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Os Brgias Sarah Bradfrd Romance Crculo de leitores Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada unicamente leitura de pessoas portadoras de deficincia visual. Por fora da lei de direitos de autor, este ficheiro no pode ser distribudo para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente. Ttulo Original: The Borgias Traduo De: Franco de Sousa Capa de: Jos Antunes Ilustrao: Lucrcia Brgia, Pintura de Bartolomeo de Venezia, 1520 1981 by Sarah Bradford, John Prebble and Ken Taylor (Scripts) Ltd. Impresso e encadernado por Resopal no ms de Dezembro de 1989 Nmero de edio: 2543 Depsito legal nmero 27 580/89 A Itlia de 1492, quando tem iicio a histria dos Brgias, era o corao do mundo civlizado, sede do chefe da cristandade; dela tinham saido cidades-estados como Veneza, Florena e Milo, que maravilhavam a Europa pela cultura, progresso tecnolgico e artstico e pelo fausto. A Itlia era na poca um mosaico de pequenos estados ndependentes, cujos senhores, unidos entre si por uma rede de parentescos, viviam num ambiente de sumptuosidade com frequncia perturbado por exploses de violncia. Aquele mundo aristocrtico e culto ia ser subvertido pelas paixes e pelas ambies de uma vida famlia de pessoas fora do comum - os Brgias.

PERSONAGENS OS BRGIAS RODRIGO BRGIA, nascido em Jativa, Valena, em Abril de 1431. Eleito papa com o nome de Alexandre VI em 1492 e pai de CSAR, nascido em Setembro de 1475 Joo, depois duque de Gandia, nascido em 1476 LUCRCIA, nascida em Abril de 1480 GODOFREDO, nascido em 1481, em mais de uma circunstncia no reconhecido por Rodrigo como filho. Maridos, mulheres, amantes, filhos e criados VANNOZZA CATTANEI CANALE, me dos quatro filhos de Rodrigo. No tempo em

que a histria se passa era casada com o seu terceiro marido, Carlos Canale. Por 1492 tinha cerca de cinquenta anos. ADRIANA DE MILA ORSINI, prima direita e confidente de Rodrigo Brgia, casada com Ludovico Orsini, senhor de Bassanello e sogra da amante de Rodrigo. JLIA FARNESE ORSINI, mulher de Orsino Orsini e me da filha ilegtima de Rodrigo Brgia. Em 1492 tinha dezanove anos. JOHANN BURCHARD, mestre-de-cerimnias do Papa e autor de um dirio secreto sobre as vicissitudes dos Brgias. PEDRO CALDERN, conhecido por PEROTTO, carmelengo favorito de Rodrigo Brgia, assassinado por Csar em 1498. MIGUEL DA CORELLA, conhecido pOr MICHELOTTO, mercenrio aragons e brao direito de Csar, conhecido pelos contemporneos como seu sicrio. RAMIRO DE LORCA Ou LORQUA, primo do anterior, outro aclito de Csar, mais tarde governador de Romanha, executado em 1502. JOO SFORZA, senhor de Pesaro, primeiro marido de Lucrcia Brgia. Casamento anulado em 1498. AFONSO DE ARAGO, duque de Biselli, f Ilho bastardo de Afonso de Npoles, segundo marido de Lucrcia desde 1498, assassinado por ordem de Csar em 1500. AFONSO D, ESTE, fllh0 do duque Hrcules de Ferrara, terceiro marido de Lucrcia desde 1502. SANCHA DE ARAGO, princesa de Squillace, irm de Afonso de Arago, mulher de Godofredo Brgia. JOO BRGIA, fllh0 de Lucrcia e Rodrigo, nascido em 1498. RODRIGo BRGIA, filho de Lucrcia e Afonso de Biselli, nascido em 1499. CHARLOTTE D, ALBRET, mulher da nobreza francesa, casou em Frana com Csar Brgia em 1499. DOROTEIA CARACCIOLO, amante de Csar Brgia, f Ilha ilegtima de Roberto Malatesta, senhor de Rimini. vAsiA, jovem rapariga grega, ltima amante de Csar Brgia. OUTRAS FIGURAS DE RELEVO: CARDEAIS, CONDOTTIERI, FIDALGOS E FIDALGAS CARDEAL JULIO DELLA ROVERE, tOda a vIda mImIgo de RodrIgo Brgia e seu rival na luta pelo slio pontifcio. Em 1492, tinha 49 anos. A famlia dos Sforza, senhores de NIilo CARDEAL ASCNIO SFORZA, rico eclesistico, de quando em quando apoiante ou antagonista dos Brgia, o novo de LUDOVICO MARIA SFORZA, regente em Milo. CATARINA SFORZA, reinante em Imola e Forli, sobrinha bastarda de Ascnio e Ludovico. Os irmos Sforza eram tambm tios de Joo Sforza (ver anteriormente) e parentes por consanguinidade de Afonso de Arago (ver acima). A familia dos Orsini com os seus inimigos, os Colonna, a mais poderosa famlia da aristocracia romana PAULO, JOO e JLIO ORSINI, fllhOS de VirgnIO OrSill MOrtO provavelmente por ordem de Rodrigo em 1497). Eram os trs capites dos Brgias e depois inimigos de Csar Brgia. Tambm Paulo e Joo foram mortos pela mo dos

Brgias. CARDEAL JOO BAPTISTA ORSINI, que passou a ser o chefe da famlia depois da morte de Virgnio, morreu no Castelo de Santo ngelo, envenenado provavelmente por ordem dos Brgias, em Dezembro de 1502. Reis de Frana CARLOS vIII comandou a primeira invaso francesa de Itlia em 1494. Morreu em 1498. Lus xII, primo e sucessor de Carlos. Consolidou a presena francesa na Itlia com uma segunda invaso em 1499 e foi um importante instrumento da ascenso ao poder de Csar Brgia. YVES DALGRE, experiente capito ao servio de Carlos e de Lus. OS BORGIAS 3 1 O PAPA Roma, 26 de Julho de 1492. O sol brilhava por cima da multido de telhados da cidade medieval, que j no era a Roma gloriosa dos Csares e no era ainda a Roma opulenta dos papas. Ainda se erguiam as antigas muralhas, mas por dentro a cidade reduzira-se a um nticleo desbotado em volta do Tibre, rodeado naqueles tempos por campos onde bois e cabras pastavam entre as runas. Os monumentos da Roma imperial pareciam dispersos como ossos de animais pertencentes a outras eras, frequentemente acompanhados por casas miserveis de madeira e pedras a eles agarradas como ninhos de pardal. Mas Roma ressurgia. Recomeara a engrandecer-se desde que o pontfice e a sua corte ali tinham regressado uns cinquenta anos atrs, depois de mais de um sculo de ccativeiro babilnico em Avinho, em submisso aos reis de Frana. O ar vibrava com os martelos dos canteiros nos numerosos estaleiros onde se construam faustosos palcios em travertino, a luminescente pedra romana, para hospedar os grandes squitos dos cardeais, os cortesos do Papa, prncipes da Igreja. Roma era efectivamente uma cidade parasita que sugava sangue das veias da cristandade vivendo custa dos peregrinos e do clero menor que se espalhavam pela cidade em cada estao do ano; era um fluir constante de populao, servida por um exrcito de prostitutas e de taberneiros, fornecedores de luxos necessrios e de caras necessidades. A vida dos Romanos era rica em prazeres, mas muitas vezes violenta. Ruas escuras e vielas tortuosas eram traioeiras noite, quando os sicrios das famlias mais importantes executavam as suas vinganas lanando 13 depois as suas vtimas ao Tibre, como a gente do povo fazia com o lixo. At luz do dia os partidrios das duas grandes famlias dos Orsini e dos Colonna se batiam pelas ruas. O verdadeiro soberano da cidade era o Papa, bispo de Roma, chefe espiritual de todo o mundo cristo e nico detentor do poder temporal da Igreja, os

estados pontifcios da Itlia Central. Uma grande emoo se insinuava pela cidade naquela quente manh de Julho; todos os olhos estavam voltados para o Vaticano onde o papa Inocncio VIII, nascido Joo Baptista Cibo de Gnova, jazia moribundo, alimentado, murmurava-se, por leite de parturientes e talvez tambm por sangue de meninos cristos, que lhe era injectado nas veias por um mdico hebreu. Sem que os Romanos soubessem, Inocncio estava j morto. Jazia certo na penumbra da cmara de abbada, no palcio medieval. O cheiro pestilento da morte pesava na sala e fazia torcer o nariz a Rafael Riario, o cardeal camerlengo, misturando-se e rivalizando com o mau cheiro estival do lixo em putrefaco que das guas do rio subia e se intensificava pelas persianas das janelas. Riario terminou mecanicamente as formalidades do rito, batendo com o macete na testa do defunto e pro nunciando o seu nome, antes de declarar oficialmente morto o papa Inocncio VIII. O camerlengo no estava amargurado pela morte de Inocncio, um homem indulgente que lhe permitira defender e au mentar as imponentes fortunas amontoadas na sua qualidade de sobrinho do anterior Sisto IV. Como todos os Romanos tambm o seu pensamento ia para o iminente conclave dos cardeais para eleio do novo papa. Para ele, como para todo o mundo cristo, a eleio do novo papa era de vital importncia. Um papa podia fundar uma dinastia, elevar uma famlia de humildes origens, como acontecera com Riario; podia favorecer ma trimnios de parentes na aristocracia, doar aos seus favoritos ricos feudos, escolhendo-os entre os territrios pertencentes Igreja; nomear cardeais e familiares eclesisticos de modo a que o seu poder perdurasse mesmo depois da sua morte; conceder os seus ofcios remunerativos e benefcios abundantes em apoio da sua posio. Portanto, seria o novo papa forte e rapace, da tmpera do tio de Riario? Iria, semelhana de Sisto, enrique; cer a sua famlia a expensas da Igreja? Ou a escolha cairia num personagem de carcter mais asctico, como o velho cardeal portugus Costa ou o veneziano Zeno? 14 Riario era homem astuto e um hbil poltico; em sua opinio o tempo no era para santos e menos ainda para pontfices velhos. Atrs da eleio de um papa entrelaavam-se as densas teias de aranha da poltica internacional, as opostas reivindicaes dos poderosos reis de Frana e de Espanha, ambos interessados no reino de Npoles, onde morreria, no tardaria muito, o velho e feroz soberano Ferrante; as ambies de Ludovico Sforza, duque de Bari e regente de Milo, o qual olhava para o Estado do sobrinho, o fraco Joo Galeazzo Sforza, apenas formalmente duque de Milo. O futuro papa, rbitro espiritual daquelas contendas e senhores temporais de grande parte da pennsula italiana, tinha de ter a fora de resistir a intensas presses internacionais e ao mesmo tempo a habilidade de manobrar com destreza entre reivindicaes contrrias e complicadas intrigas. No, pensava Riario, o candidato vencedor no ia ser escolhido entre os homens mais religiosos, mas sim entre os polticos mais experientes, entre os mais requintados conhecedores dos jogos do poder. Eram assim seu primo julio Della Rovere, homem de grande habilidade e veementes paixes; Ascanio Sforza, membro de uma famlia poderosa e irmo do regente de Milo, cujo interesse pela poltica s era igualado pela sua paixo pela caa; ou o vice-chanceler da Igreja,

conforme a hierarquia eclesistica, o segundo aps o papa e o mais rico entre todos os cardeais: o espanhol Rodrigo Brgia. Tambm este era sobrinho de um pontfice, Calisto III, o qual, usufruindo do seu cargo, encaminhara as fortunas da prpria famlia mais de trinta anos atrs. Um outro papa Brgia. Riario teve um arrepio. O sino de Campidoglio tocava a finados. Os dobres do sino provocaram um sorriso nos lbios sensuais do homem ajoelhado no prie-Dieu' luz do sol matutino. Rodrigo Brgia era de corpulncia macia, com um grande nariz aquilino, faces pesadas, carnao olivcea, olhos escuros e uma vistosa tonsura na cabeleira grisalha. O cardeal Brgia era um homem formidvel quer na mente quer no corpo. Descendente de uma famlia obscura do latifndio de Valena, sara dos olivais da natal Jativa para um palcio romano e para os limiares do trono pontifcio graas a uma mente aguda, a um enraizado instinto de sobrevivncia e a uma boa dose inicial de fortuna. Em francs no original: genufexrio. (N. do E. ) 15 Apenas com dezoito anos tinha deixado a Espanha para acompanhar a Itlia o tio Alonso Brgia, um ptimo advogado que obtivera a prpura cardinalcia. Tinha vinte e quatro anos quando o tio, no meio da surpresa geral, fora eleito papa com o nome de Calisto III. No espao de um ano o tio tinha-o nomeado cardeal e dois anos depois vice-chanceler da Igreja; dois meses antes de morrer atribua a Rodrigo a ctedra episcopal de Valena, a mais munificente de Espanha, com um rendimento anual de mil e oitocentos ducados. A espantosa fortuna de Rodrigo parece mudar com a morte do tio, em Agosto de 1458, quando violentos sentimentos antiespanhis nasceram e se dirigiram contra a famlia do papa e seus apoiantes. Mas Rodrigo recorrera ao seu prestgio de vice- chanceler a fim de que o papa seguinte, Pio II, lhe fosse devedor pela prpria eleio. Mantiverase portanto o cargo em todo o reinado de Pio e tambm, em seguida, com Sisto IV e Inocncio VIII, aumentando gradualmente o seu poder, as suas riquezas e a sua influncia, tendo sempre como objectivo final o slio pontifcio. J oito anos antes entrara na lia, pela morte do papa Sisto, tendo por adversrio julio Della Rovere, sobrinho do defunto. Uma vez que se criara uma situao de equilbrio entre os dois, o astuto Julio conseguira que fosse eleito o cardeal Cibo, seu homem de confiana, o qual tomara o nome de Inocncio VIII. O sino anunciava naquele momento a morte deste ltimo e, para Ro drigo Brgia, com sessenta e um anos, anunciava a ltima oportunidade para ver realizada a sua aspirao e com toda a probabilidade o ltimo confronto com Julio Della Rovere, doze anos mais novo do que ele. Mas com sessenta e um anos, Rodrigo sentia-se ainda no apogeu da sua vida, animado por grande vitalidade para tudo: poltica, caa e amor. . . principalmente amor. Rodrigo era homem sensualssimo, sensvel ao fascnio feminino, considerado sedutor pelas mulheres. Ainda com dezoito anos e jovem clrigo tinha suscitado a inveja do seu tutor, o qual verificara como atraa a si as mulheres mais belas pior que um man. Jovem cardeal aos vinte e cinco anos, pela sua desenvoltura numa festa de casamento em Siena merecera uma censura pessoal do papa. Com mais de sessenta anos Rodrigo no mudara e conservava ainda intactas todas as qualidades que agradavam s mulheres: vivacidade

tumultuosa, humorismo oportuno, eloquncia melosa, aspecto real e, principalmente, impudente sensuali dade. 16 Rodrigo sabia que as mulheres eram a sua maior fraqueza: no lhes sabia resistir. Naquele momento, por exemplo, em atitude de orao e com a mente virada para o iminente conclave anunciado pelo sino, saboreava inconscientemente uma sensao de adormecido desejo. No pde resistir tentao de virar a cabea e olhar a rapariga na sua cama. Jlia Farnese Orsini. bela, com o sol a brincar-lhe na rica cabeleira dourada, o polido corpo de dezanove anos brilhante contra os pesados panejamentos de brocado. Rodrigo levantou-se da devota genuflexo, escolheu um pssego da fruteira de prata que o seu camerlengo predilecto deixara numa mesinha e aproximou-se da cama. Ficou em contemplao. Qualquer homem da sua idade tinha de se sentir orgulhoso de tal companheira de leito, reflectiu, acariciando-a. Jlia levantou o olhar por entre as pestanas densas com uma chama de vido desejo nos olhos azuis. Rodrigo tinha j ajudado a famlia dela com a sua influncia, arrancando-a misria do campo romano. Se fosse eleito papa, era provvel que nomeasse o irmo dela, Alexandre, cardeal, e a fortuna da sua famlia concretizar-se-ia. Agarrou a mo de Rodrigo para a pousar sobre o ventre liso. - V-se? - perguntou com petulncia. Rodrigo no respondeu. Em vez disso ofereceu-lhe o que restava do pssego e beijou-a enquanto ela mastigava, lambendo-lhe o sumo do fruto do queixo, afagando-a. Jlia estendeu os lbios. - No o quero. - E se fosse meu e no daquele cego do teu marido? - No. Rodrigo observou-a afectuosamente, quase paternalmente. Era certo que o filho era seu e no de Orsino Orsini, jovem e fraco marido de Jlia, filho de Adriana de Mila, sua prima em primeiro grau e amiga ntima. Tinha a convico da sua virilidade, tendo j concebido sete filhos bastardos, quatro dos quais da mesma mulher. Estava ligado queles quatro por um afecto profundssimo, talvez excessivo. O pensamento dos filhos voltou a traz-lo ao presente. Do seu xito dependia a possibilidade de fundar uma dinastia Brgia na Itlia. - Levanta-te, minha filha - disse-lhe -, hoje h muita coisa para fazer. Jlia escorregou para fora da cama e apertou-se contra ele. - Vais ento ser papa? - perguntou. 17 Rodrigo encerrou-a entre os braos revestindo-a com as amplas mangas vermelhas da sotaina cardinalcia. - Depende do que sentirei, direi e farei nos prximos diasrespondeu ele. - Agora tens de me perdoar por te deixar. Deixou-a ir. - Anda, Jlia. Tenho de trabalhar. Jlia fez uma pirueta. - Ainda sou desejvel? - perguntou, casquilha.

No tendo obtido resposta, Jlia com ar amuado, infantil, desapareceu no quarto contguo. Rodrigo j no pensava nela. Com a mo na campainha chamava o seu camerlengo privado. Chegou com passada gil Pedro Caldern, conhecido por Perotto. Era um jovem de belo aspecto, moreno e frisado, espanhol como todos os servidores de mais confiana de Rodrigo. Vestia como clrigo. Se bem que tivesse decorrido trinta anos desde que deixara a Valena natal no squito do tio Alonso, Rodrigo Brgia ainda se sentia espanhol no corao, gostava de se rodear de espanhis e falava espanhol com os filhos Csar, Joo, Lucrcia e Godofredo. Perotto lanou instintivamente um olhar cama desfeita nela esperando ver ainda Jlia. Rodrigo viu a sua mirada e perguntou bruscamente: - Novidades? O outro baixou os olhos, respeitoso. - Vossa Eminncia tem ptimos motivos para confiar num sucesso, desta vez. . . Rodrigo interrompeu-o, impaciente: - Assim pensei no passado erradamente. No tenho de te lembrar o ditado: Quem entra papa no conclave, dele sai ainda cardeal. Quantos so os cardeais que vo ao conclave? - Quatro, Eminncia. - Logo, terei de obter catorze votos. Que se sabe do cardeal Della Rovere? Diz-se que os Franceses lhe tinham oferecido duzentos mil ducados para comprarem o santo slio. Carlos de Frana no anda a brincar. uma bela quantia para apostar no seu campeo para que vena a corrida. Alis, certamente no ma podia oferecer a mim, espanhol convicto. - Vossa Eminncia acha que tem razo de negociar com Julio Della Rovere? - intil, Perotto. Julio detesta-me. Acho que ests lembrado das injrias que trocmos cabeceira do papa Inocncio? 18 J nos enfrentmos no passado. Este ser o ltimo combate. Rodrigo contemplou a grande esmeralda episcopal que trazia no dedo. - Mesmo que fique com os seus duzentos mil ducados. Ter necessidade de duas vezes isso para satisfazer um homem como Ascnio Sforza e depois existem outros no menos vidos do que ele. Acho que terei mais para oferecer. Sou vicechanceler, tenho este palcio que o mais belo, depois do de Riario, tenho o bispado de Porto, a minha abadia de Subiaco. Sim, acho que posso fazer frente a julio. E depois estas moedas francesas poderiam ser-lhe mais pesadas que uma cadeia. Existem cardeais aos quais no agradar este entendimento com os Franceses. Como te chegou a informao? - Eminncia, conheo uma rapariga que frequenta muitos leitos, entre os quais o do camerlengo do cardeal Della Rovere. - Deixemos ento que a notcia se espalhe. Se acontecesse partir de mim, diriam que a tinha inventado para desacreditar Julio. Negarei. Com horror manifestarei a minha incredulidade. Deixemos que a notcia germine em desmentidos enquanto eu no for obrigado, no momento mais favorvel, a tomar uma atitude. D rdea solta tua rapariga, Perotto, com a minha bno. e com todos os encorajamentos do acaso. S parco, Perotto, no mais de um fmulo por cada

cardeal. . . Resta o cardeal Sforza, que a chave de tudo. O cardeal Ascnio Sforza, um homem moreno e magro, de ar astuto, sentava-se na frente de Julio Della Rovere numa mesa, na fortaleza de Rovere em Ostia, na foz do Tibre. Entre eles viam-se uma garrafa em cristal de feitio estranho e dois clices de prata. Ascnio bebeu um gole de vinho e fez uma careta. Julio Della Rovere era conhecedor de arte, no de cozinha e de vinhos. De resto, Ascnio no fora a Ostia para se abandonar aos prazeres da mesa, mas sim para procurar vantagens de mais longa durao. No tendo probabilidades de eleio ao pontificado, tencionava dar a quem mais oferecesse, o pacote de votos que controlava no conclave. Por cima do rebordo do seu clice, fitou Julio, impassvel e autoritrio, homem para no subestimar e menos ainda para no contrariar. Julio tinha a mente e o fsico de um gigante, a face de um imperador romano e as ambies excelsas de uma guia. Era 19 um poltico subtil, sobrevivente queda da famlia Riario que se dera com a morte do tio Sisto, que o nomeara cardeal. Homem de cleras violentas e incontroladas, era principalmente capaz de rancores inigualveis. O homem que mais detestava era Rodrigo Brgia. Levantou-se bruscamente e ps-se a caminhar pela sala com grandes passadas. - J tivemos um papa Brgia na pessoa de seu tio Calistodisse em tom veemente. - Outro trituraria a Igreja. - Subestimas a sua elasticidade - argumentou Ascnio, calmo e esperanado. - E tu subestimas a avidez daqueles catales - contestou Julio. - Dinheiro, mulheres e ambies familiares. Rodrigo Brgia no pensa noutra coisa. Goza os seus privilgios de vice-chanceler para vender o perdo aos assassinos, dizendo no ser vontade de Deus que eles morram, mas que vivam para pagar as suas culpas. - Vendo a sombra de um sorriso no rosto mais jovem do seu interlocutor, interrompeu-se para voltar ao problema do momento: - E o mais rico prncipe da Igreja teria de vir a ser papa s porque o voto de um cardeal se pode comprar com dois machos carregados de prata? - Tambm as tuas receitas no lhes so indiferentes, Julio - replicou Ascnio pacatamente. No havia necessidade de dizer mais nada. O argumento fora encarado e os dois homens compreendiam-se perfeitamente. Mas, como bom representante dos Sforza, Ascnio estava interessado no poder mais do que no dinheiro e havia qualquer coisa que cobiava mais do que uma pingue bolsa de ducados franceses. Se Julio viesse a ser eleito poderia ter disposio o mais alto cargo eclesistico a atribuir a um homem de confiana. Em silncio, os dois homens observaram-se com ateno, como que a avaliarem-se reciprocamente. Foi Ascnio quem se levantou da mesa. Dirigiu-se at janela para contemplar a cintilao do mar no calor do Vero. - Diz-se que o teu primo Domingos obteria a vice-chancelaria se fosses eleito observou quase distraidamente, depois voltou-se a tempo de ver contrair-se um msculo no rosto de Julio. - Um homem capaz. Della Rovere respondeu de lbios apertados: - Sem dvida. Mas delicado de sade, quando o cargo pesado.

20 Resta ver se o conseguir. - No te garantir mais de um voto, enquanto que o cargo ser um ptimo incentivo para algum com maior squito. Houve um longo silncio. Julio no respondia. Logo, assim, concluiu Ascnio para consigo. No obstante a insistncia com que defendia ter no corao apenas a Igreja, Julio tencionava aderir tradio nepotista iniciada por seu tio, o papa Sisto, e pelo papa Brgia, Calisto II. O poder tinha de permanecer na famlia. Pois muito bem: aceitaria a nomeao a candidato e manter-se-ia neutral no conclave. De qualquer modo seria imprudente expor-se com demasiada antecipao e, fosse como fosse, o cargo a que aspirava era ainda desempenhado pelo Brgia. Para constranger Julio, exprimiu em voz alta uma ltima considerao. - Na verdade o cardeal Brgia quem, de momento, ocupa o lugar - observou em tom brando encaminhando-se para a porta. - Ser tambm um forte candidato. E agora, meu caro Julio, creio que tenho de ir. Os meus assuntos chamam-me com grande urgncia a Roma. - Ascnio - disse Julio pousando uma mo quase suplicante no ombro do Sforza -, no te fies em Rodrigo Brgia. Lembra-te que tambm ele tem uma famlia, uma estirpe de bastardos. J tive notcias do comportamento arrogante do seu primognito, aquele Csar Brgia que com dezassete anos foi nomeado bispo de Pamplona. Em Pisa, onde frequenta a Universidade, tem uma casa cujo fausto rivaliza com a do jovem Mdici, o filho de Loureno. E corre que se rodeia de sicrios espanhis. Toma cuidado, no v o novilho revelar-se pior que o touro que o gerou. Csar Brgia, bispo de Pamplona, andava entusiasmado caa com o falco quando ouviu o som que esperava: os sinos que anunciavam a morte do papa. No aspecto em nada se parecia com o pai Rodrigo, tendo herdado da me romana, Vannozza Cattanei, os belos traos do rosto, a carnao fresca e os cabelos castanhos de reflexos acobreados. Era alto e mus culoso, um atleta em grande forma, amante da equitao e da esgrima. Deleitava-se tambm em fazer alarde da sua fora batendo-se com os camponeses nas aldeias e enfrentando-os em provas de corrida. Como muitos nobres do seu tempo, era apaixonado pela caa e orgulhoso das suas matilhas de ces e da sua cavalaria: e tanto assim era que o seu corcel era o favorito 21 no palio' de Siena, mesmo tendo de bater-se com a famosa estrebaria dos Gonzaga, os marqueses de Mntua. Juntamente com estes privilgios, Csar herdara do pai a mente aguda. Era reconhecido como o melhor estudante do curso daquele ano em Pisa, mas de eclesistico nele havia na verdade pouco. Gostava de se vestir de veludo e de sedas preciosas, segundo a moda, e usar a espada cintura. A nica concesso feita ao seu cargo episcopal era a minscula tonsura na nuca, mais uma formalidade do que um sinal de devoo. O seu carcter friamente voluntarioso e feroz no lhe vinha do pai: no era homem para perdoar um insulto ou uma ofensa e alimentava profundo rancor contra o desprezo que sentia entre os aristocratas

italianos seus companheiros de universidade. Os Mdicis, os Orsini, os Este, todos eles eram aparentados entre si e olhavam-no de alto a baixo vendo nele em primeiro lugar um bastardo catalo qualquer. Os seus belos lbios encurvaram-se num sorriso vingativo, ao som dos sinos. Soava a hora da sua desforra. Todos teriam de vergar a cabea vaidosa para lhe irem prestar homenagem. . . se seu pai viesse a ser eleito papa. Com um gesto que era um desafio lanado a toda a Itlia, largou o falco e ficou a v-lo subir em espiral no seu voo cruel. Joo Paulo Baglioni que cavalgava a seu lado, fitava-o com interesse. Ouvira os sinos e tambm compreendia perfeitamente o alcance da mensagem. Se bem que Paulo pertencesse casa reinante de Persia, famlia conhecida pela ferocidade e pela combatividade, Csar dominara-o desde que se tinham conhecido, ainda rapazes, em Sapienza. Joo Paulo tinha algum medo dele. Embora soubesse que era o melhor dos companhei ros, simptico, divertido e alegre, tivera maneira de descobrir certas zonas escuras do seu carcter que preferia esquecer. Havia porm alguma coisa em Csar que levava os homens a segui-lo e, se seu pai viesse a ser papa, quem poderia dizer onde o destino guiaria Csar Brgia e com ele Joo Paulo Baglioni? Alcanavam naquele momento trs homens a cavalo que atravessavam a trote um olival. Quando ficaram mais prximos, o olhar de Csar toldou-se. - Os irmos Orsini - disse desdenhoso. Joo Orsini deteve o seu corcel negro junto de Csar. ' Corrida de cavaleiros em trajes medievais que tem lugar em Siena duas vezes por ano. (N. do T. ) 22 - Ah, o jovem vitelo - exclamou com sarcasmo. Seu irmo Paulo, mais diplomtico, disse calmo: - Bom dia, Monsenhor Csar. Um pouco distante, o criado que os acompanhava, um possante espanhol de nome Miguel da Corella, conhecido por Michelotto, observava atentamente a cena. Joo Orsini continuou a provocar Csar descaradamente: - O vitelo Brgia com a sua tonsura discreta entre os corninhos. - As maneiras do teu irmo no melhoraram, Paulo - comentou Csar com um sorriso frio. Joo fez um cumprimento de escrnio. - As minhas humildes desculpas, Vossa Graa. Querer o nosso erudito bispo de Pamplona perdoar-me e dispensar-me a sua bno? Paulo Orsini e Joo Paulo Baglioni trocaram olhares preocupados, mas Csar no se mostrava perturbado. Levantada a mo esquerda, fez o sinal da Cruz ao contrrio. - Que Lcifer v contigo, filho. Em nome do bode, do sapo e da serpente - disse. Furioso, Joo levou a mo ao punho da espada. Atrs dele Michelotto lanou o cavalo em frente em sinal de calma ameaa com os olhos postos em Csar. Paulo Orsini estendeu a mo aberta para deter o irmo e voltou-se em tom de splica para Csar: - No nos provoque, monsenhor. - Nada tenho contra ti, Paulo Orsini - disse Csar. - Tu eras meu amigo em Montegiordano, quando crianas.

- E s-lo-ei ainda. - Enquanto o pai dele vai para a cama com a mulher do nosso primo - interveio Joo maliciosamente. Na rplica do Brgia houve um gesto ameaador: - Certamente teu primo s ter a ganhar com a experincia de sua mulher. No silncio que se seguiu novamente se ouviram os sinos de Siena como que a sublinhar as suas palavras. - Apostars contra o meu cavalo no palio, Paulo? - perguntou amistosamente. - Cem ducados - respondeu Paulo sorrindo aliviado. - E contra meu pai papa? Lentamente Paulo Orsini abanou a cabea. Em Roma j tinham sido feitos os preparativos para o conclave 23 sob a superintendncia do mestre-de-cerimnias do Vaticano Johann Burchard, meticuloso e miudinho eclesistico alemo. Os carpinteiros construam as celas de madeira para os cardeais na sala real, enquanto Burchard controlava a lista das coisas consideradas necessrias para tornar suportvel a vida de suas eminncias na noite que teria de decorrer at eleio do novo papa. Era o segundo conclave que Burchard organizava e era uma tarefa para a qual era naturalmente dotado. Ningum melhor do que ele conhecia a vida do Vaticano. Atento a todo o mexerico e ao corrente de toda a intriga da corte pontifcia, anotava quanto sabia num dirio secreto que tinha h j bastante tempo e cujas crnicas cobriam dois pontificados. Naquele momento, naturalmente, como qualquer outro, tambm ele reflectia sobre quem poderia vir a ser o novo senhor e dono do Vaticano, ainda que, como alemo prudente que era, no se deixasse ir em apostas, diferindo da nutrida multido dos inveterados jogadores romanos. Burchard limitava-se a encostar o ouvido terra. Conhecia todas as opinies que circulavam: que primeira consulta iriam ser nomeados os cardeais portugus e veneziano, mas que segunda volta a escolha ficaria entre Della Rovere, apoiado pela Frana, e Sforza, apoiado por Milo e Veneza. Tal como outros observadores argutos, tambm ele considerava Rodrigo Brgia um dos favoritos, justamente por no estar ligado a ningum. Os cardeais italianos neutrais gostariam pouco de uma dvida de reconhecimento no que tocava Frana, nem veriam com bons olhos a ascenso vertiginosa da famlia Sforza. E no se devia esquecer que o cardeal Brgia era o mais rico de todos e tinha portanto muito para oferecer. A 6 de Agosto o conclave reuniu-se na Capela Sistina, uma sala de nobres propores construda uns vinte anos antes pelo tio de Della Rovere, Sisto, e sem ter ainda os frescos de Miguel ngelo. Contra as paredes brancas flamejavam as vestes escarlates das filas de cardeais sentados debaixo de baldaquinos verdes e roxos. Em cima de uma mesinha situada no centro da capela estava o clice de ouro que continha os votos do conclave reunido. O cardeal dicono lia os resultados. - segunda votao, no segundo dia, os resultados so agora os seguintes. - com uma inclinao de cabea e voltado para Della Rovere -. ao cardeal presbtero de So Pedro nove votos. - E, finalmente, inclinando-se para Rodrigo Brgia:

- Ao cardeal bispo de Porto e Santa Rufina, vice-chanceler da Santa Igreja, cinco votos. Uma vez que no foi 24 alcanada a maioria de dois teros, os papis sero queimados e as votaes recomearo amanh. Enquanto os folhetos que tinham passado a ser intiteis eram devidamente queimados, os cardeais retiraram-se em silncio, num ruge-ruge de sedas, na antiga sala real, onde tinham tido lugar as verdadeiras e subtis negociaes do conclave. Catorze votos. Aquele nmero mgico era como um braso marcado na mente de Rodrigo Brgia, ajoelhado na sua cela, aparentemente em orao. A rede de espionagem de criados manobrada por Perotto recolhera as informaes que desejava: um velho cardeal tinha pesadas dvidas que ele poderia remediar facilmente; ao cardeal dicono de Santa Maria Nova, representante dos Orsini, tinham sido oferecidas por Della Rovere as fortalezas de Soria e Monticelli, mas na verdade interessavam os lautos lucros da catedral de Cartagena de que Rodrigo dispunha; o cardeal Colonna pusera os olhos na prestigiosa abadia de Subiaco, tambm ela de Rodrigo; o cardeal Sanseverino, homem dos Sforza, andava presumivelmente mais assustado do que comprado. Depois, naturalmente, sempre havia Ascnio. Enquanto Rodrigo comprava votos, Csar, em Siena, preocupava-se em garantir a vitria no palio segundo o seu estilo privado de escrpulos. No suportava perder nem sequer uma corrida de cavalos e menos ainda o palio, a competio mais importante para qualquer cavaleiro de Itlia, habitualmente vencido pela famosa coudelaria dos Gonzaga de Mntua. Csar mandava vigiar o seu cavalo para que animal ou arreios no fossem lesados por homens de outros proprietrios desabusados quanto a ele; entretanto procedera de maneira a que muitos dos outros cavalos favoritos no estivessem em condies de aguentar o percurso. Mas a coudelaria de Mntua era inexpugnvel e ele tinha de temer principalmente o cavalo dos Gonzaga. No estbulo, na noite na vspera da corrida, Csar dava as ltimas instrues ao seu jquei Lus: - Se nos ltimos metros da corrida aquele mantuano te der muito que fazer... - No o deixarei aproximar-se - disse Lus. Csar teve um gesto de impacincia. - No me entendeste, estpido. Se te fizer frente, cais-lhe nas costas como que por acidente, atira abaixo jquei e cavalo. Sem ti ou contigo na garupa o meu cavalo tem de vencer. Quando acabava de falar entrou na estrebaria um mensageiro 25 coberto de poeira. Ao ver o touro dos Brgias bordado no peito do homem, Csar compreendeu que a mensagem vinha de seu pai. Com um sobressalto no corao agarrou o mensageiro por um brao: - Meu pai manda-me chamar? O outro abanou a cabea. Csar deixou que a mo voltasse a cair procurando esconder a sua desiluso.

- Nenhuma mensagem? - Monsenhor, tem de continuar aqui ou no ir mais alm de Espoleto no caminho para Roma. Csar falou de dentes cerrados: - O meu irmo Joo est em Roma? O mensageiro anuiu com relutncia. Rosnando uma imprecao em espanhol, Csar empurrou-o para o lado e saiu do estbulo de olhos cegos pela inveja e pela clera. A ira diminura a sua normal presena de esprito: un homem atento com inimigos poderosos no anda de noite sozinho. Csar ouviu de repente nas suas costas os passos leves de um assassino. Mas antes que tivesse tempo de voltar-se, tinhalhe o outro apertado o pescoo com um brao aproximando-lhe um punhal da garganta. Mas Csar era jovem e forte enquanto que o seu agressor parecia pouco convicto e no tardou em ser subjugado. Com o prprio punhal j na garganta do seu agressor, Csar reconheceu Michelotto, o robusto criado dos Orsini. - Em nome de Deus, senhor, no me mate! - exclamou o servo em espanhol. Ligeiramente desorientado, Csar afrouxou o aperto. Michelotto deitou-o por terra num abrir e fechar de olhos, imobilizando-o com o seu peso e apontando-lhe novamente o punhal garganta. - Tendes ainda muito que aprender, senhor bispo - disse caoando. - Nunca hesitar com a faca desembainhada. - E tu agora por que hesitaste? - perguntou Csar perplexo. - Vi-te l fora a cavalo com Joo Orsini. Foi ele.. - Tem os cordes da bolsa muito apertados o meu patro. Sois generoso? - Sempre mais do que ele neste caso - respondeu Csar voltando a levantar-se. Tinha pensado que aquele homem tivesse sido enviado para o matar por ordem dos Orsini. - Pr-me-ei ao vosso servio, monsenhor. Como podeis ver, conheo o meu ofcio. Csar anuiu. No tinha por onde escolher. E depois, talvez aquele homem viesse a ser-lhe til. 26 - Agora ajuda-me a levantar - ordenou-lhe. - Um bispo talvez tenha necessidade de um brao forte. e de um ferro desembaraado. Michelotto ajudou-o respeitosamente a pr-se de p. Fingindo-se fraco, Csar encostou-se debilmente parede antes de pular para as costas do servo, encostando-lhe a ponta do punhal por baixo do queixo. - Portanto, queres ficar ao meu servio? - apostrofou-o. - E quem s tu e por que queres servir-me? Michelotto assustou-se realmente ao compreender a crueldade e a determinao do homem que naquele momento empunhava a faca. - Miguel da Corella, senor, de Arago. Chamo-me Michelotto. Sou espanhol e no tenho simpatia por estes italianos. Tambm sou ambicioso e dizem que vosso pai ser papa. Csar deixou-o ir, reembainhando o punhal. - Isso possvel, senor Michelotto. Mas ao meu servio ters de respeitar o teu princpio de nunca hesitar quando a faca desembainhada.

Em Roma, a terceira jornada de votaes nada decidira: nenhum dos trs candidatos alcanara a maioria necessria. Rodrigo Brgia, obtido o apoio de Sanseverino e de um outro cardeal estava em segundo lugar com sete votos, superado por Della Rovere com oito, enquanto o Sforza ascendera ao terceiro com seis votos. Sete mais seis era treze. Rodrigo considerava que chegara o momento de oferecer a Ascnio Sforza aquilo que desejava. Naquela noite encontraram-se os dois na cela de Rodrigo. Ascnio negociou com muita deciso. Rodrigo ofereceu-lhe o castelo de Nepi e o seu esplndido palcio nos Banchi Vecchi, as rendas de Agria e trs cargas de prata. Ascnio manteve-se firme: queria a vice- chancelaria. Rodrigo bem sabia o que isto significaria se viesse a ser papa: uma demonstrao pblica do seu apoio ao irmo de Ascnio, o intriguista e ambicioso Ludovico de Milo. Rodrigo encolheu mentalmente os ombros. Se aceitasse as pretenses de Ascnio encontrar-se-ia praticamente eleito, apenas a um voto do xito definitivo. - Muito bem. - A vice-chancelaria - disse em voz baixa. - tudo? No era e Rodrigo sabia-o. Ascnio falou claramente. - Meu irmo Ludovico deseja que o novo papa lhe reconhea o ttulo de duque de Milo. 27 - Vosso sobrinho, o duque Joo Galeazzo, est talvez gravemente doente? perguntou Rodrigo com ar cndido. - Tememos que possa estar. - Ento no vejo dificuldade. Vosso irmo j regen te - respondeu Rodrigo em tom conclusivo. De modo algum emocionado, o Sforza continuou a ilustrar os seus pedidos. - Meu irmo o duque seria feliz se visse a nossa aliana concretizar-se num leito matrimonial. A vossa sobrinha Lucr cia e o nosso sobrinho Joo Sforza, senhor de Pesaro. Rodrigo enrugou a testa. - Mas j foi prometida. - A um espanhol insignificante. Que seja desfeito o noivado. No era caso para hesitar. Com Ascnio vice-chanceler o mundo inteiro saberia que se comprometera com os Sforza. - Seja - concluiu. Enquanto a porta da sua cela se fechava nas costas de Ascnio Sforza, Rodrigo reprimiu uma exclamao de triunfo. Sabia ter vencido. A meta a que ambicionava h mais de trinta longos anos fora alcanada. Tornar-se- ia o homem mais poderoso do Mundo. Caiu de joelhos e agradeceu a Deus con sinceridade. Na manh de 11 de Agosto de 1492, sob um cu pltimbeo, iluminado por espordicos relmpagos e com um constante ribombar de trovoada, a multido em expectativa em frente de So Pedro viu abrir-se uma janela. Uma cruz foi levantada e no repentino silncio uma voz gritou: - Habemus pontificem ! Rodrigo Brgia fora eleito com o nome de Alexandre VI. Enquanto os Orsini e seus amigos torciam a boca e as famlias aristocrticas de Itlia se entregavam a comentrios depreciativos sobre os Brgias, o povo de Roma rejubilava. O novo pap era popular, jovial e generoso. A coroao foi certamente uma das mais

exaltantes que se recordavam e o acolhimento reservado a Rodrigo pelos seus novos sbditos foi entusiasta. sua passagem num cavalo branco pelo trajecto de So Pedro baslica lateranense, por ruas adornadas com arcos triunfais e o touro rampante dos Brgias, a multido gritava: - Alexandre! Alexandre, o Grande! Suado, por baixo da pesada tiara papal, no abafado calor de 28 Agosto, com as lgrimas de alegria que se misturavam com as gotas de transpirao, Rodrigo ia com o olhar voltado para aqueles que mais amava, recolhidos com discrio numa varanda na Praa de So Pedro. frente estava a prima Adriana de Mila, sogra de Jlia Farnese e gurda da sua amada filha Lucrcia: era uma mulher de meia-idade, que no perdera muito do seu fascnio espanhol. Ao lado dela estava Jlia com os esplndidos cabelos louros recolhidos numa rede luzente de fios dourados e pedras preciosas. Ali prxima via Lucrcia, com doze anos, a filha adorada, aquela que mais que qualquer outra era parecida com ele, se bem que fosse loura quando ele era moreno. Atrs da mulher, o seu segundo filho Joo mostrava bastante distino nos seus trajes vistosos, com um grande diamante no chapu; ao lado dele estava o filho mais novo, Godofredo, ainda criana e incapaz de conter o entusiasmo. Em segundo plano via-se Orsino Orsini, o marido cornudo de Jlia a observar, com ar carrancudo, a cena com o seu nico olho. Ressaltava a ausncia de Csar. Uma sombra atravessou o rosto de Rodrigo ao pensamento do filho mais velho. Sabia que Csar no entenderia a sua recusa em deix-lo vir a Roma, sabia ter suscitado a sua amargura e ressentimento. O rapaz era bispo e como tal deveria estar presente na cerimnia. Embaraante. En contrar-se-ia incomodado em situao to pouco prestigiante e sempre se ficava em dbito com o Diabo quando o orgulho de Csar era ferido. Rodrigo suspirou para consigo: porque era a vida sempre to difcil quando Csar se metia pelo meio? Csar estava realmente furibundo. Nem mesmo a vitria do seu cavalo no palio (contestada porm pelo marqus de Mntua que afirmava que o seu jquei fizera batota) podia compensar a vergonha de ser o nico representante da famlia que fora excludo do triunfo de Rodrigo. E por ordem explcita do pai, ainda por cima. Como que a acentuar o insulto, fora impedido em Espoleto por Perotto, que nunca lhe agradara, com ordem de no ir mais longe. Ignorando as promessas reparadoras do arcebispado de Valena com os seus dezasseis mil ducados anuais de rendimento e de um palcio para si em Trastevere, Csar deixara-se invadir por um acesso de fria na frente do pobre Perotto que o olhava aterrorizado. - Mas eu no devo ir a Roma! - gritara. - Para o Diabo com as aparncias ! J l esto todos, excepto eu ! Naquele momento sentia dio pelo pai, pela sua autoridade, pela maneira como favorecia Joo, o irmo mais novo. Csar 29 rangeu os dentes de clera e frustrao, mas no podia fazer mais que obedecer. Esperaria. A sua altura havia de chegar.

- Onde est o teu adorado Csar? Havia uma nota de despeito na voz de Jlia Farnese, a qual dirigira a pergunta a Lucrcia Brgia. As duas raparigas estavam sentadas numa longa galeria enfeitada com tapearias, nos aposentos de Adriana de Mila, o Palcio de Santa Maria in Portico. Ex-residncia cardinalcia, tornara-se o serralho das mulheres amadas por Rodrigo Brgia e, como um harm, estava localizado convenientemente perto do Vaticano. Lucrcia arrepiou-se passagem de uma fria rajada de vento de Maro que fez ondular as tapearias. Tinham decorrido oito meses desde a eleio do pai e ainda Csar no obtivera licena para ir a Roma. Mordiscou o lbio para esconder o enfado pela pergunta de Jlia. - Em Espoleto - respondeu secamente. Quase com treze anos, Lucrcia era j uma mulher e se bem que no aparentasse a amadurecida beleza dourada da amante de seu pai, possua toda a graa animal e a sensualidade tpica da sua famlia. Era loura, de olhos azuis e um indcio das feies do pai no nariz e no queixo fugidio; no seu aspecto sentiam-se uma fora e uma intensidade de carcter que certamente no transpareciam da fisionomia clssica de Jlia. O seu pescoo, diferindo do de Rodrigo, era longo e gracioso, e os cabelos eram de um louro claro enquanto os dele eram pretos; mas na expresso tinha a rpida mobilidade que era prpria de seu pai e era fundamentalmente viva e alegre como ele. Sentia antipatia por Jlia de cujas relaes com o amado pai estava perfeitamente ao corrente e sabia tambm que Jlia era ciumenta e invejosa do afecto apaixonado que Rodrigo lhe reservava. Com manifesta insolncia abriu muito os grandes olhos azuis e contemplou a jovem Farnese percorrendo-lhe o corpo com o olhar, com uma atitude crtica nas comparaes do seu aspecto ainda sobrecarregado pelo recente nascimento de uma filha de Rodrigo. - Csar escreveu-me no outro dia - prosseguiu Lucrcia fingindo inocncia. Defimiu-te esposa de Cristo. No achas divertido? Diz que muita gente te chama outras coisas e que ele tem escrpulos em escrever- mas antes de eu ser casada. - Cuidado, Lucrcia - aconselhou Jlia e havia maldade na sua voz. 30 Mas a outra insistiu, divertindo-se. Agradava-lhe provocar a jovem que era lenta e, no obstante ter mais sete anos, era vtima do rpido sarcasmo da rapariguinha. Como que mudando de assunto, prosseguiu com candura: - Csar diz que quando se tornam gordas as mulheres perdem a inteligncia, alm da beleza. nunca serei gorda. - Assim o teu adorado irmo Csar continuar a amar-te. Nas suas palavras vibrou um visvel rancor. Lucrcia levantou-se e foi janela no desejando expor-se ulteriormente s insinuaes da jovem mulher. Jlia Farnese, de corpo apetitoso e de mentalidade mercenria, nunca entenderia o amor que a unia ao irmo, aqueles sentimentos intensos que deles faziam um s ser na presena do mundo. Fechou os olhos. Voltou a ver em pensamento a face jovem e sombria do irmo como a recordava desde os tempos da meninice no palcio dos Orsini em Montegiordano; recordava o leve sussurro com que lhe falara ao ouvido tendo-a apertada a si no vasto leito na noite antes da sua partida para a Universidade de Pertisia. - Ns os dois, Lucrcia, contra o mundo. Juntos podemos fazer qualquer coisa.

Temos de ser leais. . . sempre, para sempre. S a mim deves ser leal. Arrepiou-se novamente, mas no pelo vento frio. Adorava Csar, amava-o mais que quem quer que seja, no entanto, certas vezes a veemncia dos sentimentos que manifestava por ele assustavam-na; sentia ento a necessidade de lhes fugir. Contudo, desejava tanto v-lo, que para si pedia, se ele no estivesse j em Roma, visto que lhe escrevera, que chegasse depressa com ou sem o consentimento do pai. Csar estava j em Roma em casa da me Vannozza, na Praa Pizzo di Merlo. Vannozza, cujas belas feies romanas ainda conservavam traos da beleza que retivera por doze anos preso o volvel Rodrigo Brgia, acolhera-o calorosamente: um forte afecto os unia. Csar era o seu filho preferido entre os quatro postos no mundo em consequncia da sua relao com Rodrigo. Talvez fosse pela forte parecena fsica, talvez fosse porque ambos sofriam pela aridez do afecto de Rodrigo. O favorito do pai, entre os filhos machos, sempre fora o segundo a nascer, Joo, belo, ornado de caracis, vaidoso, fascinante e indolente. E Lucrcia. Vannozza pensava com melancolia naquela rapariga que era to Brgia ao ponto de mostrar nada ter herdado da me. Lucrcia era objecto de apaixonada devoo tanto por 31 parte do pai como por parte do irmo mais velho e simultaneamente fonte de rivalidade entre os dois. Vannozza no podia deixar de ficar perturbada pela intensidade, que no era natural, daqueles sentimentos por Lucrcia; as paixes de Rodrigo eram incontrolveis, bem o sabia ela. Tinha-a amado uma vez com paixo semelhante, ainda que na poca do encontro deles ela tivesse j ultrapassado os trinta anos e certamente j no fosse uma menina. Mas com o tempo as suas exigncias fsicas tinham-no desviado para mulheres mais jovens e no ano em que nascera o filho Godofredo, em 1481, dera-a como mulher a um marido adequado e preocupara-se depois em voltar a cas-la com um outro da mesma inteligncia, Carlos Canale, aps a morte do primeiro. Pobre, insignificante Carlos, pensou vendo avanar o marido no acto de esfregar nervosamente as mos e de saudar com uma careta Csar que, como sempre, o ignorava. Csar beijou a mo a Vannozza e depois abraou-a. A me afastou-o docemente de si para o contemplar com admirao. Como era belo, pensava, e to homem. No como Joo, to amado por Rodrigo. Suspirou, sentindo em si o olhar ciumento de joo. - Por que ests em Roma? - interveio Joo. - No te deram permisso para voltar. Csar ignorou-o. - Para quando foram marcadas as bodas de Lucrcia e do Sforza? - perguntou me. - Para o Vero - respondeu enquanto uma sombra lhe obscurecia o rosto. No era realmente aquele o casamento que teria escolhido para a sua nica filha ainda to nova. Mas naquilo, como em qualquer outra questo que dissesse respeito aos filhos, no tinha voz. Era preciso obedecer vontade de Rodrigo. Aquele matrimnio mal combinado era o preo do papado. Godofredo, o filho mais novo, um feio bastardo moreno que se divertia em espicaar a rivalidade entre os irmos mais velhos, no pde conter-se mais.

- Csar - disse -, sabes que Joo ser capito-general da Igreja? Em silncio, todos esperaram a exploso. Mas Csar s reagiu intensificando o aperto de mo me, a qual torceu a boca com a dor. Joo apercebeu-se disso e sorriu com maldade. Sabia quo pouco agradava a Csar ser padre tendo o irmo por soldado. Assim fora decidido pelos seus pais quando ainda 32 eram crianas e o seu meio-irmo mais velho Pedro Lus combatia ao servio do rei de Arago, segundo a tradio. Morto Pedro Lus, Csar, segundo filho, fora destinado Igreja, como era de uso, ainda que, mais do que qualquer outra coisa no mundo, tivesse desejado servir nas armas. Joo, pelo que lhe tocava, no tinha ndole de combatente: interessava- se predominantemente pelos prazeres mundanos e pela moda, mas a guerra pelo menos afagava-lhe a vaidade. Via-se, agradado, numa cintilante armadura com elmo emplumado, confeccionado para ele, por medida, pelo mais hbil ferreiro de Milo, a cavalo, no comando de uma procisso esplendidamente bem vestida, com o grande vexilo da Igreja a ondular por cima de todos. De guerra sabia bem pouco e imaginava para si o papel de capito-general no diferente das suas funes daquele momento, as quais se reduziam a desfilar em parada no seu bem lanado ginete adornado de guizos de prata, frente do pai, tendo ao lado o ntimo amigo, o prncipe turco. - Joo ser general quando mandarem os soldados colher flores - comentou Csar entre dentes. Godofredo riu-se e Joo teve um sobressalto e fez meno de se adiantar, ameaador. Vannozza pousou uma mo ansiosa no brao de Csar, mas falou em tom firme e autoritrio: - teu irmo e esta casa minha. No admito que saiam daqui em clera. Csar encolheu os ombros; a expresso velada dos olhos escondia as suas emoes. - Meu pai um estpido ao dar-lhe crdito. - Teu pai ama-te tanto quanto o ama a ele. - tanto assim que procurou ter-me longe de Roma - respondeu ele sarcstico. - Tem pacincia, Csar, vers que ainda h-de chegar a tua vez, disso tenho eu a certeza. - Deteve-o e observou-o com olhos intensos. - Que queres dele. . . e da vida? Amor? Riquezas? Csar falou em voz baixa, para que s ela pudesse ouvir: - No, minha me. Poder. - Beijou-lhe a mo. - E agora vou procurar o nosso santo pai. Rodrigo recebeu Csar com evidente indiferena no trono papal na Sala do Pappagallo, como para pr em relevo a disparidade de estado. Estava irritado com Csar porque fora a 33 Roma contra sua vontade e antes que tivesse tido tempo para completar os seus projectos para Lucrcia e Joo, que queria ver realizados antes de qualquer outra deciso respeitante ao seu incmodo e imprevisvel primognito. Estava certo de que Csar teria tentado forar-lhe a mo. Com voz distante, portanto, Rodrigo perguntou-lhe:

- Tua me est bem? - Est - respondeu Csar. - Onde ests alojado? - No Palcio do Burgo. - Csar levantou uma sobrancelha interrogativa. - Sou bem aceite? - Vieste a Roma sem autorizao - respondeu Rodrigo com severidade. - Vestes sedas e veludos e usas espada. Contrataste um assassino, disse-me Perotto. Nada disto condiz com um arcebispo. Nem sequer com dezassete anos. Csar inclinou a cabea para mostrar a pequena tonsura, que deu a observar ao pai com um leve gesto de mo. Voltou a levantar a cabea e sorriu. - Qualquer homem que tenha a coragem de me olhar de cima a baixo v bem que sou um servidor de Deus. Rodrigo sorriu apesar de tudo. Levantou-se e desceu do trono, tomou Csar pelos ombros e abraou-o. - Csar. Csar - disse - algum homem tem um filho como tu? Algum outro filho tem de chamar tio ao seu pai? Rodrigo deixou-o ir com um ligeiro embarao na expresso vagamente amargurada. - Ah, tua me disse. no comprarei o teu amor! Quero a prpura - declarou Csar. Tinha vinte e cinco anos, quando me tornei. Vs a haveis concedido a Alexandre Farnese. Estou em segundo lugar em relao ao irmo da vossa amante? Tendes medo de mim? Rodrigo esquivou-se. - No tens os titulos para o sacro colgio. s um ilegtimo. - Sou aquele que minha me fez. E posso vir a ser aquilo que quiserdes. Vs sois o papa. Rodrigo voltou-se com uma expresso cansada. Falou em seguida com a voz de um velho sob o jugo dos cuidados do mundo. A sua capacidade histrinica sempre o tinha ajudado em toda a sua carreira e a ela recorreu tambm naquela ocorrncia 34 para conter uma questo delicada e ganhar ao mesmo tempo a simpatia do filho. - Sim, somos papa - disse em voz pesada -, e transportamos nos nossos ombros o mundo como um asno paciente. Temos o futuro da Santa Igreja nestas mos trmulas. O destino da Itlia surge-nos obscuro e por isto derramamos lgrimas. Quando o rei Ferrante de Npoles morrer, e isso acontecer em breve, certamente a Frana e a Espanha iro brigar no ventre de Itlia, a no ser que consigamos impedi-lo. Roga por ns, meu filho. - - Bravo! - Csar era irnico. - E o duque de Gandia ser nomeado vosso capito-general para enfrentar melhor este futuro? Rodrigo rodeou o argumento. De repente os seus modos tornaram-se vivos. - Teu irmo Joo ir para Espanha depois de Lucrcia se casar. Ir como enviado papal e casar com quem quer que lhe ofeream em Arago. Uma esposa de casa real, talvez, ou uma mulher da linhagem do rei Fernando. Isto no que toca Espanha. O casamento de Lucrcia com um Sforza proteger-nos- dos Franceses, visto sermos ptimos aliados de Ludovico de Milo. Como vs confio em ti e ponho-te a par dos meus planos. - Confiana? Onde? Sou mantido longe de Roma enquanto Joo frequenta a vossa corte de mo dada com um turco primitivo.

- O prncipe Djem um refm. O sulto paga-nos quarenta mil ducados por ano para o manter aqui. Csar contrariou com orgulho: - Eu sei como lidar com os Turcos. Exonerai-me do meu cargo e oferecerei a minha espada aos Cavaleiros de Rodes. Rodrigo perdeu a compostura desmascarando o filho. - Se isso que desejas. Bem sabes que no! Rodrigo abanou a cabea num gesto de irnico desespero. Encaminhando-se para a escrivaninha para pegar num papel desenhou-se-lhe nos lbios um vago sorriso de triunfo. - Isto - disse agitando a folha em direco a Csar - te manteve afastado de Roma. Os cardeais examinaram a tua posio de legitimidade e concluram que s filho de Dona Vannozza e do seu primeiro marido. Assinaremos o mais cedo possvel uma bula nesse sentido. 35 - Que mandarei afixar porta de um bordel! - contrariou o outro com grosseria. Rodrigo continuou como se o filho no tivesse falado: - Com uma segunda bula, privada, e que no se tornar pblica, vos reconheceremos nosso filho. Ser para ns motivo de grande alegria. - Terei a prpura? - Sers cardeal de Valena, meu filho. Ests contente? Na sua voz sentia-se o desejo de um sinal de gratido e de afecto. Mas Csar limitou-se a fazer uma saudao. - Antecipando-me vossa paterna bondade, Santo Padre - disse -, trouxe- vos um presente. Csar foi at porta para deixar entrar um jovem pajem vestido de veludo verde, o qual se ajoelhou diante do pontifice. Entretanto, Csar, com um sorriso malicioso, arrancou o chapu do pajem. Uma cascata de cabelos castanhos, sem dvida femininos, soltou-se pelos ombros. Era uma deliciosa rapariga, esbelta e escura de pele, no tendo mais que dezasseis anos. - Prove-a, meu pai - convidou Csar divertido. Trs meses depois, em Junho de 1493, Lucrcia casou aos treze anos com Joo Sforza, senhor de Pesaro, em cumprimento dos acordos entre Rodrigo e os Sforza. As bodas foram celebradas no Vaticano e seguidas por um banquete no palcio pontifcio, ao qual s foram convidadas as mais belas mulheres da nobreza romana juntamente com as mulheres dos delegados do Vaticano cuja presena no podia ser evitada. Foi a primeira daquelas recepes da famlia Brgia que iria provocar tanto escndalo em toda a pennsula italiana, para no dizer em todo o mundo cristo, principalmente por causa do comportamento turbulento, se no mesmo licencioso, do pontfice. Rodrigo divertia-se imenso. Passava por entre as evolues dos danarinos ao longo das mesas arrumadas na Sala dos Mistrios brincando com os enviados pontificais e os cortesos, namoriscando com as suas mulheres e lanando sobre os convidados confeitos prateados. Uma mulher audaz atirou-lhe para os ombros uma chuva de amndoas e foi recompensada pela mo papal que lestamente lhe meteu no seio uma mancheia de confeitos. A noite estava quente e os convidados tinham comido muito e bebido outro tanto. As faces violceas estavam lustrosas de suor. Em contraste, a esposa de treze

anos, estava branca e fria no menos que a neve compacta que arrefecia o vinho em grandes 36 baldes de prata. Vestida de brocado branco e prateado, com uma fita de prata e prolas a enfeitar-lhe a cabeleira loura, quase parecia inanimada; nela, a nica palpitao era o piscar dos rubis que lhe ornavam o pescoo, oferta de npcias dos Sforza. A seu lado, o esposo Joo estava amuado e nervoso. O mau humor vinha-lhe da frieza com que a esposa reagia s suas aproximaes e o mal-estar era suscitado pelas aluses grosseiras que de quando em quando lhe lanavam convidados mais vulgares e embriagados. Lucrcia no lhe dava ateno alguma ignorando at o contacto afectuoso e enrgico da sua mo. Pensava em Csar, certa de que a sua tristeza por aquelas bodas no seria inferior sua. As suas narinas foram agredidas pelo aroma inebriante da bergamota. Apercebeu-se, mais do que viu, da face de Jlia, da cor de um pssego demasiado maduro e ouviu a sua voz sibilar-lhe ao ouvido: - Onde est o teu irmo Csar? Lucrcia continuou com os olhos fitos em frente como se nada tivesse ouvido. Jlia continuou a manifestar o seu desprezo: - J no te ama, agora que passaste a ser esposa para os outros? No tendo recebido resposta, disse em voz alta para que todos ouvissem: - Vi-o na missa nupcial. verde de nusea ao pensamento do teu tlamo. Estalou seca a bofetada. Adriana de Mila acorreu. - Cautela, marafona! - murmurou furiosa nora. Muitas horas depois, enquanto danava com Joo, Lucrcia pouco faltou para desmaiar de fadiga. Rodrigo, ansioso, logo correu para ela e susteve-a nos braos. Vozes empastadas pelo vinho invocavam a retirada dos esposos, o vrtice pblico de toda a celebrao nupcial, mximo divertimento dos convidados. Mas Rodrigo abanou a cabea voltando o olhar para o ensombrado Joo. - Esqueceste o contrato, meu filho? - perguntou. - O contrato? - Sim, ficou decidido, uma vez que Lucrcia ainda demasiado jovem para os seus deveres matrimoniais, que no se daria a sua consumao sem que tivesse decorrido um ano. Basta. - Chamou as damas de Lucrcia. - Levem-na para o leito. Inclinou a cabea para beijar ternamente a filha nos lbios e a 37 sua boca demorou sobre a dela talvez mais do que o necessrio. Adriana de Mila inspirou ruidosamente em sinal de desaprovao; Jlia lanou uma mirada venenosa. Joo Sforza desviou o olhar, tambm demasiado consciente dos sorrisos de escrnio que o rodeavam e foi procurar o conforto de Ascnio. Ascnio Sforza, vindo em representao da familia, acompanhava a cena com escassa paixo. Tinha participado sem entusiasmo nas celebraes e no por desacordo moral com os acontecimentos, mas sim porque, do ponto de vista da casa Sforza, aquela aliana estava j falhada. Falava-se dos projectos de Rodrigo por outros matrimnios que colocariam a famlia Sforza e o papado em campos adversos. Dizia-se que devia estar iminente a chegada a Roma de um delegado do rei Fernando de Espanha com a oferta de um casamento vantajoso com uma

representante da casa real de Arago para o segundo filho do papa, Joo Brgia, o qual j era, por outro lado, duque de Gandia e logo grande de Espanha. Ainda mais inquietante era a informao segundo a qual o terceiro filho do papa, o jovem Godofredo, viria a ficar noivo de uma sobrinha ilegtima do rei Ferrante de Npoles, parente do rei Fernando e inimigo acrrimo de Ludovico de Milo. Sem necessidade de profetas, Ascnio bem compreendia a quem seria mais leal o papa na eventualidade de um confronto entre a Frana e a Espanha pelo reino de Npoles na Itlia. Se algum nasce espanhol espanhol para sempre, pensou com profunda mgoa. Podia tambm acontecer, reflectia, que abraando assim incondicionalmente a causa espanhola e aragonesa em Npoles, Rodrigo Brgia tivesse de pagar um preo demasiado alto pelos matrimnios dos seus filhos bastardos. Era tempo de fazer causa comum com o irrequieto Julio Della Rovere, velho adversrio de Rodrigo. Havia, no belo rosto de Ludovico Sforza, aquela expresso astuta que se encontrava tambm nos traos menos atraentes do irmo mais novo, Ascnio. De vez em quando, porm, aquele intrigante, resolvia ser sincero. Julio Della Rovere era um homem demasiado astuto para se deixar enganar facilmente. Encostou-se ao espaldar com um sorriso sarcstico. - Vamos, Julio, saibamos ambos o que cada um de ns deseja. Eu quero o ducado de Milo. Tu o papado. Della Rovere no respondeu. Ludovico interpretou o silncio como concordncia e continuou: - Para ambos isto significa apoiar a Frana em Npoles. 38 - Ferrante ainda no morreu, Ludovico, e tu perturbaste a paz da Itlia. Relembrando quele prfido macaco que Carlos de Frana os seus direitos dinsticos sobre aquele reino. Sim, ficar-me- grato e meu sobrinho, o duque, dbil. - A sua sade delicada quanto a do av Ferrante? Ludovico anuiu com um sorriso rapace. - Quando Ferrante morrer haver guerra na Itlia. Nomeou seu sucessor o filho Afonso. - Mas Carlos de Frana tem mais ttulos a seu favor. E f-los- valer. lana em riste. Assim, se Ferrante fizer precipitar a situao morrendo antes do Natal, teremos os lanceiros franceses pela Primavera nos nossos olivais. E a Frana esmagar Npoles como uma casca de noz. Todas as estradas que vo para Npoles passam por Roma - disse Julio com ar sabedor. - O mesmo dizer por Rodrigo Brgia. De facto. E Afonso de Npoles parente do rei Fernando de Espanha. Brgia espanhol no corao, seja qual for a bandeira que lhe agrade desfraldar. No se comprometeu. Ludovico levantou raivosamente os ombros. - Naturalmente. Mas, permitime, estes casamentos que tem em mente para os seus bastardos demonstram com clareza de que lado sopra o vento. E o vento que sopra de Frana poderia ser suficientemente forte para arrancar Rodrigo Brgia do seu trono. Posso garantir a Vossa Eminncia que ser irresistvel afirmou Ludovico em tom cortante. - Carlos declra j querer atravessar os Alpes com o maior exrcito que alguma vez se viu na Itlia desde os tempos de Anbal. Eu e tu estaremos do lado certo,

prometo. - E o Brgia? - Ter de pagar por ter apostado no cavalo errado. Recordars ao rei de Frana que este papa Brgia fede de corrupo. O slio pontifcio fica limpo. a favor de um candidato mais digno. Com a morte de Ferrante abrirs a campanha e ganhars duzentos mil ducados. Ferrante no morreu antes do Natal, como esperara Ludovico Sforza, mas pouco depois, a 27 de Janeiro de 1494. A situao desenvolveu-se rapidamente no sentido previsto pelo regente 39 de Milo. Rodrigo Brgia saiu por fim a descoberto enviando o seu nncio apostlico para coroar Afonso rei de Npoles em troca do casamento de Godofredo com a filha ilegtima de Afonso, Sancha, princesa de Squillace; Joo, duque de Gandia, j casado com Maria Henriques, parente do rei Fernando, recebeu um principado e dois condados napolitanos e Csar ricas comisses. Julio Della Rovere decidiu-se ento a declarar-se aliado dos Franceses, abrndo a campanha contra Rodrigo com uma alocuo veemente que teve no consistrio, no qual denunciava o pontfice por nepotismo e corrupo. - Assim foi degradada a autoridade da Igreja! - trovejou. - Tnhamos visto o filho do papa, Csar Brgia, nomeado cardeal contra a vontade de todos os homens probos deste sacro colgio. Tnhamos assistido a um desonesto mercado de matrimnios para os outros filhos do papa. At o ltimo dos pastores de Campidoglio sabe que o preo pago pelo papa por estes casamentos em Espanha e em Npoles a bno apostlica a uma ilcita sucesso no trono napolitano. Tudo isto pela grandeza da sua estirpe de bastardos. - Que Deus te queime a lngua, Della Rovere! - trovejou Csar. Rodrigo, impassivelmente sentado no trono pontifcio, fez-lhe sinal para se calar. - Prossiga, cardeal Della Rovere, mas seja prudente censurou-o. Mas Della Rovere abandonara intencionalmente toda a prudncia. Interviera resolvido a dizer tudo. - Fora-nos prometida a honestidade - rugiu -e s tivemos mentiras. Fora- nos prometido o fim da corrupo e estamos asfixiados no seu fedor. Fora-nos prometida a paz e teremos de sofrer agora uma guerra. - Della Rovere! - interrompeu-o Rodrigo. Della Rovere apelou para a assembleia dos cardeais. - No devo falar? Levantou-se um murmrio de consenso. Com aquele encorajamento prosseguiu, dizendo: - Sabeis que as cidades do Norte esto j revoltadas. Em todas as regies os padres denunciam a mesquinhez de Roma e invocam uma espada vingadora. E chegar! Esta manh recebi notcia de que o rei de Frana se prepara para invadir a Itlia com o mais forte exrcito que alguma vez se viu. A sala foi sacudida por exclamaes de espanto e ansiedade. 40 - Sim! - gritou Della Rovere. - E marchar contra Npoles para destronar o usurpador Afonso. Ver-se- contrariado pela Santa Igreja. - Com gesto teatral

voltou-se para Ascnio Sforza: - Falai, Ascnio! Ascnio levantou-se da cadeira com visvel relutncia e um certo nervosismo. A voz mal se ouvia no sussurro excitado dos cardeais: - Meu irmo Ludovico - comeou. Os cardeais emudeceram. - Meu irmo Ludovico, regente de Milo, pediu-me que informasse o consistrio, de que, como fiel servidor do Senhor e da sua conscincia, se sente obrigado a dar aos Franceses toda a assistncia que. que. - Que sirva para libertar o trono de Pedro ! - trovejou Della Rovere. Csar levantou-se e fez-se ouvir no clamor: - Acuso! Acuso Julio Della Rovere e Ascnio Sforza de conspirao, cisma, heresia e traio! - Deus nos cus afastou os olhos desta Igreja corruptaberrou Della Rovere. - Silncio. . . silncio! - gritou Rodrigo. As pancadas do basto de Burchard no pavimento obtiveram por fim uma aparncia de calma. Rodrigo levantou-se da cadeira fora de si pela clera. - Nenhum de vs foi devidamente pago? - gritou aos cardeais. - Haveis tido bolsas mais cheias dos Franceses? assim? Lamentai-vos, gritais como virgens desfloradas! E eu terei de me deixar amedrontar? Eu sou o papa. Eu !. Eu ! Posso nomear cem novos cardeais e substituir- vos a todos. Ponde-me prova! Pondeme prova e tereis modo de ver de que massa feito um papa Brgia! Cego de fria saiu da sala com grandes passadas, seguido por Csar de rosto sombrio. 2 O REI As folhas das videiras estavam douradas enquanto Carlos VIII de Frana atravessava o frtil campo toscano em direco a Florena pelo final do Outono de 1494. Atrs dele o seu exrcito de trinta mil homens levantava uma nuvem de poeira que embranquecia os campos, seguido nos caminhos pelos sulcos fundos das oitenta peas de artilharia pesada que tanto efeito tinham tido nos Italianos. O sol reflectia-se nos piques longos com mais de trs metros dos mercenrios suos e alemes, iluminava uma floresta de compridos arcos, entregue sua guarda pessoal de archeiros escoceses, e fazia cintilar o metal das armaduras de cavalariapesada, a nobreza de Frana, que cavalgava com o soberano. A cabea da cavalaria, por baixo do grande estandarte de seda no qual estavam bordadas as flores-de-lis de Frana orgulhosamente projectadas contra o azul cu italiano, cavalgava o rei em pessoa. Carlos tinha apenas vinte e trs anos: um homenzinho disforme e insignificante no seu esplndido corcel de batalha. Uma faixa de ouro emoldurava-lhe os cabelos pardacentos por cima de uma cara to feia que os Italianos o consideravam mais parecido com um monstro do que com um ser humano. Tinha a testa baixa e convexa, com um nariz enorme e vistosamente adunco, os olhos plidos, um pouco salientes, e o queixo agudo e fugidio como um lcio. A esplndida armadura construda em Milo escondia-lhe os ombros curvos e as pernas demasiado

magras. E, no entanto, apesar da sua fealdade e da serfica beleza de sua mulher, a rainha Ana da Bretanha, Carlos era um libertino incurvel. Brilhavam-lhe os olhos s agradveis recordaes 42 das belas damas que lhe tinham sido dadas em Milo. Delas recordava a pele perfumada e os vestidos ornados de gemas, num ambiente que lhe parecia quase extico comparado com o sbrio e reservado da corte de Frana. Que diacho, pensava, at as prostitutas milanesas viviam num bem-estar igual ao de uma condessa francesa; para no falar do regente de Milo, o luxo da sua corte superava toda a imaginao e experincia do rei de Frana. O seu olhar pousou na figura direita de Ludovico Sforza que cavalgava a seu lado, com um manto de seda vermelha na qual estava bordado a ouro a amoreira, emblema da famlia. Por baixo do manto, a armadura de Ludovico era, de longe, mais trabalhada do que a do soberano. Montado num soberbo animal que lhe fora dado pela cunhada Isabel d'Este Gonzaga, Ludovico alimentava consideraes bem menos lisonjeiras em relao a Carlos e nobreza francesa em geral. O rei no era apenas feio, era tambm pouco culto e pouco inteligente. Dizia-se mesmo que mal sabia ler. Aquele pobre tolo s tinha no crebro uma ideia fixa, pensava Ludovico com desprezo, ou seja, Npoles. . . alm das mulheres, como bvio. Uma atitude que justamente lhe era oportuna. Ludovico tinha uma alta opinio da sua inteligncia e era apaixonado por intrigas, principalmente pelo prazer de demonstrar saber vencer qualquer inimigo. e at os amigos. Ludovico sorriu para consigo. De facto no era difcil influenciar o rei para que agisse segundo os seus desejos, partindo de Milo em direco a Npoles. E naturalmente seria forado a atravessar os estados pontifcios, feudos do nico homem na Itlia cuja inteligncia seria comparvel de Ludovico. Era porm certo que Rodrigo Brgia optara j pela parte errada. O reino do papa Brgia com toda a probabilidade estava destinado a ter vida breve. Ludovico encolheu os ombros. Pouco lhe importava lanar na runa uma famlia em ascenso, dado ele prprio se encontrar a um passo da realizao dos seus projectos dinsticos. Seu sobrinho Joo Galeazzo no duraria muito tempo, provavelmente no duraria mais que Rodrigo Brgia. O curso dos seus pensamentos foi interrompido pela voz estridente de Carlos. - Que est a dizer o frade? - perguntou indicando um monge mendicante parado diante de uma pequena capela de campo com os olhos e as mos levantadas para o cu. O religioso entoava uma litania histrica. - Tece os vossos louvores, senhor - respondeu docemente 43 Ludovico falando ao rei no seu francs nasal. Carlos no conhecia a lngua italiana e o seu latim era fraqussimo. - um partidrio do monge Savonarola, que invoca o vosso nome do seu plpito florentino, definindo-vos como o novo Ciro, o salvador de Itlia. O eco do vosso nome bastou para fazer com que os Mdicis fugissem de Florena, onde a multido saqueou os seus palcios aos gritos de Viva a Frana. - Na verdade o Senhor est connosco - respondeu Carlos com um sorriso. Tambm dizem que est contra o seu malvado servo, o papa Alexandre VI que se ope a ns. . .

Rodrigo estava ajoelhado no seu prie-Dieu no quarto pontifical, com os ombros abatidos pela desolao e o desespero. Lgrimas de desgosto corriam-lhe das mos com que tapava os olhos como que para no ver os exrcitos em marcha. Ouviu um som de passos rpidos e o clangor das alabardas dos guardas que saudavam a chegada de algum de alta estirpe. Entrou Csar em traje de caa, espada ilharga. Rodrigo levantou-se e foi ao seu encontro com os braos estendidos numa muda implorao de conforto. Csar, pelo contrrio, tirou alguns pergaminhos enrolados de uma das suas longas luvas e atirou-os para os ps do pai como se na verdade quisesse atirar-lhos cara. - Carlos pede permisso de trnsito gratuito atravs dos estados pontifcios e ameaa depor-vos se recusardes. Os Mdicis entregaram os seus castelos sem combater e fugiram com o rabo entre as pernas como ces vis que so. Carlos est em Florena e ningum lhe barra o caminho. Que fareis? Rodrigo sentou-se pesadamente janela e contemplou os prados fora da muralha do Vaticano, imaginando-os j fervilhantes de soldados franceses. Ergueu os ombros. - Que posso fazer? A no ser rezar. Csar teve um gesto impaciente. - E para que serviria? No tendes a fora necessria para lhe resistir. - No, creio que poderia conquistar Roma sem derramar uma gota de sangue. Csar aproximou-se da mesa que estava em frente de Rodrigo. Pegou numa pena e em papel e entregou-os ao pai, de p na frente dele. - Digo-vos o que deveis fazer. - O seu tom era animado, persuasivo e vagamente ameaador: - Escrevei a Afonso de Npoles e dizei-lhe para me confiar o comando do seu exrcito. 44 - Quase meteu a pena na mo de Rodrigo. - Vamos, escrevei. Mas Rodrigo continuava a olhar pela janela, quase sem se aperceber da mo estendida do filho. Houve um longo silncio. - H j comandantes - disse por fim. - Que tm a minha aprovao. A mo em que Csar tinha a pena tremeu visivelmente. - Quem so? - perguntou Csar. - Virgnio Orsini. Os seus filhos Paulo e Joo. Seguiu-se uma prolongada pausa, como se o filho tivesse dificuldade em acreditar naquilo que ouvira. Depois, entre dentes, o jovem disse: - No posso crer que tenhais sido to estpido. Os Orsini so ces traidores como todos os Italianos. Revoltar-se-o contra vs na primeira altura, como todos os outros. No haveis aprendido mesmo nada com a reviravolta dos Sforza? Estpido ! Velho caduco !. Ouviu-se um ruge-ruge de seda. Jlia apareceu entrada, iluminada por um sorriso sedutor. Csar, ao voltar-se, atirou a pena cara do pai, depois saiu furiosamente empurrando-a. Ela enrugou a boca numa atitude de aborrecimento pelos modos descorteses de Csar, mas no ousou censur-lo por tanta m educao. Em vez disso, aproximou-se do papa sentado, convidando-o a afag-la. Rodrigo puxou-a vivamente a si, cin gindo-a nas amplas mangas. Pousou a testa nos ombros dela e comeou a chorar, enquanto com a mo a afagava mecanicamente.

- Meu paizinho - disse Jlia docemente -, ests a chorar por minha causa? Rogote, deixa-me ficar contigo. - No, minha filha. - Rodrigo levantou a cabea. - Choro pela Itlia. - Prosseguiu em tom dramtico como se do sacro slio se dirigisse ao mundo inteiro: - Ainda que seja espanhol amo a Itlia e no desejo v-la noutras mos que no sejam italianas. Jlia, tudo menos comovida, continuou a suplicar-lhe: - Rogo-te, Rodrigo. Depois, vendo que ele no respondia, olhando pela janela para o setentrio, de onde deviam aparecer os Franceses, caiu em clera. - tudo culpa de Csar! exclamou. - Odeia-me por causa de sua me. Conspiram os dois para nos dividirem. No querem que outros alm deles tenham influncia em ti. So da mesma raa, aquela diaba e os seus dignos rebentos, Csar e Lucrcia. . . 45 A estridente maldade da sua voz arrancou Rodrigo aos seus pensamentos. Como lhe parecia bela, trmula de clera. Sentiu-se ser tomado por uma onda de desejo. O desejo dele era ainda capaz de lhe apagar da mente os pensamentos desagradveis. Apertou contra si o seu corpo flexvel. - No, no - disse a tranquiliz-la -, no Csar, sou eu que te amo quem te diz que deves ir. Queres que os Franceses te ponham fora do meu leito? Estars em segurana em Pesaro, com Lucrcia e Joo. Mas Jlia pensava ainda verg-lo a seu bel-prazer, poder gozar os apelos do desejo. - Aquele verme do Joo Sforza - insinuou maldosa -, se no capaz de defender a sua honra, como podes esperar que defenda a minha? Rodrigo fingiu no ter entendido a insinuao contra Lucrcia. - Jlia - disse-lhe puxando-a para a cama -, no nos resta muito tempo para estarmos juntos. - Portanto, Jlia, obtiveste uma bno de boa viagem do nosso santo pai, no assim? - perguntou Csar irnico quando a jovem senhora, com um rubor espalhado no rosto, se juntou aos outros prestes a porem-se a salvo em Pesaro. Csar parecia ter reencontrado a compostura naquele momento em que, em trajes cardinalcios, esperava poder despedir-se das mulheres do pai numa das antecmaras do Palcio de Santa Maria, contguo ao Vaticano, residncia de Adzzana de Mila. Encostado parede revestida de madeira, contemplava o grupo. Estavam Adriana, em traje de viagem, composta como sempre, e Lucrcia e Jlia beira do choro. O marido de Lucrcia, Joo Sforza, amuado e ciumento, evitava o olhar de Csar. Compreendera que Csar o considerava sacrificvel e no estava muito preocupado com isso. Tinha medo do cunhado. Ouviu-se bater do outro lado do painel. Csar voltou-se e manobrou uma rosa esculpida. O painel abriu-se e entraram Rodrigo e o seu servo Perotto. - Bem. bem. estais prontos. - O papa estava alegre, desejoso de evitar novos excessos emotivos. - Csar, a estrada est ainda aberta? - Est. - joo, sabes o que deves fazer? - Rodrigo voltou-se para Perotto. - Escreveste-o para o senhor Joo? Est tudo escrito? Claramente ? 46 - Sim, Vossa Santidade.

- Bem, ento nada mais h para dizer. Sim, Joo, o que ? - Santidade, se me permitido no me unir familia, seria minha inteno ficar em Roma. - Para poderes bajular os Franceses? - interveio Csar. Como o teu tio Ascnio? No temas, Joozinho, mando Michelotto contigo at Pesaro. - No, no, meu Deus, isso no! - gemeu Joo. - Santidade. ele. ele. tem inteno de me matar ! - Calma, rapaz tolo, ningum quer matar-te. - A voz de Rodrigo soou imperiosa. Tinha ordenado que escoltasses estas senhoras at Pesaro, onde ficaro at que lhes seja possvel regressar a Roma sem perigo. - Eu no - explodiu Jlia com veemncia. - Eu no quero ir. Desejo ficar aqui. Rodrigo reagiu sorrindo quela manifestao de petulncia da amante. - Doce Jlia, desejas realmente sofrer sevcias de algum francs? Ou alemo ou suo? Ou talvez de Sua Alteza cristiamssima em pessoa? - Santo Padre! - O tormento era em Joo mais forte que a timidez. - Rogo-vos. os meus deveres me obrigam a. Rodrigo voltou-se para ele com ira: - Deveres? Pretendes explic-lo a ns? O teu dever, Sforza, obedecer- nos. Isso basta. Joo balbuciou, perdeu a cabea: - Meu tio Ascnio mandou-me dizer. Lucrcia agarrou-o por um brao exortando-o a no prosseguir. Rodrigo falou em tom sereno e severo: - Sabemos o que teu tio tem para te dizer. A ti e a toda a vossa estirpe Sforza. Espiar os nossos movimentos e trair-nos. Acreditas que realmente no tnhamos lido as cartas? Joo ficou atordoado. - Santidade. - balbuciou. - Que fale, este parvo - interveio Csar. - Partilhar uma cela com seu tio Ascnio. Rosto empalidecido, Joo procurou a ajuda de Lucrcia. Durante instantes ningum falou e a ameaa continuou suspensa no ar. Rodrigo fixou brevemente Csar como se tivesse a inteno de protestar. Depois, como se nada tivesse havido, atraiu a si 47 Lucrcia e Jlia e beijou a filha to demoradamente, num abrao to apaixonado, que Jlia ficou a olhar com uma careta ciumenta enquanto no chegou a sua vez. Tendo, portanto, as duas raparigas pela mo, Rodrigo voltou-se para Adriana com voz trmula de emoo: - Dona Adriana, esto aqui os meus olhos e o meu corao. Tende cuidado com elas at ao tempo bendito em que possamos de novo estar todos juntos em paz. Agora ide, todos. Que Deus seja convosco. Mas lembrai-vos de um velho que vos ama e escrevei-me muitas vezes. Csar tinha uma expresso de desprezo no rosto. - Jesus - murmurou. Joo fez uma ltima tentativa desesperada. - No - disse ainda, obstinado. Lucrcia aproximou-se para o acalmar. - Marido, vs nos guiareis a Pesaro. L estaremos em segurana e depois

tempo de Carnaval. Com a mo no corao vos prometo que l seremos felizes. Rodrigo aumentou a dose, de novo jovial e tranquilizador: - Mas com certeza. Disse-te porqu? s um rapaz afortunado porque tens agora a nossa permisso, podes consumar as tuas bodas. Csar deixou escapar uma risada. Enquanto as mulheres se dirigiam para a porta, abraou Lucrcia e murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Lucrcia sorriu, mas no falou, apertando-se contra ele; depois voltou- se e seguiu Adriana j nas escadas. Csar e Rodrigo viam de uma janela o destacamento que saa do ptio. Novamente Rodrigo alterara o seu humor. Colhido por uma vaga de sentimentalismo, tinha lgrimas nos olhos ao v-las partir. Csar fitou- o com presuno. - Como bela. ainda uma criana. - murmurou Rodrigo ternamente. - uma puta. - tua irm. - Ela, no! Jlia! - Csar. No, no, no pode ser. No terias ousado. Fizeste-o? Tu fizeste-o? Csar sorriu e no respondeu. Rodrigo voltou-se novamente para a janela com um estremecimento nos ombros. Quando Csar falou o seu tom era brusco e frio: - Pai, que vamos fazer de Ascnio Sforza? Tambm Rodrigo falou friamente: 48 Foi dada a ordem. Esta noite ser conduzido a Santo ngelo. - E Della Rovere? Rodrigo estava de novo muito calmo, pela fora da prpria superioridade e experincia. - Deixarei que caia na prpria armadilha de traio e excesso de ambio. Fica pois certo que correr ao rei de Frana a despejar veneno contra ns. Bom proveito lhe faa. - Estais enganado - replicou Csar impetuoso. - nosso inimigo e devemos elimin-lo antes que nos cause danos. - Ainda s um ingnuo em poltica, Csar - disse Rodrigo condescendente. - Se o teu inimigo vai ser ridculo perante o mundo inteiro, porque devemos impedi-lo? - Estais enganado - insistiu Csar. - No deveis deix-lo ir. Eu prprio manobrarei para que no escape. - Voltou-se para sair. - Vossa Eminncia! - O chamamento de Rodrigo soou peremptrio. - Santidade! - Csar voltou-se numa atitude falsamente submissa. - No te permito que desafies a nossa autoridade. Caminhars na nossa sombra. - Como Sua Santidade preferir. - O sorriso de Csar era feroz. - A propsito do Sforza. Dizem-me que a peste ceifa muitas vtimas nas celas subterrneas de Santo ngelo. - No! - exclamou Rodrigo resoluto. - O cardeal Sforza um prncipe da igreja e ficar alojado como tal. Est resolvido. Ascnio Sforza sentava-se numa poltrona revestida de pele e guarnecida de gemas. Observava Julio Della Rovere que corria para c e para l nos preparativos de uma partida precipitada.

- Ascnio, cr em mim - dizia-lhe. - Convm-te vires comigo para Florena pelo rei de Frana. No te fies em Rodrigo Brgia. Ascnio tirou um confeito de uma caixa de prata e colocou-o graciosamente na lngua antes de responder. - Talvez tenhas razo, julio. Mas tambm verdade que nunca tu confiaste nos Brgias e no tens outra alternativa seno a de estares com os Franceses. Os teus dados esto lanados, os meus no. 49 - Mas teu irmo Ludovico. - Ludovico cuidar dos nossos interesses junto do rei de Frana. Dois Sforza ao lado de Carlos poderiam ser de mais. Eu fui sincero com Rodrigo Brgia e ele prometeu- me a amizade e o respeito que me so devidos enquanto for membro do Sacro Colgio. - E tu acreditas nele? s louco! - No sou louco, sou um jogador, Julio, um jogador sensato que no quer apostar todos os seus ducados no mesmo cavalo. especialmente quando o cavalo em questo um rei de Frana ainda rapazinho. Ludovico mandou-me dizer que um tolo e facilmente influencivel. - E ser influenciado, de facto. Por mim. - Talvez, Julio, talvez. Mas talvez no. Rodrigo Brgia sempre o papa. E eu sou vice-chanceler da Santa Igreja e devo estar aqui para receber o rei de Frana quando chegar. - De uma priso dos Brgias? Naturalmente. Perguntou-me como nunca pensei em quanto isto me seria vantajoso. - Deus dispe, Ascnio - avisou-o o outro. - justamente como dizes, Julio, Deus dispe e eu estarei disposto no caso de as suas disposies. - Ascnio sorriu com ar de filsofo tocando ao de leve a superfcie trabalhada da caixa de doces com a mo bem cuidada. Como Rodrigo previu, Della Rovere fugiu de Roma para ir ter com Carlos de Frana a Florena, resolvido a persuadir o soberano a depor Rodrigo Brgia em seu favor, tendo para oferecer como garantia a sua tenaz simpatia pelos Franceses. Por ordem de Rodrigo e com ntima satisfao do prisioneiro Ascnio Sforza foi preso e encerrado em Santo ngelo, no nos subterrneos como teria desejado Csar, mas sim em aposentos confortveis por baixo dos basties do castelo. Aqui esperou o xito dos acontecimentos sabendo que a expectativa no seria demorada. Os Franceses desciam atravs dos estados pontifcios em volta de Roma. Pela Via Flamnia tinham descido a Viterbo onde, com a ajuda da fortuna, tinham interceptado e capturado as mulheres do pontfice. Pouco depois, os Orsini passaram-se para os Franceses, entregando armas e castelos como Csar previra. Os Brgias estavam com os ombros contra a parede. Se bem que no tivessem completa conscincia da desventura que os colhera, sabiam porm que no espao de 50 poucas semanas os Franceses teriam chegado a Roma e preparavam-se por isso para se defenderem o melhor possvel. Rodrigo e Csar pararam sobre as muralhas da cidade, Porta de Santa Maria do Povo, da qual partia a Via Flamnia. Estavam perturbados. Csar,

irritado, dava pontaps nas faxinas meio podres que protegiam um canho antiquado. Por baixo deles, o prncipe turco Djem, amigo de Joo, curveteava montado no seu cavalo como se no percebesse, nem de perto nem de longe, a gravidade do momento. - Vossa Santidade est satisfeita - protestou Csar com raiva. - O primeiro peido de um francs ter mais efeito que as trombetas de Josu. - Orsini e os seus filhos ainda se opem. - Enquanto no farejarem o dinheiro do rei de Frana. - Achas que deveria refugiar-me em Npoles, Csar?Havia um tom dramtico na sua voz. - No, ainda sou papa e bispo de Roma. No abandonarei o meu rebanho e no cederei a minha cidade aos brbaros. - Ser o vosso rebanho a abandonar-vos mal um francs se apresentar junto das muralhas. No! Que os Franceses conquistem a cidade. Podemos resistir em Santo ngelo at que Vossa Santidade tenha encontrado o fulgor da razo e nos der carta branca. - Temes pela minha vida, Csar. Nunca ningum matou um papa. - Recordai-vos de So Pedro. H precedentes. . . Sim, reflectiu Rodrigo, tinham morto So Pedro. E havia um precedente mais recente que o angustiava: aquele dia desditoso em que os Franceses tinham raptado o papa Bento e o haviam maltratado a tal ponto que o fizeram perder o juzo. No era um pensamento reconfortante. Nunca Rodrigo se sentira to s. Apaixonadamente desejoso de voltar a ver Lucrcia ou Jlia, era atormentado pela frustrao e assediado pela solido. Obtinha pouco conforto de Csar, to rude e duro. No era como Joo. Rodrigo baixou um olhar amistoso sobre Djem. Csar apercebeuse disso. - Tendes sempre de ter aquele sarraceno agarrado vossa sotaina? - Pobre prncipe Djem. um querido amigo de teu irmo e por isso me lembra muito Joo. - Tambm a mim. s por isto que o tendes aqui? 51 - Esqueceste, Csar, que Djem uma personalidade no seu pas, irmo do sulto que o odeia e o teme. Escrevi ao sulto, que far bem em mandar-nos auxlio, porque se os Franceses nos levarem a melhor, aquele vaidoso Carlos proclamar uma cruzada contra ele e colocar Djem no trono. Csar riu-se admirado. - Uma manobra ousada, salvar-nos do rei cristianssimo com a ajuda do pior inimigo da cristandade. Como que res pondeu? - Como infiel muulmano que . - No rosto de Rodrigo desenhou-se um sorriso subtil. - Est pronto a pagar trezentos mil ducados pela notcia da morte do irmo Djem. Anda. Voltemos ao Vaticano. Enquanto o papa montava a sua mula com a reverencial assistncia dos dois guardas pontifcios, Csar contemplou Djem com novos olhos. Trezentos mil ducados: era o suficiente para organizar e manter um exrcito, para sustentar e realizar as ambies de um homem. A voz impaciente de Rodrigo interrompeu as suas reflexes. - Anda, Csar. Vamos ao Vaticano. Talvez tenham chegado notcias de Lucrcia. No Vaticano havia uma grande confuso. Enquanto Rodrigo chegava aos

seus aposentos privados ouviam-se os alaridos da criadagem pontifcia que saqueava o palcio na previso da fuga do papa perante a perseguio do exrcito francs. Do seu apartamento, Csar ouvia aumentar o tumulto. - Assim no se pode seguir em frente, Michelotto! - exclamou furioso. Vem. Enquanto se levantava para afivelar o cinturo com a espada, ouviu bater porta. Era Perotto, plido, olhos cheios de terror. - Vossa Eminncia, Sua Santidade. h novidades. peo-lhes para virem. Empurrando Perotto rudemente para o lado, Csar saiu para o corredor, seguido de perto por Michelotto. Quando viravam uma esquina, um servo com os braos cheios de pratas roubadas esbarrou com Csar. Apanhado em flagrante, deixou cair o saque levando a mo ao punhal. Michelotto avanou de repente e enterrou a sua lmina experiente no peito do servo. Uma golfada de sangue salpicou o peitoral de Csar. Este limpou-se com uma careta de repugnncia, que Michelotto interpretou mal: julgando o seu patro assustado, pousou-lhe uma mo no 52 brao em gesto tranquilizante. Csar reagiu como mordedura de uma serpente. - No me toques! Nunca me toques, sapo! - gritou ameaador. Surpreendido pela fria gelada que lhe vira nos olhos, Michelotto deixou cair a mo sem falar. Nas vizinhanas dos aposentos pontificais, encontraram Ascnio Sforza que corria na mesma direco. Ao ver a espada ensanguentada de Michelotto e a expresso turva de Csar, Ascnio temeu pela vida. - Tenho o salvo-conduto do papa - apressou-se a declarar mostrando o pergaminho. Os apartamentos do papa estavam em penumbra, porque as janelas que davam para o augusto claustro do Pappagallo eram pequenas; porm, as paredes reluziam com as ricas cores dos recentes frescos de Pinturicchio e no tecto resplandecia o touro dos Brgias, celebrao rampante do orgulho familiar. Csar encontrou o pai sentado janela, de costas para a luz, de modo que no pde ver-lhe a expresso. A seus ps estava um homem ajoelhado que vestia uma armadura suja de lama. Era Paulo Orsini. - Diz-lhe, meu filho - disse Rodrigo em voz tona. Conta de fio a pavio ao teu amigo, cardeal de Valena, como a tua famlia me foi leal. Paulo Orsini voltou-se para Csar com uma face assustada. - Eminncia. lembrese como ramos amigos desde crianas. Csar avanou e agarrou Orsini pelo pescoo: - Por que vieste aqui rojar-te aos ps de Sua Santidade? - Eminncia, por minha honra. meu pai entregou os castelos e o exrcito ao rei de Frana e ajoelhou-se perante o rei. eu no podia. a nossa longa amizade. - Que traiu - contrariou Csar com fria. - Enforque-o, pai. Como co traidor que . Rodrigo teve um gesto de negao. - Escuta-me, Paulo Orsini - disse com um tom sempre mais atormentado na voz -, deixamos-te livre agora porque vieste at ns por tua espontnea vontade. Vai agora e leva esta nossa mensagem a teu pai pecador e a toda a tua infiel familia. Diz-lhes que ns, o papa, no nos esqueceremos daquilo que fizeram, nem nunca

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