Brasiliense supera limites e se forma em Pedagogia · 2020-02-28 · gogia —já se desloca...

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Jornal de Brasília Brasília, segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020 4 CIDADES “Realizei um sonho quase impossível” O trabalho mudou a vida de José Ricardo. "Comecei a viver de verda- de em 2008. Antes, eu só ficava den- tro de casa; não andava sozinho de bengala porque sentia medo. Não tinha nenhuma vivência. Hoje eu não tenho mais tanto medo e me considero mais independente." De fato: apesar das limitações, Jo- sé — além de se graduar em Peda- gogia — já se desloca sozinho para o trabalho e anda pelo prédio do Se- nado com desenvoltura. O pedagogo conta que entrou na faculdade por meio da nota no Exa- me Nacional do Ensino Médio (Enem), em 2015, por sugestão de uma professora da escola onde ha- via estudado. "Fiz a prova e conse- gui passar. Mas se eu fosse estudar na Universidade de Brasília [UnB] ou no Instituto Federal de Brasília [IFB], eu precisaria sair do Senado, porque os cursos eram matutinos. Achei melhor, então, procurar uma faculdade privada para estudar du- rante a noite — e descobri que no Centro Universitário Iesb não ha- via atendimento para cegos, mas sim para deficientes auditivos. Fi- quei animado e entrei para o curso de Pedagogia", relata. Foram cinco anos na instituição que representaram uma verdadei- ra revolução para José Ricardo. "Foi uma trajetória de muita dificulda- de e, ao mesmo tempo, uma expe- riência muito feliz. Os professores me ajudaram muito; eu mostrei que queria aprender e realizei um sonho que achava impossível. Ape- sar dos obstáculos, superei as bar- reiras e, na colação de grau, levan- tei o canudo como qualquer outro estudante", comenta. Agora, José Ricardo sonha com uma oportunidade para entrar no mercado de trabalho na área de educação. "Meu objetivo maior é exercer minha profissão e traba- lhar como professor; seja na rede pública ou privada, minha vonta- de é dar aula", pontua. E ele não vai desistir: já até fez a inscrição para uma pós-graduação em educação inclusiva também no Iesb. En- quanto isso, ele segue trabalhando no Senado e, no tempo livre, estuda para concursos. Brasiliense supera limites e se forma em Pedagogia EXEMPLO DE VIDA Aos 42 anos — e a despeito da cegueira e da surdez —, José Ricardo Moreira está enfim mais perto de realizar o seu maior sonho: tornar-se professor e alfabetizar no sistema braille SAMUEL FALCAO/IESB “Apesar dos obstáculos, superei as barreiras e, na colação de grau, levantei o canudo como qualquer outro estudante", diz o pedagogo José Ricardo LARISSA GALLI [email protected] F ormou-se no início deste mês o primeiro pedagogo surdo-ce- go do Distrito Federal. Aos 41 anos — quase 42, como ele mesmo ressaltou —, José Ricardo Moura Moreira agora está mais próximo de realizar o seu maior sonho: ser professor e alfabetizar as pessoas no sistema braille. Hoje, José trabalha como revisor de braille no Senado Federal, mas seu maior desejo é dar aulas. Em entrevista ao Jornal de Brasília,o pedagogo contou que a vontade de ensinar braille surgiu quando co- meçou a aprender o sistema de lei- tura e escrita para cegos, ainda criança. Logo no primeiro ano de vida, médicos já advertiram à famí- lia de José que ele perderia a visão ao longo do tempo. "A minha vida começou assim. Com aproximadamente 1 ano, eu comecei a andar e meus pais perce- beram que eu tinha problemas de visão, porque eu esbarrava muito nas coisas. Eles me levaram a vários oftalmologistas, mas nunca expli- caram muito bem qual era o meu problema. Aos 9 anos, fui diagnos- ticado com retinose pigmentar e o médico falou que eu perderia a vi- são com 15 anos; aos 14, eu já não enxergava mais", conta. José estudou até os 13 anos no Centro de Ensino Especial de Defi- cientes Visuais (Ceedv); por isso, antes mesmo de perder por com- pleto a visão, o rapaz já sabia ler e escrever em braille. Com a ajuda de aparelhos Mas os obstáculos a serem venci- dos por José não param por aí. Pró- ximo do diagnóstico da deficiência visual aos 9 anos, José pegou uma gripe com febre alta que afetou seu ouvido. Ele precisou fazer uma ci- rurgia para colocação de carretel e acabou perdendo 40% da audição. "Os médicos não afirmam que foi negligência, porque na família da minha mãe há outros deficien- tes auditivos. Então, me falaram que podia ser um problema here- ditário", disse. Desde os 13 anos, Jo- sé escuta com a ajuda de aparelhos auditivos — o que permitiu que ele saísse do Ceedv e se matriculasse em um colégio regular. O recém-pedagogo estudou na rede pública do Distrito Federal e completou o ensino médio aos 19 anos. Hoje ele vive com os pais em Ceilândia. Sem condições de pagar por uma faculdade, porém, e en- frentando dificuldades para en- contrar trabalho, José decidiu pe- dir o Benefício Assistencial à Pessoa com Deficiência (BPC) — que dava a ele o direito de receber um salário mínimo por mês — e se aposentou por invalidez. Se já não fossem imensos os desafios da sua vida, nessa época foi também diagnosti- cado com diabetes. Mesmo assim, José não inter- rompeu a sua busca por conheci- mento: fez cursos à distância para operador de câmara escura e de in- formática. Depois, foi morar por um tempo em São João do Rio do Peixe (PB), com familiares, mas lo- go voltou para Brasília. Sob in- fluência de amigos, decidiu fazer o curso de revisor de braille. “Em 2006, comecei a fazer o cur- so porque um amigo falou que ti- nha uma vaga para auxiliar em braille no Senado Federal. Terminei e, como eu tinha um dos melhores desempenhos da turma, fiquei es- perando o Senado me chamar. Confesso que não tinha muita es- perança, mas, em fevereiro de 2008, fui contratado", conta.

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Jornal de BrasíliaBrasília, segunda-feira, 24 de fevereiro de 20204 C I DA D E S

“Realizei umsonho quasei m p os s í ve l ”

O trabalho mudou a vida de JoséRicardo. "Comecei a viver de verda-de em 2008. Antes, eu só ficava den-tro de casa; não andava sozinho debengala porque sentia medo. Nãotinha nenhuma vivência. Hoje eunão tenho mais tanto medo e meconsidero mais independente."

De fato: apesar das limitações, Jo-sé — além de se graduar em Peda-gogia — já se desloca sozinho para otrabalho e anda pelo prédio do Se-nado com desenvoltura.

O pedagogo conta que entrou nafaculdade por meio da nota no Exa-me Nacional do Ensino Médio(Enem), em 2015, por sugestão deuma professora da escola onde ha-via estudado. "Fiz a prova e conse-gui passar. Mas se eu fosse estudarna Universidade de Brasília [UnB]ou no Instituto Federal de Brasília[IFB], eu precisaria sair do Senado,porque os cursos eram matutinos.Achei melhor, então, procurar umafaculdade privada para estudar du-rante a noite — e descobri que noCentro Universitário Iesb não ha-via atendimento para cegos, massim para deficientes auditivos. Fi-quei animado e entrei para o cursode Pedagogia", relata.

Foram cinco anos na instituiçãoque representaram uma verdadei-ra revolução para José Ricardo. "Foiuma trajetória de muita dificulda-de e, ao mesmo tempo, uma expe-riência muito feliz. Os professoresme ajudaram muito; eu mostreique queria aprender e realizei umsonho que achava impossível. Ape-sar dos obstáculos, superei as bar-reiras e, na colação de grau, levan-tei o canudo como qualquer outroestudante", comenta.

Agora, José Ricardo sonha comuma oportunidade para entrar nomercado de trabalho na área deeducação. "Meu objetivo maior éexercer minha profissão e traba-lhar como professor; seja na redepública ou privada, minha vonta-de é dar aula", pontua. E ele não vaidesistir: já até fez a inscrição parauma pós-graduação em educaçãoinclusiva também no Iesb. En-quanto isso, ele segue trabalhandono Senado e, no tempo livre, estudapara concursos.

Brasiliense supera limitese se forma em Pedagogia

EXEMPLO DE VIDA

Aos 42 anos — ea despeito dacegueira e dasurdez —, JoséRicardo Moreiraestá enfim maisperto de realizaro seu maiorsonho: tornar-seprofessor ealfabetizar nosistema braille

SAMUEL FALCAO/IESB

“Apesar dos obstáculos,superei as barreiras e, nacolação de grau, levantei ocanudo como qualquer outroestudante", diz o pedagogoJosé Ricardo

LARISSA GALLIl a r i s sa . ga l l i @ g r u p o j b r.c o m

Formou-se no início deste mês oprimeiro pedagogo surdo-ce-go do Distrito Federal. Aos 41

anos — quase 42, como ele mesmoressaltou —, José Ricardo MouraMoreira agora está mais próximode realizar o seu maior sonho: serprofessor e alfabetizar as pessoasno sistema braille.

Hoje, José trabalha como revisorde braille no Senado Federal, masseu maior desejo é dar aulas. Ementrevista ao Jornal de Brasília, opedagogo contou que a vontade deensinar braille surgiu quando co-meçou a aprender o sistema de lei-tura e escrita para cegos, aindacriança. Logo no primeiro ano devida, médicos já advertiram à famí-lia de José que ele perderia a visãoao longo do tempo.

"A minha vida começou assim.Com aproximadamente 1 ano, eucomecei a andar e meus pais perce-beram que eu tinha problemas devisão, porque eu esbarrava muitonas coisas. Eles me levaram a váriosoftalmologistas, mas nunca expli-caram muito bem qual era o meuproblema. Aos 9 anos, fui diagnos-

ticado com retinose pigmentar e omédico falou que eu perderia a vi-são com 15 anos; aos 14, eu já nãoenxergava mais", conta.

José estudou até os 13 anos noCentro de Ensino Especial de Defi-cientes Visuais (Ceedv); por isso,antes mesmo de perder por com-pleto a visão, o rapaz já sabia ler eescrever em braille.

Com a ajuda de aparelhosMas os obstáculos a serem venci-

dos por José não param por aí. Pró-ximo do diagnóstico da deficiênciavisual aos 9 anos, José pegou umagripe com febre alta que afetou seuouvido. Ele precisou fazer uma ci-rurgia para colocação de carretel eacabou perdendo 40% da audição.

"Os médicos não afirmam quefoi negligência, porque na famíliada minha mãe há outros deficien-tes auditivos. Então, me falaramque podia ser um problema here-ditário", disse. Desde os 13 anos, Jo-sé escuta com a ajuda de aparelhosauditivos — o que permitiu que elesaísse do Ceedv e se matriculasseem um colégio regular.

O recém-pedagogo estudou narede pública do Distrito Federal ecompletou o ensino médio aos 19

anos. Hoje ele vive com os pais emCeilândia. Sem condições de pagarpor uma faculdade, porém, e en-frentando dificuldades para en-contrar trabalho, José decidiu pe-dir o Benefício Assistencial à Pessoacom Deficiência (BPC) — que dava aele o direito de receber um saláriomínimo por mês — e se aposentoupor invalidez. Se já não fossemimensos os desafios da sua vida,nessa época foi também diagnosti-cado com diabetes.

Mesmo assim, José não inter-rompeu a sua busca por conheci-mento: fez cursos à distância paraoperador de câmara escura e de in-formática. Depois, foi morar porum tempo em São João do Rio doPeixe (PB), com familiares, mas lo-go voltou para Brasília. Sob in-fluência de amigos, decidiu fazer ocurso de revisor de braille.

“Em 2006, comecei a fazer o cur-so porque um amigo falou que ti-nha uma vaga para auxiliar embraille no Senado Federal. Termineie, como eu tinha um dos melhoresdesempenhos da turma, fiquei es-perando o Senado me chamar.Confesso que não tinha muita es-perança, mas, em fevereiro de2008, fui contratado", conta.