BORNHEIM, Gerd Albert. O sentido e a máscara

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o panorama do teatro de hoje é de uma riqueza imensa, de uma pluralidadede experiência jamais vista na história da dramaturgia e da arte cênica. Àsvezes ele se afigura não só extremamente complexo como até caótico. En-tretanto uma leitura crítica aprofundada, por quem dispõe dos conhecimen-tos e dos instrumentos necessários, revela certamente a sua extraordináriaamplitude. É o que faz Gerd Bornheim em O Sentido e a Máscara, obra járeconhecida como uma das mais importantes contribuições brasileiras paraa apreensão e compreensão do fenômeno teatral moderno.

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Coleção DebatesDirigida por J. Guinsburg

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EAMASCARA

Equipe de realização - Revisão: Geraldo Gerson de Souza; Produção:Ricardo W. Neves e Raquel Fernandes Abranches.

~\l/l~ ~ PERSPECTIVA~I\\~

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Bornheim, Gerd A., 1929-2002.O sentido e a máscara / Gerd Alberto Bornheim.

- São Paulo: Perspectiva, 2007. - (Debates; 8/dirigida por J. Guinsburg)

2' reimpr. da 3. ed. de 1992.ISBN 978-85-273-0332-3

1. Teatro 2. Teatro - História e crítica3. Crítica teatral I. Guinsburg, J.. lI. Título. SUMÁRIOIll. Série.

04-5427 CDD-801.952

Índices para catálogo sistemático:I. Teatro: Crítica: Teoria literária 801.952

1. Advertência 7

2. Questões do Teatro Contemporâneo 9

3. Compreensão do Teatro de Vanguarda 37

4. Ionesco e o Teatro Puro 47

5. Duas Características do Expressionismo 63

6. Breves Observações sobre o Sentido e a Evolução doTrágico 69

7. Kleist e a Condição Romântica 93

8. Egmont, de Goethe 105

9. Vigência de Brecht 111

10. A Propósito de Jacques e a Submissão de Ionesco 115

3' edição - 2' reimpressão

Direitos reservados àEDITORA PERSPECTIVA S.A.

Av. Brigadeiro Luís Antônio, 302501401-000 - São Paulo - SP - BrasilTelefax: (0--11) 3885-8388www.editoraperspectiva.com.br

2007

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ADVERTSNCIA

o presente livro contém estudos sobre diversosaspectos da realidade teatral, e não foi elaborado comvistas a uma unidade de conjunto. São artigos e con-ferências realizados ao sabor das circunstâncias, quasesempre atendendo a uma solicitação exterior. Nãoobstante, cremos que os estudos ora enfeixados emvolume apresentam certa unidade, ao menos em rela-ção às preocupações do autor: a estética, em especiala do teatro, e sua inserção na cultura. Além disso,a quase totalidade destas páginas discute problemas doteatro contemporâneo - de sua situação atual e deseus pressupostos históricos.

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QUESTÕES DO TEATRO CONTEMPORÂNEOA situação do teatro contemporâneo é extrema-

mente complexa, para não dizer caótica. Errado,contudo, andaria quem disso inferisse que se trata deum teatro pobre, sem imaginação, desprovido de recur-sos maiores. Deve-se mesmo afirmar que é exatamenteo contrário que se verifica: o panorama do teatro dehoje é, inegavelmente, de uma riqueza imensa, de umapluralidade de experiências jamais vista em nenhumafase da história da dramaturgia e da arte cênica. E éprecisamente esta pujança que torna a realidadeteatral problemática, complexa, e mesmo caótica. Ogrande problema está em captar a sua unidade, ou emestabelecer os critérios básicos que possibilitem uma

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visao orgamca e unitária do conjunto. Poder-se-iapensar que essa dificuldade se deva ao fato de aindanão dispormos da suficiente perspectiva histórica parajulgar tal estado de coisas. Isto, porém, afora de serdemasiado simples, desobriga da necessidade de umatomada de consciência da situação.

Podemos aqui também abusar da bem conhecidaafirmação: outras épocas tiveram um estilo, a nossaapresenta estilos. De fato, praticamente cada autortem o seu estilo e exige a sua forma inconfundível deteatro. A conseqüência é uma situação plurifacetada,que oferece consideráveis dificuldades para uma apro-ximação crítica. A fim de compreender o insólito doproblema, basta fixar a atenção nas grandes épocas doteatro do passado. O teatro elisabetano, por exemplo,tem um estilo único, que abarca, fundamentalmente,ao menos, toda a dramaturgia da época (respeitadas,é claro, as variações), todos os problemas técnicos eartísticos do teatro, estendendo-se inclusive à relaçãoentre o espetáculo e o público. Os exemplos podemser multiplicados a esmo, pois é essa profunda unidadeque caracteriza os principais momentos da vida doteatro. Mas em que consiste, onde reside a unidadedo teatro contemporâneo? Qual é o denominador co-mum entre autores como T. Williams, B. Brecht, Iones-co, Claudel, Garcia Lorca, Pirandello? A pergunta édesnorteante; são mundos tão separados, tão autôno-mos, que qualquer tentativa de estabelecer coordenadascomuns incorre no risco de extraviar-se no acidental,ou de interpretar o suposto comum de tal modo quese perca o sentido que lhe empresta cada autor dentroda estrutura global de sua dramaturgia. E o problemanão se reduz apenas ao dramaturgo. Aquela preemi-nência do texto, que domina o teatro dos últimosséculos, autorizava a restrição da análise a uma pers-pectiva puramente literária. Hoje, ao contrário, tor-nou-se imprescindível a análise do fenômeno teatralconsiderado em sua totalidade, devendo-se acrescentarque esta totalidade já não se move, como acontecia nopassado, entre limites mais ou menos estáveis - o quetoma o problema ainda mais complexo. O dramaturgo,o diretor, o ator, o cenarista, não encontram o apoiode convenções estabelecidas, e quando pretendem

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seguir fórmulas prontas terminam por condenar-se àmonotonia da marginalidade.

Como explicar essa ausência de unidade? Comocompreender essa complexidade atomizante? Umaresposta poderia ser encontrada, por exemplo, nainexpugnável ânsia de originalidade que acompanhatodas as manifestações culturais de hoje. Outra explica-ção freqüente tenta reduzir o problema ao progressivodesgaste da tradição cultural, tradição esta que teriaredundado na tão decantada "decadência do Ocidente".Nesse segundo caso, aquela exigência de originalidadedeveria ser explicada através do empobrecimento ou daausência de força criadora real. Mas é exatamente essepretenso empobrecimento que não pode ser aceito porquem observa, mesmo superficialmente, o teatro denossos dias. O máximo que se poderia afirmar é que ascoisas se tomaram muito mais difíceis; é o ponto devista de T. S. Eliot, quando diz que "os grandes períodostalvez não tenham produzido mais talento que o nosso;mas menos talento foi usado inutilmente" I. O mesmoEliot afirma que "numa época sem forma há poucaesperança para o poeta menor fazer algo que valha oempenho".

Ora, essas dificuldades, a ausência de forma, deunidade, e por outro lado, a enorme variedade doteatro contemporâneo nos mais diversos sentidos, desdeo dramaturgo até as mais humildes tarefas nos bastido-res de um palco, obrigam a fazer a pergunta: qual é asituação do teatro de hoje? Quais são, a despeito detudo, as coordenadas que vêm determinando a suaevolução? Ou melhor: quais são os seus problemasfundamentais, já que tudo parece ser tão problemático?Não pretendemos, nas linhas que seguem, responder aessas perguntas. Para dar-Ihes uma resposta não basta-ria sequer fazer uma história da dramaturgia contem-porânea, acrescida do exame das diversas teorias sobreo trabalho do ator e ainda das inúmeras maneiras vigen-tes de compreender o espetáculo. Sem a pretensão deesgotar o assunto, queremos tão-só acenar - visandosempre à globalidade do fenômeno teatral - para

(1) in Th« Sacred Wood, Londres,1963. Pág. 64.

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alguns dos problemas do teatro de hoje, aqueles proble-mas que nos parecem os mais essenciais.

Comecemos pelo problema da situação do realismoe a necessidade que se faz sentir, nestes últimos decê-nios, de um modo sempre mais forte, de vencer os seuslimites. A importância deste problema decorre do fatode que nos últimos séculos o teatro ocidental se prendeprecisamente ao que cada escola julga seja o realismo.E fazemos menção apenas aos séculos mais recentes,a fim de simplificarmos o problema e minimizarmosa insuportável saturação que desvirtua a palavra rea-lismo. :E: a verdade realista que defendem os clássicosfranceses; mas é também em nome da verdade realistaque o romantismo de um Victor Hugo recusa aquelesclássicos; e é mais uma vez em nome da verdade rea-lista que o naturalismo de Zola repele os românticos.Mas a essa altura da evolução - fins do século passa-do -, o realismo se encontra em plena fase de deca-dência. Evidentemente, não se pode pretender dar àpalavra realismo uma definição unívoca, a não ser emnome de uma normatividade que, de resto, é sempreprovisória. Em nossos dias, isso tornou-se evidente;no teatro contemporâneo encontramos diversas mo-dalidades de realismo: - assim, relativiza-se - e su-pera-se - o absolutismo daquelas "verdades" tradi-cionais.

. ~as queremos r~ferir-nos ao tipo de realismo queinvadiu o teatro em fins do século passado e princípiosdeste. Por um lado, vence o naturalismo, que pretendereproduzir o real de um modo servil; trata-se de umaforma de arte que dissolve o teatro, transformando-onuma espécie de ersatz da ciência: inutiliza a arte, namedida em que a despe dos meios de expressão quelhe são específicos. Mas ao lado desse naturalismoestreito, encontramos uma modalidade de realismo quetem ao menos o mérito de nos ter legado alguns grandestextos, com Tchekov, Ibsen, Strindberg, Hauptmann ealguns outros. O fato, porém, é que essa grandeza seprende quase sempre a um setor muito limitado da vidahumana. São textos que permitem compreender, e in-tensamente, a decadência da classe burguesa, o desso-

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ramento de uma certa estrutura social; freqüentementeabordam pequenos problemas de personagens condena-das de antemão ao fracasso. São peças de salão despro-vidas de um horizonte histórico mais amplo. Muitasvezes, a ação se desenrola a partir de preconceitos posi-tivistas ou ainda de um determinismo cego, que impe-dem qualquer dimensão humana maior.

Comparando esse teatro com o seu antepassadoclássico, diz muito bem Fergusson que o realismo mo-derno deriva "daquela cena menor do racionalismo" 2.

O que no teatro do passado era mero detalhe da açãocênica, passa a ocupar o lugar central. O herói entraem declínio. E tudo acontece como se se verificasseuma espécie de alergia pela ação, pela grande ação dra-mática tal como a encontramos no passado. Poderíamosdizer que a ação é substituída por um clima de pré-ação- por uma pré-ação que se deixa absorver pelos pro-blemas que nascem, digamos, do malogro da ação nosentido forte. A atmosfera passa, em conseqüência, aocupar o primeiro plano: uma atmosfera quase sem-pre caregada, cinzenta, sombria, de tédio, de deca-dência. A reprodução mais exata possível da realidade,freqüentemente feita de um modo fotográfico, amarrao teatro, obrigando-o a desenvolver com máximaperfeição o ideal da ilusão cênica: o palco deve serum substituto exato da realidade. A rigor, a arte cênicanão deve existir; no teatro, o espectador deve esquecero teatro.

Stanislavski foi o homem que soube levar esseideal realista ao seu máximo de perfectibilidade; ainfluência que ele sofreu de Tchekov foi, como se sabe,decisiva.

O pressuposto fundamental de todo trabalho deStanislavski é a sua fidelidade ao texto, o que implicaem dizer, basicamente ao menos, fidelidade a Tchekov,e portanto, a um certo tipo de realismo cênico. Atravésde toda sua longa evolução é esta uma constante quepermanece fundamentalmente verdadeira em seu tra-balho. A despeito do fato de que ele tenha chegadoa compreender, após o movimento revolucionário

(2) Franels Fergusson. Evolução e Sentido do Teatro.Rio de Janeiro. Pq. 144.

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russo, a necessidade de ampliar a sua concepção dotrabalho do ator; não obstante também as diversas expe-riências de tipo formal e abstrato que chegou a realizar,juntamente com Meyerhold e outros discípulos, em seusEstúdios - Stanislavski não deixou de ser um homemtradicional. Para compreendê-lo basta observar orespeito - um respeito que chega a ser quase religioso- com que emprega palavras como Verdade, Beleza,Arte. Sob esse ponto de vista, mais que uma aberturapara o futuro do teatro,Stanislavski é um momentode conclusão; sob o aspecto cênico ele representa a der-radeira etapa de um certo tipo de realismo teatral.

Devemos, contudo, fazer uma distinção. A con-cepção do teatro em que se insere Stanislavski colocaum problema; outro problema, porém, são as técnicasque elaborou relativas ao trabalho do ator. Em relaçãoao problema da concepção do teatro permanece válidoo que afirmamos há pouco: trata-se de um momentode conclusão, mais voltado para o passado que para ofuturo. Sem dúvida, Stanislavski sentiu a presençadesse futuro; por isso, ele convidou Gordon Craig, umdos grandes profetas do teatro contemporâneo, parao diálogo e para montagem de Hamlet: o resultado sópoderia ter sido, como foi, o fracasso e a incompre-ensão mútua. Stanislavski move-se ainda dentro daconcepção clássica do homem - o animal racional,que domina o humanismo do Ocidente. Ele perma-neceu aquém da crise que assola em nossos dias acompreensão tradicional do homem.

Embora as técnicas introduzidas por Stanislavskisejam incompreensíveis sem essa base ideológica, nãopodemos reduzi-Ias pura e simplesmente a essa con-cepção do mundo. Ao contrário disso, devemosmesmo dar-lhes um crédito muito maior. Toda teoriado ator, todos os seus métodos de trabalho, são rela-tivos no sentido de que se aplicam a um determinadotipo de dramaturgia ou de direção cênica. Dentrodessa relatividade, o método de Stanislavski tem umaamplidão máxima, o que quer dizer que ele podeabranger uma extensão dramatúrgica muito grande.Mas seu método não deve nem pode ser aplicadoindistintamente a todo e qualquer tipo de dramaturgia.Não pode ser aplicado, por exemplo, a largos setores

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da dramaturgia de vanguarda, na medida em que essetipo de dramaturgia é inconciliável com a idéia depersonalidade humana. Pois a personalidade humanaé outro pressuposto básico do método de Stanislavski;é a partir de uma certa coerência psicofisiológica quea aplicação do método se toma possível; a partirtambém de uma certa coerência social. Mas quandoestas coerências se desfazem, como acontece freqüen-temente no teatro de vanguarda, o método se tomainexeqüível. Por outro lado, a flexibilidade dramática dotão discutido "sistema" alcança, às vezes, reconheci-mentos surpreendentes. Assim Brecht, em determina-do momento, impugnou o método; e compreende-seque o autor do Círculo de Giz Caucasiano fizessereservas não só ao método, mas sobretudo aos seuspressupostos filosóficos. O mesmo Brecht reconhe-ceu, porém, mais tarde, que o trabalho do ator poderiautilizar-se do método no caso de certas personagens,embora essa admissão se devesse restringir ao trabalhoinicial do ator. E é evidente que não se pode dizer queo trabalho inicial careça de importância, pois ele visanada menos que à compreensão da personagem.

De qualquer maneira, a teoria do ator de Stanis-lavski é, de longe, a mais completa que existe, nãoobstante o fato de que a sua obra tenha permanecidoincompleta: ele publicou apenas dois dos oito livrosprogramados. Mas o fundamental para o nosso pro-blema é o seguinte: a postura espiritual básica deStanislavski se coaduna perfeitamente bem com aquelerealismo ao qual nos referimos acima, e que encontrouum dos seus expoentes em Tchekov.

Acontece, porém, que já a partir de fins do séculopassado o teatro começou a dar sinais de necessidadede alargamento, de vida nova, de busca de novosrumos. Passou-se a revalorizar certos aspectos esque-cidos da tradição teatral. Começaram a pulular asinterpretações sobre a origem do teatro, e perseguia--se a realização de uma arte a mais integral possível, queoubesse atender aos elementos primevos do teatro.

Appia, G. Craig, Meyerhold, Tairov e tantos outros,foram os paladinos dessa exigência de reforma; todoseles se inspiravam no que se convencionou chamar deteatro teatral. Os novos ideais fazem vacilar as pró-

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prias bases do realismo. O que esses autores combatemé precisamente a idéia de ilusão cênica, tudo aquiloque pretende fazer do palco a própria realidade; lutarpor um teatro teatral é lutar por algo que aceita oteatro por aquilo que ele é: teatro. :E: verdade que osreformadores defendem as suas idéias com um ardornem sempre isento de contradições, com uma radicali-dade que se pretende total, mas que descamba às vezespara a utopia; de qualquer forma, o seu denominadorcomum é o ideal da "reteatralização" do teatro. Todoo trabalho do ator, a utilização dos elementos cênicose sobretudo a concepção do espetáculo deveriamobedecer a critérios radicalmente novos; critérios querelevariam das exigências específicas da arte teatral,das dimensões propriamente cênicas do teatro. Semdúvida, os desvios do esteticismo estão presentes, masa pesquisa formal, orientada pela revolução inovadora,conseguiu de fato renovar profundamente a vidacênica.

.Do ponto de vista da dramaturgia, a reforma doteatro se processa desde dentro daquele realismo àmaneira de Tchekov e Ibsen. Diversos dos maisimportantes defensores do realismo terminaram porsuperá-l o, como aconteceu com Ibsen, Strindberg,Hauptmann, Bernard Shaw. Shaw, por exemplo, àmedida que evolui, compreende que o palco deve seraceito como palco, e que nele se mostram certas per-sonagens; Major Bárbara ainda é, no sentido tradi-cional, uma peça de salão; mas os grandes textos damaturidade transcendem em muito as limitações daprimeira fase.

Mas quem se propôs de fato libertar o palcodaquele realismo foi Pirandello. Aliás, o próprioPirandello se ocupa do assunto no prefácio que escre-veu à sua peça Seis Personagens em Busca de umAutor. Neste texto, que é fundamental para a compre-ensão do nosso problema, a certa altura perguntaele o que é o próprio drama para uma personagem. Eresponde: "O drama é a razão de ser da personagem;é a sua função vital: necessária para existir". E acres-centa: "Eu, daqueles seis, aceitei o ser e recusei a razão

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de ser" 3. As personagens podem ser românticas,mas a peça não o é; elas estão aí, diante do público,iluminadas no vazio do palco, despidas de sua razãode ser. Abandonando o realismo, Pirandello abre asportas que tornariam possíveis um Lorca, um Thorn-ton Wilder, um Duerrenmatt, um Cocteau. Com Pi-randello, a personagem começa a perder a sua própriaidentidade: sua personalidade se perde na dialéticaentre ser e parecer. E com isso os preceitos realistasdo teatro se desfazem, entram em decomposição. Oresultado foi aquilo que Melchinger chama de "renas-cença das formas" 4. Verifica-se a superação daquelaestreita compreensão do real e o surto de uma aberturapara a "anti-realidade".

A "renascença das formas" trouxe ao teatro todauma gama nova de possibilidades, devendo-se mesmoacrescentar que essas possibilidades têm dimensõescujas decorrências permanecem ainda, numa largamedida, insuspeitadas; embora a maioria dos grandesreformadores tenham desenvolvido as suas teorias nosprimeiros decênios do século, tudo indica que estamosvivendo tão-só o início de um novo período da históriado teatro. Os principais indícios dessa renovação po-dem ser encontrados em diversos pontos: - muitocuriosamente, a influência do teatro oriental é notávelem não poucos dramaturgos de nosso tempo; a pre-sença do Oriente é uma constante também em prati-camente todas as modernas teorias do teatro. Por outrolado, o passado do teatro ocidental passa a ser vistocom novos olhos; desde os gregos e os mistérios me-dievais, até o teatro barroco, o teatro espanhol doSéculo de Ouro, a Itália da Commedia dell'Arte - aconsciência histórica torna-se um fato atuante.

A constante dos últimos séculos do teatro ociden-tal pode ser vista na primazia absoluta que se costumaemprestar ao texto, e é exatamente tal primazia queentra em crise em nossos dias; se é verdade que essacrise tem raízes românticas, apenas no século XX con-segue ela adquirir proporções maiores. Em decorrência,

(3) in Sei Personaggi in cerca d'Autore. Mondadori,1951. Pág. 12.

(4) in Drama zwischen Shaw und Brecht. Bremen, 1957.Pág. 37.

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outros aspectos do teatro que não os literários começama ser valorizados, sendo inclusive, em certos casos, le-vados a uma absolutização. O palco, como dissemos,passa a ser compreendido como palco. O ator co~eçaa ser valorizado sob muitos aspectos: pantomima,acrobacia, canto, dança etc. E se essa maior amplidão éexigida pelo teatro teatral, ela também ~eve ser com-preendida a partir da própria dramaturgia. Ao tempode Ibsen, o drama, à maneira do próprio Ibsen, erapraticamente o único gênero dramát~co admitido: ~soutros não existiam, ou só eram praticados em condi-ção de inferioridade. De nossos dias, ao contrário,pode-se dizer que todos os gêneros dramáticos sãocultivados.

Mas cremos que estas sumarias indicações sãosuficientes para que se possa compreender a realriqueza do teatro contemporâneo e o profundo sentidode problematização que o info~ma; po~que o 'passad~não é apenas aceito ou repetido: muito mais ele erepensado, procurando dar-se ao que parece .anacrô-nico novas possibilidades, num processo inventivo querecusa limites.

Há pouco usamos uma expressão que nos condu-zirá a um segundo problema do teatro de nosso tempo:dissemos que a consciência histórica se torna um fatoatuante. Realmente, ela deve ser apontada como umdos fatores que determinam a vida teatral de hoje.

Por consciência histórica não entendemos aqui otexto histórico, o drama que se ocupa com temas his-tóricos, tal como o encontramos em Shakespeare ounos românticos; também não nos queremos referir atoda essa dramaturgia que se prende à tomada de cons-ciência do processo histórico, por importante que sejao problema da função social que essa dramaturgiapossa desempenhar. A verdade éque o drama históricoou a tomada de consciência, através do teatro, doprocesso histórico, não são elementos específicos doteatro contemporâneo. Por consciência histórica que-remos entender aqui o fato de que a totalidade da dra-maturgia ocidental - e mesmo não-ocidental - per-

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tence ao repertório do nosso teatro, o que obriga acolocar certos problemas que afetam a própria situaçãodo teatro.

De um modo geral, pode-se afirmar que no pas-sado cada época se limitava à sua própria dramaturgia.Assim, o teatro elisabetano montava exclusivamentetextos elisabetanos. Tudo era expresso em um estiloúnico, que não se confundia com o de outras épocas. Emais tarde, quando, aos poucos, se passou a montartextos de períodos anteriores, essas montagens nãoapresentavam preocupação maior com o sentido dafidelidade histórica: o texto antigo era abordado semescrúpulos, segundo os padrões da época em que eramontado. Um autor chegou mesmo a dizer que sepoderia escrever uma história do teatro moderno estu-dando a evolução dos figurinos de Ofélia através dosúltimos séculos.

A consciência teatral do nosso tempo é universal,no sentido de que montamos todo o passado da dra-maturgia e de que a consciência histórica acompanhaa montagem de cada texto. Procura-se apresentarShakespeare em moldes elisabetanos, Sófocles comose vivêssemos na Grécia antiga, pesquisa-se a IdadeMédia para reproduzir com a máxima verossimilhançaos autos medievais. Já nesse sentido histórico, pode-mos afirmar que a nossa época não tem um estilo, masestilos, porque está freqüentem ente preocupada com aobediência à autenticidade histórica. Essa mentalida-de, que hoje é patrimônio inclusive do público freqiien-tador do teatro, era estranha aos outros períodos dacultura ocidental. Voltaire, por exemplo, ainda dizia:"Eu não sinto grande prazer na leitura de Plauto eAristófanes". E explicava: "Eu não sou grego, nemromano ... " 5. O mesmo Voltaire não pôde deixarde reconhecer o talento desse "gênio bárbaro" que éShakespeare; mas apressa-se a acrescentar que foiprecisamente o "mérito deste autor que pôs a perder oteatro inglês" 6. Percebe-se que Volta ire só consegueaceitar um teatro que afine com o seu próprio gosto,isto é, com o gosto do classicismo francês, ao qual

(5) in Lettres Philosophiques. Classiques Garnier, 1951.Pág. 115.

(6) Idem, pág. 105.

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ainda permanece preso. Na Alemanha, para citar maisum exemplo, Gottsched, Lessin, Goethe, Schiller, dis-cutem longamente sobre as vantagens e as desvantagensde montar Shakespeare ou os franceses. No séculoXX, esse tipo de polêmica perdeu qualquer sentido:tudo é posto sobre o palco. A rigor, não há mais cri-térios; ou melhor: o único critério realmente decisivoé, amiúde, a viabilidade prática do texto. O teatro doséculo XX não se limita sequer às fronteiras do mundoocidental: vai buscar peças onde elas puderem serarrancadas, numa ânsia de novidade que se afirmasoberana. Pode-se até dizer que, em comparação aoexclusivismo dos séculos passados, se verifica hoje umaespécie de inescrupulosidade. Tudo se passa como se onosso tempo histórico fosse a condensação mesma dacultura, de toda a história.

Compreende-se que tal consciência histórica viessealcançar uma repercussão profunda no teatro contem-porâneo. O problema é complexo, e queremos chamara atenção para algumas de suas facetas.

A primeira e talvez mais significativa resultanteda historicização da consciência foi o surto do diretorde cena. Sem dúvida, a função do diretor sempreexistiu. Mas só em nossos dias encontramos o diretorcomo um profissional, com atribuições específicas eautônomas: ele assume a importantíssima tarefa de sero princípio de unidade do espetáculo. Evidentemente,o surto do diretor, na acepção moderna da palavra,deve ser explicado por uma série de causas, a começarpela desorganização e pela decadência que invadiramo teatro no decorrer do século passado. Mas a causafundamental do aparecimento do diretor deve ser vistana consciência histórica. Não é por acaso que o pri-meiro grande antepassado do diretor, tal como o enten-demos hoje, é o Duque de Saxe-Meiningen. Elebuscava realizar os seus espetáculos a partir de prin-cípios que lhes emprestassem organicidade; mas essepensar o espetáculo, ou o "realismo" perseguido peloduque, era motivado precisamente pelo sentido da fide-lidade histórica. Na mesma época em que a históriaadquire foros de ciência, o duque fazia anteceder à mon-tagem de cada espetáculo uma rigorosa pesquisa sobreo período, os costumes e o ambiente em que se desenrola

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a ação dramática do texto escolhido. Entre outros fato-res, .foi es~e sent~do de pesquisa que tanto estimulouStanislavski, Antoine e outros diretores da época (em-bora Antoine realizasse o seu trabalho até a fase do~d~o?, tão-só em uma perspectiva' social e nãohistórica},

Acres~ente-se ainda que, além de suscitar a pre-sen9a do diretor, a consciência histórica tornou muitomais complexo o trabalho do teatro em sua totalidade.O ator, por exemplo, não pode mais ter apenas um estiloou prender a sua arte a convenções fixas, como aconteciano classicisrno francês ou no teatro elisabetano. O ator~ C:>Uao. menos o ator ideal - tende a possuir um do-rmmo universal de todas as técnicas, de tal maneira que~le possa, ao menos em princípio, trabalhar qualquertipo de_texto. .Iss,? .exige do ator um longo período defc:>rmaçao,que justifica por si só a existência, em nossosdias, das escolas de arte dramática.

. ,l!m segundo aspecto da questão: a consciênciahistórica traz consigo o perigo da esclerose. Uma dasconse~üê~cias. Il}<l:isc?riosas e mais problemáticas daconsclencla histórica e o museu - "cette maison del'i.?co~érence", segundo Valéry. Nas artes plásticas,nao sao apenas os artistas antigos que se tomam "eter-nos" após terem sido catalogados em museus· nelesmesmo os. artistas de hoje, ainda vivos, são ad~itidos:O ser ace~to P?r um !lluseu funciona como garantia deconsagraç~o ~ Imo~,ahdade. Claro que isso implica pro-blemas senssrmos, Ja porque a obra artística é arrancadade seu ambiente vital; presa em um museu, confina-sea art~ .a. suscitar uma contemplação puramente estéticae artificial: o museu empresta à arte uma função abs-trata.

Essa situação pode ser constatada também no tea-tro. Hoje há organizações que chegam a ser especiali-z~das nesse t!PO de teatr~-museu - um trabalho quenao pode, altas, ser considerado como desprovido deméritos. É freqüente encontrar companhias profissionaise mesmo grupos amadores que montam espetáculos coma preocupação exclusiva pela fidelidade histórica comose disso dependesse a validez de seu trabalho.' Acon-tece então que a perspectiva que obedece à monta-

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gem de tais espetáculos é, digamos, estético-histôrict.,Passa-se a exigir do público que ele seja formado de his-toriadores ou de especialistas "eruditos" (perguntam comindignação: por que os atores de tal espetáculo de Mo-liêre não usam perucas?). Nesse momento o teatroentra em crise, pois tende a perder a sua função, ou as-sume um papel abstrato, pedante, artificial.

A fim de evitar o perigo da desvitalização ou dedesatualização do teatro buscam-se hoje diversos antí-dotos. O primeiro consiste em reescrever a totalidadedo texto, elaborando assim uma peça nova, de modoa adaptar o antigo à mentalidade contemporânea. É oque vem fazendo um Sartre com diversos textos dorepertório tradicional; ou ainda, como em sua peça AsMoscas, retomando a problemática do mito gregodentro de dimensões atuais. Adaptações desse tipo sãofreqüentes hoje e ocupam um lugar importante na dra-maturgia; basta lembrar nomes como Anouilh, Haupt-mann, Giraudoux, Gide, O'NeiU, Hofmannsthal. Nomais, o processo de adaptar ao próprio tempo o temaantigo não apresenta novidade maior, a não ser, talvez,pela quantidade: a Efigênia de Racine traz o temagrego à mentalidade do classicismo francês, e Goethetentou converter a mesma Efigênia aos ideais do elas-sicismo alemão.

Uma segunda maneira de resolver o problemareside no espetáculo. Neste caso, o diretor assume umpapel extremamente importante: ele se empenha emexpressar uma problemática moderna a partir de umtexto antigo. Poderíamos dizer que o espetáculo, atra-vés do diretor, pensa e assume uma posição em relaçãoao texto. É verdade que toda direção, sempre e neces-sariamente, interpreta o texto, mas no presente casotrata-se de fazer derivar do diretor e não do autor aintenção geral do espetáculo. Claro que tal preeminênciado diretor pode suscitar, como de fato vem aconten-cendo (e, significativamente, acontecia muito mais noséculo passado e nos primeiros decênios do atual),certas polêmicas. Não obstante excessos condenáveis,deve-se, no entanto, respeitar as tentativas de atualizaçãodo repertório antigo e reconhecer que o teatro nemsempre é compatível com purismos literários. De qual-quer forma, não é a Comédie Française, com toda sua

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"excelência" e suas inegáveis qualidades que poderenovar o teatro francês, e sim o espírito de liberdade,de compromisso e de criatividade de um Planchon.

Finalmente, uma solução intermediária ao proble-ma pode ser encontrada na fusão das duas primeirassoluções. Foi assim que Brecht montou textos comoEduardo Il, de Marlowe, e Antigona, de Sófocles, tor-nando-se atuais através da readaptação do texto e dastécnicas próprias utilizadas em seus espetáculos.

Todas estas tentativas de revitalizar o teatro antigonão devem excluir, entretanto, ao menos em princípio,a montagem calcada na exigência de integral fidelidadehistórica; tudo depende do texto escolhido. Mas o queimporta não é a obediência ao principio da autentici-dade histórica; por si só, tal autenticidade nunca é Umcritério suficiente. O mito do texto é muitas vezes oprincipal responsável pelo anacronismo de certos seto-res do teatro contemporâneo. O que nunca deve serperdido de vista é a necessidade de dar ao teatro umafunção viva, atual, que consiga realmente atingir oespectador de hoje, que diga algo ao homem sobre asua situação no mundo. A má fé do teatro consiste emmontar um texto de Comeille como se o público de nos-sos dias continuasse sendo o mesmo do tempo de Cor-neille ou como se o teatro devesse resguardar a paz daconsciência de Corneille. Por isso, o principal perigo daconsciência histórica - perigo que mal consegue dis-farçar os valores positivos dessa consciência - é fazerincidir o teatro num esteticismo passivo, como se o restodevesse vir, espontaneamente, por acréscimo.

Gostaríamos de chamar a atenção para um outroaspecto, profundamente positivo, da historicização daconsciência. Referimo-nos acima ao papel importanteque exerce o passado teatral no processo de renovaçãodo nosso teatro: não se trata tão-só de assimilar passi-vamente as lições do passado, mas de recriar, de fazerum teatro novo. E a consciência histórica nos dá maisuma outra grande lição.

As conseqüências daquele realismo decadente, aoqual anteriormente fizemos menção, continuam presen-tes no teatro de nossos dias. T. Williams é o exemplo

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típico de uma dramaturgia que teima em fixar-se emproblemas excessivamente particulares e subjetivos. Éum teatro que prolonga uma agonia sempre mais com-prometida com a morbidez e a ausência de perspectivasnovas. Um antídoto a esse tipo de dramaturgia podeser encontrado em textos clássicos, na medida em queeles realizam o que se poderia denominar de tendênciaao épico; são ainda os clássicos que nos permitemdespertar para o sentido da grande ação dramática, tãoausente das preocupações dos dramaturgos contempo-râneos. Porque com a ascensão da burguesia o dramatendeu a perder, gradativamente, qualquer contato coma dimensão épica. O tema merece uma breve análise.

Com indébita inspiração em Aristóteles, procedeu--se a uma rigorosa distinção entre os diversos gênerosliterários. E é desnecessário dizer que Aristóteles nãose caracteriza por tal mentalidade c1assificatória. Evi-dentemente, ele estabelece distinções entre o poemaépico e a tragédia: diz que a tragédia emprega a músicae se expressa no espetáculo, o que não poderia aconte-cer com o poema épico; acrescenta ainda que o poemaépico é mais longo que a tragédia e tem outra métrica.Mas a idéia de que a tragédia e o épico sejam entidadesautônomas é estranha a Aristóteles. No capítulo 24 desua Poética chega a dizer que "o poema épico deve teras mesmas formas (ou variações: eidê) que a tragédia"e, incisivamente, acrescenta mais adiante: "as partesconstituintes devem ser as mesmas, com exceção damúsica e do espetáculo". No capítulo 8, quando discutea unidade da tragédia, os exemplos que dá são tiradosde Homero e não dos dramaturgos gregos. Assim, entreo épico e a tragédia há, segundo o filósofo grego, umcomércio maior do que possa parecer à primeira vista.

Hegel, por sua vez, compreende o drama como asíntese da poesia épica e da poesia lírica, isto é, comoa síntese entre o objetivo e o subjetivo. Da poesia lírica,o drama conserva o sentido da subjetividade, do con-fessional; e do poema épico guarda a exigência da açãoobjetiva, ou da objetivação através da ação. E o impor-tante é que para Hegel a exigência da objetivação emsentido épico é decisiva para o drama: de fato, afirma

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ele que a realização voluntária da interioridade "seexterioriza, se objetiva no sentido da realidade épica" 7.

Mas é exatamente esse compromisso do dramacom a dimensão épica, salientado por Aristóteles eHegel, que se atrofia em nossos dias com muita facili-dade. O drama, tal como é compreendido pelo otimismode Hegel, é O apanágio dos povos altamente desenvol-vidos. Mas o que hoje se verifica com irritante cons-tância é a concentração do drama em uma açãopuramente subjetiva ou intersubjetiva. Se quisermosempregar a terminologia hegeliana, devemos dizer quea ação não se objetiva no sentido da realidade épica,mas no sentido da realidade subjetiva, ou do lírico.Esta redução do drama a problemas de ordem pura-mente subjetiva torna pequeno o teatro, e o faz incidirem uma dramaturgia que a rigor não apresenta nenhu-ma saída. Os textos clássicos nos podem ensinar umsentido mais largo da ação humana, de uma ação maisobjetiva, mais empenhada no mundo. Digamos queneles o mundo da ação se identifica com a ação domundo; e é precisamente nessa coincidência que radicaa tendência ao épico.

Mas deixemos a consciência histórica e passemosa um terceiro problema.

Devemos considerar agora a situação dos funda-mentos estéticos do teatro; trata-se de um problemaque deixa ver toda a profundidade da crise que atra-vessa o teatro contemporâneo.

A fim de evitar uma complexidade maior, po-demos restringir-nos a algumas breves consideraçõessobre os tempos modernos. A partir da Renascença,a produção dramática "oficial", de um modo explícitoou não, é feita em torno da discussão daquilo que seconsidera os preceitos ou as regras de Aristóteles. Dis-semos "daquilo que se considera" aristotélico, porquequase sempre - senão sempre - Aristóteles é mal--interpretado. De qualquer forma, a dramaturgia se

(7) in Esthétlque, trad. S. Jankélévitch. Ed. Aubier, Pa-ris, 1946. Tomo III (2\1 parte), pág. 215.

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constitui à sombra da influência aristotélica, permane-cendo, fundamentalmente ao menos, presa a certasnormas que são compreendidas como pertencentes àprópria natureza do drama. Mesmo quando se verifi-cam discordâncias ou inconformidades em relação a Aris-tóteles, o critério que permite julgá-Ias continua sendo asua Poética, muitas vezes através da interpretação deseus comentaristas. Assim, os franceses pretendem seguirfielmente as normas do Estagirita, codificadas na ArtePoética de Boileau ou na obra de outros estetas. JáLessing discorda da fidelidade arvorada pelos franceses,a ponto mesmo de afirmar que Shakespeare está maispróximo que eles do ideal antigo e da finalidade queAristóteles prescreve para a tragédia. De qualquer ma-neira, deparamos com um teatro que, embora discordeneste ou naquele ponto daquilo que se julga aristotélico,permanece basicamente preso à Poética do filósofogrego. Seguem-se fielmente idéias como a da unidadeda ação, da coerência dos caracteres, o princípio daimitação e a idéia de que a ação dramática deve terinício, meio e fim; a importância da intriga e tambémda peripécia e do reconhecimento; a compreensão doherói trágico; o problema da catarse provoca polêmicasviolentas; e mesmo a idéia de que a comédia, ao con-trário do que acontece com a tragédia, representa"homens inferiores" é acatada com respeito.

Acontece, porém, que estas exigências todas aospoucos entram em crise. Resguardadas as exceções, oprimeiro grande sinal de seu desfalecimento é o teatroromântico. Compreende-se: o romantismo não é ape-nas uma reação contra o classicismo ou contra a culturaque o antecedeu imediatamente. O romantismo é a criseda própria cultura ocidental - é o primeiro momentode um processo ao qual continuamos ainda hoje presos.O caráter avassalador dessa crise radica no fato de quea totalidade dos valores sobre os quais se apóia o mundoocidental passam a ser problematizados; são valores queperdem a sua vigência, despidos que são de sua dimen-são de fundamento último e estável. E o que afeta atodos os aspectos da cultura não poderia deixar de atin-gir também o teatro. Daí o caráter caótico, confuso,do teatro contemporâneo: também ele sofre essa ava-lanche de problematização radical, que incide sobre

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os seus próprios alicerces - razão pela qual se podeafirmar que hoje já não se encontra uma forma únicapara o teatro, mas topa-se com o informe que buscaformas.

A situação de Aristóteles permite compreendermelhor o caótico e a crise. Sem dúvida, há muitosautores que continuam, total ou parcialmente, obedien-tes a uma linha aristotélica. Mas hoje chegou-se a com-preender claramente que a estrutura preconizada parao drama por Aristóteles não passa de uma estruturaentre outras possíveis - e o que se pesquisa são estasoutras estruturas. Não foi, de resto, difícil encontrá-Ias:a descoberta do passado - mais uma vez a consciênciahistórica - oferece ricos exemplos de uma dramaturgianão-aristotélica. O teatro oriental, os mistérios medie-vais -, que ignoravam simplesmente Aristóteles e a"tirania" de suas normas -, o auto-sacramental deCalderon, Shakespeare e o teatro elisabetano, e, no ro-mantismo, um Buechner, um Grabbe - passaram afuncionar como modelos. De fato, tais influências serãopoderosas em autores como Claudel, Lorca, Schehadé,T. Wilder e tantos outros.

f: impossível, contudo, tocar no problema de umadramaturgia não-aristotélica sem mencionar o nomede Bertold Brecht. Nesse ponto, Brecht é de umaimportância fundamental; e não só como dramaturgo,mas também como homem prático nas lides teatrais epelo seu feliz hábito de complementar a edição de suaspeças com ensaios teóricos nos quais ventila os mais di-versos problemas do teatro. Brecht tenta uma reformatotal da arte cênica. Seria ingênuo dizer que o teatro dofuturo será brechtiano - Brecht é demasiadamenteBrecht -, mas suas idéias apresentam virtualidadescujas conseqüências permanecem imprevisíveis.

O antiaristotelismo de Brecht pode ser exemplifi-cado através de diversos pontos, embora não se devaesquecer que é sempre o resultado prático - o espetá-culo brechtiano - que permite aquilatar a extensão eo valor de sua reforma. Antes de mais nada, o radica-lismo de Brecht recusa a idéia do teatro como arte, nãoobstante certas ambigüidades que acompanham a suaevolução e a despeito das vacilantes tentativas de recon-

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ciliação com o estético no fim de sua vida. A idéiaaristotélica de que o drama deva ser um todo fechado,harmônico, perfeito, dotado de princípio, meio e fim,como composição uniforme, linear, necessária, é recu-sada por Brecht; ele quer montagem, ausência, de har-monia estética, independência das cenas; recusa porisso a coerência da intriga. Recusa também as famosasunidades de ação, espaço e tempo. Ação, espaço etempo devem ser fragmentados, e passam a ser trata-dos por Brecht de diversas maneiras, evitando o maispossível o princípio de unidade. Aristóteles pede aindaunidade dos caracteres, coisa que Brecht também nãopode aceitar, e por uma razão suficientemente radical:não existe personalidade; o homem é compreendido tão--só como o "conjunto de todas as relações sociais".

Mas o que Brecht mais ataca em toda a tradiçãoaristotélica é a função da catarse. Se o espectador deveser purgado de certos sentimentos, ele é "engolido"pelo espetáculo, no sentido de que a sua atividade égasta, usada. O importante, contudo, não é aliviar ohomem ou melhorar a sua alma, mas despertar a ati-vidade do espectador enquanto ser social. A catarsetorna pacífico o homem em relação ao mundo; o espec-tador passa a sentir-se em casa no mundo, como seeste fosse eterno. Mas segundo Brecht, nesta etapafinal do capitalismo, o teatro deve mostrar que o mundo,longe de ser eterno, é regido por valores que devem epodem ser modificados. Esse processo de despertar oespectador para uma tarefa que ele deve assumir é amola impulsionadora que permite compreender asintenções últimas do teatro de Brecht. E em relaçãoa essas intenções últimas surge a função do famosoefeito épico (que nada tem a ver, diga-se de passagem,com o épico no sentido tradicional, pois mesmo aspossíveis coincidências inserem-se em planos diversose obedecem a sentidos diversos). O efeito épico ou dedistanciamento consiste no emprego de certos recursoscênicos, através dos quais o espectador possa vencersua passividade e assumir uma atitude crítica diantedo espetáculo e, a posteriori, diante do mundo.

Alguém poderia contestar: sim, mas esse antiaris-totelismo permanece uma exceção, porque Brecht éum caso único e os seus escassos seguidores são epí-

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gonos sem importância maior. E realmente, Brechtnão pode ser considerado fundador de uma escola;sua influência é considerável, mas dispersa. A questão,porém, não é tão simples. Se Brecht conseguiu levar,quantitativa e qualitativamente, os recursos própriospara atingir o efeito épico ao seu extremo, transfor-mando-os em sistema, esses recursos não são exclusivi-dade sua, nem foram por ele inventados. Bem pelo con-trário, são recursos que se apresentam com uma certaconstância em muitos autores contemporâneos, paranão falarmos de certos aspectos do teatro tradicional, esobretudo, do Oriente 8.

Além disso, existe hoje um antiaristotelismo aindamais radical que o de Brecht, embora não venha acom-panhado dos numerosos escritos teóricos que carac-terizam o fundador do Berliner Ensemble. De fato, osautores de vanguarda, cujos mais aplaudidos represen-tantes são hoje Beckett e Ionesco, constituem uma signi-ficativa corrente do teatro contemporâneo, iniciada jáem fins do século passado. Em suas obras, o antiaristo-telismo é freqüentemente mais radical que em Brecht:já não se trata de desobedecer a alguns ou mesmo atodos os preceitos de Aristóteles. O fundamental noteatro de vanguarda não consiste tão-só em recusar,por estas ou aquelas razões, preceitos tradicionais; oque o inspira é a convicção da impossibilidade de se-gui-los porque o seu pressuposto último perdeu vigência,o que não acontece no caso de Brecht. O pressupostoúltimo ao qual nos referimos é o próprio sentido darealidade. A estrutura que Aristóteles encontra na tra-gédia fundamenta-se, em última análise, no fato, jamaisposto em dúvida, de que o cosmo tem uma estruturae um sentido basicamente positivos. No caso de Brecht,é apenas o mundo atual, com sua estrutura social cadu-ca, que se tornou absurdo, e o seu teatro pretendelançar mão de recursos que permitam a instauração deum novo humanismo. Já o niilismo dos autores devanguarda não permite qualquer crença ou a idéia deatingir um novo sentido. Eles se confinam a uma posi-ção de passividade ou no máximo de revolta diante

(8) Sobre esta tradição épica, consulte-se o livro de Ma-rianne Kesting. Das Epische Theater. ed, Kohlhammer, Stut-tgart, 1959.

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do niilismo ocidental, que parece então ser uma espéciede ponto conclusivo. Evidentemente, Brecht tem aomenos o mérito de recusar tal passividade e de lutar poruma nova ordem de coisas. Isso não impede, porém, quea experiência antiaristotélica seja nos autores de van-guarda mais profunda que em Brecht, embora menosjustificada.

Podemos assim dizer que, do ponto de vista esté-tico, o teatro contemporâneo atravessa uma crise defundamentos. Por um lado, continua preso à tradiçãoteatral, mas por outro busca, de um modo freqüente-mente caótico, aventurar novos horizontes. A tão co-mentada crise resolve-se, portanto, em variedade de di-retivas, em uma vitalidade transbordante que deixa verno teatro atual um amplo laboratório de experiências.

Para concluir, queremos abordar um quarto pro-blema que não pode ser esquecido se se quiser compre-ender a situação do teatro contemporâneo: trata-se darelação entre palco e público.

A transcendência do problema releva do fato deque ele esconde o próprio sentido da atividade teatral,de sua razão de ser. Aqui também se fala em crise,embora certos estatísticos protestem, não sem ingenui-dade, afirmando que o teatro nunca teve tanto públicocomo atualmente; não está nesse ponto, entretanto, oproblema fundamental. Também se fala muito da crisecomo resultante da concorrência que fazem o cinemae a televisão ao teatro: mas isso tudo não tem muitosentido e toca apenas de leve o aspecto que realmentedeve ser examinado. O problema é muito mais o daprópria função do teatro como arte, e das condições desua realização.

A questão vem sendo focada nos mais diversosplanos. Eliot, por exemplo, coloca reiteradamente, atra-vés de uma série de ensaios, o problema da possibilidadedo drama em versos - questão que é mais importantedo que possa parecer à primeira vista. Outros perguntampela função educativa do teatro; alguns preferem eluci-dar a possibilidade do drama religioso; muitos debatemo problema da dimensão social da arte, e querem saber

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se o teatro deve ou não estar subordinado à consciênciapolítica e de que. maneira; e ainda outros perguntam,como que descobnndo o ovo de Colombo: o teatro nãoé antes de mais nada diversão? O próprio Brecht vaciloumuito, ao longo de sua carreira, entre esses dois pólos,o teatro com dimensão pedagógica e o teatro como di-versão. Parece-nos que o importante, para começar acompreender o problema, é não esquecer que essas per-guntas e polêmicas são especificamente nossas, de nossotempo. São interrogações que não poderiam apresentarnenhum sentido maior para um Shakespeare, por exem-plo, .porque naquel~ tempo o teatro, isento de tais pre-plexidades, preenchia aquelas funções todas ou as sele-c~onava de um modo espontâneo. O teatro grego, o me-dieval, ou o teatro do Século de Ouro espanhol, eram vi-sões totais do mundo e da situação humana - e con-comitantemente divertimento. O que ontem era espon-tâneo ou objeto de discussões menores (e essas dis-cussões crescem em importância à medida que "progri-dem" os tempos modernos), passou hoje a ser objetode problematizações não raro desconcertantes, e as di-versas funções possíveis do teatro, divorciadas umas dasoutras, brigam entre si. No mais, o problema não afetaapenas o teatro, e talvez possa ser colocado de um modoaté mais contundente em relação à pintura e à músicacontemporâneas.

Claro que um determinado dramaturgo, sempre sepoderá decidir por tal função para o teatro, e um outrodramaturgo por outra função; a necessidade de to-mar decisões desse tipo acompanha a evolução de cadadramaturgo, o problema se recoloca diante de cadanova pe?a, para generalizar-se em seguida e atingiratores, diretores e o próprio público. Talvez se possatomar o problema às avessas e dizer que o que deter-mi~a a necess,id~de de tais decisões é a apatia da grandemaiona do público, acostumado a pedir ao teatro o mí-nimo indispensável para esquecer-se das preocupações,da alienação, da solidão etc., etc., do homem moderno.Já essa apatia implica o imperativo de encontrar osmeios de vencê-Ia e de fazer compreender o alcancede uma decisão sobre a natureza e a função do teatro.A decisão é obviamente séria e exige muita lucidez e

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responsabilidade. Mas exatamente aqui radica a gra-vidade do problema: se o teatro exige tal tipo de deci-sões, e isso precisamente em relação ao problema desua própria razão de ser, é porque essa razão de serestá em crise. Convém deixar a afirmação clara: nãose trata de asseverar que o teatro já não tenha razãode ser, mas que sua razão de ser está em crise. E o quevale para o teatro vale também para todos os aspectosda cultura de nosso tempo; não se trata, é evidente, deum problema particular, mas de um problema geral; eesse geral, do qual o teatro é um aspecto, é a própriasituação de nossa cultura.

O que está em jogo é nada mais nada menos que3 unidade do fenômeno teatral: é sempre em relaçãoà sua profundidade que a função do teatro pode terum sentido natural e espontâneo (e cabe perguntar atéque ponto o emprego desses adjetivos se justifica emnossos dias). De fato, todas as partes que integramo teatro devem ser concebidas como constituindo umtodo perfeitamente unitário; desde o texto até o público,nenhum dos elementos vale por si mesmo, eles sóadquirem sentido dentro de sua relação de reciprocida-de. Por isso mesmo, o lugar físico do teatro - a arenaou a casa de espetáculos - é onde se consuma ofenômeno teatral, a unidade do teatro. Isto vale paraos gregos, para os medievais, vale para um Shakespeare.

A partir da Renascença inicia-se o lento processode dissolução do sentido profundo da unidade do fenô-meno teatral - dissolução que desemboca no niilismode nossos dias. Podemos compreender o niilismo àmaneira de Nietzsche, como inversão da ordem dosvalores e a conseqüente decomposição do sentido desua hierarquia. Neste caso, o nii1ismo traria como re-sultante a progressiva dissociação das partes que for-mam o todo da cultura; cada parte tenta como que vivera sua própria autonomia, e então o todo já não se sus-tenta. Isto é válido, por exemplo, para a chamada artepura (que teoricamente pode ser considerada um círculoquadrado, mas que indubitavelmente está fazendohistória), como vale também para o individualismomoderno. O problema é complexo e mereceria umaanálise mais ampla: restrinjamo-nos a algumas indica-ções relativas à situação do teatro.

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Já Aristóteles defende a independência do textoem relação ao espetáculo: o efeito da tragédia nãodepende de sua representação por atores. Fiquemos,porem, .nos tempos modernos, a partir do momento emque se introduz - de um modo inequívoco com o elas-s~cismo francês -, a supremacia do texto sobre o espe-taculo, a tal ponto que os críticos passam a considerar,q?ase sempre, ape?as o aspecto literário do espetáculo.!.a em ~773, Mer~ler chega ao extremo de afirmar queCorneille et Racine ( ... ) sont ( ... ) cent fois plus

beaux dans le Cabinet que sur Ia scêne" 9. Mesmo su-primindo-se os atores, o teatro subsistiria em toda a suabeleza. E logo depois, Augusto Comte vai bater-sepela supressão do que ele chama "l'institution du théâ-tre": por que esta instituição se o homem pode satisfá-zer-~ "isoladameD:te", através da leitura? 10 A supre-macia do texto facilmente resulta em preconceitos e emdesconhecimento da natureza do teatro.

. Se este. era o clima da época, causa surpresa aleitura do VIOlento protesto contra a dissociação detexto e espetáculo feito por Hegel na sua Estética. Dizo grande filósofo que o texto é indissociável do espe-táculo, desde que se queira compreender em sua intei-reza essa forma da literatura. Chega mesmo a afirmarque os textos não deveriam ser publicados em livrodev~ri":ll ci~cular tão-só em ,manuscrito, a fim de qu~o pubhco se pudesse conhecê-los através do lugar quelhes cabe por natureza, o palco. A despeito do exagerodessa convicção de Hegel, não se pode negar que elabrota de uma atitude fundamentalmente sadia.

O fato é que a voz do filósofo alemão não conse-guiu mudar o curso da história, e o processo de disso-

(9) Cit. por André Veinstein, in La Mise-en-scêne théa-trale et sa condition esthétique. Paris, 1955. Pág. 179.

(1.02 ~. texto ?~~omte ~ ~e ~ma "graça" que merece atranscnçao: Le posinvisme doit irrévocablernent éteindre l'ins-titution du théâtre, autant irrationnel qu'immorale en réor-ganisant I'éducati?n universelle, et fondant, par Ia' sociolâtrieun systeme de faits propres à faire dédaigner les vaines satís,factions. Depuis que Ia lecture est assez répandue pour qu'onpuisse par:t0ut gouter, isolén:tent les 7hefs d'oeuvre dramatiques,I,,: pr?~ectIOn accordee au jeu scénique ne profite qu'aux mé-dl,ocr!tes et ce se~o.~rs f~ctice n'empêche pas d'apprécier Iadesuetude spontanee . (Citado por André Veinstein na obraanteriormente referida, pág. 21.) ,

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ciação se acentua à medida que se avança no~· te.mposmodernos. Podemos perceber toda a unport~ncla doproblema atentando para a ~eparação progressiva: s~m-pre mais intensa, que se verifica entre palco e yubhco.Sem dúvida, sempre houve uma certa separaçao ent:eator e espectador - sempre houve aquela separaçaoque há entre aquele que f~z e aquele que .observa o. queestá sendo feito. Mas havia no teatro antigo e medlev~luma integração participante e envolvente, que ~alstarde se veio a perder. No século XVII - para ,Ílc~r-mos nos dados exteriores do problema - o pubhcoainda assistia à ação cênica acomodado inclusive sobreo palco, passando aos poucos a ser_afast~do do lug~rda ação dramática; estabelece-se entao o tipo de arqui-tetura de casa de espetáculos tal como o encontramosem nossos dias (embora hoje, muito significativamente,já existam diversas tentativas de superação da estruturaarquitetônica tradicional). Em relação ..~o ~r~e~so deatividade cênica dos atores, a consequencia ultima ecoerente deste alijamento do público é a famosa"quarta parede" de Antoine. Na filosofia, o itineráriocorrespondente à separação entre público e palco p~eser visto no progressivo distancia~~nto que se verifica,a partir de Descartes, entre o sujeito que conhece e acoisa conhecida. Assistimos a um processo de alhe~-mento que invade o todo da cultura, e que não po~enadeixar de repercutir no teatro. O que entra ,eI? jogonão é apenas um problema exterior ou secundário, maso próprio sentido da função do teatro.

Brecht compreendeu esses problemas de nossarealidade teatral como poucos. O seu teatro didático_ referimo-nos às pequenas peças que de começou aescrever em 1929 - pode ser interpretado como umatentativa para superar essa situação. Mas é uma tenta-tiva que se inscreve dentro dos pressu~ostos .do nossoproblema, porque Brecht resolve a dicotomia ?a~co--público abolindo um de seus .te~os - o publ~co;todos deveriam participar, o mais diretamente possívele por rodízio, do espetáculo. ~?fe~izmente o próprioBrecht abandonou as suas expenencIas dos anos 1929--1931, porque compreendeu a sua inexeqüibilidade e alimitação de suas possibilidades práticas. Sob esse ponto

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de vista, o teatro didático de Brecht é a conclusão deum itinerário histórico, que soube inscrever-se, de ummodo conseqüente, nas aporias do teatro contemporâneo.

Cremos que a questão deve ser colocada, comoponto de partida (e repetimos que se trata aqui tão-sóde um ponto de partida para a compreensão dos pres-supostos do problema), nos seguintes termos: o proble-ma da função que possa ter o teatro permanecerá umproblema enquanto não for encontrada viabilidade pararestaurar a unidade do fenômeno teatral. E a restaura-ção da unidade não pode ser compreendida como meradecorrência da decisão deste ou daquele dramaturgo,da reta intenção de tal grupo teatral ou das justas medi-das que um governo possa vir a adotar. Isto equivalea dizer que esta problemática toda só poderá ser resol-vida na medida em que for superado o niílismo ociden-tal. Não se trata, entretanto, de fazer concessões a qual-quer tipo de nostalgia daquela esplêndida unidade davida teatral dos antigos. O problema da função do teatropermanece um problema porque ele afeta a essênciamesmo do teatro. Enquanto o niilismo permanecer odestino de nossa cultura, tudo o que resta é defenderuma determinada função para o teatro, aquela que me-lhor possa atender à situação do homem contem-porâneo, e lutar pela vigência da função escolhida.'Mas o fundamental é compreender que a próprianecessidade de assumir uma função decorre do nii-lismo, desse niilismo que, queiramo-lo ou não, de-fine a sensibilidade básica da cultura de nossotempo. Não há, em verdade, nenhuma instituição,igreja, partido ou classe social, que possa serconsiderada isenta de niilismo: ou bem o niilismo é detodos e de tudo, ou então ele não tem sentido. O pro-blema da função do teatro não pode ser resolvido ape-nas em termos de teatro, de depende de soluções maisprofundas, que afetam a toda estrutura sócio-culturaldo mundo em que vivemos.

Lamentável seria crer que tal situação possa auto-rizar alguma forma de pessimismo. Porque tudo de-pende do uso que o homem souber fazer de sua próprialiberdade. E no mais, o panorama do teatro no século

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XX é tão vasto, tão variado, tão rico em experiênciase, em certo sentido, tão isento de preconceitos, quetodos os caminhos se encontram abertos. Como sem-pre, tudo depende do homem, e do ambíguo mas espe-rançoso consolo "que ce n'est plus ou pas encore l'heureextraordinaire".

(1964)

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COMPREENSÃO DO TEATRO DE VANGUARDA

"1/ s'agit de montrer et démon.!r:!!r çt-que peut un Moi. Que va [aire ce Moi deDescartes?

Comme il ne sent point ses limites, il vavouloir tout [aire, ou tout rejaire.

Mais d'abord, table rase."Paul Valéry

Diante de certos aspectos insólitos do mundo con-temporâneo, tais como a pintura abstrata, a músicaatonal ou o teatro de vanguarda, o comportamentomais irracional e ingênuo que se possa imaginar é oque tenta explicar esses aspectos como o arbitrário,o gratuito, ou o sem-sentido que desmerece tôda con-

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sideração, como absurda brincadeira de mau gosto,feita simplesmente para escandalizar. Porque "expli-cando" dessa maneira, evidentemente nada se explica,e o descaso em que se incide não deixa de esconderum modo de pactuar com o monstro.

Costuma-se dizer, então, que se trata de sinto-mas passageiros, moda destinada a desaparecer comotoda e qualquer moda. Mas alargando-se deste modoas costas da moda, passa-se a aceitá-Ia como um dadopacífico, renuncia-se a perguntar sobre a sua funçãoprópria. Esquecem-se as palavras de advertência deLeopardi, em um dos mais belos diálogos das OperettiMorali, sobre a morte e a moda, quando o poeta asapresenta, a despeito da aquiescência esquiva da morte,como irmãs, convicto de realizarem ambas uma mesmamissão: a de renovar continuamente a face do mundo."Se devêssemos pôr à prova as nossas forças", diz amoda, "não sei quem de nós venceria a luta ... "

De qualquer maneira, há todo um comportamen-to bem-pensante, que pretende ignorar um largo setordas letras e das artes contemporâneas, quer por nãover nelas valor, quer por não querer ceder ao fantas-ma encoberto por certo malaise. Dessa forma, descon-sideram-se expressões da cultura que se impõem, quei-ramo-lo ou não, precisamente como aquilo que o nossotempo produziu de mais original e revelador. Talcomportamento de descaso, de aparente superioridade,é, contudo, facilmente compreensível. De fato, nin-guém substitui impunemente a metafísica por aquelaestranha "ciência" que o irreverente Jarry apelidou de"patafísica", isto é, - restringindo-nos ao conteúdo daterminologia empregada pelo próprio Jarry, - não sevê razão para abandonar as leis do geral e assumir "leslois que régissent les exceptions".

Embora compreensível e mesmo, até certo pontoao menos, passível de justificação, tal comportamentonão deixa de motivar uma série de injustiças e incom-preensões, para não falarmos de uma certa renúnciada inteligência. - Ocupemo-nos aqui do caso parti-cular do teatro de vanguarda.

A maioria do grande público, quando assiste a umespetáculo desse gênero, reage com a displicência de

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pessoas definitivamente instaladas em um ordem desdesempre estabelecida, ora irritando-se, ora fazendo umapequena concessão, ou ainda assumindo o ar compreen-sivo de quem assiste à última travessura das crianças.Toda essa reação se processa como se a realidade tea-tral, aquilo que deve ser o teatro, tivesse sido determi-nada por uma espécie de imemorial e definitivo a priori,que não admite modificações e condena mesmo comoabsurda qualquer incursão inovadora.

Por outro lado, os entusiastas do teatro de van-guarda comportam-se, demasiado freqüentemente, comtal irresponsabilidade, de maneira tão inócua e gratuita,que passam a fazer jus às invectivas que lhes são feitas.E diante dessa ingênua vontade de "fazer uma barba-ridade", o perigo reside em transferir a irresponsabili-dade aos próprios autores representados, quando, emverdade, ela deve cair, única e exclusivamente, sobrea cabeça de seus promotores. Felizmente, restam ospoucos que, se não chegam a pensar, ao menos pres-sentem uma atmosfera nova e inquietante, vislumbrama configuração de novos cenários, talvez capaz de der-rubar mundos.

No mais, tal pressentimento é confirmado pelaconstância com que se apresenta o teatro de vanguardajá desde há alguns decênios. Pois mesmo se o conside-rarmos em um perspectiva estritamente exterior, há fatosque vêm se amontoando e não podem ser elididos. Nãoestamos diante de uma atividade marginal, espécie deexcrescência confinada a dramaturgos improvisados eatores de arrabalde, mas assistimos ao desdobramentode uma escala - e a palavra é imprópria -, que con-seguiu dominar uma larga parcela do teatro contempo-râneo, arrimada em autores de projeção e artistas deprimeiríssima categoria, e isso não apenas nos grandescentros, mas em todo o mundo ocidental. - Pior parao teatro, diria alguém. Explica mas não justifica, acres-centaria um outro ser pensante, pois não se entendecomo possa o sucesso consagrar o absurdo.

E mencionando ° absurdo, o bom senso do espec-tador inconformado nos aproxima do nosso tema. Oabsurdo deve aqui ser considerado simplesmente como

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o próprio de tudo aquilo que foge às convenções sociaisestabelecidas, e que por essa razão, não podendo seraceito, é tachado de absurdo. Ora, a única definição ge-nérica admissível para o teatro de vanguarda talvez sejaesta: é um teatro que se caracteriza pelo protesto contraas convenções, pela não-aceitação da máquina do mundotal como foi construída pelo homem e tal como elaconstrói o homem.

Daí o seu caráter agressivamente revoltado, desi-nibido, dando mesmo a impressão de ser algo novo oúltimo grito da moda - pois velho é Aristóteles ea sua estética dominadora. Mas essa impressão, secompreensível em relação à rebeldia diante da estéticateatral que nos foi legada pela tradição, pode comoda-mente gerar um equívoco que deve ser desfeito. Oteatro de vanguarda não é um adolescente teimoso, masé avô, mais velho que o nosso século, e vem-se reno-vando com um rigor impressionante desde seu berço,desde a estréia, a 9 de dezembro de 1896, do Ubu Reide Alfred Jarry, em uma noite parisiense que se impôscomo um dos grandes escândalos da história do teatromoderno. É um teatro que já se apresenta, portanto,com certa tradição, e inclui nomes como Ghelderode,Audiberti, Ionesco, Schehadé, Beckett, Adamov, certostextos de Garcia Lorca, e outros mais.

Além disso, se se estabelece uma data de inaugu-ração para o teatro de vanguarda, é indispensávelacrescentar, imediatamente, que houve precursores.O próprio Jarry viu um antecessor de suas idéias emChristian Dietrich Grabbe, de quem traduziu uma daspeças mais saborosas: Gracejo, sátira, ironia e significa-ção mais profunda. Kleist e Büchner também têm a suaparcela de responsabilidade. E ainda Ludwig Tieck,inspirador da citada obra de Grabbe e também ele dra-maturgo, embora mais fraco e por isso mesmo bastanteesquecido. Tieck escreveu uma comédia que leva o sig-nificativo título de O Mundo às Avessas, "peça históricaem cinco atos", mas que, a rigor, de histórico nada tem,a não ser a simbólica e caótica luta pelo poder, configu-rada através da rebelião de Scaramuce, que abandona asua personagem para desobedecer a Apolo, ° deus daordem.

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Ora, estes precursores têm ao menos uma caracte-rística que lhes é comum: são todos românticos. De fato,o teatro de vanguarda, assim como tantos outros aspectosda cultura contemporânea, encontra no romantismo oseu início, e mesmo no pré-rornantismo, no Sturm undDrang, nesse movimento de jovens rebeldes, tão grosd'avenir. Não que seja impossível encontrar elementosprecursores do teatro de vanguarda fora do movimentoromântico. Seria fácil estabelecer afinidades com toda alonga e variada tradição do teatro de improvisação, porexemplo. Mas precisamente no romantismo começa a re-valorização dessa modalidade de teatro espontâneo.Grabbe, Tieck e tantos outros foram seus ardorosos de-fensores, contra a rigidez acadêmica do teatro clássico.E o mesmo pode ser dito do teatro de títeres.

Evidentemente, no romantismo ainda não encon-tramos configurado um teatro de vanguarda; mas encon-tramos as claras raízes que vão permitir o seu advento,e mesmo, em certa medida, a sua caracterização. Emcerta medida apenas, pois as categorias a que obedeceo teatro de vanguarda só podem ser fixadas de maneiraprecaríssima. Comum a todo esse teatro é, como disse-mos, o seu anticonvencionalismo. Em outros aspectos,as generalizações são praticamente impossíveis, o quenão deve ser atribuído à impossibilidade de juízo devidoà falta de suficiente perspectiva histórica. Não existem,por exemplo, coordenadas que permitam dar certa uni-dade à linguagem do teatro de vanguarda. Se em algunsautores encontramos a busca de uma linguagem poética,outros não vão além de um linguajar banal e mesmoantipoético; um terceiro grupo atomiza destruidoramen-te a linguagem, e não faltam autores que combinam di-versos desses processos. O mesmo pode ser dito dotratamento das personagens, da construcão cênica, dasrelações espácio-temporais, da reversibilidade ou respeitoa categorias como o trágico e o cômico. e assim pordiante. Se esta é a situação, a única saída parece ser oestudo particularizado de cada autor.

Mas todos estes dramaturgos como que se ligampela raiz e pagam tributo à sua gênese romântica. Lon-ge de poderem ser considerados como produto de umageração espontânea, apresentam certas característicasque permitem estabelecer, senão uma árvore genealógica

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completa, ao menos certos traços de inequívoca filiação.- Examinemos o problema.

Afirmamos acima que o teatro de vanguarda en-contra a sua gênese no movimento romântico, e mesmono pré-romantismo, no Sturm una Drang, com sua pleia-de de angry young men, jovens poetas dispostos a des-truir a tirania e a rigidez das convenções. Surge entãoa idéia do "homem força", do homem que é a sua pró-pria medida, insubmisso a qualquer forma de imposição,e disposto a construir um mundo novo. O elogio do"gênio", tal como o entende Hamann, abrindo as portasque conduzem ao irracional, empresta a esta nova men-talidade a sua primeira fundamentação.

Novas diretivas passam a nortear a atividade ar-tística, com a instauração de uma arte que pretende serapenas a expressão da vontade, e isto em desprestígiodo mundo objetivo, estabelecido. Por um lado, a von-tade do artista se pretende construtiva em relação a umpiccolo mondo próprio, incluindo o social; por outro, emrelação à realidade objetiva, introduz-se o que os inglê-ses apelidam de dissolving view, isto é, a realidade co-meça a ser desfeita, a ser despida de sua substancialida-de. Expressando-se a si próprio e buscando substituiras convenções vigentes por novas normas, o artista jánão "imita" o real, e inaugura, com esta até então inu-sitada conduta, uma feroz e progressiva crítica à milenartirania da estética aristotélica, que, com passos ao quetudo indica seguros, começa a entrar em declínio.

Tal inconformismo e a conseqüente dissolving viewconstituem precisamente os principais pressupostos detodo teatro de vanguarda. Justifiquemos esse ponto devista.

A raiz filosófica desta modalidade de teatro - eque permite compreender ainda melhor a sua inserção nahistória - deve ser vista no subjetivismo da metafísicamoderna, instaurado por Descartes. De um modo maisespecífico, porém, e isto sem favor ou arbitrariedade, opressuposto histórico-filosófico do teatro de vanguardapode ser encontrado no pensamento de Fichte e naquiloque os literatos fizeram dêsse pensamento. Para o idea-lismo de Fichte - que, em um sentido estrito, pode serconsiderado o primeiro metafísico da subjetividade -

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o mundo e a sua realidade objetiva perdem completa-mente a sua subsistência, a favor de um Eu dotado deum poder quase infinito. De fato, o Eu é compreendidocomo produtor da realidade externa, sensível, constrangi-do pela necessidade de exercer a sua liberdade.

A primeira geração romântica - dos irmãos Schle-gel, Tieck, Novalis e outros - entusiasmou-se justa-mente por essa concepção do Eu, pela desmedida desua capacidade criadora, pelos conceitos de "imaginaçãoprodutora" e de "ação efetiva". Passando do plano filo-sófico ao poético, a transcendentalidade do Eu perde emrelevância, a favor do eu criador do artista, compreen-dido agora como uma realidade existencialmente autôno-ma e apta a criar o seu próprio mundo.

Além disso, em Fichte o Eu é compreendido dentrode uma dimensão eminentemente prática. Se o Eu é fini-to, ele tem consciência do infinito, e tal consciência oautoriza a ir além de seus limites. Pois o que distingueo objeto do sujeito é isto: no objeto o limite é exterior,sem ser sabido, pois, como limite; no sujeito, ao contrá-rio, o limite é interior, é consciência de limite. E terconsciência da própria limitação implica ir além des-sa limitação. Mas esse ir além do próprio limite, longede se esgotar em uma atividade teórica, exige o com-promisso prático, ativo, autocriador.

A categoria do agir, do fazer, da praxis, adquireassim uma relevância fundamental. Benedetto Croce, in-suspeito na matéria, chamou a atenção para as diversasacepções do verbo fazer, mostrando como, na filosofiamoderna, se tende a compreender todo o conhecimentohumano a partir justamente dessa categoria do fazer. Ohomem conhece o real de modo análogo ao ato de fa-bricar um objeto; assim como o homem produz objetos,assim também, obediente a um processo semelhante aodo fazer, ele conhece o objeto. A rigor, pode-se entãoinferir que o homem não conhece o mundo, mas conhe-ce apenas aquilo que ele mesmo produz, trabalho desuas próprias mãos.

A partir dessa posição, compreende-se não só aacepção do conhecimento próprio da filosofia idealista,mas também a preeminência que veio adquirir a idéia dofazer, da praxis, a importância que se passou a dar à

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ação humana - transformadora do mundo, segundoMarx - e a excelência do trabalho técnico, apto agoraa redimir o homem. E assim, o inconformismo inicialdos pré-românticos termina recebendo a sua consa-gração.

Todos os movimentos de rebelião inconformista,característicos da arte contemporânea, encontram nes-tas posições, no que tange à sua motivação filosófica, oseu alicerce histórico. Podemos, então, dizer que, nofim desta linha, inaugurada por Descartes e Hamann eque encontra em Fichte a sua primeira expressão filosó-fica, se situa uma obra como a de Ionesco. Compreende--se, pois, que um Ionesco não possa ser considerado,simplesmente, como uma espécie de aborto da culturacontemporânea, ou qualquer coisa de inconseqüente, masque só possa ser compreendido como a expressão de todoum processo, de toda uma atmosfera, de um comporta-mento (seja teorético ou prático) diante do real, quedeve ser apontado como sendo a regra absorvente quepermite desvendar largas fatias do mundo cultural emque vivemos. O dramaturgo do teatro de vanguarda,arvorando-se em destruidor do mundo, cria, por outrolado, a partir de convenções que são o produto exclusivode sua própria lavra; as suas personagens movem-se emum mundo completamente estranho à mentalidadenormal.

Segundo Nietzsche, o homem que adora a Deusabriga, em seu ato de adoração, a vontade de ser o pró-prio Deus. Em certo sentido, o teatro de vanguardarealiza essa idéia expressa por Nietzsche, saciando pelaimaginação a vontade de poder. Jarry ou Ionesco com-portam-se como se fossem pequenos absolutos, dotadosde um poder demiúrgico que não conhece limites. E en-tregando-se a uma espécie de vertigem autista, colocam--se como que na origem de todas as coisas, ou, o que nocaso equivale ao mesmo, no fim caótico de toda ordemconvencional. Se sua linguagem se torna caótica, essecaos não é apenas o índice de uma civilização já cansa-da de seus próprios meios, mas é também o regresso auma forma primitiva de linguagem. Origem e fim coin-cidem, pois, como o zero do qual tudo emana e para oqual tudo retoma. Situado no ponto zero ou no infinito,o homem pode, enfim, construir o seu mundo original.

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Dentro dessa perspectiva, a diferença fundamentalque existe entre os dramaturgos de vanguarda contem-porâneos e os seus precursores românticos é que, nestes,o mundo existente é destruído com a fé que pretende es-tabelecer uma nova e salutar ordem; ao passo que na-queles se reflete uma das experiências mais aterradorasdo século XX, a do niilismo. Já em Grabbe podemosconstatar um certo comprazer-se na inaceitabilidade domundo. Assim quando, inconsolável, exclama: "Nósnão podemos cair do mundo: estamos nele!" Mas a des-peito desse inconformismo, o romântico raras vezesatinge um desespero radical, com total dimensão niilista,e em poucos meses o tempo ironiza com o suícidio me-tafísico de um Novalis, levando-o a entregar-se à nostal-gia de novos sonhos. As flores negras que começam adespontar nascem em um solo fertilizado pela fé e pelaesperança. Nobres sentimentos, sem dúvida, mas passí-veis de corrosão: Wagner talvez possa ser consideradocomo tendo sido o último grande crente do mundo oci-dental. E assim as vanguardas deparam com uma mon-tanha calva, sentindo-se confinadas a um processo ne-gativo (ou predominantemente tal) de destruição dasestruturas vigentes.

Claro que em um Jarry - para nos restringirmosaos autores citados - há a necessidade de fazer valero insólito, o irracional, o paradoxo que é escândalo paraa razão. Mas devemos perguntar se esse excepcionalconsegue resolver-se em um novo reino, e mesmo seconsegue suportar a si próprio; se realmente é possívelir além do Ubu Rei, isto é, de um imenso estômago, cujafunção digestiva é a sua exclusiva medida, mastigando eremastigando a sua própria excrescência. E, chegando aIonesco, o absurdo parece ser mesmo a palavra final.

O absurdo, considerado como uma das tendênciasdo teatro de vanguarda, pode levar a incidir no erro aque sucumbe toda mentalidade higiênicamente classifica-tória, dessas que contrapõem, como que necessitadas deautodefesa e num arremedo de desculpa, os bons e "ver-dadeiros" aos maus e errados. E então teríamos sim-plesmente o teatro de vanguarda, o absurdo, o niilismoe demais idéias decadentistas, ao lado de outras posiçõesmenos funestas e até mesmo sadias. Ora, isso nos pa-rece demasiado simplório. O teatro de vanguarda não

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pode ser considerado como o produto de uma correntenegra entre outras correntes brancas ou cor-de-rosa, mascomo a expressão de um todo cultural, de uma situaçãohistórica, em que cada aspecto reflete a totalidade doconjunto. Vale dizer - para repetirmos um lugar co-mum - que somos todos responsáveis, e cada aspecto ésolidário com o todo. Se aberrações há, elas devem serenfrentadas como o outro lado de nós mesmos.

(1961)

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IONESCO E O TEATRO PURO

o primeiro contato com o teatro de Ionesco, quan-do não decepciona e afasta, talvez conquiste o especta-dor por uma impressão que parece impor-se como óbvia:a de uma superficialidade confinada a alguns momentoscômicos que se perdem no arbitrário. Brincadeira ab-surda, pois, destituída de qualquer compromisso ou res-ponsabilidade. Todavia, uma observação mais atentatermina dando à obra ionesquiana o realce e a impor-tância a que faz jus, permitindo, aos poucos, avaliar todaa extensão da problemática que sabe propor; e propor,como veremos, de maneira radical e suficientemente am-pla. Em verdade, o plurifacetado teatro de Ionesco deveser analisado sob diversos ângulos, de modo a permitir

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o acesso à diversidade de seus aspectos e, também, a fimde deixar ver a total unidade de concepção que o in-forma.

Ao assistir a uma peça como A Cantora Careca, ainevitável e espontânea pergunta do espectador despre-venido é sempre a mesma: mas isto é teatro? E de fato,o primeiro problema que deve ser colocado é precisa-mente este, o de saber o que entende Ionesco por teatro.Pois o inusitado de sua dramaturgia já pode ser aquila-tado em sua concepção bastante original do teatro, em-bora tal concepção não seja completamente nova, deven-do mesmo ser assimilada à tradição do teatro devanguarda. Mas em Ionesco ela se resolve com talconsciência, tal pureza e maturidade, que chega a dara impressão de que a sua obra é a causa final à qual ten-dia toda essa corrente do teatro, como que a sua inteli-gência enfim plenamente definida. Encarada nessa pers-pectiva, a sua concepção do teatro apresenta-se com aclassicidade do fruto maduro, assumindo até mesmo umcaráter paradigmático. O tema merece consideração.

Qual é, pois, a concepção do teatro defendida porIonesco?

Em um breve ensaio publicado pelo nosso autor,Expérience du Théâtre, na Nouvelle Revue Française(fevereiro de 1958, n? 62), peça insubstituível para acompreensão do problema e destituída do tom de irônicagalhofa que normalmente acompanha as suas declara-ções, tenta pôr às claras as suas idéias, e conclui comas seguintes palavras: "Creio que se tinha esquecido umpouco, nestes últimos tempos, o que é o teatro. E eufui o primeiro a esquecê-lo; penso tê-lo novamente des-coberto, para mim, passo a passo, e eu acabo de descre-ver simplesmente a minha experiência do teatro" 1.

Vejamos, então, o que foi esquecido e qual a redesco-berta de Ionesco.

Realmente, Ionesco confessa-se insatisfeito, e nãosó com o teatro "destes últimos tempos"; sua insatisfaçãoestende-se à quase totalidade da literatura. dramática de

(1) Todas as citações foram extraídas do citado ensaiode Ionesco, Expérience du Théãtre, in Nouvelle Revue Fran-çaise, fevereiro de 1958, nQ 62, págs. 247-270, salvo quandohouver indicação em contrário.

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todos os tempos. Pois a tomada de consciência daquiloque de julga que deve ser o teatro leva-o a aceitar ape-nas alguns autores, o mínimo indispensável: Esquilo,Sófocles, Shakespeare, Kleist, Buechner. Todos os de-mais sofrem restrições: Corneille e Schiller lhe são insu-portáveis; Moliêre é acusado de ocupar-se apenas de pro-blemas secundários, e Marivaux de se perder na futili-dade; Oscar Wilde é fácil, Cocteau, superficial; Pirandel-10, além de inútil, é insuficiente: - e nesse tom, o nossoensaísta continua o seu processo de desmantelamento.

A recusa de Ionesco à quase totalidade da drama-turgia ocidental deve ser compreendida como resultantede sua exigência de maior radicalidade para o teatro.Se Shakespeare parece ser o seu autor preferido, é por-que verifica nele a problematização da "totalidade dacondição e do destino do homem". E a natureza dessasua impenitente exigência pode ser compreendida a par-tir da seguinte afirmação, que se impõe como chave nor-teadora de todas as suas pretensões: "C'est l'art quesemble justifier Ia possibilité d'un libéralisme métaphysi-que". Esta última palavra - metafísica -, que soa demodo antipático e derrisório a tantas pessoas (e não semrazão), é de extrema importância, pois ela aparece combastante freqüência nos ensaios e entrevistas de Ionesco,e sempre acompanhada de certa satisfação, como sendoo ápice iluminador, a razão última, além da qual os ca-minhos humanos permanecem vedados. Para Ionesco,portanto, o teatro deve apresentar um caráter metafísico.

Quando a palavra metafísica surge em semelhantecontexto, a olhos avisados, há quase a certeza de um des-virtuamento de seu sentido próprio. De fato, estamosdiante de um termo que carrega o ingrato destino deser, quase sempre, mal compreendido e, conseqüente-mente, de ser usado em um sentido abusivo. Ionescoparece não fugir à regra, e talvez possamos compreendermelhor o que ele quer dizer substituindo a palavra "me-tafísica" pela expressão "trans-historicidade", compre-endida da maneira mais óbvia possível, isto é, comodesignativa daquela realidade que está além da história.Pois Ionesco atenta apenas ao mundo humano - aoqual pertence com exclusividade a categoria do histórico-, isentando dele, contudo, toda e qualquer manifes-tação de ordem psicológica ou social em seu aspecto

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especificamente histórico. Refere-se, assim, ao f~ndoúltimo do humano, às suas verdades eternas. Por ISSO,

recusa um Moliêre, tão freqüentemente confinado apequenas histórias, de avarentos e hipócritas, considera-das sempre dentro de uma perspectiva demasiado es-treita. "Um teatro psicológico", afirma Ionesco, "é in-suficientemente psicológico". E isso vale também ~araos aspectos sociais e mesmo ideológicos: "um teatro Ide-ológico não é suficientemente filosófico".

Cernindo melhor o tema: todo sentido psicológico,social ou ideológico, só pode apresentar dimensão au-tênticamente teatral se colocado a serviço de verdadesúltimas. A freqüente estreiteza do teatro radica na au-sência desta subordinação, limitando-se, quando istoocorre, a particularidades que estão na gênese de t?dofanatismo e de toda incompreensão. E Ionesco explica:"Ser social é uma coisa; ser socialista ou marxista oufascista é outra coisa -, é a expressão de uma tomadade consciência insuficiente: quanto mais vejo as peçasde Brecht, mais tenho a impressão de que o tempo, e oseu tempo, lhe escapam: seu homem tem uma dimensãode menos, sua época é falsificada por sua própria ideo-logia, que estreita seu campo: é um defeito comu~ aosideólogos e às pessoas diminuídas pelo seu f~natJsmo".Evidentemente, colocando o problema em tais termos,Ionesco já não pode perguntar se o socialismo, porexemplo, corresponde a uma exigência da situação so-cial concreta, ou ao que ele chama de "ser social".

Podemos adentrar-nos mais na posição de Ionescoe compreendê-lo melhor, se considerarmos a sua atitudeem face do histórico, ou melhor, em relação ao quepoderíamos denominar de historicismo prático; q~erdizer, em face daquela atitude que pretende ver na his-tória o valor supremo, índice e limite último que legitimaa compreensão do homem e de seu mundo, horizonteaxiológico que acusa de ilegítima qualquer posiçãoincluidora de uma dimensão meta-histórica. Ionescorecusa precisamente essa compreensão do homem que oconsidera como uma realidade incapaz de transcender aimanência da própria vivência histórica.

E, neste particular, parece-nos que o "ensaísta"Ionesco não deixa de ter razão, pois, se é verdade quea nossa época, como nenhuma outra, soube desenvolver

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o sentido histórico e abrir os olhos para a profundahistoricidade do ser humano, por outro lado, este mesmohomem nunca foi tão ferido e problematizado, e de talmodo que se tornou impossível compreendê-lo apenasdentro do clima da exterioridade histórica - o quenão exclui, de resto, uma dimensão mais profunda dahistoricidade humana. De fato, o homem não pode serreduzido à sucessão de acontecimentos, por mais imbri-cado neles que possa estar. E assim, quando Dilthey,no início do século, asseverava, em frase bem famosa,que hoje nós vivemos não só mais uma crise, mas temostambém a consciência da crise, ele pretendia permitira compreensão daquilo que julga ser o original, o ele-mento irredutível, da crise contemporânea; mas alémdisso, e malgré-lui, Dilthey - homem isento das irre-paráveis cicatrizes deixadas por duas guerras mundiais-, concomitantemente, abria as portas para a compre-ensão dos limites de todo historicismo. Pois quando sediz que o homem, além de sofrer a crise, tem consci-ência de que a sofre, rompe-se a confinação à imanênciahistórica, a vivência histórica aponta ao trans-histórico,tornando o homem capaz de pensar a história e a sobre-por-se ao simples fluir dos acontecimentos.

Ionesco pretende que o homem reduzido à históriaé o homem superficializado, que vive na periferia desi mesmo. "Além disso", acrescenta ele, "pode-se sersocial a despeito de si, visto que nós estam os presos,todos, em uma espécie de complexo histórico - que,contudo, está longe de nos absorver inteiramente e que,ao contrário, só exprime e contém a parte menos essen-cial de nós mesmos". Todavia, se com isto aponta aum aspecto válido da realidade humana, resta saber sea ênfase que lhe empresta não o leva longe demais, aponto de fechar as portas para o histórico ou, ao menos,para certas dimensões impreteríveis do histórico. E talexclusão parece ser mesmo o corolário do niilismo desua obra teatral, obra que, não se deve esquecê-lo,permanece incompleta. De qualquer forma, em seusbreves ensaios, Ionesco parece ir além do que realizaem sua dramaturgia.

O historicismo pretende que haja oposição entreo histórico e o trans-histórico, decidindo-se pela exclusãodo trans-histórico, Ionesco pretende o contrário: o his-

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tórico e o trans-histórico não se excluem, mas se su-põem. O histórico se subordina ao trans-histórico, e sóatravés desta subordinação podemos compreendê-Io emtodos os seus aspectos. Só podemos, portanto, compre-ender o histórico a partir daquilo que o transcende, etal perspectiva de compreensão é que vai permitir pene-trar mais amplamente, de um modo mais radical e es-sencial, na facticidade histórica.

A missão do teatro é proporcionar, a seu modo,essa penetração radical na realidade humana. O drama-turgo não se deve ater, ingenuamente, ao particular ehistórico, ao que acontece aqui e agora, mas deve saberalçar-se ao universal, pondo sobre o palco o trans-his-tórico. Todo teatro que se prende ao particular, sejapsicológico, social ou ideológico, nasce já com um ar de-funto, pois o inexorável destino de uma situação parti-cular é ser substituída por outra, esgotando-se, enquantoparticular, em sua própria contingência e inessenciali-dade. As ideologias não conseguem vencer os limitesque impõe o tempo. Mas pensando assim, Ionesco nãose propõe realizar uma dramaturgia destinada à "imor-talidade", feita com as medidas do eterno. Ele querdizer apenas que o teatro não pode nutrir-se unicamentedo particular histórico, mas deve medir-se com o homemem sua realidade última, nutrido em verdades trans--históricas.

Por outro lado, a postulação de um teatro centradono trans-histórico não exige, como poderia parecer àprimeira vista, uma dramaturgia hermética ou esotérica,acessível apenas a inteligências privilegiadas. O próprioIonesco procura, através de alguns exemplos concretos,especificar o conteúdo de seu "libéralisme métaphysi-que", revelando nisso, aliás, um bom senso que emvão procuramos ver incorporado em suas peças.

"Há estados de espírito", escreve, "intuições abso-lutamente extratemporais, extra-históricas", que semdúvida acontecem no tempo, mas que deixam vislum-brar uma dimensão trans-histórica. Ionesco refere-se àsimples intuição da condição humana, desvelada aohomem através do étonnement d' être sempre que ele seafasta de sua punctiforme e rotineira vida quotidiana.Então, o homem se apreende como um ser existente,

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descobre a originalidade da situação humana. E essa"tonalidade afetiva" da situação (Beiindlichkeit - parausarmos a expressão de Heidegger) é uma experiênciauniversal, comum a poetas, místicos, filósofos de todosos tempos, um ponto de encontro entre o mestre e oescravo, o padre e o leigo; em todos há o saber-se emsituação. "Somos eternos" I diz Carlos Drummond deAndrade, "frágeis, nebulosos, tartamudos, frustrados:eternos".

Outro exemplo: certos temas e as emoções queIhes são correlatas e que atravessam a poesia e as artesdesde a antigüidade. Assim, o tema da mulher que sepenteia, ou "a alegria de um barco voltando", são temasque suscitam "emoções eternamente humanas", e adiversidade de estilos - do ceramista grego a Renoir- não passa de um "suporte luminoso do permanen-te". Mesmo a banalidade consegue, pois, unir o tem-poral e o transtemporal.

Ionesco evoca ainda a figura de Ricardo Il, deShakespeare, e diz que não podemos reduzir a históriadeste infeliz rei a uma mera sucessão de eventos maisou menos apaixonantes; ou então, para falarmos com opróprio Ionesco: "Richard II me fait prendre une cons-cience aiguê de Ia vérité eternelle que nous oublions àtravers les histoires, cette vérité à laquelle nous ne pen-sons pas et qui est simple et infiniment banale: je meurs,tu meurs, il meurt". Através de uma história, Shakes-peare revela a condição humana, alarga a experiênciado homem, como gratamente já o reconhecia Goethe.

O que Ionesco pretende é, portanto, o que realizatodo teatro autêntico, isto é, mostrar as verdadespermanentes da realidade humana, o fundo da exis-tência, atingível pela intuição e pela emoção - pormais que variem as condições dadas. E o dramaturgosó vinga quando consegue transferir para o palco aevidência do humano. "O teatro é esta presença eternae viva; responde, sem nenhuma dúvida, às estruturasessenciais da verdade trágica, da realidade teatral; suaevidência nada tem a ver com as verdades precáriasdas ideologias, nem com o teatro dito ideológico: trata--se de arquétipos teatrais, da essência do teatro, da lin-guagem teatral. " Repetimos, porém, que nisso tudo

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quem fala é o "ensaísta" Ionesco, e que nenhuma des-tas idéias se encontra, ao menos até agora, transpostapara a desabusada obra do dramaturgo francês. Pode-mos mesmo dizer que Ionesco realiza em sua drama-turgia exatamente o contrário do que apregoa em seuensaio.

Segundo o nosso autor, o realizador máximo eexemplar desse teatro essencial é Shakespeare. Ediante de tal assertiva, a pergunta brota espontânea:qual é o possível traço de união entre Ionesco e Sha-kespeare? Pergunta sem dúvida embaraçosa, pois nãose percebe facilmente nem mesmo a possibilidade deuma comparação mais estreita entre os dois drama-turgos. E nesse caso, convém reformular a pergunta:onde reside a inovação de Ionesco? Topamos, assim,com o ponto central, o elemento específico da concep-ção do teatro defendida por Ionesco: trata-se do idealde um teatro puro.

De fato, o nosso dramaturgo afirma: "Le langagede théâtre ne peut jamais être que langage de théâtre",e dizendo isso ergue-se contra "certos doutores emteatrologia", tema, aliás, de uma de suas peças L'Im-promptu de l'Alma. Para esses "doutores" o teatroé mais que teatro: é ideologia, alegoria, política, con-ferência, ensaio, literatura. Mas o teatro, protestaIonesco, deve ser apenas teatro; ele deve ser reduzidoa seus elementos essenciais, especificamente teatrais,sem concessões a tudo o que o transcende. Todo ocontrário, pois, da arte total. E posto que por arte purase entenda a mecânica que leva a isolar e conferir auto-nomia ao elemento expressivo peculiar a cada arte, apretensão de Ionesco, obviamente, deve ser consideradacomo uma nova manifestação da discutida história daarte pura.

E o que é mais importante: Ionesco talvez possaser considerado o dramaturgo que melhor soube apro-ximar o teatro do ideal da arte pura. Evidentemente -e isto vem sendo sobejamente repetido -, a realizaçãodesse ideal esbarra em um impasse e resolve-se comocontraditória. Mas a abdicação efetiva do ideal da artepura, ou a constatação de seu "erro", não autoriza a daro problema por resolvido. Bem ao contrário, a consci-

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ência do impasse deve levar à sua problematização, poisestamos diante de um ideal que, ao menos como ideal,já se encontra inscrito, queiramo-lo ou não, na históriada arte - um ideal que se impõe como teimosa pre-sença, e constitui mesmo o mais importante a priori daarte contemporânea.

O que vem acontecendo com a musica e as artesplásticas também atingiu, como não poderia deixar deser, o teatro. Deve-se mesmo afirmar que, nesse parti-cular, o teatro, de uma maneira geral, sintoniza com asdemais artes, pois a infiltração da arte pura já se fazsentir nas primeiras manifestações do teatro contempo-râneo - e isto a ponto de se dever considerar esse idealcomo responsável por muitas das inovações sofridaspelo teatro a partir da queda do naturalismo. À guisade exemplo e para comprovã-lo, basta lembrar a curiosaevolução do fundador da moderna cenografia, AdolfoAppia; se o seu ponto de partida é o quase fanatismopela arte total de Wagner, ele termina cedendo à utopiade uma cenografia absoluta em detrimento e mesmo -em certo momento - exclusão da dramaturgia: o fei-tiço virou contra o feiticeiro Wagner. E se passarmosà literatura dramática, não é nada difícil destacar aslinhas mestras seguidas por esse processo dissociativoe mostrar a sua intensidade crescente, a partir de Piran-dello e Strindberg, passando por um Thornton Wilder,para chegarmos a Ionesco. O próprio Brecht está longede poder ser considerado como imune ao contágio daarte pura. Possivelmente, o fio da meada que permiteacompanhar a progressão do teatro puro, coincida coma predominânica crescente de um cerebralismo analí-tico em muitos dramaturgos contemporâneos; no mais,a coordenada entre teatro puro e esse cerebralismoparece verificar-se também nas outras artes.

O ideal de um teatro puro, incondicionado e abso-luto, é a perspectiva que define a concepção do teatrode Ionesco. E nisso arrima-se no que sucedeu comas outras artes. "A partir de Picasso", constata, "apintura não fez mais do que tentar libertar-se de tudoo que não é pintura: literatura, anedota, história, foto-grafia. A partir de Picasso, portanto, os pintores ten-tam redescobrir os esquemas fundamentais da pintura,as formas puras, a cor em si". E Ionesco afiança que

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não há nisso incidência em esteticismo, no que, emprincípio ao menos, não pode ser contestado, pois nãose deve confundir - a despeito da freqüente impreci-são de terminologia neste terreno - o esteticismo daarte pela arte com a caça ao absoluto que nutre oideal da arte pura, embora se possa discutir a viabili-dade desse absoluto e até mesmo a sua legitimidade.De qualquer forma, trata-se de descobrir, no caso dapintura, "a realidade que se exprime picturalmente, emuma linguagem tão reveladora como a da palavra oudos sons".

o que Ionesco pretende é, portanto, especificara linguagem própria e inconfundível do teatro e per-manecer fiel a ela, devendo-se ainda acrescentar quetal fidelidade, se coerente, só pode ser mantida pelaexclusão de tudo o que não é teatral: literatura, ideo-logia, filosofia, política, alegoria etc.

Compreende-se melhor, assim, qual a dimensãodo trans-histórico; o teatro deve excluir todo histórico,enquanto tal, em qualquer de suas modalidades. SeIonesco permanece fiel a este seu ponto de vista emsuas peças, é outro problema: - problema, diga-se,que deve ser respondido pela negativa, pois se há nestaobra algo como o processo da decadência burguesa,por exemplo, verifica-se, evidentemente, um compro-misso com o social, com o histórico e particular. Mastal paradoxo, como já apontamos, é inerente ao idealda arte pura, um ideal que não deve ser mantido emfunção de sua atualização concreta, realizada, mas deveser considerado como uma tendência norteadora, umrelativo impossível de ser absolutizado.

Quando Ionesco afirma que o teatro atual con-tinua prisioneiro de suas velhas fórmulas e que nãoconseguiu desvencilhar-se da psicologia de um PaulBourget - triste símbolo de tudo o que não deve serfeito em matéria de literatura -, reivindica a instau-ração de um teatro que corresponda ao estilo culturalde nossa época. E para realizá-Io, a fórmula de suareceita é incisiva e consciente: "Pousser tout au paro-xysme, là ou sont les sources du tragique. Paire unthéâtre de violence: violemment comique, violemmentdramatique". Assevera ainda: "Le théâtre est dans

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l'exagération extrême des sentiments, exagération quidisloque le réel. Dislocation aussi, désarticulation dulangage". Nestas afirmações Ionesco é coerente comas suas peças, pois elas de fato conseguem realizar taisfórmulas. E nesta realização encontra-se a sua tentativamais interessante para lançar - ou ao menos sugerir- os fundamentos de uma nova estética teatral.

Ainda que Ionesco não seja um teórico do teatroe que os seus ensaios se apresentem quase sempre comum caráter trocista e autodefensivo, podemos dizerque, em sua obra - dramas, ensaios, entrevistas -deparamos com as implicações estéticas mais violenta-mente antiaristotélicas do teatro ocidental. Sabe-se queo antiaristotelismo vem sendo tentado hoje em diversossentidos e com um sucesso muito irregular: sempre comum caráter experimental, de laboratório, ou de exceçãomais ou menos vingada. Mesmo deixando de lado alei "aristotélica" das três unidades - quase sempreviolentada depois da queda do classicismo -, deve-sedizer que, no Ocidente, o grande teatro não-aristotélicoe a sua correspondente estética ainda não nasceram.Mas de um modo geral, na história de nosso teatro, oprincipal responsável - e isto de maneira coerente eradical - pelas suas tendências antiaristotélicas é, semdúvida, o teatro de vanguarda, a ponto de se deverconsiderá-Ia como consubstancialmente antiaristotélico.Em nenhum autor desse teatro, contudo, tal tendênciaaparece de modo tão claro e definido quanto em Iones-co; ele incrimina não só a estética de Aristóteles, masaté mesmo a sua ontologia.

Realmente, no teatro de Ionesco nada obedece aosconceitos aristotélicos. Quando o Estagirita, no segun-do capítulo de sua Poética, diz, referindo-se ao artista,que o "imitador imita homens que agem", as quatroidéias contidas nessa definição ----, o artista, a reali-dade, o caráter e a ação - sofrem um desvirtuamentocompleto se referidas a Ionesco. Pois o imitador passaa ser criador em um sentido que se pretende absoluto,destruindo o conceito de imitação a favor de um neo-convencionalismo; em conseqüência, a idéia de ho-mens que se revelam através de uma ação deixa devigorar: muito mais, são elementos tratados em umaperspectiva profundamente diversa.

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E se passarmos aos elementos essenciais e consti-tutivos do drama segundo o filósofo grego - a intriga,o caráter e o pensamento -, aqui também encontra-mos requisitos que perdem seu sentido e são substituí-dos pelo arbitrário. Ou melhor: o arbitrário é consta-tado na medida em que se permanece preso àsexigências de uma dramaturgia cujas perspectivasincidam em um teatro psicológico ou social. Mas jávimos como Ionesco, com a sua postulação de umatrans-historicidade, recusa esse tipo de teatro. Se aintriga, o caráter e o pensamento desaparecem emIonesco, ou aparecem com aparente arbitrariedade, talinsuficiência não pode invalidar o seu teatro, pois umacrítica radical - desde dentro - só pode atingi-lo sefeita a partir dos pressupostos de sua estética teatral,daquilo que se propõe o seu teatro. Vale dizer que acrítica só pode ser feita se conduzida no plano do apre-goado "libéralisme métaphysique" de Ionesco. Melhorainda: o que num determinado plano - o do psico-lógico ou social - pode parecer como absurdo e tor-nar-se a presa fácil para uma demolição, em outro plano- o do meta-histórico - obriga a transcender o arbi-trário e afirmar alguma modalidade de sentido. E é apartir desse sentido trans-histórico do real que todacompreensão, todo comentário deve ser estabelecido;fora dele o diálogo torna-se fatalmente incompreensí-vel, exterior e absurdo - o que não impede, de resto,a discussão sobre aquele suspeito liberalismo metafísico.

Mesmo a idéia do drama é recusada por Ionesco.A Cantora Careca é denominada uma "antipeça", Víti-mas do Dever, um "pseudodrama" e tais epítetos sãoválidos para todo o seu teatro. Compreende-se, assim,que Ionesco rejeite a dicotomia clássica do drama emtragédia e comédia. Ele pretende situar-se como que naraiz do trágico e do cômico; nem só comédia, nem sótragédia, mas o ponto de inserção no qual comédia etragédia se fundem em uma única tessitura. Não ape-nas uma tragédia provida de situações cômicas, ou umacomédia que encubra e deixe transparecer, entre as li-nhas, o trágico (à maneira do que pretende um VictorHugo na sua definição do drama), mas a fusão de am-bas em uma realidade única desde dentro da qual pos-sa, então, transparecer o antagonismo entre o trágico eo cômico.

Escutemos o próprio Ionesco: "Je n'ai pas compris,pour ma part, Ia différence que 1'0n fait entre comiqu~et tragique. Le comique étant intuitio,!- de l'absurd~, IIme semble plus désespérant que le tragrque, Le comiquen'offre pas d'issue. Je dis: "désespérant", mais, en réali-té, il est au-delà ou en-deçà du désespoir ou de l'espoir".E se é impossível destacar o cômico do trágico, poroutro lado, para o espectador, o trágico não se impõecomo isento de toda e qualquer ambigüidade. Real-mente, a tragédia acontece em destaque sobre um fun-do que, em última análise, é fonte de reconforto e co~:solação. No tema da fatalidade, por exemplo, o heróise debate contra uma ordem estabelecida, contra leiscósmicas, religiosas, biológicas ou morais. O herói podecompreender ou não essa ordem na tragicidade de suasituação; mas sua ação supõe precisamente uma ordemestabelecida, um cosmo, um universo moral, derivan-do-se daí um possível sentido; sempre há um mundoobjetivo que subsiste, ao qual o herói, por alguma ra-zão, não se pode adaptar. "E esta impotência humana,esta inutilidade de nossos esforços, também ela pode,em certo sentido, parecer cômica."

Assim, terminamos encalhando em um paradoxo:o cômico resolve-se na tragédia, porque não oferecesaída, sufoca o humano; e o trágico aponta ao derrisório,pois a própria noção do trágico supõe uma saída.Nesse sentido, o trágico e o cômico não dão contado humano, desse humano que Ionesco pretendemostrar.

Defendendo a imitação de ações humanas, Aristó-teles prende o drama ao horizonte de um significadohumano e às condições essenciais que permitem a reve-lação da realidade imitada. E desde que Ionesco seinsurge contra a mecânica da imitação, o seu antiaris-totelismo parece confundir-se com o gratuito, o simplessem-sentido. Mas é precisamente nessa gratuidade, nesseaparente absurdo, mergulhando nele, que Ionesco pre-tende encontrar a base de sua dramaturgia e o desve-lamento de um novo sentido. Referindo-se à sua pri-meira peça, A Cantora Careca, declara: "Se eu mesmodigo que se trata apenas de um jogo completamentegratuito", não se deve esquecer que "mesmo o Jogogratuito, e talvez sobretudo ele, vem carregado de toda

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sorte de significações que brotam do próprio jogo" 2.

O jogo gratuito não pode ser reduzido a uma atividadesatisfeita em si própria, pois, bem ao contrário, a suaaparente inocência esconde todo um mundo de signifi-cações, que só o teatro, sendo a consagração do jogo,pode revelar.

Segundo Ionesco, o mal do realismo - no sentidoamplo da palavra - reside no fato de pretender mostraro que, a rigor, já foi mostrado pela própria realidade.O teatro realista, mostrando o que acontece ou podeacontecer, mesmo colocando o imitado sob uma novaluz, funciona a partir da impressão do déjà VU. Mos-trando o que a própria realidade mostra, incide emuma tautologia inútil e desnecessária, pois reduz-se aoengenho da repetição. Nesse sentido, o realismo apóia--se em uma realidadeextrateatral que, em última ins-tância, dispensa o teatro, concedendo-lhe, na melhordas hipóteses, uma função acessória. Ionesco exige,assim, condições de total cidadania livre ao teatro,isentando-o, em conseqüência, de dependências ser-vilistas.

Posto que o elemento específico do teatro seja ojogo, ele só se sente em suas próprias águas na medidaem que souber levar a atividade lúdica, imaginária, aoabsoluto de si próprio, fazendo, porém, que tal jogose transcenda como jogo, por dentro de si mesmo.Obedecendo a tal perspectiva é que o teatro será artepura. E se o jogo de fato desemboca em compromisso,estam os, então, longe de qualquer forma de esteticis-mo, pois, atendendo apenas ao seu meio de expressãopróprio, o teatro consegue pôr-nos em contato com umadimensão do real que só ele é capaz de nos revelar. Oteatro impõe-se, assim, como um meio de expressão in-substituível.

"Imagina-se", escreve Ionesco, "que não se podefazer grande coisa sobre um palco; que é ilegítimoafastar-se de não sei que verossimilhança que é confun-dida com o verdadeiro; que se deve, mesmo não sefazendo um teatro propriamente realista, respeitar umcerto realismo de convenção que não passa de uma

(2) in Arts, Lettres, Spectacles, número 758, Paris,20-26 de janeiro de 1960.

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caricatura do real: eu quero, ao contrário, sobre umpalco, fazer brotar enormes cogumelos, fazer crescercadáveres, transformar um cavalo em tartaruga ou ocontrário, não ter outros limites que os da maquinaria,outras normas que as da minha imaginação. E já quea imaginação tem, naturalmente, leis, o seu funciona-mento se inscreve na exploração de uma realidade maisprofunda que a realidade realista (pois o realismo éapenas uma estilização, uma maneira, uma convencãocomo as outras), da qual nos libertará a realidadesubstancial, o imaginário" 3. E já vimos como esta"realidade mais profunda" não implica um inacessívelou hermético, mas coincide com o banal, abraçando-sea ele.

O teatro metamorfoseia os caminhos seguros darotina convencional, revelando o quanto encerram desurpreendente e insólito. O anticonvencionalismo doteatro de Ionesco apresenta, portanto, uma funçãolibertadora. O teatro de vanguarda é destruidor no sen-tido de que ataca, com a imaginação fabuladora, omundo das. convenções esclerosadoras do humano. Elibertando o humano, abre o caminho para uma funçãocriadora e construtiva.

Por outro lado, a dramaturgia de Ionesco confi-nou-se, até agora, a manifestar uma agressividadepuramente negativa, destruidora. Destrói valores consi-derados caducos, mas isenta-se do compromisso comuma nova ordem de coisas. E se há tal isenção, cabeperguntar pela eficácia, pela legitimidade desse ato delibertação. Mas este problema transcende os limites dopresente estudo, que teve por objeto analisar tão-só aconcepção do teatro defendida por Ionesco, deixandode lado o estudo de sua dramaturgia.

(1961)

(3) Ibid.

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DUAS CARACTERlSTICASDO EXPRESSIONISMO

Incumbiram-me de dizer algumas palavras (.)sobre o movimento expressionista, ou melhor, sobreos seus pressupostos culturais, aqueles pressupostos queo tornam culturalmente compreensível. Não me pode-rei referir, por isso mesmo, à especificidade do proble-ma cinematográfico, e sim ao movimento expressionistade um modo geral. E a este respeito cabe destacardois aspectos, que me parece deverem ser consideradosfundamentais.

( * ) A propósito da realização de um Festival do CinemaExpressionista alemão.

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A reação contra o passado é o primeiro. Atravesda história ocidental os movimentos culturais se suce-dem, e tal sucessão obedece invariavelmente a umaregra básica: cada movimento reage contra o movi-mento imediatamente anterior, procurando superá-losem abandonar a imanência da evolução histórica.Também o expressionismo deve ser considerado ummovimento de reação; mas neste caso ela se apresentacom uma característica nova e importantíssima, de con-seqüências radicais. Porque o expressionismo não rea-ge apenas contra este ou aquele movimento, contra onaturalismo, o neoclassicismo e o neo-romantismo (queeram os movimentos vigentes na Alemanha do princí-pio do século). O elemento novo da experiência ex-pressionista é que ela reage, sem mais, contra o tododo passado; é o primeiro movimento cultural que deveser compreendido, antes de mais nada, por uma rebe-lião contra a totalidade dos padrões, dos valores doOcidente. Verifica-se, assim, no expressionismo, e pelaprimeira vez, um sentido de radicalidade absoluta, avontade de um caminho que é precipuamente recusa.

Este sentido de ruptura acompanha, aliás, emum sentido expressionista ou não, todo o movimentocultural da época. Encontramo-Io na pintura, a partirdo cubismo, e na música, a partir do dodecafonismoatonal de Schoenberg. Mesmo a ciência da naturezaestá longe de permanecer estranha a tal ruptura. Aidéia da continuidade da matéria, por exemplo, quedomina toda a física clássica, cede o seu lugar ao prin-cípio da descontinuidade. Compreende-se, desse modo,a voga, no início do século, de expressões como "lógicanão-aristotélica", "geometria não-euclidiana", assim co-mo, alguns anos mais tarde, se falará em uma "drama-turgia não-aristotélica". São os próprios alicerces datradição que periclitam. E a guerra de 1914, a PrimeiraGuerra Mundial, transfere, violentamente, esta mesmaexperiência de ruptura à esfera social; através dela sa-code-se a ideologia oficial da época, abala-se o idealis-mo clássico e romântico, cai por terra a crença em umprogresso indefinido da humanidade: - é o mundoburguês e sua concepção da perenidade dos valores quedesmorona.

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Tal situação não poderia deixar de se refletir naliteratura e nas artes em geral. Toda arte do passado,com raríssimas exceções, pode ser compreendida a par-tir de uma ordem ideal estabelecida - elaborada co-mo foi sobre um fundo de valores estáveis, dotados degarantia intocável - seja ela divina, moral ou sim-plesmente social. Em nosso século, este respeito à or-dem estabelecida se desfaz,e o todo do real é equa-cionado em termos de problema. A arte cessa, pois, degravitar em torno de valores absolutos. E a primeirae vigorosa expressão, em um sentido global, dessa novavisualização do real é o que constitui o expressionismo.Trata-se agora de construir um mundo novo, emboratal esforço termine por revelar-se ilusório, comprome-tido que é com uma concepção niilista do homem.

E esta dimensão do humano nos leva ao segundoaspecto que quero abordar: o sentido impessoal da sub-jetividade.

A alma romântica é uma alma que se confessasempre, que não consegue esquecer-se. A arte român-tica tende a resolver-se em termos de autobiografia. Doexpressionismo também se pode dizer que confessa al-go, que é autobiográfico - e nesta medida, pode-sefalar em filiação romântica do expressionismo. A dife-rença, fundamental aliás, é que no expressionismo oconfessado não é de ninguém, o autobiográfico não temrosto. A arte não manifesta a subjetividade de umBeethoven, pois, bem ao contrário, diz algo que emúltima análise releva do impessoal.

Neste ponto, a grande influência vem sem dú-vida de Freud, e isto por duas razões. Em primeirolugar, a psicanálise liberta do passado, cura neuroses,traumas, cujas raízes estão na infância. Transpondoisto em termos de cultura, podemos dizer que a psica-nálise liberta da tradição, da história. Em segundo lu-gar, a perspectiva de Freud é a da subjetividade; aocontrário, porém, do que acontece na psicologia clássi-ca, a raiz dessa nova subjetividade é impessoal: o in-consciente foge à alçada daquilo que se consideravaser a pessoa, e a subjetividade torna-se mais anônima.O problema se faz mais claro para o nosso tema sepassarmos a C. G. Jung, o principal discípulo de Freud.

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Para Jung o inconsciente passa a ser considerado den-tro de uma perspectiva coletiva; haveria forças coleti-vas, comuns a todos, cristalizadas em arquétipos, quedeterminam o homem desde o seu inconsciente.

Precisamente estes aspectos da psicanálise - e aeles devemos acrescentar a idéia do pansexualismo -exerceram poderosa influência sobre os expressionistas;são precisamente estes aspectos que permitem com-preender o sentido daquela subjetividade impessoal.Evidentemente não se deve entender o expressionismocomo uma espécie de aplicação cultural da psicanálise.Trata-se muito mais de certas coordenadas que permi-tem falar em influência. Assim, a expressão da sub-jetividade expressionista confina-se à sua raiz, à suaforma mais primitiva: a tendência geral do movimentoé densificar tudo em um grito.

Existe um bem conhecido quadro de EdvardMunch que mostra uma mulher imóvel sobre umaponte - terra de ninguém; Munch conseguiu empres-tar à sua tela excepcional intensidade dramática, umadramaticidade que se manifesta através da única açãoda figura pintada, a ação de gritar. Se devêssemosescolher uma palavra para definir todo o expressionis-mo, esta palavra seria exatamente esta - o grito. Poiso expressionismo é esse grito que brota de uma solidãoradical, o grito de um homem identificado ao grito. Suadimensão, contudo, deve ser bem compreendida, por-que não se trata do grito como conseqüência de umdrama, apogeu de uma história ou ápice de uma intriga;antecedendo a qualquer drama, história ou intriga, ogrito como que se basta, grita-se porque só resta ogrito, expressão de um sem-sentido radical. Não setrata, portanto, da resultante de um desdobramentopsicológico ou fisiológico, como em certas peças de Ib-sen ou de Strindberg; a psicologia e a fisiologia apre-sentam-se com uma tessitura apenas aparente, que malconsegue esconder o seu sem-sentido.

Por isso é freqüente encontrarmos na arte expres-sionista personagens destituídas de identidade; ou bema identidade se fragmenta, chegando mesmo a pluri-ficar-se em diversas personagens, ou então ela é ne-gada por uma espécie de estaticização que a transforma

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em marionete. A conservação da identidade da per-sonagem supõe que a História seja dotada de sentido;mas estamos, apocalipticamente, no fim da História, na"decadência do Ocidente". E se a história perde suaconsistência segue-se fatalmente a dissolução da per-sonagem. Se se reduzir a personagem à fragmentaçãode situações momentâneas - átomos de sentidotais situações tendem a expressar-se de um modo de~sesperado, que atinge a sua culminância no grito. (Opapel relevante da angústia, tal como aparece nas pri-meiras obras de Heidegger, pode ser relacionado como expressionismo.)

Compreende-se, assim, que esta arte facilmentepossa deixar de pé os nervos do espectador. De fato,estamos diante de uma arte que demasiado freqüente-mente se configura dentro dos limites do histérico, do-minado pelo sentimento do desmedido, de uma exa-cerbação que esposa o simbólico. O doente, por exem-plo, nunca é simplesmente tal doente: é a doença.Vis.a-se desta forma a atingir uma arte o mais direta, omais intuitiva, o mais primitiva possível.

Compreende-se também que a expressão da sub-jetividade se transforme em algo de coletivo. O doente,como dissemos, perde a sua individualidade e se tornaexpressão de doença. O grito é grito de ninguém, maspor isso mesmo é grito de todos. O que domina, e sem-pre mais intensamente. a arte expressionista, o seu ho-rizonte social, é o homem-massa, isto é, o homem quenão é por si, mas que vive por contágio. Faz-se mister,portanto, expressar pela arte aquela região última, co-letiva, do homem. E daqui se desprende, sobretudo nafase fina) do movimento, uma dimensão social e mes-mo socialista. Nesta linha, Brecht é o mais ilustre filhodo expressionismo.

Compreende-se ainda que este movimento sintanecessidade de uma nova linguagem, reduzida a ummínimo de literário e dotada de máxima força expressi-va. Uma linguagem que em certos textos de teatrose restringe ao telegráfico, e até ao extremo de negar-sea si própria, violentando a palavra através de sua subs-tituição por ruídos, sons, gritos etc. Mais: esta lin-guagem, como, de resto, toda postura expressionista,

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determina-se em sua essência por uma visão óptica doreal, fazendo da palavra o índice de um olhar pura-mente cinematográfico. Isto não quer dizer, no en-tanto, que o cinema seja a causa de tal atitude óptica;o que se verificou foi exatamente o contrário, pois elaexistiu primeiramente no teatro, para mais tarde con-sagrar-se no cinema; por isso que os grandes filmes ex-pressionistas coincidem com a fase final do teatro dessemovimento. Brecht, que muito se ocupou do problemadas relações entre cinema, e teatro, chama a atençãopara o fato de que a visão óptica do real surge já naliteratura do século passado, com as novelas de Ste-venson e as poesias de Rimbaud. Deve-se neste casodizer que é a literatura que vai possibilitar êste teatroe este cinema.

Concluamos. Se levarmos às suas últimas conse-qüências as idéias atuantes no expressionismo - estasidéias que acabamos de apontar - incidiremos emuma arte abstrata. E é precisamente tal incidência quedefine o impasse final do movimento. De fato, em suaúltima fase, a decadência do expressionismo revela-seatravés de sua tendência sempre mais formalizante.Tende-se a confundir expressionismo com estilização.Ou então, procura-se salvar e superar o expressionismo,como acontece em diversos autores, como que por den-tro de si mesmo, emprestando-lhe uma bandeira social.Esta tendência socializante torna-se sempre mais fortee evidente, suscitando sempre com mais força tambéma intervenção da censura. Quando a Alemanha, capi-tulando ao Estado policial, empresta à censura umadimensão absoluta, o expressionismo (e com ele todaatividade cultural) passa a ser julgado "arte degenera-da". A violentação, no entanto, é mais aparente quereal, porque o expressionismo pode ser considerado omovimento mais importante - e, sem dúvida, o maisgenial - do processo que se costuma chamar de de-cadência da cultura burguesa.

(1963)

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BREVES OBSERVAÇÕES SOBRE O SENTIDOE A EVOLUÇÃO DO TRAGICO

"Um ensaio de esforços fragmentários".

Kierkegaard

Os estudiosos são unânimes em admitir que a tra-gédia alcançou o seu máximo esplendor, a sua formamais perfeita, na Grécia clássica. Sua influência per-maneceu soberana: toda aquela parte da dramaturgiaocidental que se subordina ao gênero tragédia foi ela-borada à sombra dos gregos. Eles nos deram, assim,os marcos que determinariam a evolução da tragédia.A tal ponto isto é verdade que mesmo os temas datragédia, ainda em nossos dias, continuam sendo, fre-

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qüentemente, os velhos mitos do drama ático '. E noentanto, há uma evolução do fenômeno trágico, umamudança de seu sentido profundo. Mas sempre que sepergunta o que é a tragédia, o que caracteriza o fenô-meno trágico, é fatal voltar à Grécia, e ler a obra deEsquilo, Sófocles e Eurípedes. Estudando os antigos éque se pode tentar compreender a essência da tragédia;a comparação com os gregos deixa aquilatar o sentidoda evolução do trágico através do teatro do Ocidente,e medir o que permanece constante e o diferente desseconstante.

Mas a despeito da perfeição da tragédia antiganão é nada fácil penetrar o mistério de seu sentido últi-mo. Diante deste problema, a primeira fonte que secostuma consultar são as páginas dedicadas ao assuntopor Aristóteles, na sua Poética; muitos são os drama-turgos que vão buscar nelas conselho e otientação, e osestetas, por sua vez, não ficam atrás. Aristóteles, porém,não nos diz o que é a tragédia; delimita, sim, o seuobjeto, e nos diz, sobretudo, como a tragédia se estru-tura, quais são as suas partes constituintes e qual é olugar destas partes. De algumas delas define mesmoqual é a sua natureza ou como elas devem ser. Embo-ra se afirme, e com razão, que a Poética não deve serinterpretada como um repositório de normas, ela nãodeixa de convidar a tal tipo de interpretação; deve-semesmo reconhecer que, ao menos de um ponto devista prático, é isto o que freqüentemente acontece. Dequalquer maneira, exatamente em relação ao problemacentral e mais importante - a elucidação da essênciado fenômeno trágico - Aristóteles silencia.

De fato, se quisermos encontrar teorias ou inter-pretações do que seja a tragédia, devemos consultar osfilósofos e os estetas modernos e contemporâneos. Abibliografia de que dispomos sobre o assunto é bastantevasta - é mesmo tão vasta quanto confusa; sua leituraentrega o estudioso ao marasmo das interpretações maisdiversas, para não falarmos de páginas por vezes obs-curas ou conduzidas por uma erudição que resulta muitopouco satisfatória. Muitas vezes se tem a curiosa sen-

sação de que se trata de problemas muito distantes,coisas arcaicas ou anacrônicas, que deveriam interessarapenas ao historiador, por tratar-se de assuntos que nãoguardam relação aparente com o nosso mundo: trans-forma-se o antigo em mais velho do que é. São temasque nem sempre são pensados em relação à vida dostempos atuais.

Tal impressão é corroborada pelo modo comovulgarmente se usam palavras como trágico, tragédia.São palavras que, como tantas outras - realismo, clás-sico, romântico -, vem sofrendo uma banalização pro-gressiva, um esvaziamento de seu conteúdo próprio;elas perdem seu significado ou assumem os mais diversossentidos, com conteúdos até contraditórios. Para quese utilize a palavra tragédia, basta que ocorra um evento,mesmo exterior à esfera humana, dotado de uma certaintensidade negativa. Assim, a morte ou um terremotosão sempre tragédias. Tudo se passa, portanto, comose o trágico tendesse a perder sentido, se tornasse difu-so através de sua dissolução, enquanto a tragédia pro-priamente dita permanece relegada ao rol das coisasamorfas.

Mas a principal dificuldade que oferece a com-preensão da tragédia não reside tanto neste processode dissolução, nem mesmo na divergência existenteentre as diversas teorias que pretendem interpretá-Ia.A principal dificuldade advém da resistência que envolveo próprio fenômeno trágico. Trata-se, em verdade, dealgo que é rebelde a qualquer tipo de definição, quenão se submete integralmente a teorias. Justifica-se:deparamos na tragédia com uma situação humana limite,que habita regiões impossíveis de serem codificadas.As interpretações permanecem aquém do trágico, elutam com uma realidade que não pode ser reduzida aconceitos. - Respeitada essa indigência, pode-se, en-tretanto, tentar uma aproximação do problema.

( 1) Vejam-se sobre o tema as análises de Kaete Ham-burger, in Von Sophokles zu Sartre, Griechische Drameniigu-ren antik und modern, Kohlhammer, Stuttgart, 1962.

Aventuremos, de um modo fragmentário e despre-tensioso, compreender certas dimensões do trágico, semqualquer intenção de desenvolver uma teoria sobre atragédia; interessa-nos apenas salientar alguns aspectos

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que permitam entender a vigência ou a situação do fe-nômeno trágico na literatura dramática contemporânea.

O problema nada tem de ocioso, nem pode ser re-duzido ao âmbito do exclusivamente estético. De fato,não é suficiente fundamentar a tragédia tão-só a partirda esfera da obra de arte: não é apenas a obra de arteque dá a si própria a sua tragicidade. Deve-se dizer,pelo contrário, que o trágico é possível na obra de arteporque ele é inerente à própria realidade humana, per-tence, de um modo precípuo, ao real. A partir dessainerência é que a dimensão trágica se torna possívelnuma determinada obra de arte. Mas como pode sercompreendida tal inerência do trágico ao próprio real?Corno explicar a dimensão trágica da realidade humana?Deve haver algo no homem que possibilite a vivênciatrágica. Poderíamos chamar de finitude, de contingên-cia, de imperfeição ou ainda de limitação o elementopossibilitador do trágico; melhor ainda seria recorrer àexpressão consagrada por Sartre: separação ontológica.Mas é fundamental acrescentar que a finitude ou a se-paração ontológica que caracterizam o homem não sãoem si mesmas trágicas: o homem corno homem, em suacondição, não é trágico. A separação ontológica é muitomais o elemento possibilitador do trágico, é aquele rasgona natureza humana que em tais e tais circunstânciasadquire ou não urna coloração trágica. Por isto tem ra-zão Max Scheler quando afirma que o trágico pertenceà esfera dos valores 2; é preso a um valor que o trágicopode aparecer no real. Precisando melhor: o trágico,sem ser um valor, adere a certos valores, vindo então amanifestar-se. Assim, o real chega a assumir, em de-terminadas circunstâncias, uma dimensão axiológica trá-gica. A separação ontológica pode ser vivida de ummodo trágico, embora não seja em si mesma trágica.Por isto, seria irrisório considerar o fenômeno trágicocomo algo de universal e necessário: há pessoas desti-tuídas de sensibilidade para o trágico, assim como hátambém culturas ou períodos da cultura que desconhe-cem o trágico ou que permanecem cegos à sua densi-dade. Explica-se dessa forma que esse gênero dramáticoque é a tragédia não possa surgir arbitrariamente; que

(2) in Von Umsturz der Werte, Francke Verlag, Bem,1955, págs. 153 e segs.

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de fato a tragédia só tenha surgido na cultura ocidental,e mais, em certos momentos dessa cultura.

Justificam-se, pois, certas perguntas: qual é a es-sência do trágico? Qual é o sentido que tem hoje ofenômeno trágico e a tragédia? O mundo contemporâneopermite o trágico? Em que medida? Como pode ele servivido? - Tentemos ao menos compreender o sentidodestas perguntas: inútil acrescentar que as observaçõessubseqüentes não pretendem exauri-Ias.

Comecemos pelo início: quais são os pressupostosfundamentais da tragédia? Quando se quer responder atal pergunta, pensa-se logo no homem trágico: Edipo,Orestes, Efigênia são trágicos. Já Aristóteles se ocupado problema da natureza do herói trágico. Esse modode abordar o problema é correto, pois um elementobásico para que se possa verificar o trágico é que eleseja vivido por alguém, que exista um homem trágico.O inquietante, contudo, é que, em decorrência, se con-centre todo o esforço elucidador exclusivamente na figu-ra do herói trágico, como se ele fosse o único pressu-posto da tragédia. E esta, aliás, a maneira comonormalmente se entende o trágico: o herói como princí-pio e fim da tragédia. Mas tal limitação não é suficiente.Quando se mostra o teor do trágico tão-só a partir dohomem, esquece-se um outro pressuposto sem o qual atragédia não chegaria a concretizar-se. Em certo sen-tido, trata-se de um pressuposto até mesmo mais radicalque o homem, porque se refere àquela realidade quepermite o próprio advento do herói trágico. Este outroelemento fundamental é o sentido da ordem dentro daqual se inscreve o herói trágico. De fato, o trágico seriainexplicável a partir apenas da subjetividade do homem,corno se este, de repente, ou por si só, se encontrasseem situação trágica, como se o homem fosse a únicaperspectiva possibilitadora do trágico.

Portanto: se o homem é um dos pressupostos fun-damentais do trágico, outro pressuposto não menos im-portante é constituído pela ordem ou pelo sentido queforma o horizonte existencial do homem. Evidente-mente, a natureza da ordem varia: pode ser o cosmo,

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os deuses, a justiça, o bem ou outros valores morais, oamor e até mesmo (e sobretudo) o sentido último darealidade. Mas só a partir desses dois pressupostos setorna compreensível o conflito que caracteriza a açãotrágica. Estar em situação trágica remete àqueles doispressupostos, e a partir da bipolaridade da situação faz--se possível o conflito.

A polaridade dos pressupostos é uma exigênciaindispensável, é ela que torna viável a ação trágica. Porisso, Aristóteles, com muito acerto, se recusa a com-preender a tragédia a partir simplesmente do homem,ponto no qual insiste muito 3. Num dos momentosmais importantes de sua Poética, diz ele: "A tragédianão é a imitação de homens, mas de uma ação e de umavida ( ... ), pois os homens são tais ou quais segundoo seu caráter, mas são felizes ou infelizes segundo suasações e suas experiências" 4. De fato, não é o caráterque determina o trágico, e sim a ação; o caráter épróprio do homem e restringe-se a ele; a ação, pelocontrário, deve ser compreendida, em última instância,a partir daquela polaridade à qual nos referimos: o ho-mem e o mundo em que ele se insere. No momentoem que estes dois pólos, de um modo imediato ou me-diato, entram em conflito, temos a ação trágica.

O conflito se compreende, assim, como suspen-so na tensão dos dois pólos. Deve-se mesmo afirmarque todo trágico reside nesse estar suspenso na tensãoentre os dois pressupostos fundamentais. E se istoassim é, o resultado imanente ao conflito deve ser con-siderado como irrelevante, de importância secundária.Queremos dizer que a ação trágica não precisa redundarnecessariamente na morte do herói, embora a mortepossa causar um impacto trágico maior. Mas de modoalgum é lícito considerar o happy end como incompa-tível com a tragédia; se assim fosse, uma boa parte dastragédias gregas não deveriam ser classificadas comotragédias. O mais importante, longe de ser a morte doherói, é a reconciliação dos dois pólos ou a suspensão

(3) Consultem-se, em especial, as seguintes passagensda Poética: 1448, a 23; 1448, a 27; 1449, b 24; 1450, a 15e segs.

(4) in Poética, 1450, a 15 e segs.

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do conflito, embora a reconciliação possa aconteceratravés da morte.

Herói e sentido da ordem se resolvem, pois, emtermos de conflito e reconciliação. Na medida em queum dos pressupostos perde sentido e força, o teor trágicoda ação enfraquece, perde a sua razão de ser. Quandose assiste a um espetáculo trágico, a atenção se voltaespontaneamente para a figura do herói, para aquelapersonagem que encarna a ação, e o espectador é inva-dido por determinados sentimentos: ele se prende àsconseqüências da ação trágica. Compreende-se, dessemodo, que muito facilmente se esqueça de um dos pres-supostos possibilitadores do trágico; o sentido do real,qualquer que seja a sua natureza, permanece como queencoberto. Mas o fundamento último e radical do trá-gico é precisamente a ordem positiva do real: desde queo real tenha valor positivo, o trágico se pode verificar.E é em relação ao problema do sentido do real comoraiz esclarecedora do trágico que queremos tecer algu-mas considerações.

Aristóteles não coloca, ao menos de um modoexplícito, a questão. Ele fornece, contudo, alguns indí-cios passíveis de serem interpretados, como é o casodo problema há pouco referido: a sua recusa a reduziro herói ao caráter e compreendê-lo pela ação. Quere-mos chamar a atenção para uma outra passagem daPoética, que talvez também permita uma certa conjetura.Quando Aristóteles estuda a natureza do herói trágico,no capítulo 13, e determina a causa da tragicidade, elefala em "amartia": erro, falta. Muito se discutiu sóbreo caráter moral ou intelectual desse erro, embora amaioria dos autores veja nele uma dimensão intelectual,como erro de juízo, visto que o próprio Aristóteles afir-ma, e mais de uma vez, que não se trata de uma defi-ciência de ordem moral do herói 5. Com isto, entre-tanto, o problema ainda não está resolvido, pois existeo perigo de subjetivar a natureza do erro, e de compre-endê-lo à maneira moderna e não grega. Realmente,o erro não pode ser justificado em um prisma puramentesubjetivo; ele se mantém, pelo contrário, como objetivi-dade, conseguindo afetar, em conseqüência, a relaçãoentre deuses e homens, e a própria vida pública 6. Se

(5) Poética, 1453, a 5 e 7.

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resta interpretação é correta, Aristóteles, através do con-ceito de "amartia", do erro de juízo cometido pelo herói,atinge o próprio sentido do real, e compreende o trágicoa partir de seu elemento possibilitador último. Mas,como dissemos, Aristóteles não chega de fato a desen-volver o problema, e a razão mais plausível para justi-ficar tal interpretação prende-se a um argumento deordem negativa, qual seja o de isentar Aristóteles de umsubjetivismo alheio à mentalidade grega.

Se o autor da Poética não autoriza mais que con-jeturas, existem, por outro lado, na própria Grécia,subsídios que podem fazer avançar a explicitação daessência do trágico. Como se sabe, desde Nietzsche tor-naram-se freqüentes as comparações entre a tragédiagrega e o pensamento pré-socrático.

Do ponto de vista de seu sentido, diz muito bemZubiri que, "enquanto a obra dos filósofos foi a formapoética da Sabedoria, a tragédia representa a forma pa-tética da Sofia" 7. E Nietzsche, salvo engano de nossaparte, foi o primeiro a interpretar os fragmentos de He-rác1ito como expressão de um pensador trágico por ex-celência 8. A sua filosofia seria, assim, dominada pelaidéia da justiça. "O sol não pode transgredir as suas me-didas, e se o faz as Fúrias o perseguirão até que a justiçase restabeleça", diz o fragmento 94. A grande inimigada justiça ou da medida é a hybris ou a desmedida."Melhor apagar a desmedida que um incêndio", acres-centa o fragmento 43. Nestes pensamentos de Herác1ito,que colhemos quase que ao acaso e sem nos determosem seu exame, encontramos nitidamente configuradosaqueles dois pólos do conflito trágico: de um lado, ajustiça, a harmonia, a medida, e de outro, aquilo que asdestrói ou perturba, a injustiça, a desmedida, hybris.

Mas o pensador pré-socrático que maior ensejooferece à compreensão do trágico é talvez Anaximandro,

(6) Veja-se a interpretação que dá Albin Lesky ao pro-blema da "arnartia", in Die Griechische Tragoedie, A. KroenerVerlag, Stuttgart, 1958, págs. 32 e segs. Uma das próximasedições da Perspectiva, nessa coleção.

(7) Xavier Zubiri, Naturaleza, Historia, Dios, ed. Na-cional, Madrid, 1955, pág. 169.

(8) Leia-se de Nietzsche, Die Philosophie im tragischerZeitalter der Griechen.

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sobre o qual convém fazer uma breve digressão. O seufamoso e belíssimo fragmento afirma: "Todas as coisasse dissipam onde tiveram a sua gênese, conforme a cul-pabilidade; pois pagam umas às outras castigo e expia-ção pela injustiça, conforme a determinação do tempo".Sem visar a uma análise exaustiva do fragmento, pode-mos dizer que ele se move entre dois extremos, a uni-dade e a multiplicidade. As coisas, múltiplas, vêm daunidade e para ela voltam, num processo de gênese edestruição. E Anaximandro nos apresenta a multiplici-dade de uma forma altamente dramática, como culpae injustiça. A isenção da culpa e da injustiça se faz atra-vés da reintegração na unidade, que resolve em si omúltiplo.

Visto desta maneira, o fragmento se prende à uni-dade e à multiplicidade como categorias últimas, expli-citadoras do todo do processo da realidade. Parece, poroutro lado, que a unidade e a multiplicidade não podemser consideradas como conceitos últimos. A tendênciaespontânea é de interpretar a unidade e a multiplicidadedo real como ordens sucessivas desse mesmo real -sucessivas porque incompatíveis; quando impera a uni-dade não existe multiplicidade, e quando impera amultiplicidade desfaz-se a unidade. Dissemos "quandoimpera": para Empédocles, o ciclo cósmico é dominadoora pelo Amor ora pelo ódio. Mas essa interpretação"evolucionista" de Anaximandro peca ao menos porsuperficialidade. O nervo do problema está em com-preender o sentido da gênese e da destruição, ou omodo como a unidade "resolve" em si o múltiplo. E operigo da elucidação consiste em platonizar o pensa-mente pré-socrático, fazendo-o incidir em dualismosque comprometem a consistência real daquilo que Platãochamará de "mundo das sombras"; seria irrisório atri-buir tal tipo de idealismo a Anaximandro. Exegesesmais recentes procuram mesmo isentar a filosofia pré--socrática de visualizações platonizantes.

O problema pode ser colocado de outra maneira:qual é o princípio do real? Parece que o princípio nãopode ser a unidade. A palavra princípio (arke, do verboarkein) quer dizer começar, estar no início de tudo, dotodo, e o que está no início domina, atravessa o todo,assim como o sol é o princípio do dia e domina o todo

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do dia, para citarmos o exempl.o ~e. H~idegge~. As~i~,não podemos compreender o pnnclplo a maneira cns.ta,como algo de independente ou de slmples~e~t~ an~en~rao desenvolvimento daquilo ao qual o pnncipio .da on-gemo Ao contrário, a arke determina o desenvolv!mento,e a seu modo estará presente neste desenvolvimento.Se isto é assim, o grande problema - e que n~o cabediscutir aqui - é o do "entrelaçamento" de .umdade emultiplicidade, de justiça e injustiça, de medida e des-medida através de seu acontecer, ou no seu processocósmico, Em outras palavras: não é suficiente dizerque a unidade é fundamento da multiplicidade ou ..,!ueesta é fundamento daquela. Coloca-se, em consequen-cia, o problema de saber qual é o fundaD?-e?to. da uni-dade e da multiplicidade, da justiça e da injustiça.

Para os pré-socráticos, unidade e multiplicidade s~oformas de ser, e o ser é a physis, a natureza. A physis,estendendo-se ao todo do real, permite compreenderunidade e multiplicidade, pois ambas são interiores ànatureza. Vale dizer que a physis está presente em tudoo que é, se manifesta no real, mas de diversa.s maneiras.E o modo de ser da multiplicidade, na medida em quese afirma como tal e não reconhece a sua unidade noser, faz com que troque o ser pela aparência ~e ser. ~ofragmento 112, Heráclito diz que ~ sabedona cO~~lsteem "agir conforme a natureza, ouvmdo. a s~a voz . Arecusa em ouvir a voz da physis ou a teimosia da mul-tiplicidade que se afirma como independente e se re-cusa a confessar a unidade de tcidas as coisas (Heráclito,fr. 50), é o princípio dos pseudos, do erro, ge:ad?rde culpa e de injustiça. Neste sentido é que a apa~encIadeve voltar a integrar-se no ser. A compreensao dasabedoria como um saber escutar a voz do ser é patri-mônio comum da filosofia pré-socrática.

Transportando estas idéias para o plano da tragé-dia devemos dar razão à fértil tese de Karl Reinhardt 9.

Na tragédia, deparamos com a existência humanaentregue ao conflito que deriva do entrelaçamento doser e da aparência. O herói trágico está como que re-

(9) in Sophokles, Frankfurt, 1.948. V~ja-se tam?ém oensaio de Erik Wolf, Aner Dikaios, m Anteile, M. Heideggerzum 60 Geburtstag , Frankfurt, 1950.

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lesado entre esses dois extremos - retesado porque osvive, conscientemente ou não, como extremos - e a suavida balança entre a verdade e a mentira. Consideradodessa maneira, o objeto fundamental da tragédia nãoseria, como pretende um Schiller, o destino único doherói inocente que deve ser sacrificado. Objeto precípuoda tragédia seria muito mais a aparência que envolvetoda existência humana, acompanhada da densidade quese alia a tal aparência. O desenvolvimento da ação trá-gica consistiria na progressiva descoberta da verdade -verdade no sentido de aletheia: manifestar-se, des--cobrir-se, "descender-se", Não é a essência do herói,restrita a sua individualidade, que vem à tona, mas aaparência na qual está submerso: a aparência é des--coberta, e nela mostra-se a própria physis do herói. Sese tratasse pura e simplesmente da essência do herói,ele seria total negatividade, e em si mesmo, enquantohomem, seria pseudos. O problema não reside, porém,no seu ser, mas no seu modo de ser - um modo de serque pode pôr em jogo inclusive o seu ser. A partir dosequívocos da situação mundana do herói revela-se averdade.

O próprio de quem vive entregue ao mundo daaparência é fazer do homem a medida do real, fazendocom que ele recuse uma medida que o transcende.Nessa recusa da transcendência radica o pseudos, ainjustiça, a culpa. O homem se torna - enquanto vive,como dissemos, a teimosia de sua particularidade -princípio da lei, e rejeita um princípio (arke) quetranscenda a sua particularidade. O nómos Theios, alei divina, de que fala Heráclito, é preterida. O indiví-duo passa a ser, assim, presa da aparência ou. de umamedida aparente, porque sua, particular; ele incide emhybris 10, ou desmedida, o oposto da existência queencontra a sua medida na "lei divina", e que por isso éjusta. O herói adota, de um modo consciente ou não,uma espécie de [aux semblant; ele age como se todamedida que o transcende tivesse perdido sentido. E ele

(10) Sobre a palavra hybris e sua evolução a partir dacultura homérica até os tempos de S6crates, tema de funda-mental importância para o problema da tragédia, consulte-sea obra de Louis Gernet, Recherches sur le Développement deIa Pensêe juridique et morale en Grêce, ed. E. Leroux, Paris,1917. págs. 1 a 33.

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é trágico precisamente porque esta s~a. po~ição se rev~lamentira. Topamos, pois, com uma mjustiça que obngaao reconhecimento da justiça.

Neste sentido, podemos dizer que o conflitotrágico deriva de um não-estar - ou não poder es-tar - completamente na justiça: o homem comoque vive entre a justiça e a injustiça, entre o ser ea aparência. E a evolução do trágico consiste nades-coberta da aparência e na conquista conseqüen-te do ser. Em outros termos: o homem é um ser"híbrido", no sentido de que pode perder de vista asua medida real, transcendente, e emaranhar-se naaparência ou na desmedida, confinando-se à sua pró-pria imanência. Em última análise, toda tragédi,aquer saber qual é a medida do homem. Toda. trage-dia pergunta se o homem encontra a sua medida emsua particularidade ou se ela reside em algo que otranscende; e a tragédia pergunta para fazer ver quea segunda hipótese é a verdadeira. O não-reconhe-cimento dessa medida do homem acarreta, pois, otrágico.

Resumindo a nossa análise: a natureza híbridado homem se debate entre aqueles dois pólos aosquais nos referimos e que são os pressupostos últimosdo trágico: o homem e o mundo dos valores que cons-titui o seu horizonte de vida. Ou melhor: o trágicoreside no modo como a verdade (ou a mentira) dohomem é desvelada. E o que vale para a tragédiagrega vale também para o fenômeno trágico comotal. Queremos dizer que naqueles dois pressupostosse encontram os critérios que permitem avaliar o sen-tido da evolução do fenômeno trágico. Evidentemen-te, não se trata de essências permanentes, mas de rea-lidades históricas. Na medida em que os dois pólosmudam de natureza, se metamorfoseiam, é o própriosentido do trágico que se transforma. Na medida emque os dois pólos perdem sentido, o fenômeno trágicodeixa de existir.

A situação da tragédia dentro das fronteirasdo cristianismo soube suscitar as mais variadas dis-

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cussões e, como era de esperar, os intérpretes che-gam a resultados nada unânimes. Se há autores quedefendem a possibilidade de uma tragédia cristã, a ten-dência geral é de negá-Ia. O católico Theodor Haeckerchega ao ponto de considerar a tragédia uma manifes-tação tipicamente pagã e incompatível com o cristianis-mo". Nietzsche, a seu modo, como anticristão queé, defende a mesma tese; com este pensador, o elo-gio da tragédia e a luta contra o cristianismo atingema sua posição extrema. E seu radicalismo vai maislonge: Sócrates, como homem teórico, toma inviável ohomem trágico. Sócrates é para Nietzsche o "primei-ro gênio da decadência", e por isso é o primeiro res-ponsável pela morte da tragédia grega. Mas para oautor da Origem da Tragédia, esta decadência socráti-ca - que coincide com o surto do niilismo ocidental- é tênue e pouco significa diante do impacto do nii-lismo cristão, a suprema negação da vida=, Deixe-mos de lado, porém, o problema da situação do trá-gico em sua relação com o cristianismo e tentemosabordá-lo em outra perspectiva, que não pode, aliás,ser desligada de certas premissas cristãs: o subjetivis-mo. Mas antes de entrarmos na análise, impõe-se umabreve observação de ordem histórica.

Sabe-se que a tragédia, como gênero literário,foi cultivada em apenas dois períodos ou situaçõeshistóricas: a Grécia do século V e a Europa dos tem-pos modernos. Em ambos ~s períodos en~ontramos,muito significativamente, a cnse das respectivas cren-ças religiosas: crise do mundo grego. homéric~ e. criseda religiosidade medieval. Nos dOIS casos incide-seem um processo de secularização ou laicização da vidahumana. Assim, o florescimento da tragédia, consi-derado de um ponto de vista histórico, se move entreestas coordenadas, e se situa no choque, na crise, nomomento de encontro de duas concepções de vida; se

(11) in Schoepfer und Schoepjung, Koesel Verlag,Muenchen.

(12) O problema da tragédia está. presepte em todaobra de Nietzsche. Veja-se, de modo especial, Die Geburt derTragoedie, e o capítulo dedicado pelo ~róprio Nie,tzsche a esteseu primeiro ensaio in Ecce Hon:zo.. Veia-se tambem o comen-tário de Gilles Deleuze no primeiro capítulo de sua obraNietzsche et Ia Philosophie, P.U.F., Paris, 1962.

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a religiosidade continua viva, sub-repticiamente· tendea ganhar terreno uma concepção puramente humanadas coisas. O fato histórico é que a tragédia só se ve-rifica na tensão entre estes dois extremos, no seu mo-mento de incidência.

Já neste sentido histórico podemos dar razão aHegel e aceitar a sua tese de que a ação trágica sesitua entre a realidade objetiva, substancial, e o subje-tivo, individual. Costuma-se citar a afirmação deRege! de que o divino constitui o tema próprio da tra-gédia primitiva. A afirmação não deixa de ser corre-ta, mas não se deve esquecer que ela atende apenas auma das dimensões da tragédia. Porque, como disse-mos, a história mostra que é na crise do divino, com-preendido como substância objetiva, que se instala atragédia - e crise não quer dizer, evidentemente, ex-clusão ou neutralização do divino. O próprio Hegel,quando afirma o divino como tema da tragédia, acres-centa: "Não o divino tal como o concebe a consciên-cia religiosa, mas tal como ele se manifesta no mundosobre o qual se dirige a ação individual, sem entretan-to perder nesta realidade o seu caráter substancial esem transformar-se em seu contrário"!". E logo adian-te refere-se à "supressão da individualidade que pertur-bava seu repouso (da justiça eterna) "14. Vale dizerque enquanto o homem permanece inserido na objeti-vidade religiosa, ou submerso na religação de uma or-dem transcendente - qualquer que seja ela e a pontode se confundir com ela -, a tragédia não se verifi-ca. Mas por outro lado, o fenômeno trágico perdeseu embasamento quando o homem se desprende total-mente dessa religação, quando ela "se transforma emseu contrário"; o trágico desaparece na medida em quea subjetividade do herói tende a se tornar autônoma,despida de qualquer caráter substancial e objetivo. Seisto tudo é exato, compreende-se que a produção detragédias obedeça a circunstâncias históricas bem deter-minadas; a tragédia é um fenômeno histórico, surgecondicionada por certa situação histórica.

(13) in Esthétique, trad. de S. Jankélévitch, Aubier, Pa-ris, 1944, tomo III (2<' parte), pág. 249.

(14) Idem, pág. 250.

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Estamos agora em condições de enfrentar o pro-blema da tragédia em nossos dias e de chamar a aten-ção pa~a a!guns de seus aspectos. Dissemos há poucoque deixaríamos de lado a questão da tragédia cristãe _que abordaríamos o problema em outra perspectiva,nao totalmente desligada do cristianismo: a perspectiva~o subjetivismo. T!~gédia em um sentido forte e plenoe a prega. A debilidade da tragédia moderna deriva,preClpu~ment~, .d? excesso de importância que se em-presta a subjetividade, sobretudo quando consideradaem seu aspecto moral.

É evidente que cristianismo e subjetivismo nãose confunde~.. ~contece, porém, que nos tempos mo-dernos o cns~l~msmo, ao contrário do que acontecerana Idade Media, passa a pactuar mais intensamentecoa: o. subjet~vismo; o homem cristão, a partir da de-cadência medieval, se fixa, com exclusividade crescen-t~, na vida interior, n~ ':imitação de Cristo" compreen-dida .c.om.o ta~efa .subj~tlva. É esta preeminência pro-gressIv_a da. vI.da mtenor que desvigora o trágico e aext~ns.a? objetiva da ação trágica. Na medida em que osubjetivismo dos temp.os modernos se torna mais for-te, m~nos exeqüível é a tragédia. Por isso mais doq~e. dizer que o cristianismo é incompatível com a trá-g.e?la, _deve-se colocar a raiz da debilidade na inten-slflCa?a<? a.través da história do processo subjetivadordo cnstiamsmo.

Hegel pressentiu o problema em sua Estética, em-b~ra nao o defrontasse. Cabem aqui algumas observa-ço~s sobre o pensamento do idealista alemão. Em pri-meJf(~ lugar, Hegel é preso de um modo absorventepel.o, Ideal ,da tragédia grega. Sabe-se que para ele aAntígona e o m.ode~.o por excelência da tragédia; elet~a~a o drama de Sófocles corno uma espécie de pro-~?tIP? A conseqüência é que quando Regel estuda

a diferença entre a poesia dramática antiga e a mo-derna" 15, não c.onseg.ue desvencilhar-se da perspectivado dever-ser. E submisso à normatividade do dever-sernã~ pensa suficientemente a diferença que há entreantigos e modernos. Neste ponto, a atitude de Hegelc.om.o ~ue prol.onga a "querelle des anciens et des mo-dernes ; digamos que em seu pensamento a crise da

(15) Op. cit., págs. 258 e segs.

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diferença permanece superficial. Se ele admite umadiferença entre a tragédia antiga e a moderna, ela éjulgada a partir do pressuposto de que é necessáriosubordinar a tragédia moderna àqueles critérios quecaracterizam o drama antigo: mas o diferente da di-ferença não chega a ser pensado. Essa diferença ra-dica precisamente na vigência do subjetivismo na tra-gédia moderna. E não obstante a orientação filosó-fica de Hegel, ele não faz referência maior ao proble-ma. Ou melhor: Hegelvê, e reiteradamente, um pe-rigo no subjetivismo, e aconselha a contorná-lo, Comisso, entretanto, ele se proíbe de examinar a quaestio[acti e só examina a quaestio juri, e o pensamento dadiferença permanece ausente.

Em segundo lugar, considerando-se a natureza dosistema filosófico de Hegel, ele é, de um modo radi-cal, antitrágico, no sentido de que torna o trágico im-possível. f: bem conhecida a justa interpretação quedá Glockner ao pensamento hegeliano, quando pre-tende que se trata de um pantragismo que busca re-solver-se em termos de panlogismo. Segundo Hegel,o Espírito é ou vem a ser realidade absoluta, resol-vendo em si o todo do real. O diferente desta reali-dade absoluta é interpretado como sendo tão-só umaaparência de real - e aqui se poderia ver a raiz ex-plicadora da hybris. Mas a verdade é que, neste pon-to, o pensamento hegeliano vai muito mais ~onge, por-que ele rouba consistência substancial ao diferente doEspírito absoluto, incidindo, desta forma, em um mo-nismo panteísta, em uma concepção unívoca do ser.Parece que Hegel possibilita o trágico quando preten-de que a verdade do indivíduo não está nele mesmo,mas na substância total que nele se manifesta. Masisto não passa de aparência, porque a própria re~li-dade individual perde consistência, ou encontra consis-tência naquilo que a transcende. A razão humana,finita, é apenas um momento da razão divina, e en-tre ambas não há mais que uma diferença de grau.Não se trata, pois, de dizer que o homem perma-nece a vítima das aparências, ou que de balança en-tre o ser e a aparência, entre a justiça e a injustiça,ou que ele pode incorrer em hybris, em desmedida:porque o homem é desmedida enquanto homem, en-

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II

quanto não for compreendido em termos de Espíritoabsoluto, na circularidade do movimento perfeito darazão infinita. Como ser particular, o ser mesmo dohomem é ser contraditório: digamos que ele é contra--dicção, oposta à "dicção" do Espírito absoluto.

Repitamos mais uma vez que a tragédia supõedois pólos: o homem e a sua medida transcendente.E é óbvio que o conflito entre esses dois pólos depen-de da realidade de ambos - ambos são reais e têmconsistência. A ilusão em que vive o herói repousanum desconhecimento de sua própria realidade ou nateimosia do particular, como indivíduo. Mas no casode Hegel, o indivíduo perde consistência; ele não temverdade, ou só a tem em um sentido relativo, porisso que a verdade é o todo, das Ganze. Nestecaso, a tragédia passa a ser um mero jogo de sombras:o herói não descobre apenas a sua hybris, pois ao re-conhecê-Ia descobre concomitantemente que ele nãoé, que não tem ser, ou que só tem ser aparentemente.A densidade híbrida do homem perde significado. Co-locado o problema desta maneira, deve-se dizer, des-mentindo o que afirma Hegel na sua Estética, que oobjeto exclusivo da tragédia é o divino, assim comoo objeto exclusivo da Ciência da Lógica é Deus.

Com tal concepção da realidade a tragédia nãoé mais possível. O panteísmo, ou uma realidade adstri-ta ao divino, expulsa a viabilidade do trágico, ou oreduz a algo de aparente, que não pode encontrarfundamento real. Podemos, portanto, afirmar que,não obstante o importante papel que exerce a inter-pretação da tragédia na própria formação do sistemahegeliano e de modo especial na Fenomenologia doEspírito, a filosofia de Hegel, mais do que explicar,termina sendo o processo da tragédia.

De fato, na tragédia, não se trata de reduzir arealidade do herói à realidade que o transcende, masde ver no transcendente a medida do herói: da injus-tiça se passa à justiça, à harmonia entre homem evalores objetivos, mesmo no caso extremo do sacrifí-cio final do herói. Podemos dizer que o pensamentohegeliano é insensível ao problema da medida do hu-mano; ele quer resolver a separação ontológica, su-

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primindo-a. Ou então: Hegel não pensa a diferençae a medida da diferença; ele quer simplesmente abolirtoda diferença entre imanência e transcendência, e areconciliação resulta em monismo. Mas neste caso,qual é o ser do trágico? Eis uma pergunta à qualHegel não pode dar resposta.

Com Kierkegaard o tema da crise da tragédiavem à tona com uma força que já não dá margema dúvidas; seu pensamento, dotado de uma aguda sen-sibilidade para os valores individuais, permite-lhe fa-zer observações que conservam uma impressionanteatualidade.

A interpretação de Hegel sintetiza as meditaçõesda época sobre a tragédia: de Goethe, Schiller, F.Schlegel, Immermann, Solger, Adam Mueller, Hoel-derlin. Kierkegaard, por sua vez, escreve o seu en-saio O Reflexo do Trágico antigo sobre o Trágico mo-derno 16 provocado por Hegel. À A ntigona grega -e podemos acrescentar: à hegeliana - ele contrapõea "minha Antígona" 17. E a sua preocupação con-siste em pensar precisamente a diferença entre as duaspersonagens; Kierkegaard reconhece que a diferençareside no ponto não analisado por Hegel, no subjetí-vismo moderno. Escreve ele: "O herói trágico (mo-derno) é subjetivamente refletido em si, e esta refle-xão não o expulsa apenas de todo contato direto como Estado, a família e o destino, mas freqüentem enteo desliga de sua própria vida anterior". E conclui:"A tragédia moderna não tem, pois, primeiro planoépico, nem herança épica" 18. O contato direto. comaquilo que Hegel chama de realidade substancl~l .eobjetiva (Estado, família, destino) perde seu sigm-ficado.

(16) in Ou bien... Ou bien..., trad. de Prior e Guignot,Gallirnard, Paris, 1943, págs. 109 a 128.

(17) Sobre a Antigona, além do referido ensaio, veja-seo Diário de 20 de novembro de 1842 a março de 1844. Con-sulte-se também o ensaio de Walter Rehm, in Begegnungen undProbleme, Bern, 1957, págs. 274 a 316.

(18) in Le Rejlet du Tragique ancien sur le Tragiquemoderne, op. cit., pág. 112.

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rI.

Kierkegaard encontra o fulcro que lhe permiteanalisar a subjetivação do trágico na transformação dosentido da culpa e de suas conseqüências. Compreen-dendo o sofrimento como objetivo e a dor como subje-tiva, afirma ele: "Na tragédia antiga o sofrimento émais profundo, e a dor é menor; na tragédia moder-na, a dor é maior e o sofrimento menor. O sofri-mento sempre contém mais substancialidade que a dor.A dor supõe uma reflexão sobre o sofrimento queeste não conhece" 19. O processo de subjetivaçãopode, assim, ser explicado através do relevo que adqui-re na cultura moderna a reflexão: quanto mais re-flexiva se tornar a subjetividade, mais o indivíduo sedobra sobre si próprio, enfraquecendo desta forma aexperiência trágica. O que então ganha corpo é oreverso da tragédia: "Por mais original que seja cadaindivíduo, ele é filho de Deus, de seu tempo, de suanação, de sua família, de seus amigos; nisto reside asua verdade; e se em toda essa relatividade quiser serabsoluto, torna-se ridículo" 20. O que lança em crisea tragédia moderna é o deterioramento do sentidode uma ordem objetiva, metafisicamente estável."Nossa época", diz ainda Kierkegaard, "perdeu todadefinição substancial da família, do Estado, da gera-ção; ela é forçada a abandonar inteiramente à sua sor-te cada indivíduo, que se torna assim, no sentido maisexato da palavra, o seu próprio criador ( ... ); dessaforma, o trágico cessa" 21.

Nosso autor tem razão: o subjetivismo repele atragédia: À medida que progride a subjetivação, oelemento substancial objetivo é privado de seu vigor.O que para a Grécia clássica era um dado espontâneoe não problematizado, torna-se, nos tempos modernos,um problema. E se o subjetivismo é a tônica da cul-tura, passa-se a perguntar pelo sentido que possa tera ordem objetiva ou o transcendente. Compreende-se,dessa maneira, que soe de um modo tão falso e ana-crônico a crença de um Giraudoux em uma harmo-nia universal.

(19) Op. cit., pág. 115.(20) Op. cit., pág. 113.(21) Op. cit., pág. 116.

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o problema fundamental da tragédia em nossosdias não apresenta novidade: qual é a medida dohomem? Mas a pergunta se radicaliza: qual o sen-tido que pode ter uma medida que transcenda a sub-jetividade humana? E tentando responder a esta per-gunta os intérpretes do trágico defendem, significati-vamente, campos opostos. O fenômeno trágico, per-guntam, é absurdo ou fundamentalmente positivo? Atragédia assenta sobre o nada ou sobre o ser? Amedida esconde a desmedida?

Kierkegaard e Nietzsche chegam a associar àtragédia a idéia de alegria. Sengle, Lesky sublinhama necessidade de um sentido último afirmativo comopressuposto imprescindível para a tragédia. Da mes-ma forma Karl Jaspers: "O ser manifesta-se no fracas-so. No fracasso não se perde o ser; ele é, pelo contrá-rio, sentido de um modo total e decisivo. Não existeo trágico destituído de transcendência" 22. Já Hebbel,Max Scheler, Anouilh preferem o ponto de vista con-trário: a tragédia desemboca no sem-sentido. - Masquando se pensa no drama grego, é difícil admitircomo se possa interpretar a ação trágica pelo absur-do. E talvez seja possível ver a semente geradora detodas estas interpretações - quaisquer que sejam assoluções defendidas - na cegueira do homem bur-guês para a compreensão do fenômeno trágico:Nietzsche já fêz referência a essa cegueira. De qual-quer forma, a tragédia, em sua acepção máxima,apóia-se sobre um mundo pleno de sentido, e é in-conciliável com o absurdo, tanto do mundo como tam-bém da existência humana.

Por esta razão, o subjetivismo moderno (e acres-centemos que mesmo o "objetivismo" ou a exteriori-zação do homem contemporâneo é historicamente de-terminado pelo subjetivismo ) torna a possibilidade dotrágico extremamente problemática. Podemos repetira idéia de Kierkegaard: o indivíduo reduzido a simesmo resulta ridículo, objeto de riso. E acrescen-temos: ridículo e absurdo. Se o absurdo e o trágicohabitam diapasões distintos, o relevo do absurdo na

(22) in Von der Wahrheit, Piper, Muenchen, 1947, pág.925.

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literatura de nossos dias tende a expulsar o trágicode seus quadros. Sem dúvida, o absurdo pode impli-car uma experiência mais radical, mas isto não ocompatibiliza com o trágico. Não é por acaso queas tentativas de reconciliar o trágico com o absurdomedrem em uma sociedade dominada pelo niilismo.

E por que dizer que o herói absurdo (logo de,que é um anti-herói) é trágico? Mais do que inspirara sensação de grandeza humana ou da dimensão cós-mica ou telúrica à qual pertence o homem, ele trans-mite o sem-sentido da existência. Nas personagensde um Kafka, por exemplo, sente-se a presença deuma certa culpabilidade oculta, e neste sentido poder--se-ia falar em desmedida; mas só se pode dizê-Ia emrelação ao ponto de partida, porque a hybris não che-ga a ser desvelada: não há em Kafka a medida quedê razão de ser da desmedida. Sua obra conclui em"uma espécie de mística sem Deus", como diz muitobem Claude-Edmonde Magny 23. Mas desta maneira,a hybris, londe de restringir-se apenas às personagens,como que se transporta para a totalidade do real, em-bora Kafka, é verdade, "se recuse a tomar em con-sideração o valor ontológico ao qual aspira" 24. Semdúvida, a personagem se debate na ambigüidade doculpado-inocente. E a culpa não é apenas subjetiva,pois em certo sentido ela chega a ser uma espécie depecado original que arrasta o indivíduo a um com-promisso passivo. Mas, justamente, esta cegueira dapersonagem permanece cegueira, e do plano moral sedilata a ponto de atingir até mesmo o plano cósmi-co: o próprio mundo é um escândalo.

A experiência "trágica" fundamental do séculoXX é que a tragédia se transfere da esfera humana,ou da hybris do herói, para o sentido último da rea-lidade, confundindo-se, assim, com uma objetividadeontológica esvaziada de sentido - qualquer coisacomo uma antologia do nada. A desmedida se ins-tala no que Hegel chama de substância objetiva. Di-gamos que a ordem, o cosmo, é deslocado a favor

(23) in Les Sandales d'Empédocle, Neuchatel, 1945,pág. 195.

(24) Idem.

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do caos. E esse transporte do trágico pa~a o <:.ósmic,oou objetivo paralisa o trágico em uma. dlmen~ao pro-pria e especificamente humana: .Podenamos dlz~r queo conflito trágico deixa de existir ou se torna imper-ceptível para o homem, co~o a música ~as esferaspitagóricas. A personage.~ e ape?as. u~ atomo, umfragmento dentro da tragicidade cosrmca: ela se per-de em sua insignificância e todo seu esforço para saberqual é a sua culpa resulta em ~bs~~do. O des,:ela-mento da culpa não encontra. v.lab~hdade. para ~lr ase manifestar. :E: como se a injustiça estivesse l~.s!a-lada no próprio Deus, desfazendo-se, em conse').uen-cia, qualquer critério ou medida que possa aqUl~~t~ra injustiça. A tese hegeliana é invertida: ~ POSltIVl-dade absoluta do Espírito passa a ser negatIvldade.

No caso de Kafka, o escândalo do mundo e oabsurdo da existência são levados ao absoluto; pro-jetando-se o trágico a uma e~~ala, ~ósm~ca? qualquertentativa de construir um herói trágico incide no ar-bitrário ou no gratuito. Kafka é evidentement~. umcaso limite, mas ele permite comp~eender a~ .dlficul-dades com que se defronta o ~en~me.n.o t!aglco emuma boa parte - talvez a mais sígníficatíva - dadramaturgia contemporânea. O que em Kafka apare-ce como um absoluto, cósmico, em ou~r~s autores setorna relativo ou é mitigado: a negativídade fund.a-mental passa a ser uma n_egativida?e !elatIva ou c.lr-cunstancial. Trata-se entao de por a mostra a .m-justiça, por exemplo, de um~ certa est~utura social,como o capitalismo, o com~msrr;t~, o. racismo, ou am-da o fanatismo religioso ou mqulSltonal. ~estes c~sos,os limites da substância objetiva são mars reduzidos,muitas vezes confinados a uma certa região do esp~-ço e do tempo; trata-se então de problemas maisparticulares, mas que são apresentados _de um mo~onegativo ou predominantement~ tal. . As vezes, naoé a substância objetiva que esta em Jogo - ela 'pe~-..,~~~~.,.como um fundo mais ou menos amorfo, indi-U.luuc\.:.1o.I

ferente à ação dramática.:E: claro que essa limitação ou relatividade afe!a

a própria ação dramática; assistimo~ agora a, u.ma açaoque se desdobra de mod? invers~ a, da tragédia .grega.O herói encarna a justiça, destituído de hybris (ou

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com uma hybris relativa, que decorre simplesmentedas exigências da intriga), enquanto o mundo ou asituação objetiva é injusta: inverte-se, pois, a relaçãotrágica. Tal processo - para citarmos um exemplo- é realizado de um modo total e consciente porSartre, em sua peça As Moscas. Se em Kafka en-contramos o escândalo e o absurdo dos dois pólosem que se arrima o trágico - do subjetivo e do obje-tivo, do individual e do geral -, Sartre busca, ao con-trário, afirmar a liberdade absoluta do indivíduo, con-tra a má-fé que gera a ordem objetiva dos deuses.O que na tragédia grega é considerado desmedida,na peça de Sartre se transforma em positividade; ea medida transcendente ou a justiça grega passa aser fonte de má-fé, de desmedida para o homem.Nesse sentido, considerado do ponto de vista do valortrágico, o texto de Sartre é interessante porque cons-titui uma experiência de antitragédia; preso ao cere-bralismo que lhe é característico, Sartre elabora essainversão até às suas últimas conseqüências. Há umafrase de Kierkegaard que permite glosar seus resulta-dos e avaliar a presença do trágico em As Moscas:"O herói trágico renuncia a si próprio para exprimiro geral; o cavaleiro da fé renuncia ao geral para tor-nar-se o Indivíduo" 25.

Mas a severidade de nossa análise não nos per-mite concluir que a experiência trágica tenha sidobanida do mundo humano. Devemos dar razão aDuerrenmatt: se a tragédia em seu estado puro nãoé mais possível, a experiência trágica, inerente aohumano como é, ainda se pode verificar :". O sim-ples fato de que se continua colocando o problema dotrágico o atesta. Não perdeu sua atualidade o temada "diferença essencial entre o trágico antigo e o trá-gico moderno". A diferença existe, e é ela que nospermite compreender o quanto estamos longe da tra-gédia em seu sentido próprio. Mas a diferença nãopode ser tão absoluta que impossibilite a compreensãoe mesmo a experiência do trágico. A situação trágica,

(25) in Crainte et Tremblement, trad. Tisseau, Aubier,Paris, 1946, pág. 121.

(26) Friedrich Duerrenrnatt, Theaterprobleme, Zuerich1955, págs. 46 e segs.

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r

deve-se reconhecer, é freqüentemente mera nostalgia,saudosismo do melhor dos mundos possíveis e do mi-to. Mas toda cogitação do trágico, nostálgica ou não,inspira-se no próprio fenômeno trágico.

Podemos concluir dizendo que essa nostalgia oua possibilidade de uma experiência fragmentada dotrágico se resolve nos seguintes termos: na tragédiagrega, a vivência da separação ontológica resulta noreconhecimento de uma medida reconciliadora quetranscende a separação, ao passo que em nossosdias, a problemática como que se esgota na medita-ção ou na experiência da própria separação ontoló-gica, debatendo-se para encontrar uma medida quepossa colimá-la, mesmo através do desespero; tal me-dida, portanto, já não se configura em termos de uma"harmonia preestabelecida". Ao "cavaleiro da fé"resta, além da auto-afirmação que quer vencer oabsurdo, a possibilidade de uma ação que poderíamoschamar de épica - de um épico que chega a assu-mir aspectos, digamos, ontológicos, talvez maispreocupado que ocupado com a medida instauradorado humano.

(1964)

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KLEIST E A CONDIÇÃO ROMÃNTICA

Em 1862, Herman Grimm dirigia um apelo aseus conterrâneos para que se cuidasse da constru-ção de um novo túmulo; deveria ser um monumentod!~o de um poeta que, embora quase desconhecido,vmma de um injusto esquecimento, não tardaria emtornar o seu nome indelével. Referia-se a Heinrichvon Kleist. "Virão tempos", profetiza Grimm "em

• A. ,

que a unportancía do poeta se fará clara ao povo". Eacrescenta: "Hoje, ele. é conhecido e amado apenaspor. um pequeno grupo de pessoas". Estes tempos,ansiados ~or Grimm, vieram, e 150 anos após a mor-te de Kleist, o seu lugar na literatura universal é in-conteste. O poeta é celebrado em inúmeros monu-

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mentos, erguidos com entusiástica gratidão; as ediçõesde sua obra se multiplicam; acumula-se uma extensabibliografia, empenhada em elucidar o enigma de suavida e as contradições de sua obra. E poucas vozesdiscordam quando se afirma que Kleist é o maior trá-gico da dramaturgia alemã.

O problema, porém, subsiste: como permaneceuKleist esquecido e ignorado durante tanto tempo? Eisto, não só após a sua morte, mas mesmo - comexceção de um escasso número de amigos - durantea sua vida. O problema continua desafiando a argú-cia dos estudiosos da literatura, pois, se todos con-cordam quanto à importância do festejado dramatur-go e o excepcional de sua obra, discorda-se, e pro-fundamente, quanto ao lugar espiritual de Kleist.Quem foi Kleist? Um romântico? Um precursor demovimentos pós-românticos? Ou, apenas, um restodo classicismo? Ou ainda, um gênio ímpar, impossí-vel de ser classificado?

De fato, é freqüente encontrar-se entre os seusintérpretes a afirmação, não raro um tanto gratuitae apressada, de que Kleist não foi um romântico, istoé, não foi um homem de seu tempo. Alguns, então,procuram prendê-lo ao passado, buscam explicá-loatravés do classicismo de Weimar, e pretendem con-firmar tal filiação pelo exato sentido da forma carac-terística da obra de Kleist, pela sua aguda consciên-cia artesanal, pela construção pura e impecável deseus dramas. Demasiado turbulento, porém, para po-der, sem mais, ser considerado um clássico. E assim,Kleist, juntamente com Hõlderlin, constituiria comoque um intervalo, um momento de ambigüidade, a in-decisão da raiz clássica, comprometida já com o vícioromântico.

Outros acentuam uma perspectiva diversa. Prefe-rem ver em Kleist um precursor, e destacam de suaobra certas tônicas, certas dimensões, que autorizamfalar em antecipação do realismo, do expressionismo.Há, por exemplo, quem descubra na figura do juizAdão, personagem central de A Bilha Quebrada, um

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certo parentesco com Kafka. Que Kleist não possaser considerado um homem de seu tempo - dizemainda - mostra-o o fato de só ter sido compreendi-do após o seu tempo, após a morte do movimentoromântico.

Talvez a resposta mais imediata que se possa dara tódas essas tentativas de situar o lugar espiritualde Kleist seja dizer, simplesmente, que o seu gêniopertence a todos os tempos; pois é fácil - mas de-masiado fácil - descobrir afinidades entre Kleist eos mais diversos nomes da literatura alemã e mesmouniversal. - Mas isto tudo é secundário, porque, emverdade, o problema é bem diverso. O que urge elu-cidar é a relação de Kleist com o seu tempo, e, por-tanto, com o romantismo; e isto, não apenas em no-me do caso particular de Kleist, mas, muito mais, emnome de uma assertiva genérica, válida para todo equalquer homem, e que diz que o homem que não éde seu tempo não é de tempo nenhum. Ser de seupróprio tempo é condição precípua e imprescindível detoda possível grandeza humana, e condição que nãoadmite exceções.

O lugar espiritual de um gemo como Kleist nãopoderia constituir uma exceção. Bem ao contrário,ele não só foi homem de seu tempo, mas o foi deuma maneira excepcionalmente radical. - Para ten-tar mostrá-Io, indagaremos, nas linhas que seguem,mais que a sua obra, a vida do poeta.

Em certo sentido, podemos afirmar que Kleistatravessou, como nenhum de seus pares soube fazê--10, todas as virtualidades do romantismo; ele foi oromântico coerente, de uma coerência existencial quesoube esgotar o movimento espiritual de sua épocadesde as suas raízes até às suas últimas conseqüências.O caminho de Kleist, contudo, foi obscuro e sinuoso;a sua vida não se desdobra com a clareza de um si-logismo, nem com a consciência de uma vontade in-quebrantável. Por esse caminho, que raras vezes con-segue clarificar os seus próprios desígnios com luci-dez, KIeist viveu não apenas o romantismo, mas -e para isto pretendemos chamar a atenção - viveu

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também o processo do romantismo; e através desseprocesso, vivido, sofrido na própria carne, é que opoeta consegue ir além do romantismo.

o sonho e a preocupação básica de Kleist, comoem todos os românticos, é a felicidade, e uma felici-dade que deve ser compreendida como sinônimo depureza, inocência, vida espontânea, integração na na-tureza, conquista, enfim, de um paraíso terreno. Talpreocupação já pode ser constatada no jovem Kleist,em seu primeiro ensaio, cujo título é todo um progra-ma de vida: Ensaio para encontrar o mais segurocaminho da felicidade, e para desfrutá-Ia com segu-rança, mesmo através das maiores dificuldades da vi-da. Ora, se busca o caminho da felicidade, é por-que não a possui, embora o jovem ensaísta viva nafirme esperança de poder atingi-Ia. E justamente essaesperança, nutrida como sua razão de ser, sofre o ir-reparável impacto do famoso Kanterlebnis.

De fato, a arrebatadora descoberta e uma inter-pretação precipitada da Crítica da Razão Pura fezde Kant a primeira experiência trágica vivida porKleist. A sua esperança de felicidade, ou, como dizNietzsche, o seu "sagrado interior", constitui o crité-rio com o qual o poeta vai medir o sentido da filo-sofia kantiana. Realmente, não há critério mais cor-reto para julgar uma filosofia que o seu valor para aexistência humana. Mas a paixão do poeta impediuuma compreensão objetiva. Onde o filósofo de Koeni-gsberg pretende delimitar e dar ao conhecimento hu-mano um itinerário seguro, isento de incertezas e deassédios cépticos, Kleist vê apenas a certeza do cepti-cismo, a definitiva ruptura entre o homem e o mund?Kant é para Kleist a confirmação e a tragédia do cepti-cismo. E desse momento em diante, a luta pela feli-cidade, a busca febril do caminho que possa garanti-Ia,torna-se impossível e mesmo autodestruidora.

Detenhamo-nos, por um instante, no conceitoromântico da felicidade. Lembremo-nos de que parao classicismo de Schiller, a graça, a beleza, a "belaalma" - o homem feliz -, resultam da conquista

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•••

de um equilíbrio entre dois termos inicialmente an-titéticos; a des-graça do homem surge na medida emque houver conflito entre o natural e o ideal, entre oanimal e o espiritual; e a "educação" clássica visa àsuperação de tal conflito. Mas é precisamente esseprocesso de superação que perde sentido para Kleiste _os românticos, pois, p.ara eles, a graça, a beleza,nao decorrem da conquista de um equilíbrio entretermos que se opõem. Não se pode, pensam elesatingir a síntese entre o pré-reflexivo e o reflexivo;e toda tentativa de conciliação entre a ingenuidadenatural e espontânea com o conhecimento e a cons-ciência da condição humana, endereça-se, irremedia-velmente, ao fracasso. Isto porque a graça, a belezasó são compatíveis com o estado de absoluta inocên-cia, só são realizáveis através da integração plena dohomem na natureza. A felicidade romântica não sedefine, pois, pela consecução da harmonia dos opos-tos, mas pela exclusão de um dos termos da antítese.

Este, aliás, é o tema central de um breve ensaiode Kleist, o famoso Teatro de Marionetes, escritono fim de sua existência e que vale por um testamen-to espiritual, além de constituir, possivelmente, a me-lhor porta de acesso à compreensão do problema dacons~ciê~cia româ~t~ca. Neste ensaio, a visualizaçãoromantica da felicidade é exemplificada através deuma espécie de parábola, que relata a aventura deum jovem adolescente, desprevenidamente entreguea?s seus tenros anos, com uma espontaneidade irres-~n~a, se~ reserv~s,,, destituída de qualquer "petiteidée dernere Ia tete. Um dia, porém, este jovemsurpreende-se a si próprio, diante de um espelho,executando sem premeditação um gesto que é todobeleza, todo graça; sorri e encanta-se consigo mes-mo. Tenta então repetir o gesto, mas tudo que con-segue é um arremedo mecânico, desprovido de vida:a graça desaparece. Ele se impressiona; inconforma-do, teima em repetir a pureza daquele primeiro gesto,e passa horas, dias, diante do espelho, diante de sipróprio. Seus esforços, porém, são inúteis, e desdeentão - conclui o poeta - o adolescente transforma--se profundamente, o seu rosto já é outro, torna-seum homem adulto.

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o preço desta transformação é irresgatável: cc;)t~-siste no sacrifício da inocência e da beleza; a felici-dade, a graça, dão lugar ao grotesco, e o passadoirrepetível determina a nostalgia,' O ~o~portamentopré-reflexivo cedeu o seu lugar a reflexividade.

A leitura de Kant transforma-se, para Kleist, emuma tragédia, porque ele comp~:en~e em ~o~a a suaextensão o fato de que a consciencia, a atividade re-flexiva, pertencem à própria nature~a da cor:dição h~-mana. Compreende que o conhecimento nao aproxi-ma mas afasta o homem do real, confinando-o. ~ ummundo de aparências ilusórias, .tornando ~. f.ehcIdadeirrealizável. A verdade é, aSSIm, o definitivamentepassado. Quem o ~iz é o. jov~m ,~eist,. em uma im-pressionante carta a sua irma: Entrei em cont~t.ocom a filosofia de Kant", escreve, "e quero partici-par-te a conclusão a que cheguei, pois não temo queestes pensamentos te possam abalar tão profunda ~dolorosamente quanto a mim". E, dilacerado, concluidizendo: "Nós não podemos decidir se aquilo quechamamos de verdade realmente é a verdade ou so-mente uma aparência. E se for simples aparência,então a verdade que buscamos nesta terra não temmais sentido após a morte, e todo esforço para con-quistarmos algo que nos siga mesmo no túmulo é vão.Se a voragem deste pensame~to não atin~ir o teu c~ração, não rias de quem fOI por ele fe~Id.o na maisprofunda intimidade de seu ser. O meu. ,umc~, o meumais elevado objetivo naufragou, e ja nao tenhooutro" (carta de 22 e 23 de março de 1801) .

Tal é o ponto de partida que permit~ co~preen-der a condição humana de Kleist, a sua biografia des-norteada, o seu viver como um navio-fantasma aoqual todo pôrto é impossível. Pois os pólos da tor-turada existência do nosso poeta são a verdade dosonho e a ilusão do mundo. Ele soube medir umafilosofia - embora mal compreendida - em seupróprio foro íntimo. E em sua irrequieta vida, emvão procurará Kleist realizar o seu sonho neste mun-do. O máximo que o mundo pode oferecer ao homemsão acenos de um paraíso perdido, acenos que tor-nam ainda mais trágica e absurda a existência humana.

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•••

Filho de nobre estirpe de militares, cedo renegaKleist a família e suas tradições. Renega inclusive asua pátria, a Prússia. E põe-se a viajar como uminsensato pela Alemanha. Que busca Kleist? Nemele sabe ao certo. O que sabe é que há um fantasmaa persegui-lo: o fantasma do suicídio. Foge para aFrança, depois para a Itália. Encanta-se com a Suíça,país puro, idílico, de uma natureza mais forte que ado homem: o ideal de Rousseau o seduz. Na Alema-nha torna-se noivo e faz planos para viver na campa-nha suíça, em virgem contato com a natureza, viven-do a vida sem falsos problemas do camponês. Mascomo poderia sua noiva compreendê-Io? Como pode-ria a burguesa filha de um general de Frankfurt ado-tar os costumes de uma camponesa? Iludira-se, nãoencontrara a sua companheira. E Kleist parte só. So-zinho, tenta realizar o ideal rousseauniano de integra-ção na natureza, de abandono das convenções civi-lizadas.

Mas o sonho é inexeqüível, resulta em frustra-ção, e, em breve, o nosso poeta volta à sua vida agi-tada. .Da França é transportado para a Alemanha,ac.ometldo de estranha e grave doença: o diagnósticoafirma que o micróbio que corrói a sua vida é o nadao desespero radical. Graças, porém, a ingentes cui~dados médicos, consegue salvar-se. Em Koenigsberg,aparentemente dono de si, veste a fantasia de umfuncionário público. De fato, tudo o que faz é es-conder-se, fugir daquele que ele realmente é, esqui-var-se de seu demônio interior. E os simples encar-gos de funcionário público terminam pesando em seupeito como a maldição de um Sísifo.

Entrega-se, enfim, à ação - agir é melhor queconhecer. Tentando reatar os laços familiares aban-donados, põe-se a serviço do exército da Prússia, masem pouco tempo desilude-se também com a política.Pretende então estabelecer-se como um homem de le-tras; organiza uma editora, a Livraria Phoeníx, e fun-da uma revista literária, Phoebus. Também nissofracassa. E o seu último fracasso, ele o encontra naatividade de redator de um jornal sensacionalista deBerlim. Tudo em vão. A felicidade não é destavida. E Kleist chega, assim, a compreender, através

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das peripécias de sua própria existência, a mentira doideal de Rousseau. Sobra apenas esse destruidor demundos que foi o céptico Kant.

Por que não pode o hom~m. viver. en; e~tado degraça, dessa graça que é o propno da infância? Porque é a inocência proibida ao homem?

O Teatro de Marionetes afirma que os ho-mens não meditaram suficientemente o fato de queAdão, no alvor da humanidade, comeu o fruto proi-bido da árvore da ciência do bem e do mal. A fata-lidade do homem, como já vimos, é justamente o co-nhecimento, a ciência, a con-sciência. A ati,:idadereflexiva rouba ao homem a graça, a espontaneidade.O homem pensa e sabe que pensa, age e sabe queage, ama e sabe que ama. Mesmo no a~or, "se~~rehá o outro", como diz Rilke. Sempre ha a conscien-cia e a conseqüente impossibilidade da entrega tot~le pura, da coincidência absoluta com o real. A fel~-cidade só é possível ao marionete ou ao deus, os dOISextremos absolutos. E entre estes dois absolutos, ex-cluída de ambas as possibilidades - expulsa do pa-raíso -, debate-se a malograda humanidade.

O destino e última esperança do homem é "em-preender a viagem à volta do mundo para saber senão há uma entrada de retorno atrás do paraíso". Masé em certa altura desta viagem que K1eist se senteassolado pelo desespero. E neste desespero, profun-damente enraizado no romantismo, o autor de Pan-tesiléia ultrapassa a vivência de seus colegas român-ticos.

Em verdade, os pressupostos do desespero sãotodos românticos, e, mais especificamente, confun-dem-se com o ideal de felicidade próprio desse mo-vimento. O nosso poeta, em sintonia com a suaépoca, compreende o homem como um viajante, u~peregrino. A tão almejada felicidade, por ISS~, naopode estar na quietude do repo~~o, na h.ar:n?ma queconsegue dominar o tempo, pacificar a história, comoo pretendiam os clássicos, pois a compreensão ~omân-tica da felicidade radica no Zeitgefühl, no sentimentodo tempo, ou, como diz Novalis, a felicidade é "sen-

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1tido para' o tempo, talento para a história". E opróprio dos românticos é crer que esta felicidade épossível, que ela nos ronda e está próxima, que elase confunde com o instante que se avizinha.

No Fortunatus, de Ludwig Tieck, obra porexcelência da felicidade romântica, lemos: "O espon-tâneo filho do homem não cansa de esperar do pró-ximo instante uma inesperada, rara e nova felicida-de". De fato, para a maioria dos românticos,Rousseau ainda é um evangelho, e Emílio pode sereducado. Mas é justamente desta felicidade - desdedentro dela - que desespera o radical Kleist. Paraele, o inesperado instante de rara e nova felicidadeé um logro - ao menos para esta vida. E deste pe-sadelo Kleist não se consegue libertar.

A nostalgia, como se sabe, é o sentimento bá-sico, informador da vida romântica. Mas eis o para-doxo romântico: a nostalgia da flor azul, desse azulque é símbolo de distância, torna-se objeto de culto;e o romântico adora esta flor, compraz-se na distân-cia que o separa dela, vive a distância com volúpia.Em Kleist, tal volúpia perde sentido, suspende-se oparadoxo romântico, e a nostalgia, de volúpia que era,metamorfoseia-se em dor profunda. Transforma-sena angústia da separação, da ruptura entre homeme mundo, nostalgia de um sonho que se sabe impos-sível até o fim.

Em sua última obra, o Príncipe de Hamburgo,o conflito parece resolver-se. Como tantas outraspersonagens de Kleist, também o Príncipe é um so-nhador - só a morte próxima consegue despertá-Iopara o real. Como todas as principais figuras cria-das por Kleist, também ele busca a felicidade, a ver-dade. Mas, à diferença das outras, ele o consegue:o sonho concilia-se com a realidade. Na vida deKleist, porém, o sonho deixa entrever uma realida-de à qual não consegue nunca adequar-se. E assim,quem termina por vencer não é o Príncipe de Hom-burgo, mas a profetisa Pantesiléia, que dilacera comos próprios dentes o corpo do ser amado. Pante-siléia é a felicidade que se destrói, que já não con-

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segue, a despeito de si, crer em sua própria possi-bilidade.

Se a existência se torna insuportável, compreen-de-se, então, que Kleist pretenda encontrar uma der-radeira tábua de salvação na morte. Sempre foraum suicida, e seus amigos mais próximos o sabi~m.Trata-se de saber o que é mais intolerável: a vidaou a morte. E se a vida se torna um inferno, o sui-cídio se justifica. Tal é a triste conclusão a quechega o desesperado Kleist. Digno de nota é, ~ue,nesta solicitação da morte, encontra - como últimoe irônico consolo - alguém que o compreende. Hen-riette Vogel surge como a companheira sempre alme-jada. Uma afinidade essencial os aproxima: am~~ssão doentes e incuráveis; ele, de uma doença espm-tual; ela, de uma doença física. Enfim a companheirapara celebrar o supremo culto - o culto da morte.

A morte, mais que insuportável, transforma-~eno simplesmente desejável, e ~esmo, na s,ol~çaoóbvia. Em diversas cartas, escritas em seus últimosdias, o poeta faz o elogio da morte. Assim, à suaprima Maria von Kleist, escreve: "Se soubesses, que-rida Maria, como a morte e o amor alternam paracoroar estes últimos instantes de minha vida com flo-res celestes e terrenas, de bom grado me deixariasmorrer. Eu te asseguro que tudo em mim respiraa felicidade dos bem-aventurados. Manhã e tarde eucaio de joelhos coisa que jamais conseguira fazer,e rezo a Deus. Posso agora dar-lhe graças por minhavida a mais torturada que um homem já viveu, por-que' ele me recompensa com a mais bela e a maisvoluptuosa de todas as mortes". E num bilhete dedespedida à sua irmã Ulrike, confessa que, "em. ver-dade, a vida sobre esta terra se lhe tornara msu-portável" .

Se Kleist não consegue comunicar-se com o outro_ amante, esposa ou amigo -, termina buscandocomunicação com o "outro" definitivo, com a morte.Encontra na morte a derradeira esperança, a supre-mavolúpia, e por isto a celebra. E numa ma~hãde outono, às margens de um lago junto a Ber~lffi,num gesto quase litúrgico, após libertar desta Vida,com um tiro, a sua companheira, suicida-se.

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A morte de Kleist permanece o fato mais im-portante de sua vida. É o fato que deve ser medita-do, o grave digno do pensamento. Sua morte nãodá apenas certa coerência à sua vida, mas, além dis-so, deixa descortinar, e pela primeira vez, novas di-mensões da alma romântica.

Todos os românticos, desde o Sturm und Drang,acreditavam que o caos constrói. E o românticoKleist também se deixa embalar, em certa medida,por esta crença; Mas apenas em certa medida, por-que Kleist foi o primeiro dos românticos a descobrirque o caos, aléin de construir, vem, por outro lado,armado de uma. irreparável força destruidora, aniqui-ladora de tudo e todos. Um Novalis vive ébrio deuma realidade pressentida e jamais conquistada, ja-mais possuída; ele está tão emaranhado em sua em-briaguez, que não consegue perceber nitidamente asfronteiras de sua própria vivência. Kleist foi o pri-meiro romântico quebrado, imolado por estas mesmasfronteiras. Por isto, o que em Novalis não passa deum etéreo suicídio metafísico, em Kleist transfor-ma-se, brutalmente, em suicídio físico.

o velho Goethe, 16 anos após a morte do poeta,escreve: "Ele sempre me inspirou horror e repulsão,como um corpo provido pela natureza de belíssimosdons, mas corroído por um mal incurável". Bstejuízo é rigorosamente correto. Mas ao expressá-Io,o que Goethe faz é recusar Kleist, dizer-lhe não, dar--se ao luxo de ignorá-lo. É que os tempos deGoethe já tinham passado. Nós, porém, podemos per-guntar se tal luxo também nos é permitido, se nóspodemos ignorar Kleist. Sobre os palcos do século XX,Pantesiléia impôs-se como uma figura plenamenteaceitável, fascinante até. O horror que ela inspiravaao século passado assumiu ares de família. A razãodisto é óbvia. Em torno de Kleist havia qualquercoisa do "mar morto do nada", para usarmos a ex-pressão de Jean Paul. E o que não se deveria esque-cer é o fato desse mar ter tomado as dimensões deum oceano.

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Sem dúvida, Kleist foi um homem que soube rir,que escreveu uma das melhores comédias de toda adramaturgia alemã, que escreveu deliciosas anedotas,que soube captar momentos de infinita ternura e pure-za, que nos deixou páginas de profundo patriotismo, deintenso sentimento familial. Mas, no final, quem temrazão é Goethe, com o seu severo juízo. Em umaperspectiva mais geral, o problema que deve ser eluci-dado é o da filiação romântica do niilismo. A tese é lon-ga e complexa, e não é este o lugar para desdobrá-Ia.Mas se a história tem uma continuidade de sentido, en-tão, os descrentes (no sentido amplo da palavra) donosso século - nós todos, a humanidade contemporâ-nea -, encontram no romantismo e, mais especifica-mente, em um homem como Kleist, o primeiro esboçode suas feições niilistas. Kleist foi o homem que tornouridículo o geometrismo intelectual dos cépticos clássicos,gregos; foi o primeiro a palmilhar, dentro de uma dimen-são moderna, uma forma muito mais radical de cepti-cismo - o cepticismo existencial.

Não é esta, porém, a ocasião para falar sobre acarga fatal dessas coisas "horríveis e repulsivas", jáporque em Kleist havia ainda a fascinação da esperança,mesmo se ela terminou por encontrar o seu objeto namorte. Atentemos ao consolo mínimo que é esta espe-rança, e concluamos com a insondável palavra do poeta:"Und jeder Busen ist, der fühlt, ein Ratsel"; - todopeito que sente, que ama, é um enigma, um mistério.

(1961)

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EGMONT, DE GOETHE

o juízo expresso pelo velho Goethe a seu confi-dente Eckermann sobre o Egmont nos diz bem dasingular posição desta peça dentro da dramaturgia goe-theana: - considera-a uma peça estranha. E de fato,a elaboração do Egmont coincide com a fase de tran-sição mais importante da vida do poeta, estendendo-sepor mais de 12 anos. Quando, em 1775, aceita o con-vite do Duque Carlos Augusto para visitar Weimar -uma visita que se prolongará terminando por fazer dacorte a sua residência permanente -, o jovem Goethe,empolgado ainda pelos ideais de um titanismo exacer-bado, já trazia em sua bagagem, juntamente com umesboço do Fausto, um primeiro fragmento do Egmont.

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Mas a versão definitiva do drama data de 1787, quan-do, na Itália, definia as idéias que deveriam nortear oseu classicismo, assimilando o princípio de "nobre sim-plicidade e calma grandeza", estipulado pela estética,de inspiração grega, de Winckelmann. Éste caminharde Leipzig até a Itália, da juventude à maturidade, doromantismo ao classicismo, reflete-se em Egmont.

Nos primeiros dramas de Goethe, sobretudo noGoetz von Berlichingen, deparamos com personagenscuja tragédia radica em indivíduos excepcionais, que,por seu gênio, estão acima de toda convenção social,de toda ordem estabeleci da, de toda e qualquer lei, masque terminam sempre destroçados pela tirania destasconvenções, ordens e leis. Goethe nos pinta a ação he-róica, individual, de homens para os quais o único pe-cado seria a infidelidade à sua própria energia, ao seudaimon interior, aceitando, por única lei, a lei que elespróprios são e que trazem inscrita em seu foro íntimo.O trágico nasce sempre da inevitabilidade do conflitocom o mundo exterior, desdobrando-se em uma luta -que por vezes se manifesta na dimensão de revoltapolítica - contra toda limitação imposta pelos valoresde uma moral tradicional. O caráter socialmente com-prometido destes dramas empresta-lhes uma dimensãohistórica, que lhes é essencial, pois transforma-os emtragédia do herói nacional, imbuídos dos ideais de pre-servação da germanicidade. Egmont é, dentro da dra-maturgia de Goethe, o último representante deste tipo- e é errado falar em tipo -, no qual se encarnam asaspirações e peculiaridades do Sturm und Drang.

Embora fundamentalmente romântico, Egmont,por outro lado, se afasta destas convicções sem as quaisnão pode ser compreendido, e anuncia já o classicismode Goethe. Se Goetz, o "cavaleiro da mão de ferro",é precipuamente um homem de ação, que se joga naluta por seus ideais, Egmont não se caracteriza pelaação. Em ambos os heróis encontramos o mesmo amorpela liberdade, a mesma densidade nórdica. Mas Goetzé um homem do povo, bom em sua rudez, ativamenteinflamado; ao passo que Egmont, bem ao contrário,é um espírito fino, aristocrático, macio, um homemconfiante e alegre, aberto a tudo, "como se o mundo

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lhe pertencesse", - diz Schiller em seu comentário so-br.e a peça - "ein frõhliches Weltkind", "uma alegrecnança do mundo". Egmont é um herói fundamental-mente passivo.

. Se Egmont é habitado por grandes ideais, isto nãoImpede uma entrega imediata a um sentido feliz e quo-tidiano da existência, a um viver amorosamente cadamomento. "Pois então", confessa a seu secretário "heide viver apenas para pensar na vida? Não posso 'gozaro momento presente só para estar seguro do seguinte,~ consumir este, por sua vez, com preocupações e to-lices?" "Remédio agradável" contra tais preocupações etolices é Clarinha, sua amante. Antes do Egmont, aexperiência amorosa sempre se apresentara em Goethecomo conflituosa, desgraçando-se na frustração. Wer-ther, por exemplo, deve renunciar ao amor. Com Cla-rinha surge, por primeira vez na obra do poeta, umamor feliz, despido de qualquer conflito. Egmont en-trega-se à natureza pura e livre de Clarinha, pois elacompreende a grandiosidade do destino do seu herói,pode também ela sacrificar-se por esse destino.

E assim como Egmont repousa sobre Clarinha,assim também não luta pelo povo, mas repousa sobreele. As cenas populares foram pintadas por Goethecom uma precisão extraordinária, dando a atmosferaexata de um momento histórico definido - o séculoXVI flamengo, quando o país, politicamente integradoà Espanha, começa a insurgir-se contra a tirania es-trangeira e antiprotestante. Mas estas cenas constituemapenas o fundo histórico sobre o qual se desdobra, maisdo que ação, uma seqüência de quadros que nos ofe-rece tóda uma galeria de caracteres: Egmont, a fideli-dade integral de Clarinha, o imediatismo político deOrange, a figura oscilante entre o político e o femininoda Regente, a negra e gulosa astúcia de Alba, e outrosmais. O homem não é, para Goethe, fundamental-mente, um "animal político", mas um ser dono de umavida privada e pela qual deve responder.

Goethe não nos quis dar, nesta peça, um dramade ação, mas uma Gestalt, um caráter, que antecipaas concepções posteriores, de impessoalidade clássica,

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imperantes na Efigênia e no Torquato Tasso. Tudogira em torno de Egmont e o próprio Egmont só podeser compreendido a partir de sua interioridade. Em-bora não se trate de uma personalidade titânica, genial,há nele uma superioridade que releva da intenção maisprofunda de Goethe: o poeta nos revela o seu senti-mento de um destino "demoníaco", de uma submissãoa forças suprapessoais, condutoras da vida. Se nos he-róis do Sturm und Drang encontramos o gênio revoltadoe insubmisso a estas forças, que termina, prometeica-mente, por naufragar diante do que foge a seu controle,Egmont é a conciliação, é a total submissão a estasmesmas forças, a coincidência entre o destino e o serdo homem, que se manifestam num sentimento de con-fiança e de harmonia final.

O próprio Goethe considerava-se uma naturezademoníaca. As últimas palavras de sua autobiografia,Dichtung und Wahrheit, terminam com uma profissãode fé neste sentido: "Como que guiados por espíritosinvisíveis correm os luminosos corcéis do tempo, con-duzindo o leve carro de nosso destino, e a nós resta,apenas, possessos, segurar as rédeas a fim de evitar umobstáculo de um lado, uma queda de outro lado. Paraonde vai? Quem sabe? Se mal se lembra donde veio!"Se o caminho do homem é por vezes confuso, a crençade Goethe nos afirma a possibilidade da sabedoria, daintegração do homem em um todo que o transcende.Ao contrário de Goetz, símbolo do titanismo, Egmont éa encarnação de um certo fatalismo, pois não há neleo sentimento de sua força e sim o do destino, de umdestino que não se opõe ao homem, mas que o conti-nua, que o conduz, através desta subordinação do euao daimon, à máxima realização do homem. Já se vê:o trágico, segundo Goethe, não cresce a partir de umaconcepção metafísica da liberdade, como em Schiller,mas da convicção do humano-demoníaco.

Compreende-se então a enorme autoconfiança deEgmont. "Minha posição já é alta", afirma, "e possoe devo subir ainda mais; sinto-me com esperanças, co-ragem e forças. Ainda não alcancei o cume de minha

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grandeza; e se um dia estiver lá em cima, quero estarseguro e não receoso." Seu caminho é ascensional e aprópria morte transfigura-se em salvação, sua e de seupovo. Egmont não conhece conflitos, tudo nele é paz,repouso, não havendo sequer o perigo da perdição. Daísua entrega, sua passividade, que encarnam todo ootimismo do Goethe desta fase de sua obra. Egmontsequer conhece a culpa em sentido moral, tão presenteem certas obras anteriores, como também no Fausto,mas desdobra-se na consciência de uma legalidade sub-jetiva, interior, coincidente com a força do destino.

Esta passividade ocasionou a irritação de Schiller:"Ouvimos falar de seus méritos - e vemos com nossoso~hos suas fraquezas". Contudo, o caráter de Egmontna? tem, ~ara Goethe, um sentido negativo ou neutro,pOIS sua vida e sua morte alçam-se em símbolo de es-perança de reconquista de uma liberdade perdida. Ofundo político básico do drama é o problema da liber-dade, mas se assistimos ao conflito entre a liberdadee a tirania, uma tirania que se torna sempre mais agudano decorrer da peça, culminando com a ação usurpa-dora do Duque de Alba, a suspensão do conflito nãose processa através da luta política, como no Don Car-Ias de Schiller. Centro de toda ação não é a luta polí-tica, mas a figura de Egmont, e somente através deleserá possível atingir a salvação, pois representa a en-carnação de todos os valores tradicionais. Por issomesmo, a liberdade não tem precípuamente uma di-mensão futura ou revolucionária: bem ao contrário,trata-se de uma liberdade que deve garantir a sobre-vivência do passado, de uma tradição organicamenteenraizada na natureza do povo. Esta fidelidade é oque faz de Egmont um protegido dos deuses, revelandocomo insuficiente a ação política, não só do astutoAlba, mas também de Orange. As drásticas revelaçõessobre a situação política, feitas por Orange, e o con-vite à fuga, provocam em Egmont uma explosão deprotesto: "Este homem transmite-me suas apreensões.Fora! É sangue estranho em minhas veias! Bondosanatureza, expele-o de mim! E para lavar do rosto asrugas pensativas, por certo que ainda haverá remédioagradável".

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Dentro de uma perspectiva política, ~ atitude deEgmont provoca indignação. Mas, precls~mente, aperspectiva política é, para el~, fals~: o caminho deveser o próprio Egmont, em cujas velas c~rre. o sangueda tradição, e Egmont escuta o seu propno sangue,busca a sua própria densidade, pois é através dela qu.econseguirá redimir a si próprio e a seu. po~o. A passi-vidade do herói identifica-se com sua ilusão,

(1958)

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VIGENCIA DE BRECHT

Mais do que em suas peças, a dimensão funda-mental de Bertold Brecht reside talvez na complexaproblemática que soube, como ninguém, trazer à luzcom as suas idéias sobre o teatro. Idéias que, longede afetarem apenas, como poderia parecer à primeiravista, a especificidade da construção teatral, atingem afunção da arte em sua raiz, mergulhando, assim, naprópria estrutura da civilização contemporânea.

Pode-se discordar da impenitência dos ideais políti-co-sociais de Brecht; pode-se discordar das "respostas"que pretende insuflar ao espectador; pode-se discordaraté mesmo da genialidade com que soube, através de

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uma progressiva laicização do expressionismo, _concre-tizar a sua concepção do teatro. Mas o que nao podeser ignorado, o aspecto mais essencial, além de toda _apeculiaridade de sua carpintar~a, além m~smo da taosignificativa evolução de sua hngu~gem, e a treme~daacusação, explicitada em larga medida em seus escntossobre o teatro, sobre a própria idéia da arte teatral.Dir-se-á que esta idéia não é nova, mas ninguém soubetão bem quanto ele torná-Ia objeto necessário de con-sideração.

A verdade de Brecht, conquistada através de umalúcida evolução, é esta: a compreensão de que a volúpiado jogo, o esteticismo em qualquer dimensão, corres-pondem a uma concepção decadentista, alienadora dadensa realidade' humana. Mas compreendamos o este-ticismo em um sentido amplo, como comprazer-se nosmeios e ignorar os fins, ou como subordinação dos finsaos meios. O esteticismo, portanto, entendido como oproduto de uma civilização na qual se atingiu uma tãoaguda diferenciação entre os diversos aspectos da cultu-ra, que a idéia de organicidade, de sentido, entr.e estesaspectos, passa a ser atingida apenas co~o o objeto deabstratas análises, quase sempre decepcionadas e de-cepcionantes: a organicidade deixa de ser vivida, talvezpor já não existir. A fragmentação, a ausência de co-natação vivida como impossibilidade, passa então a serlei, e o sentido da totalidade, orgânica e concreta, seesfumaça.

Neste sentido, abstrato é o dandy; abstrata é todaobra de arte pacificadora, que resolve ou exclui. E seo dandy encontra o seu habitat nos inevitáveis "paraí-sos artificiais", a obra de arte já nasce endereçada paraser exposta nesta invenção eminentemente moderna queé o museu, cuja origem coincide com o próprio surtoda crise da cultura contemporânea. Pois o museu éprecisamente a glorificação do espírito abstrato, frag-mentário, consagrador do meio como fim, esquecendoa este sob a coberta de uma simpática e legitimadorademocratização da arte.

Friedrich Duerrenrnatt chamou a atenção para ofato de que o teatro de nossos dias tende a ser, sempremais, uma espécie de museu da dramaturgia ocidental.

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j.

f•I

O teatro é tragado pelo ideal de uma fidelidade histó-rica insuspeita, como se cada espectador devesse tor-nar-se, enciclopedicamente, um especialista na matéria,compreendendo gregamente os gregos, medievalmenteos .medievais, modernamente os modernos. E, como~a~llmen~e acontece com os espíritos enciclopédicos, aumca coisa que deixa de ser compreendida é o própriotempo, seja ele interior ou exterior.

A consciência histórica já não pode ser camuflada:Hegel fez compreender, definitiva e inadiavelmenteque um ocidental que estuda a Grécia antiga ou a Idade~é~i~ cristã não se entrega simplesmente ao passadohistórico (esta perspectiva é, ao menos, inconsciente),mas, sobretudo, estuda a si próprio. Somos todos gre-gos e todos medievais. Mas Valéry também tem razão:o imenso e pesado caudal da história agride-nos como? produto mais perigoso já produzido pela química dointelecto humano, justificando tudo o que se quiser;rigorosarnente, ela nada ensina, pois contém tudo ede tudo dá exemplo. As "vantagens e utilidades dahistória para a vida" tornaram-se suspeitas, cedendo oseu lugar a um prudente cepticismo.

Diante de situação tão ambígua, Duerrenmatt~r~fere a segunda alternativa: se a história tudo jus-tifica, ela nada justifica. Sobra o riso, pois o maisridículo, a despeito do tabula docet, seria levar a sérioa Augias e o seu estábulo. Por isso, Duerrenmatt es-creve para aqueles que, ao lerem o seríssimo Heideg-ger, caem no sono dos justos e no esquecimento de simesmos, isto é, da história. Brecht, ao contrário, nãori: assume a impossibilidade de camuflar a consciênciahistórica e todas as suas fatalidades. A história já nãoé um museu, e o seu teatro se inscreve no horizontede um sofrido apelo para a reforma do homem. E sese pode fazer certa reserva ao que ele entende por re-f?rma do homem - na medida em que supõe o assas-smato de Pascal - a acusação que faz ao teatro vigenteé não só válida em muitos de seus aspectos, mas dia-lêticamente sadia até o seu nervo e absolutamentenecessária. A presença de Brecht impõe-se como omarco mais sério e essencial do teatro contemporâneo,na medida em que denota um esforço encaminhado pa-

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fra a_superação de estruturas caducas, sejam teatraisou nao.

Evidentemente, suas teorias não são um critérioabsoluto no qual nos possamos acomodar; nada com-promete tanto o espírito de criação como o dogmatis-mo. Não se deve esquecer que uma doutrina como ade Aristóteles não foi o pressuposto ou a mola impul-sionadora da dramaturgia grega, mas a decorrência eo comentário do teatro antigo, e que isto vale paratoda teoria. Transformar Brecht em um programa fixopara atividade teatral, além de contradizer as lições eo comportamento do próprio Brecht, reduz o teatro aum trabalho de epígonos.

Mas as teorias de Brecht oferecem-se como umapresença inexpugnável para o diálogo sobre a vida e arazão de ser do teatro - presença que deverá conti-nuar atuante: não apenas como pólo antitético e polê-mico, mas como possibilidade concreta daquilo quepretende, legitimamente, o autêntico teatro: o alarga-mento da consciência humana, o aceno à compreensãodo tempo. E a denúncia da indiferença daquilo que,no Doktor Faustus, muito adequadamente, ThomasMann chama de "travesti da inocência".

(1961)

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A PROPÓSITO DE JACQUESE A SUBMISSÃO DE IONESCO

Todo espectador tem o sagrado direito de protes-tar contr~ a mistificação: quando vai ao teatro, querser atendido nessa função específica que se propôs co-mo espectador, isto é, quer ver teatro. Trata-se de umaexigência pacífica. A rebelião de Ionesco não admitetal direito; ele não gosta das mentalidades que aceitamas coisas como pacíficas. Antes de mais nada Ionescoé um destruidor - apenas um destruidor. 'E assim,coerente com esta premissa, não escreve teatro masum antiteatro; escreve antipeças, antidramas. Uma dasnovidad;s .de nossa época e de sua sempre surpreen-dente técnica está na fabricação de brinquedos. Pois

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Ionesco trata o teatro como se fosse. um ~rinquedo;manuseia-o a seu bel-prazer, e, como toda cnança, ter-mina por virá-Io ao avesso, desmonta-o, quer saber qualo seu segredo.

Contudo, da criança, o que falta a Ionesco é a in,?-cência, a candura da entrega. P~r isso, a ~cu.saçaomais inconsciente que se lhe poderia fazer sena. l~pU-tar-lhe o compromisso arbitrário com uma at~vldadelúdica gratuita. Já disse: Ionesco é antes de ~als nadaum destruidor, e não destrói apenas ~s:e realismo tea-tral que, após dois mil anos de tradição, tornou-se aexigência espontânea. de to?0 esp-eçtador. Sua vo~~adede destruição vai muito mais longe. Ionesco destróiaparentemente, ao menos - tudo de que pode lançarmão a ponto de não se saber com certeza se existepara' o nosso autor algo de indest~utível ou, pelo menos~qualquer coisa que mereça a mao construtora do homem.

Entre os ricos e variados produtos de nossa ~ultu-ra burguesa destaca-se, com um realce todo espeCial, oenfant terrible. Pois Ionesco é um deles. Apraz-se emdilapidar sistematicamente a .fortuna herdada de seu~pais, e enquanto não consegUir espalh~r lI:0s ventos atemesmo as ruínas, não se dará por satisfeito. De fato,o "monstro" Ionesco tem um não menos monstruosoinimigo: o burguês. Toda a su~ ~bra pr~cura des-montar as diversas peças dessa maquma fabncadora deconforto, de higiene, de bancos, de luga!es ~omuns e depreconceitos de toda ordem, de falsos IdeaiS, e de pro-gressismos anacrônicos. Também Ionesco e autor deuma "tragédia burguesa".

Mas o que surpreende no principal representantedo teatro de vanguarda é o inusitado de se~s p.rocessosde ataque. Falando do poeta, diz Andre Glde. qu7,"mostrando apenas uma verdade, ele exagera,' Simpli-ficar é exagerar o que fica. A obra de a~~e e um ex!"-gero". Ionesco é todo o oposto do poeta, ja ~orque naose ocupa de uma verdade, mas de uma mentira; de suaarte entretanto pode-se dizer que recorre a esse duplopr~esso apont~do por Gide, de simplifica~ão cO,~bi-nada ao exagero. Não se trata de exultaçao poética,mas de uma deformação que incorre no grotesco. Atra-

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vés do grotesco consegue o autor de Vítimas do Deverpor a mostra a pseudoverdade do mundo burguês.Aborda apenas certos aspectos desse mundo, como o"casal bem unido" de A Cantora Careca ou a "famíliaeterna" de Jacques ou a Submissão, ou ainda a ditadurae todas as formas de opressão social que procuramroubar ao homem sua dimensão própria, como emTueur sans Gages e Os Rinocerontes.

Acima de tudo, porém, mais do que apresentar odrama desta ou daquela situação burguesa, o grandetema de Ionesco é a tragédia da linguagem. O agentecatalisador e irradiador, o lugar em que se condensaa problemática de Ionesco, a perspectiva que permitecompreendê-lo em toda a sua extensão, é o problemada linguagem. Não há em Ionesco uma linguagempoética, como em seu colega Schehadé, mas uma lin-guagem banal, quotidiana, pesquisada em sua profundainautenticidade, derivada de provérbios e lugares co-muns. A tragédia burguesa que nos oferece Ionescoassume os contornos de uma tragédia da linguagem; eo inquietante é que não se trata de uma modalidadede linguagem reduzida a sua própria problemática, poisatravés dela todo real passa a sofrer como que umaperda de densidade. Ela é o absoluto que determina arealidade, a armadilha que transforma o homem emmarionete.

A linguagem de Ionesco nos dá um perfeito exem-plo das análises efetuadas por certos filósofos contem-porâneos: a pretensão de fazer da linguagem um sim-ples instrumento a serviço do homem transformouesse mesmo homem em uma vítima da linguagem;passa-se a pensar e falar o que todo o mundo - nin-guém, portanto - pensa e fala. A linguagem adquireassim autonomia, neutraliza a sua carga real. Mas talautonomia implica um processo de autodestruição. Apalavra, perdendo toda e qualquer conotação, terminapor crever comme des ballons, como diz o professor deA Lição, arrastando atrás de si o mundo habitado pelohomem e o próprio homem.

Como em todo teatro de vanguarda, há em Iones-co uma caça ao absoluto. No teatro realista, a crise dedeterminada situação afeta apenas esta situação, seja

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rpsicológica ou social; e tudo o que transcende a situaçãoapresentada continua intato. ~ teatro de. Ion~sco eabsoluto no sentido de que a cnse de uma situação pe-netra todo o real: se a linguagem se desfaz, o que sedesfaz é a própria realidade, o mundo humano. Com-preende-se então que coisas e homens percam a suaidentidade tornem-se indistintos. Compreende-se quecogumelos' brotem por toda parte, que cadáveres cres-çam a ponto de tenderem a confundir-se com o próp~iomundo um mundo morto. Compreende-se tambemque a; personagens sejam. reversíveis, e indiferent~-mente, uma possa assumir o lugar de outra, ou pOSSUirtrês narizes, ou nove dedos. De fato, as p~rsonagensde Ionesco são destituídas de dimensão psíquica ou so-cial: não passam de marionetes vazias de interioridadee incomunicáveis.

Mas não existe uma linguagem autêntica, revela-dora de um sentido do homem e do mundo? Eis o pro-blema que Ionesco ainda não colocou.

Jacques ou a Submissão é um dos melhores exem-plos desse processo ionesquiano de destruição. Vítimade um mundo burguês, das falsas exigências de sua"família eterna", Jacques termina por resignar-se, aceitaas imposições de seus familiares e casa-se .co~ Ro~rta.Ao contrário do que acontece com a maioria dos .he-róis" de Ionesco, que se autodestroem, ao submissoJacques - esse resto de realidade - sobra apenas aresignação diante de um mundo opaco que perdeu sen-tido. Mas não se resigna simplesmente à vontade desua família: o novo casal, Jacques e Roberta, resigna-sediante do absurdo; o que eles esposam, em verdade, .éa linguagem do absurdo. Posto que todo o real -. ~o~-sas, sentimentos e pessoas - perde a sua especifici-dade, tudo pode ser identificado com uma única pala-vra: chat, gato. Com esta ou qualquer outra; tudo setorna indistinto. Mas se assim é, melhor é não falar,não vale a pena. Falar não passa de um modo de con-firmar o absurdo.

Neste caso, o que resta? O silêncio, a resignaçãopassiva diante de um niilismo sem saída? Não. Restao riso. Ionesco escreve comédias. Ri e faz rir do absur-do. Bergson chamou a atenção para a função corretiva

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do riso. De fato, através do riso o homem se sobrepõeà realidade de que ri, toma criticamente consciência domundo que o cerca; no caso, diante da derrocada bur-guesa, de um mundo absurdo. Se nas criações de Io-nesco a linguagem torna os homens incomunicáveis, oriso, aquém de tuda linguagem, restabelece a comuni-cação. Mas o riso não fala, é preconceitual. O que res-ta, pois, é a deflagração da mais espontânea forma deconvívio humano: o riso.

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TEATRO NA PERSPECTIVA

o Sentido e a MáscaraGerd A. Bornheim (D008)

A Tragédia GregaAlbin Lesky (D032)

Maiakóvski e o Teatro de VanguardaAngelo M. Ripellino (D042)

O Teatro e sua RealidadeBernard Dort (D 127)

Semiologia do TeatroJ. Guinsburg, J. T. Coelho Nettoe Reni C. Cardoso (orgs.)(DI38)

Teatro ModernoAnatol Rosenfeld (DI 53)

O Teatro Ontem e HojeCélia Berrettini (D 166)

Oficina: Do Teatro ao Te-AtoArmando Sérgio da Silva (D 175)

O Mito e o Herói no Moderno TeatroBrasileiro

Anatol Rosenfeld (D 179)Natureza e Sentido da ImprovisaçãoTeatral

Sandra Chacra (D 183)Jogos Teatrais

Ingrid D. Koudela (D I 89)

Stanislávski e o Teatro de Arte deMoscou

J. Guinsburg (DI92)O Teatro Épico

Anatol Rosenfeld (D 193)Exercício Findo

Décio de Almeida Prado (D 199)O Teatro Brasileiro Moderno

Décio de Almeida Prado (D211 )Qorpo-Santo: Surrealismo ouAbsurdo?

Eudinyr Fraga (D212)Performance como Linguagem

Renato Cohen (D219)Grupo Macunaíma: CarnavalizaçãoeMito

David George (D230)Bunraku: Um Teatro de Bonecos

Sakae M. Giroux e Tae Suzuki(D241)

No Reino da DesigualdadeMaria Lúcia de Souza B. Pupo(D244)

A Arte do AtorRichard Boleslavski (D246)

Page 62: BORNHEIM, Gerd Albert. O sentido e a máscara

Um Vôo BrechtianoIngrid O. Koudcla (0248)

Prismas do TeatroAnatol Rosenfeld (0256)

Teatro de Anchieta a AlencarDécio de Almeida Prado (0261)

A Cena em SombrasLeda Maria Martins (0267)

Texto e JogoIngrid O. Koudcla (0271)

O Drama Romântico BrasileiroDécio de Almeida Prado (0273)

Para Trás e Para FrenteDavid 8all (0278)

8recht na Pós-ModernidadeIngrid D. Koudela (D281)

O Teatro É Necessário?Denis Guénoun (D298)

O Teatro do Corpo Manifesto: TeatroFísico

Lúcia Romano (030 I)O Melodrama

Jean-Marie Thomasseau (0303)João Caetano

Décio de Almeida Prado (EOII)Mestres do Teatro I

John Gassner (E036)Mestres do Teatro II

John Gassner (E048)Artaud e o Teatro

Alain Virmaux (E058)Improvisação para o Teatro

Viola Spolin (E062)Jogo, Teatro & Pensamento

Richard Courtney (E076)Teatro: Leste & Oeste

Leonard C. Pronko (E080)Uma Atriz: Cacilda Becker

Nanci Fernandes e Maria T.Vargas (orgs.) (E086)

TBC: Crónica de um SonhoAlberto Guzik (E090)

Os Processos Criativos de RobertWilson

Luiz Roberto Galizia (E091)

Nelson Rodrigues: Dramaturgia eEncenações

Sábato Magaldi (E098)José de Alencar e o Teatro

João Roberto Faria (E I00)Sobre o Trabalho do Ator

Mauro Meiches e SilviaFernandes (EI03)

Arthur de Azevedo: A Palavra e o RisoAntonio Martins (E I07)

O Texto no TeatroSábato Magaldi (EIII)

Teatro da MilitânciaSilvana Garcia (E 113)

Brecht: Um Jogo deAprendizagem

Ingrid D. Koudela (E 117)O Ator no Século XX

Odette Aslan (E 119)Zeami: Cena e Pensamento Nó

Sakae M. Giroux (EI22)Um Teatro da Mulher

Elza Cunha de Vincenzo (E 127)Concerto Barroco às Óperas do Judeu

Francisco MacieJ Silveira (EI3I)Os Teatros Bunraku e Kabuki: UmaVisada Barroca

Darei Kusano (E 133)O Teatro Realista no Brasil:1855-1865

João Robcrto Faria (E 136)Antunes Filho e a Dimensão Utópica

Sebastião Milaré (EI40)O Truque e a Alma

Angelo Maria Ripellino (EI45)A Procura da Lucidez em Artaud

Vera Lúcia Fclicio (E 148)Memória e Invenção: GeraldThomas em Cena

Silvia Fernandes (E 149)O Inspetor Geral de Gôgol/Meyerhold

Arlete Cavaliere (E 151)O Teatro de Heiner Müller

Ruth C. de O. Rõhl (E 152)Falando de Shakespeare

8arbara Heliodora (E 155)

Moderna Dramaturgia BrasileiraSábato Magaldi (EI59)

Work in Progress na CenaContemporânea

Renato Cohen (EI62)Stanislávski, Meierhold e Cia

J. Guinsburg (EI70)Apresentação do Teatro BrasileiroModerno

Décio de Almeida Prado (E 172)Da Cena em Cena

J. Guinsburg (E 175)O Ator Compositor

Matteo 8onfitto (E 177)Ruggero Jacobbi

8erenice Raulino (E 182)Papel do Corpo no Corpo do Ator

Sônia Machado Azevedo (E 184)O Teatro em Progresso

Décio de Almeida Prado (EI85)Édipo em Tebas

8ernard Knox (E 186)Depois do Espetáculo

Sábato Magaldi (EI92)Em Busca da Brasilidade

Claudia 8raga (EI94)A Análise dos Espetáculos

Patrice Pavis (E 196)As Máscaras Mutáveis do BudaDourado

Mark Olsen (E207)Crítica da Razão Teatral

Alessandra Vannucci (E211)Caos e Dramaturgia

Rubens Rewald (E213)Para Ler o Teatro

Anne Ubersfeld (E217)Entre o Mediterrâneo e o Atlântico

Maria Lúcia de S. 8. Pupo (E220)Yukio Mishima: O Homem de Teatroe de Cinema

Oarci Kusano (E225)O Teatro da Natureza

Marta Metzler (E226)Margem e Centro

Ana Lúcia V. de Andrade (E227)

lbsen e o Novo Sujeito daModernidade

Tereza Menezes (E229)Teatro Sempre

Sábato Magaldi (E232)O Ator como Xamã

Gilberto Icle (E233)A Terra de Cinzas e Diamantes

Eugenio 8arba (E235)A Ostra e a Pérola

Adriana Oantas de Mariz (E237)A Crítica de um Teatro Crítico

Rosangela Patriota (E240)Do Grotesco e do Sublime

Victor Hugo (EL05)O Cenário no Avesso

Sábato Magaldi (EL I O)A Linguagem de Beckett

Célia 8errettini (EL23)Idéia do Teatro

José Ortega y Gasset (EL25)O Romance Experimental e oNaturalismo no Teatro

Emile Zola (EL35)Duas Farsas: O Embrião do Teatrode Moliére

Célia 8errettini (EL36)Marta, A Arvore e o Relógio

Jorge Andrade (TOOI)O Dibuk

Sch. An-Ski (T005)Leone de 'Sommi: Um Judeu noTeatro da Renascença Italiana

J. Guinsburg (org.) (T008)Urgência e Ruptura

Consuelo de Castro (TO IO)Pirandello do Teatro no Teatro

1. Guinsburg (org.) (TOII)Canetti: O Teatro Terrível

Elias Canetti (TOI4)Idéias Teatrais: O Século XIX noBrasil

João Roberto Faria (TO 15)Heiner Müller: O Espanto no Teatro

Ingrid D. Koudela (Org.) (TOI6)

Page 63: BORNHEIM, Gerd Albert. O sentido e a máscara

Büchner: Na Pena e na CenaJ. Guinsburg e Ingrid DormienKoudela (Orgs.) (TO 17)

Teatro CompletoRenata PaIlottini (TO18)

Três Tragédias GregasGuilherme de Almeida e TrajanoVieira (S022)

Édipo Rei de SofoclesTrajano Vieira (S031)

As Bacantes de EurípidesTrajano Vieira (S036)

Édipo em Colono de SôfoclesTrajano Vieira (S041)

Teatro e Sociedade: ShakespeareGuy Boquet (KO 15)

Eleonora Duse: Vida e ObraGiovanni Pontiero (PERS)

Linguagem e VidaAntonin Artaud (PERS)

Ninguém se Livra de seus FantasmasNydia Licia (PERS)

I

'i.ii

L

O Cotidiano de uma LendaCristiane LayherTakeda (PERS)

História Mundial do TeatroMargot Berthold (LSC)

O Jogo Teatral no Livro do DiretorViola Spolin (LSC)

Dicionário de TeatroPatrice Pavis (LSC)

Dicionário do Teatro Brasileiro:Temas, Formas e Conceitos

J. Guinsburg, João P.oberto Faria eMariangela Alves de Lima (LSC)

Jogos Teatrais: O Fichário deViola Spolin

Viola Spolin (LSC)Br-3

Teatro da Vertigem (LSC)

ZéFemando Marques (LSC)

Jogos Teatrais na Sala de AulaViola Spolin (LSC)