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    BREVES NOES SOBRE KELSENRODRIGO ZACHARIAS

    Promotor Pblico e Professor Titular de Prtica Jurdica Penal Simulada

    1 - Hans Kelsen, jurista, filsofo e socilogo, terico doEstado e iniciador da lgica jurdica, austraco e nasceu aos 11de outubro de 1881, em Praga, quando a cidade ainda pertencia aoImprio Austro-hngaro. Faleceu em abril de 1973, em Berkeley,Califrnia, quando faria seus 92 anos.Dentro do contexto do incio do sculo, graas grande

    repercusso de sua obra, na ustria e Alemanha, e alm de suasfronteiras, ao lado do sucesso titnico no meio acadmico, o autorconheceu o respeito entre os intelectuais e filsofos, mas tambmsofreu muitos percalos que marcaram a intelectualidade judaica.Concluiu seus estudos em Berlim e Heidelberg, e foi nomeado

    em 1919 professor da Universidade de Viena. Foi um dos autoresintelectuais da Constituio Republicana Austraca, e juiz daCorte Constitucional da ustria, de 1921 a 1930. Kelsen foitambm professor da Academia Internacional de Haia e doInstituto Universitrio de Altos Estudos Internacionais deGenebra.

    Em 1940, em plena Segunda Guerra Mundial, o Nazismo oobrigou a emigrar para os Estados Unidos, l permanecendo at amorte, onde lecionou nas Universidades de Berkeley e Harvard.Isto fez surgir uma certa diviso em seus estudos: uma fase

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    europia, extremamente lgica, e uma fase norte-americana, maisprxima da sociologia e da teoria do Estado l

    Sua primeira obra de repercusso foi publicada em 1911 Haptptobleme der Staatsrescheslehre2 De extraordinriosmritos, Hans Kelsen iniciou a jornada rumo ao desenvolvimentode um mtodo cientfico para o conhecimento jurdico, publicandoem 1934 o livro Reine Rechtslere, com o subttulo Einleitung indie rechtswissenschaftliche (Introduo Problemtica Cientficado Direito). Em 1953, na Sua, saiu a segunda edio da obra, emfrancs, e, em 1960, a definitiva edio, alem, sob o ttulotraduzido de Teoria Pura do Direito - sua obra mais estudada econhecida.

    H outros estudos da mesma forma, importantssimos, dentreestes General Theory of Law and State, publicada em 1945, e aobra pstuma Allgemeine Theorie der Normen, de 1979, publicadagraas colaborao do amigo e discpulo Rudolf Mtall.

    2 - Hans Kelsen, graas ao rigor metodolgico de toda a suaproduo cientfica, foi um verdadeiro divisor de guas para todaa teoria contempornea do direito. Professor e tericoverdadeiramente genial, Kelsen produziu vasta obra, comincurses na teoria do Estado e na tica, nos campos do direitointerancional e constitucional.Enquanto buscava a pureza do direito, pode-se afirmar que otrabalho de Kelssen, visto em seu contexto histrico, retomava ofio do desenvolvimento clssico da Cincia Jurdica posta pela

    Escola da Exegese e pela Escola Analtica inglesa, e, enquanto

    I H dois Kelsens .. , enfatiza desde logo Fbio Ulhoa Coelho, no prefcio do livro, absolutamentedidtico, intitulado Para entender Kelsen, ed. Max Limonad, 1995, p. 9, quando se refere sobrea diferena da Teoria Pura do Direito, para com o restante de sua produo cientfica. Como sever ao final deste breve resumo da obra kelseniana, o livro do Ulhoa Coelho servir-me- deespinha dorsal, ao menos como centro irradiador da estrutura de meu singelo texto.2 Segundo Miguel Reale, trata-se de trabalho que deu continuidade a um adredementedesenvolvido por John Austin, onde se objectivava determinar a provncia da jurisprudncia,excluindo-se de seu objecto no s as cogitaes de ordem moral como tambm as tarefas dalegislao ou da poltica do Direito (cf. Filosofia do Direito, Saraiva, 1990, p. 456),

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    estudava a Teoria Geral do Estado, pode ser vista comocontinuao da Escola Tcnico-Jurdica.3Inicialmente, ele foi o fundador (e a ela pertenceu) da "Escolade Viena" que, no comeo do sculo, reuniu intelectuais do portede Freud, Carnap, Wittgenstein, Schlick.

    A sua teoria pura do direito, para muitos uma lio definitivapara a cincia jurdica, gozou e goza de respeito enorme em todo omundo, notadamente enquanto levou a efeito um movimento depurificao do Direito, lastreado em raciocnios lgico-formais,que teve como capital a ustria, na primeira metade do sculo.

    A partir da publicao das obras do autor, todos os quepretendem um estudo srio da cincia jurdica ho de manter umpermanente dilogo com Kelsen, nas palavras do jurista espanholLuis Legaz y Lacambra,4 tradutor de Teoria General deI Estado.Surgiram muitssimos seguidores: Robert Walter, na ustria,Norberto Bobbio, na Itlia; Ulrich Klug, na Alemanha; RobertoJos Vernengo, na Argentina e Fuller, nos Estados Unidos.

    Nada obstante, no faltaram os que lhe cobriram de crticas.Voegelin, por exemplo, ao analisar a obra do autor da escola deViena, afirmou que Kelsen considera a substncia do Estado comouma ordem do comportamento humano, em princpio de igualdignidade de uma sociedade de colecionadores de selo (Derautoritaere Staat, Viena, 1956, p. 41;5.

    3 Obra acima citada, pp. 456 e 458, segundo o idealizador da teoria tridimensional do direito, comode todo evidente, as fontes inspiradoras so fundamentais para a compreenso exata da teoriaKelseniana. Por isto que foram citadas no texto.

    4 Apud Trcio Sampaio Ferraz Jr.. in Por que ler Kelsen, hoje, publicado em O Estado de SoPaulo, em 1-11-81, suplemento Cultura, Tambm publicado em apndice ao estudo jreferido de Fbio Ulhoa Coelho.5 Obra logo acima citada. Nem tanto sarcstico. Herbert L. A Hart aifrmou, a ttuloexemplificativo. sobre a diferenciao proposta por Kelsen entre normas primrias esecundrias, contidas na obra General Theory of Law and State. 1949, p. 61, que as afirmaesdo autor so ao mesnUJ tempo, esclarecedoras e causadoras de perplexidade.' assemelham-semais a grandes exageros de algumas verdades sobre o direito indevidamente esquecidas, doque a dejinii;es serenas. Projectam UI1Ul luz que nos faz ver muito do que estava escondido nodireito, mas a luz to brilhante que nos cega para o restante e assim ainda nos deixa semuma viso clara do todo. Hart se referia seguinte frase Kelseniana: No se deve roubar, se

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    De todo modo, a despeito da dificuldade inicial de leitura desua obra, por ser assaz minuciosa, detalhista, repetitiva eextraordinariamente lgica - como diz Fbio Ulhoa Coelh06 alm de abstrata, a genialidade de seu pensamento recompensa oesforo de estud-lo, ainda que, com a ajuda das concluses deoutros autores.

    3 - Kelsen visou, precipuamente, a uma anlise cientfica dodireito, com princpios e mtodos prprios teoria jurdica. Opensamento Kelseniano procurou teoria jurdica tanto ummtodo quanto um objeto prprios, capazes de superar asconfuses metodolgicas e de dar ao jurista uma autonomia

    (or,'clentl; lca. 7Havia verdadeiro perigo em se confundir conceitos, se o juristano separasse aquilo que pertencia apenas ao direito, enquantosistema de normas, uma vez que o jurista poderia ser levado asignificados errneos de uma determinada norma, dadas asinfluncias sociais e valorativas das outras cincias.Foi com base nesta premissa que o autor props o denominadoprincpio da pureza, atravs do qual o direito deveria ter umenfoque exclusivamente normativo, vale dizer: o direito, para ojurista, deve ser encarado como norma (e no como fato social oucomo valor transcendental), isso no tocante ao mtodo e ao objeto.Kelsen nunca negou a conexo entre o direito e as outrascincias sociais; ocorre que, para ele, esta conexo refoge aoestudo do jurista, de vez que, no tm importncia no estudo dosignificado da norma jurdica8, O estudo cientfico do direito deve

    ser neutro, portanto.nica norma genuna... O Direito a norma primria que estatui a sano, cf. O conceito doDireito, Fundao Calouste Gulbenkian, Lisboa, p. 6. A ponderao de Hart restou superada,pela re-ordenao posterior do pensamento de Kelsen, como se ver infra.

    6 In Para entender Kelsen, 1995, ed. Max Limonad, anteriormente citada guisa de prefcio.7 Ferraz Jr., obra j citada,8 Esta posio ser, inapelavelmente, amenizada nos estudos posteriores de Kelsen, mxime depoisde j enraizado nos Estados Unidos, sob a influncia do Comon Law. Vide ReaJe, op. cit., p.

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    Nesse contexto, Miguel Reale concebeu a obra Kelsenianacomo dotada de a-historicidade. Em realidade, comobrilhantemente explicou Romer, sobre a neutralidade e a pureza,Kelsen props-se a estudar o direito positivo como ele , e nocomo deve ser. Uma obra parte da ideologia.9Kelsen, destarte, levou a efeito um estudo proeminentementeepistemolgico do direito, porquanto, um estudo voltado ao

    conhecimento das normas juridicas. 1O Uma viso de dentro dodireito. Reduzia-se assim, o objeto jurdico norma em geral, noao ordenamento positivo de um determinado pas.

    O seu pensamento purista lhe custou caro e foi a fonte deinmeras polmicas, foi contestado por jusnaturalistas, porrealistas sociolgicos e por juristas mesmos.Eis que, no contexto do final do sculo XIX e incio destesculo XX, havia vrias correntes que colocavam em xeque aprpria autonomia da cincia jurdica, posto que, concebiam aindissociabilidade do direito face s cincias pr-normativas emetajurdicas.Alguns, luz do desenvolvimento das clencias da poca,

    entendiam que o direito deveria se aproximar das outras cinciashumanas, tais como a sociologia e a psicologia, a histria, a teoriapoltica ou econmica, havendo quem propusesse o acoplamentos cincias naturais. Outros - dentre eles Kelsen - buscavamexatamente o contrrio: purificar o direito de elementosmetajurdicos.

    9 Peter Rtimer, in La Teoria Pura dei Derecho, de Hans Kelsen. como ideologia y como crtica dela ideologia, em apndice obra de Kelsen Esencia e valor de la Democracia. ed.Guadarrama, 1977. Rtimer via a teoria pura como antiideolgica, a princpio.

    10 Segundo o dicionrio Aurlio. epistemologia, quando voltada filosofia, significa: O estudocrtico dos princpios. hipteses e resultados das cincias j constitudas. e que visa adeterminar os fundamentos lgicos. o valor e o alcance objetivo delas; teoria d c i ~ c i a . ~ sua sorte, em relao ao Direito. diz Fbio Ulho Coelho que A epistemologia nao cUIdadiretamente do direito. nem da interpretao de ordens jurdicas determinadas. mas do melOpelo qual se conhecem essas realidades, ou seja. ele trata do processo de ~ o n . s t r u ~ d ~ q u i l o que no Brasil se conhece por doutrina e em outros pases se conhce como Junsprudencla (op.cit., p. 21).

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    Amparado em muitssimos conhecimentos filosficos ematemticos (a matemtica pura era a sua grande obsesso) - ecom arrimo em vrios ensinamentos lgicos, com tributos aHursserl, Kant, Hume, Vaihinger, Gerber, Laband, Jellinek eoutros - insistiu Kelsen na perspectiva reducionsita, visando aespecificar cientificamente o trabalho intelectual do jurista.Kelsen visava pureza.

    Pois bem.4 - Ao estudar o direito luz de preceitos lgico-formais, oautor da Escola de Viena doutrinou que o conhecimento jurdicodeve estudar as normas integrantes de seu objeto: a - enquantoreguladoras do comportamento humano, ou: b - relacionandonormas entre si. Esse o sistema esttico; este, o dinmico.Nesse contexto, o sistema dinmico aborda a validade, a

    unidade lgica da ordem jurdica, as lacunas e o fundamentoltimo de validade do direito, ao paso que o sistema estticoestuda a sano, o ilcito, o dever, a responsabilidade, pessoajurdica, capacidade, etc.

    A ferramenta bsica do trabalho Kelseniano a distino entreser e dever ser, que vai buscar o neokantismol1da poca, ligado escola de Cohen. Para Kelsen, a conscincia humana v as coisasou como elas so, ou como elas devem ser.Normas so prescries do dever ser. A cincia jurdica

    enquanto teoria pura, uma cincia do dever ser, pois que sedestina a descrever as normas, numa relao imputativa. Trata-sede uma categoria lgico-transcedental. De outro lado, as cinciasII . . d dMUitos autores tacham Kelsen de neokantiano, porquanto tena ele se usa o e alguns cnonespropostos por Kant, notadamente quanto compreenso do pensamento voltado cincia, ondeo conhecimento voltado constituio do seu prprio objeto. Ao lado estes autores, situa-seMiguel ReaIe. quando analisa o criticismo Kantiano, e quando afirma ser Kelsen um

    neo!wntiano ligado Escola de Cohen (cf.jilosojia do Direito, 13" ed., 1990, Saraiva, pp. 113e 458 e ss.). Tal posio, em que se procura inserir Kelsen, de forma sutil, como tipo dediscpulo de Kant, recebeu feroz crtica de Jos Florentino Duarte, tradutor do po.u-scriptumkelseniano Teoria geral das Normas. Esse jurista afirma que Kelsen no est vinculado aopurismo de Kant, eis que desenvolveu mtodo prprio. Afirma o tradutor que, na atualidade.querer achar a influncia de Kant na obra de Kelsen empreender a busca inglria deprocurar o que se dilui (vide introduo, denominada palavras do tradutor, obra TeoriaGeral das Normas, Srgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1986, p. XI).

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    naturais so uma cincia do ser, por ~ u a n t o indagam das conexescausais que operam em seus objetos. IH, portanto, dualismo irreconcilivel entre ser e dever ser, nohavendo nenhuma ponte lgica que comunique o ser e o dever. 13ser, ou vIce versa,

    Esboa-se, pois, a anttese Kelseniana entre ser- dever ser.Da mesma forma, a teoria das normas de Kelsen tem como

    fulcrum o princpio da imputao: ao passo que nas cinciascausais os enunciados so articulados de forma a relacionar causae efeito (se A , ento B ), a cincia normativa constri oenunciado atravs da sustentao de um conseqente prescrito (seA , ento B deve ser).Pelo preceito imputativo, deste modo, a sano no causada

    pelo comportamento. Apenas deve ocorrer face ao prevista nanorma, tipicamente. Estipula-se uma sano para o caso deocorrncia de um dado comportamento humano,Deveras, o direito de ser visto como um sistema basicamentesancionatrio, que se vale da sano para alcanar os seus fins l4 ,

    12 A classificao das cincias e Kelsen a seguinte: segundo o seu objeto, elas so naturais ousociais, encontrando-se o direito dentro desta ltima, ao lado da sociologia, da psicologia, etc,enquanto a fsica, p. ex., encontra-se classificada naquela primeira. Mas, a principalclassificao de Kelsen a que leva em linha de contra o princpio fundamental doconhecimento, entre cincias causais e normativas. Naquela, os dados so relacionados numarelao de causa e efeito (assim, na sociologia: o aumento do desemprego aumenta acriminalidade); nessa, se estabelece uma relao de imputao (deste modo: quem praticar umfurto ser punido com recluso de um a quatro anos). Tem-se que o comportamento delituosono causa da sano; esta deve apenas ser aplicada diante da prova desse. (Diz Kelsen: "Aimputao que se exprime no conceito de imputabilidade a ligao de uma determinadaconduta, a saber, de um ilcito, com uma conseqncia do ilcito. Por isso pode dizer-se: aconseqncia do ilcito imputada ao ilcito, mas no produzida pelo ilcito, como causa).Alguns conhecimentos como a sociologia, so sociais e causais. O direito uma cincia causale normativa (cf. Teoria Pura do Direito, 4' edio, 1976, Armnio Amado Editor, Coimbra, p.117 usque 127.

    13 .Teona General deI Estado, trad. De Legaz y Lacabra, ed. Labor, 1934, p. 44. Apud MiguelReale, op. cit., p. 464.14 A estrutura do pensamento Kelseniano v o homem como naturalmente inclinado a perseguirapenas a satisfao de interesses egostas, e o homem s6 acataria as normas por ser para elemais vantajoso, sob seu individual ponto de vista. Ora. afirma Fbio Ulhoa Coelho, estaponderao tambm exterioriwo de uma inclinao egosta. (Obra j citada, p. 44). Emverdade, no entanto, como enfatiza Miguel Reale, o fazer algo que no pertence ao campo

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    Cuida-se de uma ordem coercitiva,15 e estabelece e prev umaimposio de coao (priso, privao de bens, etc.) parasituaes indesejadas. Kelsen formula uma ligao dentica entrecondutas humanas e sanes (dada a conduta a, deve ser a sanob).

    Na realidade, o direito se distinguiria das outras ordens sociaise morais, porquanto os atos de coao prescritos podem seraplicados, conforme o caso, mediante a utilizao de fora fsica.Assim, o ilcito o pressuposto do direito, no sua negao; odever no seno comportar-se segundo a conduta oposta quelasancionada pela norma (da a impropriedade do termo

    antijuridicidade, empregado, sobretudo, pelos estudiosos dodireito penal).Toda norma, direta ou indiretamente, estaria ligada a uma

    sano. Toda e qualquer norma jurdica tem a estrutura de umaproibio, eis que descreve a conduta tida como ilcita comoantecedente, e a sano como conseqente. 16Na Teoria Pura do Direito, edio de 1960, Kelsen afirma,quanto relevncia, que as normas que prescrevem a sano sodenominadas primrias, e as que prescrevem comportamento,

    secundrias. As primeiras, a toda evidncia, teriam maiorinteresse e importncia ao estudo do direito.

    estritamente jurdico - quando um homem pratica certo ato, age por motivos que no sojurdicos (op. cit., p. 461).15 Actos de coero, diz Kelsen, so actos a executar mesmo contra a vontade de quem por eles

    atingido e, em caso de resistncia, com o emprego de fora fsica, (Teoria Pura do Direito,960, p. 163).16 Aqui, Ke1sen teve de enfrentar a questo atinente s normas que no probem condutas, mas aspermitem, ou mesmo obrigam determinados atos ou omisses, ou, ainda, estabelecemdefinies. Para explicar a natureza sancionatria destas espcies de normas, Kelsen se vale da

    distino entre normas autnomas e normas no autnomas; so nornras no autnomasaquelas que no cominam determinada sano, mas a sano est mencionada em outra norma.Nesse grupo, estariam as normas de competncia, normas revogatrias etc. (cf. Ulhoa Coelho,obra citada, em resumo, pp. 35 usque 40).

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    Reversamente, em sua obra pstuma, Teoria Geral dasNormas, publicada em 1979, o autor muda de posio,17e ganha. h das d d" 18peso as normas antenormente c ama e secun anas.

    Vamos adiante.5 - Kelsen teve obsesso pela idia de validade das normas.Vlida seria a norma que, a uma, tivesse relao com uma normafundamental, que, a duas, tivesse um mnimo de eficcia e que, as

    trs, estivesse inserida numa ordem globalmente eficaz. 19Vlida seria a norma que fosse manifestao de uma autoridadecompetente. Kelsen sustenta, contudo, que o seu contedo irrelevante para a sua validade.Que uma norma vale, significa a prpria existncia da norma epara que ela passe a existir preciso que ela seja posta em

    conformidade com o prescrito por outras normas.

    17 Se se admite que a distino de uma norma que prescreve uma conduta determinada e de umanorma que prescreve uma sano para o fato da violao da primeira seja essencial para odireito, ento, precisa-se qualificar a primeira como norma e a segunda como secundria - eno o contrrio, como foi por mim anteriormente formulado. A norma primria pode, pois,aparecer inteiramente independente da norma secundria. Mas tambm possvel que umanorma expressamente formulada, a primeira, i. e., a norma que impe uma conduta determindageralmente no aparea e apenas aparea a norma secundria. i. e.. a norma que estabelece asano. Desta forma, formulam-se reiteradamente normas jurdicas nas modernas leis, (TeoriaGeral das NorTlUJs, p. 181).

    18 Segundo o professor titular de cadeira de Introduo ao Estudo do Direito da Faculdade deDireito da Universidade de So Paulo, Trcio Sampaio Ferraz Jr., Atualmente, a avaliao deimportncia cedeu lugar mera relao inclusiva: se UTIUJ norTIUJ tem por objeto outra norTlUJ.ela secundria. se tem por objeto a prpria ao, ela primria. Assim. norTlUJS secundriasso norTlUJs sobre norTlUJS (grifei). Vide Introduo ao Estudo do Direito, Atlas, 1988, p. 119,do autor citado.

    19 Falou Kelsen: As noT1/UJS de UTIUJ ordem jurdica positiva valem (so vlidas) porque a norTIUJfundamental que forTIUJ a regra basilar de sua produo pressuposta como vlida, e noporque so eficazes; TlUJS elas somente valem se esta ordem jurdica eficaz. quer dizer.enquanto esta ordem jurdica for eficaz. Logo que a Constituio e. portanto. a ordem jurdicaque sobre ela se apoia, como um todo. perde a sua eficcia. a ordem jurdica. e com ela cadaUTIUJ das suas norTlUJS, pedem a sua validade (vigncia). E, adiante, concluiu: A eficcia UTIUJcondio da validade, mas no esta mesTIUJ validade. (Teoria Pura do Direito, pp. 297 e298). Como nota Miguel Reale, a meno eficcia, como condio da validade das normas, clara influncia do Direito banhado na experincia social. tal como se realiza nos EstadosUnidos da Amrica do Norte (op. cit. p. 465). Abandona-se ao menos aqui, o recurso exclusivos categorias lgico-formais.

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    E uma norma s existir (e ser vlida) se for obedecido oprocedimento normativo previsto para sua edio - abstrao feitade seu contedo, repita-se.Para a compreenso desse assunto, cogente falar sobre achamada norma fundamental, que sustenta toda a pirmidehierrquica e escalonada de normas, absolutamente sistemtica,concebida por Kelsen.A validez lgico-formal, como esquema de interpretaoneokantiano, uma relao entre normas - h uma disposiointerna de normas que as coloca em relao de coordenao,sub/supra-ordenao2o - abstrao feita de seu contedo. Umanorma apia-se em outra, assim por diante ...Ora, se assim for, as sries hierrquicas de normasnecessariamente conduziro hiptese de uma primeira norma,

    uma norma no relacionada com as outras normas, pena de nohaver um sistema lgico e fechado: eis a norma fundametal(Grundnorm).A grande questo a explicao de seu estatuto de validade.Para Kelsen, a norma fudamental no se relaciona com as demaisnormas, pois, se assim fosse, no seria a primeira norma. Cuida-sede uma norma pressuposta, no uma norma posta. Ela umacondio de pensar o direito. A norma fundamental prescreve quese reconhea uma norma como fundamento das demais e reciocinea partir dela. norma hipottica, que impe a observncia da primeiraConstituio histrica21 e das normas desta decorrentes.Constituio histrica o primeiro texto fundamental - Grundaktcuja elaborao no se encontra em nenhuma norma anterior,

    20 Lourival Villanova, in Teoria da normn fundamental (comentrios mnrgem de Kelsen), emEstudos em Homenagem a Miguel Reale. cuja organizao coube a Tefilo Cavalcanti, ed. daUSPe RT.

    21 Kelsen distinguia a Constituio em sentido jurdico-positivo. da Constituio em sentidolgico-jurdico. Essa representava a concreo histrica da comunidade. Esta quela sesobrepunha, como norma fundamental (cf. Teoria General dei Estado. pp. 225/226, apudVillanova, obra citada).

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    note-se que no se trata, exatamente, de verificar a anterioridade. . da constttulao no tempo. 22Por a se v que, de todo modo, a norma fundamental, nopensamento do autor, serve para unificar o sistema jurdico, edar-lhe um fundamento de validade: uma hiptese-limite quefecha o sistema. 23A construo da norma fundamental gerou muitssimas crticas

    ao jurista austraco,24 mormente porque a referida norma no uma norma posta por um ato de vontade; uma norma nopositiva.25

    22 Fbio Ulhoa Coelho, no seu livro j citado. p. 28 usque 32, brilhantemente analisa a normahipottica fundamental luz do ordenamento jurdico brasileiro e busca encontrar a primeiraConstituio histrica do Brasil, nos moldes kelsenianos. O citado autor entende que o AtoInstitucioal n 5, por no haver nenhuma norma pretrita outorgando poderes para suaelaborao, constitui a primeira Constituio histrica. e dela decorre a validade das demaisnormas jurdicas em vigor, hoje. Diz Ulhoa Coelho: "A norma hipottica fundamentalpressuposta pela cincia do direito brasileira, portanto, no poderia ser outra seno aprescrio de obedincia ao editor do Ato Institucional nU 5.

    23 Vale a pena trazer colao as palavras de Lourival Villanova: Se toda norma provm de norma- em rigor inexiste a produtividade nonnntiva do ftico - o conjunto, que o sistema, ,ontologicamente, em si mesmo bastante. Mas h o problema do comeo normativo do sistema.Para o sistema normativo, que alcanou a forma estatal, o incio est na Constituio. Masonde provm a Constituio positiva, qual o fato constituinte, o proto-fato que, por isso mesmoque no era suporte ftico de nenhuma norma - que no existia - d origem ao direitoconstitucional? Ou est questo metajurdica, transsistemtica, transcendente ao sistemapositivo, ou esse est Grundfaktun suporte ftico de alguma norma. Como o sistema requerum ponto-origem, e no se dilui numa seqencia interminvel de antecedentes, h que deterse, por uma necessidade gnosiolgica, numa forma fundante, que no positiva, por no teruma sobrenorma da qual seja aplicao. uma norma pressuposta, uma hiptese-limite, queconfere conclusividade ou fechamento ao conjunto de norma que o Direito, (op. cit. p. 19).

    24 Ao ponto de ele mesmo ter modificado seu entendimento sobre a norma fundamental, com a suaobra pstuma, afirmando tratar-se de uma obra de fico, enquanto contraria a realidade e contrria a si mesma, fico enquanto instrumento do saber limitado. O fim do pensamento danorma fundamental : o fudamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurdicaou mesmo positiva, a interpretao do sentido objetivo dos atos ponentes dessas normascomo de seu sentido objetivo; isto significa, porm, como normas vlidas, e dos respectivosatos como atos ponentes de norma. Este fim atingvel apenas pela via de uma fico. Porconseguinte, de se observar que a norma fundamental, no sentido da vaihingeriana Filosofiado Como-Se no hiptese - como eu mesmo, acidentalmente, a qualifiquei - e sim umafico que se dintingue de uma hiptese pelo fato de que acompanhada pela conscincia ou,ento, deve ser acompanhada, porque a ela no corresponde uma realidade (cf. Teoria Geraldas Normas, 1979, Sergio Antonio Fabris Editor, p. 329).

    25 Os jusnaturalistas argiram que inconcebvel um dever ser sem referncia a valores, umanorma fundamental sem ser ela o meio normativo de implantar-se um valor fundamental na

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    Ao buscar fundamentar a validade do sistema atravs de umanorma no relacional, uma norma no-positiva, Kelsen - paramuitos - jogava por terra toda a solidez dogmtica de sua teoriavista luz da pureza, pertencente, sobretudo, primeira fase deseu pensamento.

    Para outros, como Bobbio, tal tarefa - qual seja: determinarcontedo de uma norma fundamental pressuposta, no relacional- tarefa impossvel.26 No fundo, no fundo, a questo at hojepermanece em aberto...6 - Para encerrar este despretensioso resumo sobre HansKelsen, preciso ventilar algumas consideraes a propsito desua hermenutica jurdica.As leis editadas pelo ordenamento, segundo Kelsen, podem termargens de indeterminao, quanto ao seu significado, sendocerto que isto seria inerente positivao de normas jurdicas.Para entender o contedo das normas, h duas espcies deinterpretao: a autntica, desenvolvida pelo rgo comcompetncia para editar e aplicar a norma jurdica; e a no autntica, levada a efeito pelos doutrinadores do direito e pelaspessoas em geral.Posto isto, para Kelsen, a interpretao no-autntica, realizada

    pela cincia do direito, fixa os limites dos significados da norma,dos tipos normativos. Cabe interpretao no-autnticaencontrar as mltiplas significaes possveis e atribuveis norma. Todavia, para Kelsen, a tarefa da cincia jurdica pra a, eno pode ir alm.Vale dizer: para Kelsen, possivel a pluralidade de

    significaes cientificamente pertinentes a cada norma jurdica.Todas as significaes possveis da norma, dentro de suatipicidade, tm valor igual. Deve-se, dessarte, superar a fico deuma nica interpretao correta para cada norma interpretada.

    campo das investigaes da dogmtica do direito, e impede a ingerncia da investigaosociolgica no mbito metdico desta cincia (cf. Villanova. op.cit., p 3).26 Apud Ferraz Jr., in Introduo ao Estudo do Direito j referida.

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    RODRIGO ZACHARIAS

    que - como ensina o notvel autor austraco - nas hiptesesespecficas em que a norma for aplicada, apenas um destessignificados prevalecer, mas no em razo da interpretao noautntica, no em razo da interpretao da doutrina. Osignificado prevalecente decorrer, s por s, de um ato devontade da autoridade competente para aplicar o direito

    _ h' 27mterpretaao autentica.Kelsen desqualifica a discusso sobre qual dos significadossubstanciais - da norma deve prevalecer. Vale o que o aplicadordo direito estabelecer que se aplica ao caso concreto. Nota-se ocunho formalista do autor, levado s ltimas conseqncias ...7 - Dito isto tudo, h de se ressaltar que a estrutura lgica dopensamento Kelseniano no permaneceu esttica, mas foidinamicamente sofrendo adaptaes, decorrentes de seu contatocom o direito norte-americano.Houve um progressivo abrandamento da primitiva poslaonormativista da primeira edio da Teoria Pura do Direito, de1934, at os seus estudos mais recentes. 28Prova disto est tanto na ltima edio de Reine Rechtslere, de1960, como tambm na obra pstuma, a que se deu o ttulo de

    Teoria Geral das Normas, onde ele retificou alguns de seus

    27 Escreveu Kelsen: Se por interpretao se entende a fixao por via cognoscitiva do sentido doobjeto a interpretar, o resultado de unUl interpretao jurdica somente pode ser a fixao damoldura que representa o Direito a interpretar e, conseqentemente, o conhecimento dasvrias possibilidades que dentro desta moldura existem. Sendo assim, a intepretao de UnUIlei no deve necessariamente conduzir a UnUI nica soluo conUJ sendo a nica correta, nUlSpossivelmente a vrias solues que - na medida em que apenas sejam aferidas pela lei aaplicar - tm igual valor, .f e bem que apenas UnUI delas se torna Direito positivo no ato dorgo aplicador do Direito - no ato do tribunal, especialmente. Dizer que UnUI sentenajudicial fundada na lei, no significa, na verdade, seno que ela se contm dentro damoldura ou quadro que a lei representa - no significa que ela a nornUI individual, nUlSapenas que uma das nornUls individuais que podem ser produzidas dentro da moldura danorma geral (Teoria Pura do Direito, p. 467.)

    28 Exemplo desse ponto de vista est na seguinte afirmao: O Objeto da cincia do Direito so asnormas jurdicas determinantes da conduta hUnUlna, ou a conduta humana enquantodeterminada pelas normas jurdicas, e isto quer dizer: a conduta hUnUlna enquanto contida nasnornUlS jurdicas; in ProblenUls escogidos de la Teoria Pura del Derecho, Buenos Aires,1952, apud Miguel Reale. op. cit., pp. 471 e 721. Na fase puramente lgico-formal, pura enormativista de Kelsen, tal afirmao seria verdadeiramente, totalmente impensvel.

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    posicionamentos pretritos, rumo a dar maior importncia aelementos extra-normativos.Atravs da compreenso do sistema jurdico idealizado porKelsen, nota-se que ele se manteve alheio a quaisquer ideologias,ou mesmo a qualquer pressuposto metafsico transcendente oujusnaturalista. Merc de sua cientificidade, trata-se de uma teoriaaberta a todos os fins, por isto que afinalista. 29Kelsen teve enormes mritos e talvez o maior deles tenha sido,

    no dizer de Miguel Reale, o de ter buscado e alcanado o altoobjetivo de assegurar a todas as correntes igual possibilidade demanifestar-se no plano poltico, a salvo de qualquer soluototalitria. Em outras palavras: um campeo da democracia semcontedo social e econmico determinado?O Ou ainda, no dizerrecente de Norberto Bobbio, visto no contexto das entreguerras: omaior terico da democracia daqueles anos. 31

    29 o tenno de Miguel Reate, obra citada, p. 474.30 . 7Op. cll, p. 4 43 I In Direita e Esquerda - Razes e significados de uma distino poltica, ed. Unesp, 1995, p. 50.Bem se observa que o consagrado autor italiano, esforando-se por manter a dicotomia direitaesquerda viva, no ousou inserir Kelsen entre os denominados de esquerda. ou entre oschamados de direita. Tal tarefa, essa sim, parece-nos praticamente impossvel, e estril, dada acientificidade da obra de Kelsen, que. do ponto de vista terico-cientfico, o levouinexoravelmente neutralidade, ao abrigo das incurses poltico-ideolgicas.