Boris Schneiderman - Debate a Sombra de Jdanov

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Teoria e Debate nº 27 - dezembro de 1994/janeiro/fevereiro de 1995 publicado em 22/04/2006 por Boris Schnaiderman* Foi com grande indignação e profunda tristeza que li o artigo "A cidadania de pé quebrado" de Iumna Maria Simon, no último número desta revista. E se venho agora a público é justamente para expressar esta minha reação. A indignação é perfeitamente compreensível no caso, dada a injustiça dos conceitos emitidos, que se pretendem uma discussão sobre poesia, discussão essa que é tão rara em nosso meio, lembra a autora, mas que se reduzem a um ataque pessoal e de baixo nível contra um poeta da importância de Haroldo de Campos, a quem todos nós devemos tanto. E a tristeza resultou da constatação de que, embora se tenham aberto na Rússia os arquivos do KGB e tenha vindo à tona a crônica sinistra do jdanovismo, com a sua seqüência de horrores, bem semelhantes aos da década de 30, parece que a história nada tem a ensinar a alguns de nossos intelectuais, que se permitem repetir a terminologia, os procedimentos e a ignomínia de quase cinqüenta anos atrás. Para confirmar isto, vejamos as acusações assacadas contra o poeta. Logo de início ele é chamado de "cosmopolita", o que lembra a campanha contra o "cosmopolitismo", desencadeada na Rússia logo após o famoso informe de Jdanov em 1946. Afinal, as palavras têm uma carga histórica e nós não temos o direito de não a levar em conta. O termo passou a designar então a ligação com a cultura de povos, o menosprezo pelas raízes nacionais e, com freqüência, acabou adquirindo uma conotação anti-semita, pois se via o judeu como um apátrida, um cosmopolita, embora os judeus russos estivessem, na grande maioria, muito assimilados à sociedade. A referência ao Haroldo como "cosmopolita" e "polilíngue" (esta palavra, num contexto pejorativo, tem algo de grotesco, como se fosse condenável conhecer línguas e outras culturas, e esforçar-se por trazê-las ao nosso convívio) me fez pensar num episódio recente. No final de junho de 1991, realizou-se em Salto Oriental, no Uruguai, um simpósio internacional sobre a obra de Haroldo. Participaram dele estudiosos dessa obra, vindos de diferentes países: além de uruguaios e brasileiros, havia ali mexicanos e alemães, quase todos viajando por conta própria, sem ajuda de qualquer instituição e realizando um sacrifício considerável para aquela manifestação de admiração cultural. A lembrança desse encontro marca uma situação paradoxal e absurda, depois de ataques como os do artigo em questão. Deixa-se de lado toda uma obra poética e de teoria, reconhecida internacionalmente, como se tivesse importância apenas o fato de Haroldo ter feito um poema a Lula, o que seria um ato de oportunismo. Mas, oportunismo por quê? Certamente, ele não precisaria disso para chegar às "glórias televisivas" e tornar-se "íntimo de atrizes globais e popstars". Aliás, esta passagem do artigo é simplesmente vergonhosa, pois estamos vendo uma professora universitária encampar os preconceitos mais rançosos contra a mulher que dança, ou faz teatro dramático. O mal estaria em trabalhar para a Globo? Mas, quem trabalha ali é um profissional tão digno como os demais. Por que estas ofensas, esta acidez, esta injustiça? Como tudo isso lembra os discursos de Jdanov, com a sua grosseria, as suas expressões maldosas, o seu sarcasmo barato! E as ironias contra o "vanguardismo"! Elas são bem década de 40, de período em que esta o poderia ter conseqüências trágicas. Trazer isso para o nosso meio, num contexto de 1994, significa ressuscitar velhos rancores, que só levaram ao obscurantismo, ao isolamento cultural, à rejeição pura e simples da modernidade.

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Boris Schneiderman

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Teoria e Debate n 27 - dezembro de 1994/janeiro/fevereiro de 1995publicado em 22/04/2006

por Boris Schnaiderman*Foi com grande indignao e profunda tristeza que li o artigo "A cidadania de p quebrado" de Iumna Maria Simon, no ltimo nmero desta revista. E se venho agora a pblico justamente para expressar esta minha reao. A indignao perfeitamente compreensvel no caso, dada a injustia dos conceitos emitidos, que se pretendem uma discusso sobre poesia, discusso essa que to rara em nosso meio, lembra a autora, mas que se reduzem a um ataque pessoal e de baixo nvel contra um poeta da importncia de Haroldo de Campos, a quem todos ns devemos tanto. E a tristeza resultou da constatao de que, embora se tenham aberto na Rssia os arquivos do KGB e tenha vindo tona a crnica sinistra do jdanovismo, com a sua seqncia de horrores, bem semelhantes aos da dcada de 30, parece que a histria nada tem a ensinar a alguns de nossos intelectuais, que se permitem repetir a terminologia, os procedimentos e a ignomnia de quase cinqenta anos atrs.Para confirmar isto, vejamos as acusaes assacadas contra o poeta. Logo de incio ele chamado de "cosmopolita", o que lembra a campanha contra o "cosmopolitismo", desencadeada na Rssia logo aps o famoso informe de Jdanov em 1946. Afinal, as palavras tm uma carga histrica e ns no temos o direito de no a levar em conta. O termo passou a designar ento a ligao com a cultura de povos, o menosprezo pelas razes nacionais e, com freqncia, acabou adquirindo uma conotao anti-semita, pois se via o judeu como um aptrida, um cosmopolita, embora os judeus russos estivessem, na grande maioria, muito assimilados sociedade.A referncia ao Haroldo como "cosmopolita" e "polilngue" (esta palavra, num contexto pejorativo, tem algo de grotesco, como se fosse condenvel conhecer lnguas e outras culturas, e esforar-se por traz-las ao nosso convvio) me fez pensar num episdio recente.No final de junho de 1991, realizou-se em Salto Oriental, no Uruguai, um simpsio internacional sobre a obra de Haroldo. Participaram dele estudiosos dessa obra, vindos de diferentes pases: alm de uruguaios e brasileiros, havia ali mexicanos e alemes, quase todos viajando por conta prpria, sem ajuda de qualquer instituio e realizando um sacrifcio considervel para aquela manifestao de admirao cultural. A lembrana desse encontro marca uma situao paradoxal e absurda, depois de ataques como os do artigo em questo. Deixa-se de lado toda uma obra potica e de teoria, reconhecida internacionalmente, como se tivesse importncia apenas o fato de Haroldo ter feito um poema a Lula, o que seria um ato de oportunismo. Mas, oportunismo por qu? Certamente, ele no precisaria disso para chegar s "glrias televisivas" e tornar-se "ntimo de atrizes globais e popstars".Alis, esta passagem do artigo simplesmente vergonhosa, pois estamos vendo uma professora universitria encampar os preconceitos mais ranosos contra a mulher que dana, ou faz teatro dramtico. O mal estaria em trabalhar para a Globo? Mas, quem trabalha ali um profissional to digno como os demais. Por que estas ofensas, esta acidez, esta injustia? Como tudo isso lembra os discursos de Jdanov, com a sua grosseria, as suas expresses maldosas, o seu sarcasmo barato!E as ironias contra o "vanguardismo"! Elas so bem dcada de 40, de perodo em que esta o poderia ter conseqncias trgicas. Trazer isso para o nosso meio, num contexto de 1994, significa ressuscitar velhos rancores, que s levaram ao obscurantismo, ao isolamento cultural, rejeio pura e simples da modernidade.Uma das caractersticas do jdanovismo era a atribuio ao oponente de uma segunda inteno sempre, mesmo nos seus atos mais meritrios. O mesmo faz Iumna em relao ao poema de Haroldo dedicado a Lula. Na hora em que as pesquisas davam como certa a sua vitria, ele teria procurado "ganhar a simpatia de uma faixa ampla e diferenciada de leitores". No entanto, no seria difcil documentar com notcias de nossa imprensa, num perodo anterior ao referido, que Haroldo j havia declarado ento claramente sua simpatia pelas posies do PT. No parece razovel procurar, em cada caso, as "razes ocultas", a "segunda inteno", e julgar uma pessoa no pelo que ela diz e faz, mas pelo que se pensa estar por trs das palavras e dos atos. Que presuno, asseverar que se penetrou assim na psique alheia!E por que Haroldo no poderia estar agora com Lula e ter votado em Brizola em 89? O que se quer uma fidelidade irrestrita? No se pode ter determinada opinio num contexto e mud-lo em outro? Se em 89 Haroldo achava que se devia fazer tudo para evitar a vitria de Collor e se lhe parecia que Brizola teria mais chances no primeiro turno, deve-se apedrej-lo por isso? No parece que exista para o intelectual o caminho nico e certo, fora do qual ele seria um traidor e oportunista. A autora do artigo pretende certamente que se rejeitem os intelectuais que pensam de modo diferente do seu, os atores e atrizes que aderiram ao PT, mas no se recusam a trabalhar na Globo, e todos os que ela considera oportunistas e pouco rios. Enfim, busquem-se os poucos mas puros, os ideologicamente corretos, aqueles em quem no se suspeitem intenes ocultas. Mas um partido pode se permitir o luxo de apostar tanto na interpretao dessas intenes? E esta desconfiana, esta preveno contra quem possa pensar diferente de ns, ser compatvel com um clima democrtico e de discusso?Concluindo, devo dizer que, embora o artigo de Iumna faa afirmaes sobre a "tica em baixa" em nosso meio, deixa de lado uma considerao de ordem tica, que me parece muito importante: justo convidar um poeta a realizar uma tarefa num prazo curto e, depois que ele a executa com todo o entusiasmo e sinceridade, cobri-lo de insultos, acompanhados de lucubraes sobre o que pretendia com aquele trabalho? A culpa certamente no cabe a quem o convidou, mas nem por isso o caso menos revoltante.

*Boris Schnaiderman ensasta e professor. Jdanov e o "jdanovismo"Andrei Jdanov (1894-1948) foi o poderoso encarregado das questes de ideologia e cultura do PCUS no auge do stalinismo. De famlia burguesa, ele participou do Partido Bolchevique depois de 1915, ligando-se a Stalin no incio dos anos 20.Sua carreira na burocracia do partido "exemplar". Foi comissrio poltico durante a Guerra Civil; secretrio do partido em Nighi-Novgorod de 1922 a 1934; responsvel, por designao de Stalin, pela depurao da juventude do partido contra a Oposio Inificada (Trotski, Zinoviev e Kamenev); suplente do Comit Central em 1925; responsvel pela luta contra os "direitistas" (Bukharin e Rikov) nos sindicatos; titular do CC, secretrio e membro do bir de organizao em 1934; substituto de Kirov frente do partido em Leningrado aps o assassinato desde fins de 1934; suplente do BP em 1935; e titular em 1939. Responsvel pela defesa de Leningrado, foi considerado, depois da guerra, o delfim de Stalin. Responsvel pela ideologia, conduziu a campanha contra os intelectuais neste perodo. Faleceu subitamente e sua morte atribuda aos mdicos do Kremlin. Ela foi seguida da depurao do aparelho de Leningrado e da execuo de seus colaboradores mais prximos.J em agosto de 1934 Jdanov foi o representante do CC do PCUS no I Congresso dos Escritores Soviticos realizado em Moscou, que enterrou definitivamente a rica e contraditria experincia das vanguardas artsticas soviticas, vigorosa at o final dos anos 20. Tem um papel crescente na fixao da esttica do regime, o realismo socialista.O "jdanovismo" foi, depois da guerra, a linha oficial na cincia e na esttica. Nele, a pintura exaltava as virtudes do novo regime e a fora do proletrio russo, os heris do romances eram paradigmas do conformismo, as manifestaes culturais dos povos no-russos eliminados como expresses de chauvinismo nacionalista e as correntes de vanguarda das cincias combatidas como ideologias burguesas (entre elas, a biologia de Morgan, a mecnica ondulatria, a fsica nuclear, a ciberntica e a psicanlise). Jdanov foi o promotor da "gentica proletria" de Lyssenko. Os cientistas e artistas que no se enquadravam na linha do senhor da ideologia foram depurados.Se Lukacs conciliou com os ditames do novo regime na rea cultural, um escritor brasileiro como Graciliano Ramos soube, quando presidente da UEB, qualificar com preciso o patrono do realismo socialista: " uma besta".

*Jos Corra Leite membro do Conselho de Redao de T&D.