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Breve informação sobre João Lins Caldas

A vida e obra do poeta norte-rio-grandense João Lins Caldas (1888-1967) nos transmitem

uma sensação de incompletude. Nascido no município de Goianinha, mas tendo passado boa parte

de sua vida em Assu, Caldas é mais ou menos como a literatura potiguar, um relato de ausências.

Sua personalidade excêntrica o conduziu a uma vida reclusa e solitária. Não admitia a

mentira, a falsidade e a hipocrisia de nossa sociedade. Tinha a literatura como a razão de sua vida.

Em passagem pelo Rio de Janeiro nos anos 30 do século XX, desenvolveu amizade com

importantes escritores da literatura brasileira, como o romancista José Geraldo Vieira. Na narrativa

Território humano, Vieira representou o poeta potiguar como um personagem singular.

Após sua morte, grande parte de sua obra extraviou-se; Celso da Silveira conseguiu reunir,

em 1975, alguns poemas no volume Poética, que também traz relatos de intelectuais sobre o poeta.

Dois poemas de João Lins Caldas

Dentro do sonho

Por ti, velho ideal dos meus sonhares,

Humanos maldizentes me desprezam.

Chamam-me louco e as coisas que eles prezam

São outras coisas que não são seus lares.

Que importa a mim o mal desses olhares,

A praga dessas bocas que não rezam?

Cruz ou consolo, os sonhos que me pesam

Serão meus companheiros seculares

Mal grado as tempestades que conheço,

O meu prazer não revelado e pouco,

As injúrias que sofro nesta lida,

És tu o sonho por quem vivo e cresço...

Que eu seja eternamente louco

E nunca deixe de sonhar na vida!

A esperada

A esperada não veio. A esperada na vida

é o belo sonho para me inflamar.

Que ela não chegue, a bela comovida...

Que teria eu depois para ainda esperar?...

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João Lins Caldas no inferno / O poeta vidente

“O Assu é o meu inferno”

João Lins Caldas a Dona Gena

As ruas lhe doíam como entranhas toda vez que Caldas cruzava a cidade, sobrecarregado de

olhares malignos.

De terno mal lavado andava as ruas, passando de manhã por umas, voltando no fim da tarde

por outras. Sempre carregando o embornal, a espingarda e o chapéu.

Conhecia a cidade espalmada. Era capaz de percorrê-la inteirinha de olhos fechados. Andara

durante anos toda a terra de seus antepassados. Costumava ir a pé ao Sacramento, no outro lado do

rio Assu, para visitar amigos e usufruir do passeio solitário à sombra do carnaubal.

Muito raramente encontrava alguém cruzando aquele deserto, a não ser alguns vaqueiros

empoeirados em suas armoriais vestes de couro, os cílios orlados de poeira, conduzindo as reses

resignadas para os pastos. Quando não algum desgarrado forasteiro aparecia debaixo dos olhos de

Caldas, saindo de repente de uma vereda que o poeta não supunha que existisse.

Caminhavam os dois então quanto podiam, conversando cheios de animação sobre a riqueza

da terra, o inverno que demorava, os conhecidos comuns, a corrupção do partido governista, a alta

dos preços dos mantimentos e o aviltamento da agricultura, entregue a políticos sem experiência do

campo nem trato do assunto.

O governo não pretendia resolver o problema do homem do campo, apenas servia-se de

medidas que na verdade atendiam apenas aos interesses de grupos políticos que sonhavam

perpetuar-se no poder a custa do sacrifício de toda a sociedade.

Era esta a situação do país, resumia assim o seu desânimo diante dos fatos. Porém ainda

havia uma saída para o caos social, a criação do Partido Seletivo Nacional.

O poeta descansava à sombra reconfortante de oiticicas e juazeiros. Às vezes, ao passar

diante de uma casa, parava para pedir um copo d´água.

Caldas sofria daquela doença misteriosa que Baudelaire chamou de horror ao domicílio e

que o mantinha, durante grande parte do dia, longe da casinha de porta e janela do Macapá, bairro

modesto que fazia a transição entre a zonas urbana e rural. Do outro lado da rua a Lagoinha que

nunca mais tomara água, em cujo leito às vezes os meninos brincando encontravam fragmentos de

pedra que algum dia foram armas indígenas.

Não tirava a gravata do pescoço nem mesmo para dormir. Apenas afrouxava-lhe o nó à

noite, ou antes do cochilo da tarde, para melhor respirar dentro da rede que armava sobre o ferro

velhos que se acumulava em todos os compartimentos de sua casa na rua das Flores.

Quando visitava a Fazenda Picada, dormia no alpendre da casa grande suas escassas horas

de sono, sentindo o frescor da noite entrando-lhe pelo nariz, acompanhando de olhos abertos a

primeira luz do dia quebrando a barra de nuvens, numa convocação ao trabalho coletivo nas

vazantes das lagoas e nos campos servis, cansados de perdurar.

Em Frutilândia, Caldas armava a rede encardida sob os cajueiros teimosos, de onde abatia a

tiros de espingarda duas ou três rolinhas para o almoço. No mercado só comprava a mínima ração

diária. Esse sítio que o poeta batizou com um nome inventado, pequena propriedade que alimentava

o seu vínculo com a terra, constituía a âncora de um projeto agrícola revolucionário, capaz de

engrandecer a economia do vale.

O cão ensinado seguia de longe o caminho que a ave fazia no céu antes de cair no chão

como um peso morto. Segurando a ave defunta nos dentes afiados, levava-a para o dono depenar,

ainda deitado na rede, à espera de outras rolinhas que completassem a refeição. Para matar a sede,

espremia sobre o prato cajus sumarentos com as mãos que ainda há pouco escavaram o chão, no

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meio do roçado, para plantar as sementes.

Não gostava de banhos. Eventualmente, molhava-se ao atravessar um rio que se interpunha

em seu caminho. Não o desgostava a chuva que o surpreendia às vezes em suas caminhadas a céu

aberto.

Passaria confortavelmente sem o uso da água esse poeta abissal que sonhava com o Prêmio

Nobel de Literatura. Pelo menos, diziam no Assu e em Sacramento, ainda lava as roupas

amarfanhadas que nunca sentiram deslizar sobre os seus fios o ferro cheio de carvão em brasa.

Ainda usava chapéu ao sair de embornal e espingarda para a Frutilândia.

Seus hábitos nutriam comentários maldosos às margens do rio que costurava as duas

cidades, pobres irmãs xifópagas condenadas à imobilidade e ao ostracismo.

Cercava-o, por onde quer que andasse em sua terra, o temor reverente do povo, que intuía

uma grandeza secreta naquele excêntrico detentor do verbo, logos fecundante.

Goza Caldas da consideração das famílias tradicionais dos dois municípios, com as quais

cultivava laços de sangue. Faz e desfaz amizades quando sente que de alguma forma foi enganado

em sua boa fé. A seu ver, em principio, todos eram inocentes e mereciam crédito. Porém que não

abusassem da sua confiança. Não haveria perdão.

Caminha sozinho ruminando paradoxos em torno dos quais vai construindo poemas, num

singular idioma literário. Tem raiva da gramática. Defende que cada um tenha a sua própria sintaxe.

Cita Eça, os bons escritores têm a sua língua; os maus, a gramática.

Diz-se deísta. Em silêncio reverente cultua um deus retirado do própria criação ou

dissolvido na densidade do mundo que criou.

Tem o olhar de águia de um velho que tudo viu e tudo compreendeu.

Dotado de extraordinária coragem pessoal, Caldas se dispôs a arriscar tudo em troca de

nada.

Suas inquietações estéticas manifestam-se para além da escritura, numa obsessiva e

apaixonada forma de apoderamento do mundo.

Através da criação poética, Caldas lega um passado ao futuro.

Instintivamente, rompe com os condicionamentos literários da época e sobrepõe a sua

escritura elíptica a qualquer formula acadêmica. É admirado antes de ser entendido. Pouco afeito a

confissões, confessa a dona Gena que o Assu é o seu inferno; e que o mito se nutre de equívoco.

Tem uma profunda ojeriza ao gênero biográfico e o desanca como exemplo de empulhação.

A história de um homem é assunto pessoal que foge ao entendimento alheio, enfatiza com a paixão

costumeira a falsidade dos biógrafos e a impropriedade das biografias.

Mortifica-o saber que algum dia será pasto de biógrafos. Para tanto escrevera a sua obra, que

Jorge Antonio diria em artigo que já nascia póstuma.

Para João Lins Caldas a morte não foi um ponto final abrupto, mas o irrevogável começo da

sua ressurreição.

Franklin Jorge

JORGE, Franklin. Ficções,fricções e africções. Florianópolis: Mares do Sul, 1999.