BRINQUEDOS COMO INFLUÊNCIAS CULTURAIS: A CRIANÇA … · Há o receio de que ao brincar com...
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BRINQUEDOS COMO INFLUÊNCIAS CULTURAIS: A CRIANÇA E SUA
PERCEPÇÃO DE GÊNERO BRINCANTE.
Beatriz Celeste Martins da Silva1
Nayara Bacchetti Baratela2
RESUMO:
Esta pesquisa tem como interesse as relações entre brinquedos, brincadeiras e gêneros
constituídos, impostos e estimulados em meio a infância, dentro e fora da sala de aula.
As brincadeiras apresentam múltiplas formas da expressão infantil, que se constituem a
partir da história, sociedade, cultura e contextos nos quais as crianças estão inseridas.
Diante do binarismo de gênero e sexualidade que são cotidianamente impelidos, são
colocadas, com o auxilio de alguns autores e das pistas apresentadas pelas crianças,
como as relações entre eles está encarnada. Considera-se a importância da liberdade de
raciocínio e escolha, de modo a considerar como legítima fase a infância, possibilitando
a formação de indivíduos questionadores, que valorizem as problematizações e os
debates para tessitura e formação do conhecimento.
Palavras-chave: brinquedos; cultura; escola; infância; gênero.
1 Graduada em Pedagogia e professora de robótica – [email protected]. 2 Graduada em Pedagogia e professora na rede particular em Vila Velha – [email protected].
INTRODUÇÃO
As crianças apresentam através de suas brincadeiras, sua cultura e os papéis que através
dela aprenderam socialmente, enquanto homens e mulheres. Suas preferências e
narrativas explicitam quão significativos são os atos de brincar para sua formação e
desenvolvimento, além do quanto as convenções sociais influenciam diretamente sobre
suas preferências, por vezes até os fazendo mudar de opinião, ou apenas fingir que o
fazem, para seguir padrões já pré-estabelecidos.
Simone de Bevoir em 1940 levou o mundo a problematização quando lançou seu livro
Segundo Sexo, afirmando que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. A partir de
então esta afirmação se transformou em um dos pilares das lutas de igualdade de gênero
iniciadas com os movimentos feministas que agitaram os anos 60, somadas a tantos
outros movimentos sociais, revoluções culturais e problematizações sobre o papel que a
mulher poderia exercer na sociedade (Louro, 2008).
Durante muitos séculos a divisão binária imposta pelo sexo foi tida como única forma
de definição do sujeito. De modo reflexivo, podemos considerar as ideias sobre as
diferenças de gênero como algo construído ao longo do tempo, de diferentes formas, e
não como natural. As características biológicas influenciam também no
desenvolvimento físico dos sujeitos, mas não devemos atrelar o desenvolvimento
intelectual ou as posições de atuação na sociedade de acordo com o sexo biológico de
cada um ou com o que culturalmente se impõem sobre as posições culturais de cada
sexo. O próprio desenvolvimento físico pode ser influenciado por diversos fatores,
internos e externos, em meio ao contexto em que está inserido o indivíduo.
GÊNERO, SEXO E SUJEITOS
Conforme Scott, citado por Finco (2003), gênero é um elemento que constitui as
relações sociais com base nas diferenças notadas sobre os sexos. É a construção social
que determinadas culturas consideram a respeito de homens e mulheres. O conceito de
gênero precisa ser pensado a partir do conhecimento, do saber mais reflexivo sobre
diferenças sexuais e seus significados e essas diferenças são produzidas pelas culturas e
sociedades. O gênero então, assim como a representação do ser e o sexo são construções
culturais e se configuram dentro do sujeito compondo com suas crenças, culturas,
tradições e experiências, já o sexo é biológico se configurando pelos órgãos sexuais,
masculino e feminino.
Louro (2008, p.57) apresenta um retrato da escola que apesar da passagem dos anos
ainda temos, quando diz: “a escola que nos foi legada pela sociedade ocidental moderna
começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela também se fez
diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou os meninos das
meninas”. Ao destacarmos esse trecho da fala da autora, queremos enfatizar essa
dicotomia enraizada culturalmente nos cotidianos da vida.
BRINQUEDOS, CULTURAS E INFLUÊNCIAS
Apesar do passar dos séculos e da inegável evolução das pesquisas e entendimento
sobre gênero na escola, é perceptível que existem ainda processos de socialização
diferenciados na criação de meninos e meninas - a mídia é grande influenciadora dessa
criação binária, designando papéis ao público masculino e feminino. Percebemos (e
como pesquisadoras vivemos também isso) que as meninas são incentivadas desde a
primeira infância a brincarem de bonecas, panelinhas e outras itens relacionados aos
cuidados do lar, beleza e filhos. Já os meninos são incentivados a brincadeiras mais
livres, aventureiras e desbravadoras, preparando o sujeito com o órgão sexual masculino
para se aventurar pelo mundo, ser o protetor da família e responsável pela ordem da
sociedade. E isso se perpetua até a adolescência, influenciando na constituição do “ser”
homem e mulher.
Por parte das crianças não há, naturalmente, expectativas sexistas quanto aos
comportamentos uns dos outros. Essas noções são criadas a partir das perspectivas dos
adultos, de sua cultura e idealização de sexo e gêneros. Suas considerações referentes a
masculino e feminino se constituem a partir de suas vivências e experiências, no que diz
respeito aos trajes, brincadeiras e comportamentos considerados adequados.
Percebemos então que este cenário está aos poucos mudando de figura, visto que muitas
professoras, e até as próprias famílias, incentivam a brincadeira independente do
brinquedo, trabalhando assim a diversidade. Entretanto muitos pais ainda compram
brinquedos pensando de maneira sexista. Os brinquedos são objetos claros da
representatividade de tais expectativas geradas do sexo biológico por sobre o gênero. As
crianças encaram as brincadeiras com naturalidade, como parte de sua cultura e
crescimento. A cultura adulta influência e implica sentidos as brincadeiras, não comuns
e naturais nas crianças.
Nesta cultura os brinquedos têm significados relevantes para a constituição como
adultos, distanciando o pensamento sobre a infância como uma fase autêntica, e o
aproximando de uma concepção de mera transição para outras. Nesta concepção é
perceptível a ideia de que meninos não podem assumir posturas de delicadeza ou
cuidados, precisam demonstrar força e determinação. Já as meninas devem ser sutis e
amáveis, devendo distanciar-se de atos bruscos ou forte expressividade.
As crianças já chegam na escola com os corpos marcados pelos diversos significados e
entendimentos de como deve “ser” homem/mulher. Cabe a escola não desconsiderar os
saberes ou aprendizagens já obtidas por esses sujeitos e sim problematizar com eles
como existem outras possibilidades de “ser” e outras formas de se fazer.
Agindo de acordo com as teorias sexistas, as crianças tendem a adequar sua
personalidade e caráter peculiares, para serem moldadas e aceitas dentro dos padrões
idealizados. Estes conceitos tem origem histórico-cultural-social. Ao brincar de bonecas
e panelinhas as meninas preparam-se para seu futuro maternal, onde deverão ser mães
cuidadosas, mulheres delicadas no tratar do lar, no falar e no agir. Já os meninos ao
brincar de carro e com ferramentas, se habilitam a provedores do lar, futuros
trabalhadores, que deverão demonstrar força ao lidar com os ambientes profissionais e
familiares.
O que temos feito na escola? Não temos a possibilidade de falar de todas as escolas,
visto que não as conhecemos e nem estivemos dentro delas. Cabe a nós falar do que
vivemos, conhecemos e do que nos afeta. Com isso trazemos as marcas de uma
professora do 1º ano de uma escola particular de Vila Velha, que se esforça para
problematizar sempre todos os conteúdos da vida e da escola com suas crianças e
através das suas práticas apresenta a turma uma nova forma de pensar a diversidade e a
alteridade, compartilhando assim com a família a criação de sujeitos críticos e
questionadores.
A escola ajuda a despertar nos sujeitos a alegria e a paciência necessárias para conviver
na sociedade, é na escola que nossas crianças aprendem a trabalhar em equipe, respeitar
os coleguinhas, dividir o lanche, ouvir e expressar suas opiniões de forma
argumentativa, entendendo que na vida nem sempre se ganha, mas que devemos sempre
tentar novamente.
Acreditamos no professor como potencializador de vidas, pois existem a nossa
disposição muitas opções a serem exploradas, a quantidade de pesquisas e professoras
trabalhando a amorosidade como aposta política e não apenas com uma visão romântica
da vida está crescendo a cada dia.
RELAÇÕES ENTRE CRIANÇAS E BRINQUEDOS DE UMA ESCOLA EM
VILA VELHA
A pesquisa retratada foi realizada junto a uma turma de 1º ano do Ensino Fundamental,
de uma escola particular, situada no município de Vila Velha – Espírito Santo. Na turma
há 5 meninos e 8 meninas, com idades entre 6 e 7 anos.
A princípio conversamos com a professora Jaqueline, que disse ser assunto constante na
sala a distinção entre o que é “coisa de menino” e “coisa de menina”. Ela ainda disse
mediar constantemente essas concepções, de modo a oferecer mais liberdade de
escolhas para as crianças, mas que a formação vinda da família, muitas vezes se
sobrepõe aos debates gerados na escola.
“Alguns pais tem medo de deixar que as crianças brinquem com o que quiserem e que
isso influencie diretamente em sua sexualidade. Isso acontece mais com os meninos do
que com as meninas. O receio de que se tornem “afeminados” é perceptível. As meninas
nem são proibidas de brincar com o que é taxado de masculino, geralmente, mas dizem
que precisam ter modos, diferenciando também a criação entre ambos.” (Jaqueline,
professora do 1º ano).
Durante a pesquisa de campo tivemos a oportunidade de conhecer Pedro, um menino
que gosta de maquiagem, bonecas e panelinhas, mas que não tem autorização para
brincar com esses itens em casa, devido a corresponderem a um comportamento
atribuído às meninas. Em meio a rodinha, um espaço para diferentes colocações e
debates dentro de sala, Pedro expos seus gostos e afirmou não compreender os motivos
pelos quais não tinha autorização da família para brincar, segundo suas preferências. A
partir desse gatilho, se deu a seguinte discussão:
(Rafael) – Seus pais estão certos, porque isso é tudo coisa de menina e você é um
menino. Você é gay?
(Pedro) – O que é isso? Não sei.
(Rafael) – Gay é menino que gosta de menino. Você é?
(Pedro) – Não, eu gosto de menina. Mas não tem nada a ver isso, eu posso gostar de
brincar e de menina ao mesmo tempo.
Aproveitando o gancho para a discussão, a professora mediou os debates, de modo a
gerar reflexões a partir das colocações das crianças.
Fotografia 1: Menino brincando com panelinhas
Fonte: Arquivo pessoal
É notável ainda a confusão que há sobre a influência das concepções de gênero sobre a
sexualidade das crianças, como se obrigatoriamente uma exercesse domínio sobre a
outra. Há o receio de que ao brincar com bonecas um menino se descubra ou torne-se
homossexual, desconsiderando a ideia de cuidados com o outro que a brincadeira pode
oferecer. Ou que uma menina ao jogar bola torne-se “masculinizada”, de modo a
desconsiderar o desenvolvimento motor e, consequentemente, intelectual que tal
atividade pode acarretar. Desconsidera-se o ato de brincar como legítimo, de modo a
torná-lo meramente parte da formação da criança para a vida adulta.
Em outra ocasião, também durante a rodinha, algumas das crianças sentiam frio, mas
não haviam levado casacos para a escola. Então a professora sugeriu que quem tinha
casaco e não queria usá-lo, quem emprestasse aos demais. Uma das meninas, Ana,
ofereceu a Miguel seu casaco – com estampa de bolinhos, em tons de rosa. Então foi
iniciado outro diálogo:
(Rafael) – Nossa, Miguel! Você virou menina, virou a Ana? (Várias risadas)
(Miguel) Por quê?
(Rafael) – Olha, “ta” com casaco de menina, todo rosinha. Ui! (Fazendo gestos com as
mãos, gerando mais risadas).
(Miguel) – Que bobeira! Bem melhor do que você que “ta” com frio por causa de
besteira. Pelo menos eu “to” quentinho. Não tem nada a ver isso da roupa, né tia?
Novamente a professora interviu, promovendo e mediando as discussões, onde cada um
pôde se colocar mediante a situação e pontuar suas considerações. Poucos minutos
depois Rafael estava, discretamente, pedindo o casaco de Isabele emprestado.
Fotografia 2: Empréstimo de casacos
Fonte: Arquivo pessoal
Ainda em um terceiro momento estava sendo praticada a leitura um gibi, pela
professora. Em uma das cenas a personagem Mônica, dos quadrinhos famosos de
Maurício de Souza, brincava de carrinho com seu amigo Cebolinha. Então novamente
foram disparados debates:
(Manoela) – Eu heim, tia! A Mônica “ta” brincando de carrinho, com o Cabolinha. Ela
não devia estar brincando de boneca com a Magali não?
(Isabele) – Não existe isso de brinquedo de menino e menina, né tia? Todo mundo pode
brincar do que quiser.
(Miguel) – É mesmo! Você não lembra daquele dia do casaco, que eu peguei com a
Ana? Nada a ver isso!
Fotografia 3: Meninas brincando com carrinhos
Fonte: Arquivo pessoal
Novamente abriu-se espaço para que os debates fossem fomentados, e muito
interessados todos queriam manifestar sua opinião acerca do assunto, contar
experiências ou fazer novas perguntas. Poucas horas depois, durante o recreio, estavam
Manoela e Isabele a brincar com os carrinhos da sala.
É interessante perceber que a professora em momento algum induzia as crianças a
algum pensamento, esta mesma não se colocava afirmativamente. Disparava perguntas
diversas a partir do que as próprias crianças colocavam, de modo a suscitar nelas o
interesse em construir argumentos e formar sua própria opinião.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As crianças são seres dotados de conhecimentos gerados por suas experiências. Não
nascem com opiniões já pré-estabelecidas, e as vão formando no decorrer de sua vida,
mediante suas vivências.
A cultura adulta influencia diretamente as crianças, em especial no ato de brincar – o
qual tem diminuída sua relevância e legitimidade, tornando-o parte do caminho até a
fase adulta. A infância, muitas vezes, tem suas projeções reduzidas, diante de adultos
que consideram saber tudo o que será melhor para elas, as desejando a partir de um
molde ou modelo já idealizado.
É curioso pensar que enquanto sujeitos prezamos por nossa liberdade, a valorizamos e
enaltecemos a importância de tê-la, mas por vezes esquecemos que as crianças pensam e
anseiam também. Não as tratamos com a autonomia que a elas deve caber, querendo
influenciá-las em suas decisões, preferências e até mesmo em seus pensamentos.
Com base nessa ideia de liberdade e respeito ao outro, a escola não deve influenciar as
crianças a uma determinada ideologia, mas sim despertar a curiosidade de modo que
elas tornem-se questionadoras, que não aceitem respostas prontas sem justificativas
plausíveis. Não impedir a liberdade que é sua por direito: de brincar do que quiser, de
construir o que preferir, de se formar sem determinações de outros.
É interessante observar como essas oportunidades de debates no ambiente escolar geram
trocas, nas quais tornam-se possíveis as tessituras dos conhecimentos entre as próprias
crianças entre si e com sua professora. Por parte da professora ou pesquisadoras, não
houve pretensão de se concluir este assunto ou influenciar na formação de opiniões, mas
problematizá-lo junto aos mais interessados: as próprias crianças, que saem
prejudicadas em meio a toda essa imposição.
E é o que também se pretende com esta pesquisa: suscitar nos leitores questionamentos
que solucionados, gerarão outros questionamentos - em um ciclo infindável onde seres
pensantes não estejam satisfeitos com imposições e revolucionem as determinações a
eles impostas, permitindo-se experimentar, refletir e viver.
REFERÊNCIAS:
FINCO, D. Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na educação
infantil. Pro-Posições, v.14; n.03; 2003. Disponivel em: < http://www.proposicoes.fe.unicamp.br/proposicoes/edicoes/sumario15.html> Acesso
em 15/05/2016.
LOURO. Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. Pro-
Posições, v. 19, n. 02 (56) - maio/ago. 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/pp/v19n2/a03v19n2.pdf>. Acesso em 9/05/2016.
LOURO. Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade, 2ª Edição.
Autêntica. Belo Horizonte. 2000.