16  de  Agosto  de  2017.  

 

Todos   esses   criadores   demonstram   as   ramificações   futuras   que   os   contos   de  

Borges   podem   ter:   os   jogos,   cujo   poder   simbólico   já   era   reconhecido   em   sua   obra,  

podem  se  tornar  um  dos  meios  de  renovar  e  popularizar  suas  concepções,  alcançando  

efeitos  estéticos   inesperados.  As   ideias  de  Borges   tomaram  forma  principalmente  na  

literatura,  mas  certamente  não  estão  restritas  a  ela  –  seja  nos  casos  das  adaptações  ou  

dos   jogos   apenas   inspirados   no   escritor   argentino,   o   que   se   vê   é   um   universo   de  

possibilidades   artísticas   novas,   muitas   imprevisíveis   no   período   em   que   os   contos  

foram  escritos.  As  bifurcações  de  tal  jardim  parecem  ser  infinitas.  

 

Referências    

AGAR.  The  Unity  of  Babel.  2015.  Video  game  para  PC.  Disponível  em:  <agar.itch.io/the-­‐unity-­‐of-­‐babel>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  ARROYAS,  Frédérique.  De/generative  Narratives:  Net  Art  and  Textual  Adaptation.    Esse  Arts  +  Opinions,  Montreal,  n.  63,  p.  26-­‐31,  2008.  BOOKCHIN,  Natalie.  The   Intruder.   1999.  Video  game  para  PC.  Registro  audiovisual  disponível  em:  <bookchin.net/projects/the-­‐intruder>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  BORGES,  Jorge  Luis.  El  Go.  In:  _____.  La  Cifra.  Madrid:  Alianza,  1981.  p.  93.  BORGES,  Jorge  Luis.  Ficciones.  Buenos  Aires:  Emecé  Editores,  1956.  BORGES,  Jorge  Luis.  El  informe  de  Brodie.  5.  ed.  Buenos  Aires:  Emecé;  Madrid:  Alianza,  1982.  BORGES,   Jorge   Luis.   Sobre   el   “Vathek”   de  William   Beckford.   In:   _____.   Inquisiciones   /   Otras  inquisiciones.  Buenos  Aires:  Debolsillo,  2012.  p.  311-­‐315.  BORGES,   Jorge   Luis.   There   Are   More   Things.   In:   _____.   El   Libro   de   Arena.   Buenos   Aires:  Debolsillo,  2011.  p.  57-­‐68.  DONNANTUONI,  Marcos.  The  Exhibition  of  Babel.   2016.  Video  game  para  PC.  Disponível  em:  <marcosd.itch.io/the-­‐exhibition-­‐of-­‐babel>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  FLANAGAN,   Mary.   Critical   Computer   Games.   In:   _____.   Critical   Play:   Radical   Game   Design.  Cambridge;  London:  The  MIT  Press,  2009.  p.  223-­‐250.  

Page 22: Borgesem!Jogo!nehte.com.br/simposio/anais/Anais-Hipertexto-2017...ISSN:!1984*1175–!ANAIS%ELETRÔNICOS! Universidade!Federal!de!Pernambuco! NEHTE!/!Programa!de!Pós!Graduação!em!Letras!!

   

ISSN:  1984-­‐1175  –  ANAIS  ELETRÔNICOS      

Universidade  Federal  de  Pernambuco  NEHTE  /  Programa  de  Pós  Graduação  em  Letras    

594  

FLANAGAN,  Mary.  “Next  Level”:  Women’s  Digital  Activism  Through  Gaming.   In:  LIESTOL  et  al  (Org.).   Digital   Media   Revisited:   Theoretical   and   Conceptual   Innovations   in   Digital   Domains.  Cambridge:  MIT  Press,  2003.  p.  359-­‐388.  KEIWAN.   Library   of   Babel   3D.   2016.   Video   game   para   PC.   Disponível   em:  <keiwan.itch.io/library-­‐of-­‐babel-­‐3d>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  NOTAROS,   Ivan.   The   Library   of   Blabber.   2015.   Video   game   para   PC.   Disponível   em:  <nothke.itch.io/library-­‐of-­‐blabber>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.  SASSON-­‐HENRY,   Perla.   North   Meets   South:   Jorge   Luis   Borge’s   “The   Interloper”   and   Natalie  Bookchin’s   Media   Experiment   The   Intruder.   In:   _____.   Borges   2.0:   From   Texts   to   Virtual  Worlds.  Berna:  Peter  Lang  Publishing,  2007.  p.  101-­‐112.  WEED,   Ethan.   A   Labyrinth   of   Symbols:   Exploring   “The  Garden  of   Forking   Paths”.  Variaciones  Borges,  n.  18,  p.  161-­‐189,  2004.  WILSON,   Robert   Rawdon.   Godgames   and   Labyrinths:   The   Logic   of   Entrapment.  Mosaic:   An  Interdisciplinary  Critical  Journal,  Winnipeg,  v.  XV,  n.  4,  p.  1-­‐22,  dez.  1982.  YANG,   Robert.   Intimate,   Infinite.   2014.   Video   game   para   PC.   Disponível   em:  <radiatoryang.itch.io/intimate-­‐infinite>.  Acesso  em:  16  de  Agosto  de  2017.