BRITO JÚNIOR, B. J. O Sertão e a Noção de Desequilíbrio
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1
O Sertão e a noção de desequilíbrio
Bajonas Teixeira de Brito Junior
1. O mito do Éden e o projeto da colonização.
Não sem ironia Sérgio Buarque definirá, no prefácio à segunda edição
de Visão do Paraíso, a tarefa do historiador como sendo antes a do exorcista que a
do taumaturgo.1 De fato, a ser assim, o exorcismo há de recair sobre os antigos
exorcistas que, armados do aparato teológico e religioso cristão, estabeleceram
para a consciência européia o sentido das terras descobertas — o paraíso terrestre.
O que exatamente deveria ser aí exorcizado não se deixa bem apreender à primeira
vista. Basta, porém, ler atentamente o parágrafo seguinte àquela definição do
historiador para dar com o endereço da excomunhão. Sérgio Buarque afirma que o
“resultado mais fecundo” de seu exame do quadro ideal que do Novo Mundo
forjaram os europeus foi, em relação às visões do Paraíso Terrestre, a determinação
de duas variantes consideráveis que “segundo todas as aparências, se projetariam
no ulterior desenvolvimento dos povos deste hemisfério”.2 Distinguindo a
colonização castelhana e portuguesa, de um lado, e a dos anglo-saxões, de outro,
bem diversos serão os destinos que, em cada caso, se abrirão com o mesmo mito:
1 Cf., Holanda, l985, p. xviii: “Se houvesse necessidade de forçar algum símile, eu oporia aqui à figura do taumaturgo a do exorcista.” 2 Idem, p.xviii
2
Assim, se os primeiros colonos da América Inglesa vinham movidos pelo
afã de construir, vencendo o rigor do deserto e da selva, uma comunidade
abençoada, isenta das opressões religiosas e civis por elas padecidas em
sua terra de origem, e onde enfim se realizaria o puro ideal evangélico, os
da América Latina se deixavam atrair pela esperança de achar em suas
conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude celeste, que
a eles se ofereceria sem reclamar labor maior, mas sim como um dom
gratuito. Não há, neste último caso, contradição necessária entre o gosto
pela pecúnia e a devoção cristã. Um e outra, em verdade, se irmanam
freqüentemente e se confundem: já Cristóvão Colombo exprimira isto ao
dizer que com o ouro tudo se pode fazer neste mundo, e ainda se
mandavam almas ao Céu.3
Ao determinar a ligação entre o mito do paraíso terrestre e os destinos
diferenciais da colonização ibérica e anglo-saxônica, Sérgio Buarque deixa
suficientemente explícito o que deve ser o objeto do exorcismo. Paradoxalmente, é
a própria bem-aventurada visão do Éden que terá que ser banida caso pretenda-se
reverter os rumos de nossa colonização4. O modo como essa se processou,
essencialmente predatória e extremada em sua sede de lucros, pela exploração
desenfreada da terra e dos homens, calca-se sobre o pressuposto do “dom gratuito”.
O dom, como dádiva, está aí para ser recolhido e sua apropriação não está limitada
por nenhuma interdição.5 Tudo tende, como notou Gilberto Freyre, para o extremo.
3 Idem, p.xviii,xix. 4 O forte vínculo, nos rumos iniciais da colonização, entre o poder político, a cobiça das riquezas da terra e a mitologia edênica, se pode colher numa observação incidental de Afonso Taunay ao tratar dos Taques: “Excepcional era então o brilho e o prestígio dos Taques em terras paulistas. Remontavam pela antiguidade a Pedro Taques, secretário de D. Francisco de Souza, e provável confidente das manhas do famoso Governador Geral, minerador e eldoradomaníaco.” Cf. Prefácio à Nobiliarquia paulistana histórica e genealógica, São Paulo : Ed. Itatiaia, l980, Tomo I, p.12. Para um possível sentido político na edenização da América, Cf. Faoro, R., Os donos do poder, São Paulo : Globo, 9ª ed., l99l, Vol.I, p.101-103. 5 A palavra inglesa wilderness, significando tanto “selva” quanto “deserto”, envolve em seu campo semântico as “regiões incultas”, pensado-as já na perspectiva de uma intervenção formativa
3
Na produção, a monocultura; no trabalho, a escravidão; na propriedade da terra, o
latifúndio; na relação com a metrópole, o monopólio; nos vínculos sociais, o
mandonismo; na família, o patriarcalismo autoritário. Será precisamente referindo-
se ao caráter extremado e destrutivo de nossa colonização, que Sérgio Buarque
concluirá o último capítulo de Visões do Paraíso:
Teremos também os nossos eldorados. Os das minas, certamente, mas
ainda o do açúcar, o do tabaco, de tantos outros gêneros agrícolas, que se
tiram da terra fértil, enquanto fértil, como o ouro se extrai, até esgotar-se,
do cascalho, sem retribuição de benefícios. A procissão dos milagres há de
continuar assim através de todo o período colonial e não a interromperá a
Independência, sequer, ou a República.6
Fica indicado aqui que o “quadro ideal” que dirige a colonização vai além
da Colônia propriamente dita, seguindo impávido através da Independência e da
República. Considerando sua longevidade, ou melhor, sua persistência, somos
conduzidos a compreender a atualidade, em seus efeitos, do mito do Éden. Quando,
portanto, Sérgio Buarque dizia, no trecho citado ao fim de nossa Introdução, que a
tarefa do historiador que se interessa pelas coisas de seu tempo é a de exorcizar os
demônios da história, nos convidava a perceber a atualidade do projeto edênico e a
necessidade de seu exorcismo.7 A ironia está, porém, nessa inversão pela qual, na
armação de seu argumento, o mito do habitat perfeito e divino do homem, o Éden,
— o cultivo. Em português, ao contrário, a região inculta — a mata — foi rebaixada à condição reles do “mato” que não valia a pena senão destruir — para abrir espaço à agricultura e aos pastos, para limpar o caminho às bandeiras, para desentocar os índios ou dizimar os quilombos. 6 Cf., Holanda, S. B., l985, p.323. 7 Já se notou que Visão do Paraíso, ainda que possa ser tomada como a obra mais erudita de nossa historiografia, não alcançou nem de longe o brilhante sucesso de Raízes do Brasil. Talvez a dissimetria no destino das duas obras se deixe compreender por suas posições diante do mito edênico. É que enquanto Raízes do Brasil, através da figura do homem cordial, trazia sua contribuição ao prolongamento do mito, agora no terreno das interações sociais, Visão do Paraíso denuncia precisamente o mito em seus fundamentos. Assim como Raízes do Brasil, também Casa-Grande & Senzala, cuja interpretação dominante se afirmou pela mitologia da democracia racial, ecoa, em alguns de seus motivos, o mito edênico transfigurado.
4
se inverte para converter-se em um dos “demônios da história”. Para compreender
isso de modo mais concreto, necessitamos atentar para os vínculos entre o Éden e a
vida. Os diversos traços que compõem a mitologia do paraíso terrestre, que vão
sendo discutidos ao longo de Visões do Paraíso, convergem todos em que esse
lugar, por suas virtudes, se apresenta como o mais propício à plenificação da vida
do homem. Seu caráter divino está precisamente nisso — em potenciar as
possibilidades da vida. Ora, não é justamente o oposto disso que resulta dos
caminhos seguidos pela apropriação e expropriação das novas terras? Não será
antes a destruição das florestas; a esterilização da terra e a aniquilação dos homens,
negros e escravos, que constituirá a regra na dinâmica de apropriação do “dom
gratuito”?8
Sérgio Buarque, na passagem citada, alude a isso lembrando o
modo destrutivo de trato com a terra, pelo qual tira dela, “enquanto fértil”, a
monocultura seus produtos “como o ouro se extrai, até esgotar-se, do cascalho, sem
retribuição de benefícios”. O movimento expropriador exerce-se em mão única e
apenas retira sem nada devolver, intensificando ao máximo o processo de
esterilização da terra. Exatamente a atenção a esta unilateralidade foi que permitiu
a Sérgio Buarque desenvolver, em Raízes do Brasil, a tese de que a monocultura
aqui praticada aparenta-se à mineração. “A verdade é que a grande lavoura,
conforme se praticou e ainda se pratica no Brasil, participa, por sua natureza
perdulária, quase tanto da mineração quanto da agricultura. Sem braço escravo e
terra farta, terra para gastar e arruinar, não para proteger ciosamente, ela seria
irrealizável”.9 Sublinhando também o caráter antes depauperador que vitalizador
da monocultura dirá Gilberto Freyre:
8 A dinâmica da escravização, como já notavam há muito alguns dos representantes dos setores dirigentes do país, formava um círculo que rebaixava as possibilidades de vida, não só a dos escravos mas também a de seus senhores: “Tudo se compensa nesta vida. Nós tyrannizamos os escravos e os reduzimos a brutos animaes; elles nos innoculam toda a sua immoralidade e todos os seus vícios.” José Bonifácio, Representação à Assembléia Geral Constituinte, l823. 9 Cf., Raízes do Brasil, p.18. Sérgio Buarque apresenta a relação extrativa com a terra como o princípio mesmo da colonização, “que não deixou de valer um só momento para a produção agrária. Todos queriam extrair do solo excessivos benefícios sem grandes sacrifícios”. Op. Cit., p.21, Grifo nosso. Será em atenção a este ímpeto extrativista — que parece repetir-se na mineração, na
5
A mesma economia latifundiária e escravocrata que tornou possível o
desenvolvimento econômico do Brasil, sua relativa estabilidade em
contraste com as turbulências nos países vizinhos, envenenou-a e
perverteu-a nas suas fontes de nutrição e de vida.10
O sentido da inversão estará então em que se, idealmente, o caráter
divino do paraíso terrestre o faz propiciador da vida, a efetividade da colonização
promovida por tal quadro ideal conduz ao oposto — ao demoníaco como o que é
avesso e hostil à efetivação da vida. Aliás, não é o que afirma claramente o ditado
colonial que rezava que o Brasil seria “o inferno dos negros, o purgatório dos
brancos e o paraíso dos mulatos”? Se fica aqui o “purgatório dos brancos”, o
motivo é simples: cá chegam ansiando por uma estada a mais curta possível — “a
colônia é simples lugar de passagem, para o governo como para os súditos”, lembra
Sérgio Buarque.11 A vida colônia, de certo modo, é sempre um degredo e, por isso,
não só os condenados mas também os colonos aspiram à comutação de sua pena.
Por isso, fica aqui o “purgatório dos brancos”. A degradação dessa vida se
mostrará, nessa perspectiva, justamente no fato de ser ela um paraíso... para os
mulatos. Como um aparelho destinado à extração da dádiva, a “essência de nossa
formação” pode ser caracterizada, como propôs Caio Prado Júnior, como “uma
vasta empresa comercial, mais complexa que a antiga feitoria, mas sempre com o
mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território
virgem em proveito do comércio europeu”.12 Tão unilateral é este aparelho que se
deixa compreender como uma “organização puramente produtora, mercantil”13.
Assentado este ponto, fácil é perceber que o exorcismo propugnado por Sérgio
Buarque visa precisamente a cumplicidade entre o mito edênico e um modo de
agricultura, na lida com o escravo, etc. — que empregaremos a expressão projeto extrator, vendo nele o traço de união entre a mitologia do Éden e a forma assumida pela colonização. 10 Cf., Freyre, G., Casa-Grande & Senzala, p.34. 11 Cf. Holanda, S. B., l992, p.65. 12 Cf., Prado Júnior, C., História Econômica do Brasil, São Paulo : Ed. Brasiliense, l959, p.23. 13 Idem, p.23, Grifos nossos.
6
colonização inteiramente montado para a exploração14. Nesse paraíso não haverá
sequer o interdito da árvore do bem e do mal. Ao contrário, nele vale a legenda
ultra equinotialem non peccavi. E não compreenda-se esta ausência da interdição
primariamente como soltura dos costumes, liberalidade sexual, mas como liberdade
de saque irrestrito diante da qual os desbragamentos sexuais figuram como um
discreto detalhe. Evidentemente, se Sérgio Buarque faz a história do mito não é
para combatê-lo em sua figura original mas sim, desdobrando seu repertório, fazer-
nos conscientes de sua pertinência ainda quando muito transformado. Não é por
exemplo um dos avatares do mito que se apresenta nestas palavras de Gonçalves de
Magalhães em seu Discurso sobre a história da literatura no Brasil, de l836:
O “coração do Brasileiro, não tendo por ora muito do que se
ensoberbeça quanto às produções das humanas fadigas, que só com o
tempo se acumulam, enche-se de prazer, e palpita de satisfação, lendo
as brilhantes páginas de Langsdorff, Neuwied, Spix et Martius, Saint-
Hilaire, Debret, e tantos viajores que revelam à Europa as belezas da
nossa pátria.”?15
Sabemos que esta visão chegará aos nossos dias, como já na época do
Policarpo Quaresma, sob as vestes do “país de enormes potencialidades”. Uma
“procissão de milagres”, diz Sérgio Buarque, que forma o fio de continuidade de
nossa história — Colônia, Império, República. O que há de comum entre as várias
figurações do mito original é a pressuposição de uma dádiva (um dom), daquilo
que, segundo a interpretação que entre nós lhe correspondeu, apenas espera ser
recolhido16. Se o repúdio ao mito edênico requer que se afaste esse princípio
14 Um dado importante para situar a extensão desse modo radicalmente unilateral de exploração encontra-se na proibição de universidades na Colônia. Cf., Costa Lima, “Dependência cultural e estudos literários”, in Op. Cit., p.270-272. 15 Cit. in Ventura, R., Estilo tropical, São Paulo : Companhia das Letras, l99l, p.34. 16 Compreendem os portugueses seu novo território como um Éden que, como diz uma passagem de George H. Williams citada por Sérgio Buarque, estava “só à espera de ser ganho”. Cf., Op. Cit., p.xiv.
7
expropriador, então, como precursoras do exorcismo proposto por Sérgio Buarque,
devemos situar as elaborações de Euclides da Cunha em Os Sertões. Que poderia
ser menos assimilável a uma dádiva que a natureza avara e torturante que conforma
a ecologia do sertão? E, todavia, não será o sertanejo — “rocha viva da
nacionalidade” — uma criatura daquela adversidade? O fato é que se o sertanejo “é
antes de tudo um forte”, sua força nasce do combate incessante com a adversidade
do sertão: “A sua vida é uma conquista arduamente feita, em faina diuturna.
Guarda-a como capital precioso”17. Deparamos, assim, o exato oposto à vida fácil
de coletores favorecidos pelo paraíso.
2. O sertão como antiparaíso.
Diretamente, são apenas duas as referências em Os Sertões ao
eldorado, mas são elas suficientes para nos certificar do acerto crítico com que
Euclides percebe o tema. A primeira incidência do assunto enlaça, em torno de
Monte Santo, já a cumplicidade entre o mito e a cobiça voraz dos aventureiros
“arrebatados pela miragem das minas de prata”.18 Embora movida por fins bem
terrenos, esta empreitada nem por isso deixa de trilhar as sendas do sobrenatural
fascinada pelo mistério da serra solitária:
Além disso, atraía-os por si mesma, irresistivelmente.
É que em um de seus flancos, escritas em caligrafia ciclópica com
grandes pedras arrumadas, apareciam letras singulares — um A, um L e
um S — ladeadas por uma cruz, de modo a fazerem crer que estava ali e
não avante, para o ocidente ou para o sul, o el-dorado apetecido.19
17 OS., p. 215. 18 OS., p.245. 19 OS. ibidem.
8
Falhados, contudo, os intentos de descobrir as minas de prata, não
bastaram os sinais enigmáticos para reter ali a crendice dos forasteiros — “A serra
desapareceu outra vez entre as chapadas que domina ...”.
A segunda referência ao eldorado se prende à figura do missionário
Apolônio de Todi, que centralizará em Monte Santo seu trabalho de evangelizador
— “mais hábil que o Muribeca, decifrou o segredo das grandes letras de pedra,
descobrindo o el-dorado maravilhoso, a mina opulentíssima oculta no deserto...”20.
Euclides não esconde sua admiração diante da constância e tenacidade de Todi e do
“prodígio de engenharia rude e audaciosa” resultante de sua empreitada de
construir ali, na serra escarpada, uma extensa via-sacra. Da impressão que lhe
causa este rústico monumento de fé, relata-nos Euclides:
À medida que ascende, ofegante, estacionando nos passos, o observador
depara perspectivas que seguem num crescendo de grandezas soberanas:
primeiro os planos das chapadas e tabuleiros, esbatidos embaixo em
planícies vastas; depois as serranias remotas, agrupadas, longe, em todos
os quadrantes; e, atingindo o alto, o olhar a cavaleiro das serras — o
espaço indefinido, a emoção estranha de altura imensa, realçada pelo
aspecto da pequena vila, embaixo, mal percebida na confusão caótica dos
telhados.21
O sentido dessa primeira impressão será, porém, drasticamente alterado
quando, mais adiante, o tema for retomado. Aí Euclides vai distinguir entre a
fascinação de quem olha de longe e se deixa iludir da grandeza do monumento e a
inspeção de quem, próximo, descobre o prosaico acanhamento da vila sertaneja.
Visto de longe, prevalece a sedução fascinante — “Essa ilusão é empolgante ao
20 OS., p.247. 21 OS., p.247.
9
longe”. Avaliada de perto, reduzida às suas dimensões reais, isto é, desencantada, a
obra decepciona:
As capelinhas, tão brancas de longe, por sua vez aparecem exíguas e
descuradas. E a estrada ciclópica de muros laterais, de alvenaria, a
desabarem em certos trechos, cheia de degraus fendidos, tortuosa, lembra
uma enorme escadaria em ruínas. O povoado triste e de todo decadente
reflete o mesmo abandono, traindo os desalentos de uma raça que morre,
desconhecida à história, entre paredes de taipa.22
Ambas as remissões ao mito do eldorado concluem negativamente.
Nem a volúpia desbragada dos aventureiros descobre suas minas de prata nem a
expectativa grandiosa despertada de longe pela obra de Todi é satisfeita. Esta
segunda remissão, contudo, embora tão fadada à derrisão quanto a primeira,
demarca o ponto de saturação do mito. As ruínas da obra santa, que nos remetem à
vasta obra de conversão iniciada pelos jesuítas, refletirão a eminente ruína daqueles
a quem a empreitada missionária pretendia salvar. A esta raça não se abriram nem
as portas estreitas dos céus nem a passagem larga da história. Tal é sua sina que
uma inversão no tempo a abate antes de tê-la amadurecido — nem ainda entrou na
história e já se vê condenada sem apelação. Em suas raízes, esta raça, como a
compreende Euclides, é produto de exclusões e perseguições continuadas — a do
tapuia, expulso do litoral pelo português; a do vaqueiro, calcado pelo jugo dos
mandões locais; a do crente de um catolicismo mal assimilado, aterrorizado pelos
“capuchinhos vagabundos das missões”, etc. Tais exclusões e perseguições são
produtos necessários do projeto extrator que especializou o país numa “organização
puramente produtora” assentada, por isso mesmo, em distâncias sociais imensas.
O sertanejo é um produto, ou melhor, um subproduto, tão necessário
dessa engrenagem produtiva como o são o bagaço da cana, para o açúcar, e o
22 OS., p.375.
10
cascalho, para a extração do ouro. Em sua gênese remota estão as bandeiras, “sob
os dois aspectos que mostram, já destacados, já confundidos, investindo com a
terra ou com o homem, buscando o ouro ou o escravo”.23 Por trás de tudo, o
delírio da opulência maravilhosa do eldorado — a Serra das Esmeraldas,
Sabarabuçu, As Minas de Prata. Resulta por fim, como ironia histórica, que só na
forma do escárnio a imagem do paraíso se mostrará pertinente à “cidade sagrada”
dos jagunços: “Canudos, imunda ante-sala do paraíso, pobre peristilo dos céus,
devia ser assim mesmo — repugnante, aterrador, horrendo...”.24
Sérgio Buarque distingue na colonização ibérica entre a
exuberância do mito edênico nos espanhóis e seu relativo esmaecimento na
consciência portuguesa; esmaecimento que se deveria, paradoxalmente, sobretudo
a prevalência em Portugal de uma forma mentis arcaica, resistente “à especulação e
à imaginação desinteressadas do humanismo renascentista”.25 Restringindo nosso
comentário ao Éden lusitano, os índices mais característicos do paraíso terrestre
serão encontrados em três direções: 1. Na vida longeva dos que nascem no Brasil;
2. Na ausência aí de pestilências e enfermidades e 3. na temperança dos ares,
sempre amenos e bem temperados. Vistos em conjunto, esses três topoi designam
um sítio “onde tudo se alia para a satisfação da vista e a conservação da vida”.26
Dado que os dois primeiros itens se fundam sobre o terceiro, que os tornam
possíveis, e que precisamente sobre ele é que se efetivará a negativa mais
contundente avançada em Os Sertões, vale explicitá-lo com maior cuidado.
O tópico da amenidade do paraíso, que Sérgio Buarque segue até suas
fontes antigas, atravessará toda a Idade Média na forma que lhe dará Santo Isidoro
de Sevilha — a do non ibi frigus non aestus. A fórmula “nem frio nem quente”
contempla um estado em que estão excluídos os excessos tanto de um extremo
23 OS., p.184. 24 OS., p.308. 25 Cf., Holanda, S. B., Visão do Paraíso, p.130. 26 Cf., Op. Cit., p.277.
11
quanto de outro. Portanto, em que prevalece, acima de tudo, o equilíbrio
compreendido como “temperança” e “amenidade” dos ares. Para nossa
compreensão moderna esta combinação faz pensar antes de tudo em uma qualidade
agradável de clima. Em verdade, embora isso esteja aqui incluído, a referência
fundamental é outra. Ao menos desde Anaximandro, a filosofia grega pensou o
calor e o frio, num certo equilíbrio, como as duas fontes ou os dois princípios
geradores da vida.27 Esta compreensão receberá, na filosofia antiga, sua última
elaboração no pensamento de Aristóteles. Se o equilíbrio de calor e frio é o que, na
interpretação cristã da ciência grega, caracterizará o paraíso, não será por outro
motivo que o de serem aqueles os princípios determinantes da vida. Localizado o
paraíso terrestre na América, para aí vão ser transferidos aqueles atributos vitais.
Assim, já os encontraremos em Cristóvão Colombo que, seguindo “à risca o padrão
canônico”, classifica o clima ameno de Cuba como não sendo “ni frio ni
caliente”28.
Será de certo modo em contraste com essa visão, que como visão do
paraíso é antes uma visão do transmundo que uma visão de mundo, que se vai
erguer em Os Sertões, como queremos mostrar aqui, o contraste de um antimito ou
um antiparaíso — o sertão. Chamamos já a atenção do leitor para o fato de que, na
perspectiva do sertão, tanto se vai inverter o tópico da amenidade quanto, como
tese complementar, cancelar-se a visão puramente negativa em que os jesuítas
terminam por enquadrar o índio.29
A primeira parte da obra, A Terra, é a que mais enfaticamente nos
permite confrontar o mito edênico. A razão é que se o mito do paraíso terrestre
assenta sobre um pressuposto de equilíbrio — “bem temperado”—, o sertão
27 Cf. Hegel, G.W.F., Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, I, Werke 18, Frankfurt am Main : Suhrkamp Verlag, l971, 209-213. 28 Cf., Op. Cit., p.XX. 29 Note-se, de passagem, que o índio que irá entrar no composto do sertanejo, o tapuia, aparece já como um fugitivo dos moldes colonizadores portugueses — “Batidos pelo português, pelo negro e pelo tupi coligados, refluindo ante o número, os indômitos cariris encontraram proteção singular naquele colo duro da terra (...)”. Cf., OS., 197.
12
apresentado por Euclides exibe em todas as direções — em sua geologia, no seu
regime pluvial, no clima, em sua flora, na alternância das estações — um mesmo
fervilhar dos desequilíbrios. A referência última que é a vida ficará assim também
com os sinais trocados porquanto se o Éden é o sítio mais afeiçoado à vida, o sertão
será o lugar do martírio da terra e do homem:
O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior, mais ampla,
abrangendo a economia geral da vida.
Nasce do martírio secular da terra.30
Já nesta referência mais geral, vemos o contraste entre a premissa
teológica da amenidade — na qual tudo convergiria para “a conservação da vida”
— e a austeridade do sertão, ao modo de um martírio “abrangendo a economia
geral da vida”. Por aí, vislumbramos já os primeiros sinais de uma virada diante da
perspectiva do mito edênico. Antes de prosseguir, cabe-nos observar porém o
seguinte: se é bem verdade que esse confronto não é proposto de modo explícito,
temos que admitir ao menos que a posição assumida por Euclides vai radicalmente
na contra-corrente do ufanismo da época — “Todos cantam a sua terra”... “Minha
terra tem palmeiras”... “Auriverde pendão”... “Porque me ufano de meu país...”.31
Uma vez, porém, que nesse ufanismo espelha-se transfigurado o velho mito, a
radicalidade de Os Sertões conduz ao choque inevitável, não importando o quanto
tenha Euclides consciência de estar se batendo com o “quadro ideal” mais antigo
da colonização. Se entendemos sua posição como uma “virada”, é porque ela
atinge o núcleo mesmo de fundamentação do mito edênico. Em primeiro lugar,
aquela vida fácil dará lugar à ampla tortura “abrangendo a economia geral da
vida”. Ou seja: ao invés de favorecer e promover a floração da vida, atributos
principais da idéia de Paraíso Terrestre, o sertão a oprime e perverte e isso, é
preciso acrescentar, não de forma episódica ou marginal, mas de modo necessário,
visto que atinge-a em sua “economia geral”. Desse modo, defrontamos uma
30 OS., p.147. 31 Cf., Holanda, S.B., l985, p.xxiii.
13
inversão completa: ao invés da vida fácil, amparada pelo Éden, deparamos uma
vida continuadamente violentada pelas circunstâncias geográficas do sertão. Esta
inversão, por sua vez, assenta-se em outra, mais primária, que toca os nexos
lógicos de fundamentação do mito. Enquanto o pressuposto lógico do Eldorado é o
do perfeito equilíbrio das fontes geradoras da vida, calor e frio, que impede que se
verifiquem os extremos, a sylva horrida (selva horrível) vai ter por fundo o
desequilíbrio integral dos extremos de calor e frio.
Ao mesmo tempo espelha-se o regime excessivo: o termômetro oscila em
graus disparatados passando, já em outubro, dos dias com 35º à sombra
para as madrugadas frias.
No ascender do verão acentua-se o desequilíbrio. — Crescem a um
tempo as máximas e as mínimas, até que no fastígio das secas transcorram
as horas num intermitir inaturável de dias queimosos e noites enregeladas.
A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as
capacidades emissiva e absorvente dos materiais que a formam, do mesmo
passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso.
Insola-se e enregela-se, em vinte e quatro horas.32
Enquanto na amenidade prevalece sempre a uniformidade ou o equilíbrio,
no “regime excessivo” do sertão alternam-se abruptamente os extremos.
Desequilíbrio é justamente este revezamento súbito impondo à vida exigências
opostas e inconciliáveis.33 O desequilíbrio das temperaturas enunciado por
32 OS., p.103, Grifo nosso. 33 Falta-nos ainda um índice sistemático dos conceitos euclidianos mobilizados em Os Sertões. Fácil é perceber, pela leitura atenta da obra, que a noção de “desequilíbrio” — cuja definição mais apropriada é a de um “embater de tendências antagonistas” — acompanha todas as apreciações negativas de Euclides. Seja a unidade nacional, fracionada pelo desequilíbrio entre o litoral e o sertão, ou a constituição dos mestiços, a religiosidade sertaneja, o regime excessivo do clima do sertão, a figura do Conselheiro, a de Moreira César, a ação do “missionário moderno”, sempre que mostram estados antagônicos ou contribuem para acirrar antagonismos, Euclides os qualifica pela noção de “desequilíbrio”. Assim, por exemplo, o contrabater de tendências opostas — “da extrema brutalidade ao máximo devotamento”— vão compor os “desequilíbrios do estado emocional dos tabaréus”, que o missionário moderno viria agravar. Na maioria das vezes, e de modo mais essencial, a noção de desequilíbrio significa a convivência de opostos extremos, ou em
14
Euclides traz ainda uma particularidade agravante: a da intensidade crescente que
cava sempre mais o fosso entre as extremidades. Ora, se a vida se fortalece da
temperança e do equilíbrio entre calor e frio, o desequilíbrio e o conflito entre
ambos lhe serão danosos incidindo desastrosamente sobre sua economia geral34.
Para aprofundar esse ponto, façamos a comparação desses desequilíbrios com uma
passagem de Gandavo citada por Sérgio Buarque em sua obra. Segundo aquele
autor a “província de Santa Cruz”, tomada em sua totalidade, é “à vista mui
deliciosa e fresca em gram maneira: toda está vestida de mui alto e espesso
arvoredo, regada com as águas de muitas e preciosas ribeiras de que
abundantemente participa toda a terra, onde permanece sempre a verdura, com
aquela temperança da primavera” dos meses de abril e maio em Portugal. E
completa: “E isso causa não haver lá frios, nem ruínas de inverno que ofendam as
suas plantas, como cá ofendem as nossas. Em fim que assi se houve a Natureza
com todas as coisas desta Província, e de tal maneira se comedio na temperança
dos ares, que nunca nela se sente frio nem quentura excessiva”.35
O princípio que garante a exuberância dessa natureza — de “mui alto
e espesso arvoredo”36 — é o do equilíbrio das forças do frio e do calor, nunca
excessivos. Tal equilíbrio aparece na primeira vez como “temperança da
alternância ou em conjunto, que se repelem mutuamente sem, contudo, produzirem qualquer síntese. O modo em que se relacionam os antagonismo no interior do desequilíbrio é a inversão. Assim, na sociedade brasileira da época, Euclides descobre um progresso aos saltos “da máxima frouxidão ao rigorismo máximo” espelhando “incisivo contraste entre a sua organização intelectual imperfeita e a organização política incompreendida”. Dessa dinâmica bifronte — desequilíbrio — resulta a inversão: ao invés dos novos princípios erguerem ao seu nível a organização intelectual, deu-se “o fenômeno inverso: a significação superior dos princípios democráticos dacaía — sofismada, invertida, anulada”.,Cof., OS., 418, Grifo nosso. 34 Note-se que o desequilíbrio da terra nasce de desequilíbrios e se propaga em novos desequilíbrios: “Copiando o mesmo desequilíbrio das forças que trabalham a terra, os ventos ali chegam, em geral, turbilhonando revoltos, em rebojos largos”. Além disso, penetra o desequilíbrio até mesmo na “contextura íntima” da natureza inorgânica: “Vão do desequilíbrio molecular, agindo surdamente, à dinâmica portentosa das tormentas”. Cf., OS., p.104,88, Grifos nossos. 35 Cit. in Holanda, l985, p.294. 36 Hoje sabemos o destino que — seja através da extração madeireira, das queimadas para abrir espaço às lavouras, da utilização irresponsável do solo, etc. — coube a este “mui alto e espesso arvoredo”. Nessa remissão, bem estreita é a conexão entre a mitologia do Éden e o projeto produtivo da colonização. Cf. Dean, W., A ferro e fogo — A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira, São Paulo : Companhia das Letras. 2002.
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primavera” e na segunda como comedimento na “temperança dos ares”. Em
ambos os casos, o temperado é o que não se mostra nem excessivo nem
insuficiente. Segundo a fórmula, que apenas repete o “non ibi frigus et non aestus”,
nunca há aí “frio nem quentura excessiva”. Evidente que, havendo excesso de um
dos dois haveria insuficiência do outro, pois havendo demasiado calor seria por
deficiência de frio para contrabalançá-lo. Se o perfeito equilíbrio de calor e frio, a
amenidade, é o que há de mais benéfico à vida, é porque a vida é em si mesma
equilíbrio.37 Euclides da Cunha não abandona a compreensão de que esse
equilíbrio é o mais próprio à vida. O conserva, porém, para surpreender em seu
oposto, isto é, no espaço dos desequilíbrios ecológicos do sertão, a situação mais
desfavorável à vida.
Dada a prevalência dos extremos conflagrados, o centro interpretativo se
deslocará para a ação conflitiva dos desequilíbrios. E não será o caso, todavia, de
um desequilíbrio estático, morto ou fixado, mas de uma desestabilidade que cresce
e se intensifica no interior de ciclos — o das estações e o das secas. Da
estabilidade sempre contínua dos ares temperados — “onde permanece sempre a
verdura, com aquela temperança da primavera”, segundo as palavras de Gandavo
—, passamos a uma alternância sempre mais intensa de opostos criticamente
extremados. Esta alternância potencializa ainda sua violência porquanto não se
processa gradualmente, de pouco em pouco, mas cai como um raio, de modo
abrupto ou, segundo os termos empregados por Euclides, “de improviso”, “de
chofre”, “de súbito”. O paroxismo da variação se dá, contudo, em momentos em
que tudo se inverte pelo avesso e as noites refervem mais que os dias.
Ocorrem, todavia, variantes cruéis. Propelidas pelo nordeste, espessas
nuvens, tufando em cúmulos, pairam ao entardecer sobre as areias
incendidas. Desaparece o sol e a coluna mercurial permanece imóvel, ou,
37 Como contraprova desse benefício do equilíbrio para a vida, lembremos, que segundo a teologia cristã as almas perdidas devem penar nas “chamas do Inferno”, lugar em que o excesso e o desequilíbrio pune antigos excessos e desequilíbrios.
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de preferência, sobe. A noite sobrevém em fogo; a terra irradia como um
sol escuro (...).38
A dinâmica do desequilíbrio é tal, como se vê, que o próprio “regime
excessivo” se abre para excessos ainda maiores e para maiores disparates — noites
em fogo; a terra como um sol escuro. Em nada vemos aqui uma natureza generosa
e acolhedora, afeita à potencialização da vida. Ao contrário, tanto mais caminhe
para os períodos das secas, tanto mais agrava “todas as angústias dos martirizados
sertanejos”.39 No extremo, o sertão devém inteiramente hostil à vida:
A dureza dos elementos cresce, entretanto, em certas quadras, ao ponto
de os desnudar: é que se enterroaram há muito os fundos das cacimbas,
e os leitos endurecidos das ipueiras mostram, feito enormes carimbos,
em moldes, os rastros velhos das boiadas; e o sertão de todo se
impropriou à vida.40
No limite, portanto, em lugar da natureza sempre benéfica e
constantemente cingida à vida, lidamos com uma região que, já normalmente
entregue aos “regimes excessivos”, conduz a tal ponto seu extremismo de
desequilíbrios que torna-se totalmente imprópria à vida. Nesta condição, a terra,
que Euclides chamará de elemento primordial da vida, torna-se no oposto, em uma
oficina da morte, da qual o sertanejo, para não perecer, tem que fugir nas levas de
“retirantes”.
Não resiste mais. Amatula-se num daqueles bandos, que lá se vão caminho
em fora, debruando de ossadas as veredas, e lá se vai ele no êxodo
penosíssimo para a costa, para as serras distantes, para quaisquer lugares
38 OS., p.104. 39 OS., p.104. 40 OS., p.123.
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onde não o mate o elemento primordial da vida.41
O jogo dos desequilíbrios conclui, pois, nessa inversão completa em que o
“elemento primordial da vida” torna-se mortal, já não admitindo qualquer
resistência. Mas se agora o sertanejo “não resiste mais”, isto nos mostra que toda
vivência e convivência no sertão é regida pelo esforço adaptativo que Euclides
denomina “resistência”. Ora, tal resistência não será o contrário daquela fácil e
gratuita apropriação que se liga ao mito do Éden? Notemos que a idéia da vida fácil
tornou-se tão impositiva que mesmo depois de Os Sertões, em um autor do porte de
Oliveira Vianna, reaparece intacta em seu pressuposto da amenidade:
Sob a amenidade dos nossos climas tropicais a vida se torna empresa
fácil. (...) Não há aqui intempéries. Em todas as estações derrama-se um
perpétuo encanto primaveril. “O sol realiza seu curso numa temperatura
uniforme, — diz Anchieta —de modo que nem o inverno causa horror pelo
frio, nem o verão infecciona pelo calor”. Sob branduras tais, uma choça de
sapê, de fácil improvisação, uma tarimba ou um leito de palha, um fato de
algodão tosco, algumas achas de lenha para a panela — nada mais é
preciso para o abrigo e o agasalho do homem. Em derredor, nas frutas
silvestres, nos legumes variados, nascidos espontaneamente, na caça
abundante, no pescado dos rios, há para ele um banquete permanente. Com
o auxílio da pequena roça de mandioca, de milho, de feijão, completa o
cardápio da sua alimentação quotidiana. Nada mais precisa. Mais do que o
seu esforço, é a natureza tropical, com sua prodigalidade, que o sustenta.42
Ao projetar o sertão como o teatro dos desequilíbrios extremos, Euclides
institui uma contraditio integral diante das perspectivas da vida fácil e boa, sem
esforço. Então, talvez aqui, tenhamos que reavaliar uma tendência da crítica que é
essa de ver na apresentação do sertão só um determinismo geográfico. Sem deixar
41 OS., p.237. 42 Cf. Populações Meridionais do Brasil, Brasília : Câmara dos Deputados, l982, p.138, Grifos nossos.
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de ser também isso, é ainda muito mais: é elaboração lógica, refutação
antiteológica, princípio de método, fundamento para a crítica ideológica, etc.
Embora em oposição completa ao que Sérgio Buarque chamou de quadro ideal da
edenização — em analogia com os “tipos ideais” de Max Weber —, será também
um quadro ideal, isto é, enquanto uma figuração típica do antiparaíso. Nessa
condição, o sertão torna-se um princípio hermenêutico geral, em vista do qual
arrumam-se as diversas significações. Havendo, portanto, que estabelecer a
primazia da primeira parte da obra, A Terra, sobre as demais, não seria o
determinismo geográfico, mas antes sua função lógica e hermenêutica que
destacaríamos.
Entre a natureza divinamente pródiga, do mito, e a natureza torturante
de Euclides, não se deve ver uma diferença “natural”, antes se trataria de uma
diferença sobrenatural. Lembremos aqui a expressão de Wilson Martins na
referência à “geografia fantástica do Paraíso Terrestre”.43 Enquanto oposta a esta
“geografia fantástica”, a geografia de Euclides exibirá um fantástico próprio,
inscrito em sua integral constituição pelas disparidades do desequilíbrio. Talvez se
possa mesmo dizer que tal combate à antiga geo-teo-logia se faz, antes de tudo,
dentro do horizonte dos seus termos, agora invertidos. Aliás, é o próprio Euclides
quem nomeará a inversão abrupta entre os extremos no sertão como uma “mutação
fantástica”.44 O que exatamente constitui o elemento “fantástico” em cada
mutação? Não outra coisa senão as variações abruptas e extremas, isto é,
disparatadas, próprias da lógica dos desequilíbrios. Fantástico é “a alternativa da
alturas e quedas termométricas repentinas”, o “jogar de dilatações e contrações”, os
“verões queimosos” sucedidos diretamente por “invernos torrenciais”. Em grande
perspectiva, o sertão é descrito, num primeiro movimento, como desgastado ou
velho demais para a vida. Sua paisagem nos defronta à ruína e à degradação — 43 Cf., Martins, W., Especificidades gilbertinanas, in Freyre, G., Novo Mundo nos trópicos, Rio de Janeiro : Topbooks, 2000, p.12. Sérgio Buarque, ao que parece, foi o primeiro a utilizar a expressão “geografia fantástica” e empregando ainda, em outro lugar, a expressão “geografia mítica”. Cf. Visão do Paraíso, Pref. à 2ª Ed., e cap. III, Peças e pedras. 44 OS., p.135, Grifo nosso.
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“majestosas ruinarias de castelos”, “velhíssimas chapadas corroídas”, leitos
“abertos em caixão”, “ribeirões esgotados”. Em seguida, numa guinada abrupta,
vemos o sertão surgir, de acordo com a sugestão de Emmanuel Liais, como recém
emerso do mar e, assim, como uma “região incipiente [que] ainda está preparando-
se para a vida”.45 “Velho demais” ou “jovem demais”, nos dois casos os sertões se
afirma como impróprio à vida. Nos dois casos, o sertão é o extremo, mas a vida, já
indicamos, se potencializa no equilíbrio e na temperança. Mas, então, o sertão é o
inferno, isto é, o antípoda perfeito do Éden.
Costumamos representar o inferno como o que está embaixo da terra. Na
verdade o latim infernus significa antes a região mais baixa, ou seja, a menos
dotada de atributos superiores. Isto percebemos já pelo parentesco morfológico
entre as palavras inferno e inferior. Ora, a superioridade da região superior — o
Éden —, nos quadros teológicos do cristianismo medieval, encontra sua
determinação essencial justamente na amenidade. Se, então, o que caracteriza a
amenidade é o equilíbrio, o inferno será o lugar da extrema intemperança, isto é,
dos máximos desequilíbrios. Nesse sentido, devemos sublinhar que a palavra
“inferno” significa também o que é extremado. É o que aparece, por exemplo, na
expressão francesa d’enfer que tanto significa infernal quanto excessivo. O vínculo
truncado entre o inferno e o paraíso se define claramente no fato de que o primeiro,
como lugar dos excessos, se apresenta na confluência excessiva de calor e frio.
Assim o representou a teologia medieval e, junto dela e também posteriormente, a
literatura. Já Dante, se distribui entre os círculos do inferno torturas que têm como
instrumento o fogo, retrata seu círculo mais interior, este ocupado pelos traidores
extremos — Judas, o traidor de Jesus; Brutus e Cássio, assassinos de Júlio César e
Lúcifer, o maior de todos os traidores —, como formado por um gelo absoluto. Na
45 Como é sabido, desde Buffon e sua tese da “debilidade” ou “imaturidade das Américas”, a mentalidade científica européia tenderá a compreender o novo continente ou como insuficientemente maduro para a promoção da vida ou como exausto e impotente para o mesmo fim. Embora pareça assim divergir da anterior edenização, no fundo o problema permanece o mesmo pois, em ambos os casos, se conclui na inferioridade irremediável do índio americano. Ver quanto à Europa Gerbi, A., O Novo mundo — História de uma polêmica (l750-l900), São Paulo : Companhia da letras, l996, p.20-22. Em relação à demonização do índio brasileiro pelos jesuítas Cf., Visão do Paraíso, p.297-303.
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literatura européia a representação do inferno como lugar de extremação de calor e
frio, portanto, como região absolutamente inferior, pode ainda ser encontrada no
Doutor Fausto, de Thomas Mann, no diálogo entre Adrian Leverkühn e o demônio.
Este apresenta assim a essência, ou melhor, a quinta-essência do inferno:
A “sua quinta-essência, ou se preferes outro termo, sua peculiaridade
característica consiste em deixar aos seus habitantes unicamente a
escolha entre o mais extremo frio e um calor tão intenso que até poderia
derreter granito. Entre esses dois estados, correm eles de cá para lá,
ululando, pois, enquanto se encontram num deles, o outro sempre se lhes
afigura celestial alívio. Porém imediatamente, também, esse se tornará
insuportável, na acepção mais infernal do adjetivo. Os extremos que
nisso se manifestam deverão agradar-te”46.
O exame da secção de Os Sertões intitulada “Uma categoria geográfica
que Hegel não citou”, permitirá esclarecer um pouco mais a aproximação que
estamos tentando estabelecer aqui. Nela Euclides repassa a classificação geográfica
proposta pelo filósofo alemão e assinala sua insuficiência para determinar os
sertões do norte. As três categorias discriminadas por Hegel seriam as “estepes de
vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente
irrigados; os litorais e as ilhas”.47 Tais categorias, das quais Euclides não discute a
pertinência em geral, se mostram insuficientes para determinar o caráter próprio do
sertão:
46 Cf., Mann, T., Doutor Fausto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, l984, trad. Herbert Caro, 2ª ed., p.334. Notemos que no pararelo que traça entre o pacto de seu personagem central com o demônio e o pacto da Alemanha com Hitler, Thomas Mann concede ao inferno sentido histórico, e político, enquanto o desloca de sua inscrição estritamente teológica. Assim, traduzida em forma literária, e, em certa medida, profanada, a velha noção cristã reencontra a vitalidade e a atualidade que, no espaço da religião, lhe haviam sido subtraídas pela incredulidade moderna. O fato é que não precisamos crer na literatura, nem em qualquer outro domínio da arte, para que sejamos suscetíveis aos horrores, e aos encantamentos, elaborados por ela. 47 OS., p.133.
21
Aos sertões do norte, porém, (...) falta um lugar no quadro do pensador
germânico.
Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira
divisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que são parte essencial da
segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes... 48
O desequilíbrio que fica assim identificado, oscilando através de
“mutações fantásticas”, é decisivo para a caracterização do sertão como sylva
horrida. Se o sertão, nas quadras favoráveis, exibe uma vegetação
maravilhosamente exuberante, o estado mais característico de sua flora, é, porém,
aquele que se apresenta no estio. É quando então prolifera a flora caprichosa. A
apresentação dessa flora, um ponto literário alto de Os Sertões, imprime fortemente
no leitor a impressão daquela “visão do inferno” referida acima. Não cabendo
repeti-la aqui, fiquemos apenas com as expressões mais características da narrativa
em que sobressaem o sinistro e o demoníaco daquela vegetação: os cabeças-de-
frade — “deselegantes e monstruosos melocactos de forma elipsoidal”, oferecem a
imagem “de cabeças decepadas e sanguinolentas jogadas por ali, a esmo, numa
desordem trágica”; os quipás — “reptantes, espinhosos, humílimos, trançados
sobre à terra à maneira de espartos de um capacho dilacerador”; as palmatórias-do-
inferno — “opúntias de palmas diminutas, diabolicamente eriçadas de espinhos”; e,
por fim, como uma síntese, a catanduva — “mato doente, da etimologia indígena,
dolorosamente caída sobre seu terrível leito de espinhos!”49
Esta procissão de disparidades e desequilíbrios — a começar pela
oscilação abrupta dos extremos de calor e frio —, faz justa, na compreensão de
Euclides, a designação de Martius para essa região: sylva horrida. A caracterização
desta selva horrível, em cuja designação ressoa o primeiro verso da Divina
48 OS., p.134. 49 OS., p.124,125.
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Comédia — “mi ritrovai per uma selva oscura”—, se completará então, para fixar
seu absurdo, com a “frase paradoxal” de Saint-Hilaire: “Há, ali, toda a melancolia
dos invernos, com um sol ardente e os ardores do verão”. Alcançamos assim este
cume do desequilíbrio em que os aspectos antagônicos inexplicavelmente se
irmanam e acumpliciam.
3. A noção de desequilíbrio como fundamento da crítica.
Certamente relutaremos em ver na expressão euclidiana do inferno algum
vestígio teológico, mesmo que com intenção antiteológica. Estamos hoje mais
propensos a tomar a obra principal de Euclides como uma construção entre literária
e científica. Compreendemos sua ciência, contudo, através dos traços marcantes
característicos da época — naturalismo, racismo, positivismo, determinismo
geográfico, etc. Mas caberia notar que, embora faça da ciência um instrumento de
sua obra, Euclides demarca sempre um certo distanciamento entre seus
procedimentos e aqueles que se poderia dizer rigorosamente científicos.
Repassemos rapidamente os dois aspectos principais. O primeiro diz respeito à
insuficiência de dados que servissem de base para o procedimento científico.
Assim, em relação à geologia do sertão alerta-nos Euclides para a “escassez de
dados permitindo uma dessas profecias restrospectivas”50; sobre o clima da região
deplora que nos faltem “as observações mais comuns”51 e quanto as causas
envolvidas no fenômeno das secas é dito que “só serão definitivamente
sistematizadas quando extensa série de observações permitir a definição dos
agentes preponderantes do clima sertanejo”.52 Não obstante, e esse é o segundo
aspecto do distanciamento indicado, Euclides se aventura a construir hipóteses para
cada um daqueles domínios. Tais hipóteses serão, contudo, por ele mesmo
relativizadas em seguida e até mesmo desqualificadas por seu caráter fantasioso.
Em relação à geologia, a hipótese avançada é avaliada como “absolutamente
instável” porquanto nascida de uma retrospecção em que “a fantasia se insurgiu
50 OS., p.91. 51 OS., p.101. 52 OS., p.112.
23
contra a gravidade da ciência”53; Sobre o clima sertanejo será dito que o “que se
segue são vagas conjecturas”54 e quanto ao fenômeno da seca sua discussão será
apresentada como um mero “desfiar de conjecturas”.55 Se é assim em relação à
geografia, o mesmo acontecerá quando Euclides tratar do homem. Aqui se propõe a
trabalhar “sem método, despretenciosamente, evitando os garbosos neologismos
etnológicos”.56
Evidentemente que esta ciência — sem método, carente de dados,
calcadas em hipóteses instáveis — só pode distar muito “do rigorismo de processos
clássicos”.57 Perdeu-se com isso? Considerando que tudo, ou quase tudo, dessas
ciências do determinismo geográfico e do determinismo racial, está hoje posto na
conta do mito, depois de suas trágicas conseqüências históricas — o colonialismo,
o nazismo, etc.—, a resposta nos parece dever ser negativa. Em verdade, o relativo
distanciamento da ciência, ou o uso da ciência em registro desviado, permite à
Euclides firmar uma perspectiva efetivamente crítica.58 Em primeiro lugar, a crítica
se instala já na determinação da razão de ser da própria insuficiência de nossas
possibilidades científicas. De fato, se escasseiam as observações mais comuns é
“mercê da proverbial indiferença com que nos volvemos às coisas desta terra, com
uma inércia cômoda de mendigos fartos”.59 O acanhamento e as limitações da
ciência vigente não obstrui a crítica pois esta faz desta insuficiência também um
objeto de sua reflexão. E o faz ressaltando uma ambivalência, isto é, um
desequilíbrio nascido do parasitismo — “mendigos fartos”. Em segundo lugar,
sublinhando as limitações da prática científica possível no país, Euclides
53 OS., p.138. 54 OS., p.102. 55 OS., p.114. 56 OS., p.204. 57 OS., p.105. 58 A abstração, o subjetivismo, a indisciplina mental, o apego ao ornamento, que se fixa na exterioridade, isto é, nos “garbosos neologismos”, são denunciados por Euclides como vícios correntes da ciência então praticada no país. Aquilo que diz de alguns antropólogos locais — que “arquitetam fantasias que caem ao mais breve choque da crítica” — pode ser estendido ao conjunto da ciência à qual Os Sertões, como crítica, se opõe. Cf., OS., p.155,154, Grifo nosso. 59 OS., p.101.
24
denunciava o pedantismo da ciência meramente ornamental — essa que se valia
“dos garbosos neologismos” — e ganhava distância dela.
Ao apontar nosso deslocamento diante do sistema da ciência, Euclides
abria espaço para situar nossa posição diante da realidade. O simultâneo estar em
falta (“mendigos”) e em excesso (“fartos”) que nos caracteriza, quando vivendo à
míngua nos recobrimos com o manto dourado da civilização de empréstimo,
designa qual tipo de realidade? Ou melhor: que modalidade de irrealidade?
Podemos perguntar de outro modo: se a vida parasitária conduz à bárbara violência
da guerra de Canudos e se esta mostra-se como “um refluxo para o passado”, que
significa esse retorno à vida do que deveria permanecer morto e enterrado na
história — a violência, a crueldade, o crime? Ou: como compreender esta invasão
do presente pelo passado sem ver aí a invasão da história por um exército de
fantasmas? Não à-toa Euclides elegerá como instrumento de sua ciência, servindo a
compensar seu “misérrimo arsenal científico”, um higrômetro singular: o cadáver
do soldado há três meses morto e ainda insepulto — “Volvia ao turbilhão da vida
sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho
revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares”.60
A fantasmagorização da realidade se mostrará tanto mais evidente quanto
mais assumirmos a perspectiva integral de Os Sertões. Se este conclui declarando
que com a aniquilação de Canudos destrói-se a rocha viva da nacionalidade, então
que vida poderia restar à nação, perdido o seu centro, afora a errância inconsistente
dos fantasmas? Mas esta conclusão em muito se antecipa porque, desde o
insulamento e o esquecimento do sertão, já se prepara o desfecho final. Assim,
muito antes das conclusões, vemos já Antônio Conselheiro aparecer como um
“mal-assombrado” e Canudos, sede de uma “sociedade morta”, circundado por
“uma natureza morta”, erguer-se sobre uma “vala comum enorme”. Aliás, se a
natureza morta que cerca Canudos se deixa tomar como “um índice sumariando a
60 OS., p.107.
25
fisiografia dos sertões do norte”,61 então o caráter de “natureza morta” dirá respeito
à essência íntima do sertão. Com isso voltamos ao ponto da natureza infernal do
sertão. Do mesmo modo que a proposta salvífica das missões conclui na
aniquilação, o emblema do paraíso terrestre é revertido por Euclides numa visão do
inferno. Esta visão, porém, antes de ser teológica é crítica.
A primeira modalidade de contestação intelectual exercida na América
proveio da teologia — de um Bartolomé de las Casas, para tomar o exemplo mais
eminente. O fato, porém, é que tendo se apresentado inicialmente sob as vestes da
edenização, a percepção teológica “desde o começo”, como bem advertiu Sérgio
Buarque, desdobrou-se também em “uma imagem negadora dessa mesma
fantasia”.62 No domínio americano da coroa portuguesa, como mostrou Laura de
Mello e Souza, tal desdobramento assumiu os traços de uma demonização que
incidiu muito enfaticamente sobre as imagens dos índios, dos negros e dos
mestiços63. Não obstante, essas duas compreensões, dissimétricas e opostas,
permaneceram ao mesmo tempo complementares e divorciadas. Ambas
justificavam-se por si. Uma, edenizando a terra, servia ao projeto extrator
legitimando-o através do dom gratuito; a outra, satanizando parte de seus
habitantes, funcionava racionalizando a intervenção metropolitana e seus desígnios
de salvação e exploração.64 Isto podia seguir nessa disjunção porque, como viu
Boxer, o projeto europeu para os povos extra-europeus assentava numa dualidade
de princípio — “o desejo de salvar as suas almas imortais associado com o anseio
de escravizar os seus corpos vis”.65 Na medida em que esse impulso permaneceu
61 OS., p.109. 62 Cf.Buarque, S.B., l985, p.xxv. 63 Cf., Mello e Souza, L., Inferno Atlântico — demonologia e colonização, Séculos XVI-XVIII, São Paulo : Companhia das Letras, l993. 64 Lembremos que esta oscilação não esteve ausente da mentalidade da colonização hispânica. Embora tenham, numa direção totalmente desconhecida pelos jesuítas no domínio português, exaltado o índio, isto mesmo os levou a introduzir aí a alternância compensatória do divino e do diabólico. Os espanhóis, diz Sérgio Buarque, “tenderam a ver os índios sob o aspecto, ora de nobres salvajes, ora de perros cochinos”. Cf., Visão do Paraíso, p.298, 299. 65 Cf., Boxer, C. R., O império colonial português (l415-1825), Lisboa : Ed. 70, l981, p.109. Porquanto se mantém comprometida com o expansionismo europeu, a teologia, mesmo quando se exercita na constestação, não rompe o pressuposto do equilíbrio e não chega a tornar-se crítica.
26
impensado — e assim exigia para sua eficácia —, igualmente mantiveram-se
dissociadas as tendências de edenização e demonização. Não chegou, nem podia
chegar, a inteligência européia a pensar reflexiva e sistematicamente as duas pontas
em unidade. Talvez porque, se o fizesse, se veria obrigada a trazer à luz o
paradoxo, configurado em sua disparatada compreensão da América, de um
“paraíso habitado por demônios”. Mas, fosse assim, como seria o Éden o sítio mais
favorável à vida se os que se criam à sua sombra tornam-se, por fim,
endemoniados? A vigência deste paradoxo é essencial para o projeto extrator
português — ou talvez, em termos mais amplos, ibérico, uma vez que vale
igualmente para a colonização espanhola — porquanto justifica, ao mesmo tempo,
a exploração econômica e a exploração teológica (a missão evangélica) e concede
espaço, em sua extensa plasticidade, tanto a proteção e exploração “paternal” dos
indígenas pelos padres, quanto ao seu extermínio ou escravização pelos
bandeirantes.66
É de se crê que de muitos modos esse dualismo chegou impensado aos
nossos dias. Não fosse assim, de onde nasceria a anedota, sempre em voga, que Exemplo mais extremo dessa impossibilidade encontra-se no próprio Bartolomé de las Casas que, como escreveu Borges, “compadeceu-se dos índios que se extenuavam nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas, e propôs ao imperador Carlos V a importação de negros, que se extenuassem nos laboriosos infernos das minas de ouro antilhanas”. Cf. J. L. Borges, “O Atroz Redentor Lazarus Morell”, in Obra Completa, São Paulo : Globo, l998, Vol. I, p.319. De modo semelhante, Antônio Vieira, se fez a crítica da escravização do índio, nem por isso viu maior dificuldade em admitir e ressaltar o sentido da escravização dos negros. Cf., Bosi, A., Dialética da colonização, São Paulo : Companhia das Letras, p. 66 Há que considerar que, tirando as lições das primeiras experiências frustradas de dominação do novo território, serão os jesuítas que vão formular o projeto de colonização por fim adotado pela coroa portuguesa. Deste projeto, umas das vigas mestras é precisamente a escravização dos índios. A formulação deste projeto coube ao Pe. Manuel da Nóbrega, exatamente uma das principais figuras dos jesuítas aqui atuantes no período inicial da colonização: “Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos [subjugados sem ser nas guerras] e escrúpulos [dos missionários] porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa, e terão serviço e vassalagem dos índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S.A. terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que não haja muito ouro e prata”. Cit. in Dias, Carlos A., “O indígena e o invasor — A confrontação dos povos indígenas do Brasil com o Invasor Europeu, nos séculos xvi e xvii”, in Encontros com a civilização brasileira, Número 28, Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, l981, p.209. Lembremos que Nóbrega é também um dos promotores da edenização, tendo escrito em 1549 na Bahia que ali o inverno “não é nem frio nem quente”. Cit. in Buarque de Holanda, S., Visões do paraíso, Pref. à 2ª Ed.
27
reza que Deus, questionado por dar ao Brasil um clima e uma terra excepcionais,
respondeu ao interlocutor: “Aguarde para ver a gentinha que eu vou pôr lá” ? Este
é um modo de reeditar o Éden natural, razão de orgulho, e o inferno social, origem
de muitas vergonhas. A dispersão entre estas duas tenazes, a do orgulho e a da
vergonha, forma talvez a camada mais interior, mais íntima e mais torturante de
nossos modos de consciência e inconsciência. O que ainda mais se agrava quando
consideramos que é a partir delas que abrimos nossos horizontes históricos. Assim,
por exemplo, na propaganda republicana Sérgio Buarque surpreende um
“incitamento negador”: “o Brasil devia entrar em novo rumo, porque “se
envergonhava” de si mesmo, de sua realidade biológica”67. A mesma vergonha
Murilo de Carvalho vai encontrar na raiz da reforma da cidade do Rio de Janeiro
por Pereira Passos: “No Rio reformado circulava o mundo belle-époque fascinado
com a Europa, envergonhado do Brasil, em particular do Brasil pobre e do Brasil
negro.”68 As duas vertentes, a do fascínio e a da vergonha, se repartem conforme
seus objetos se inscrevam numa ou noutra direção da mitologia. Podemos nos
orgulhar das florestas, da extensão do território ou da democracia racial, porquanto
se inscrevem do lado da edenização; devemos nos envergonhar dos negros, das
favelas, da violência que formam ao lado da demonização.
José Murilo observa que, com “poucas exceções, como o mulato Lima
Barreto e o caboclo Euclides da Cunha, os literatos [dos primeiros anos da
República] se dedicaram a produzir para o sorriso da elite carioca, com as antenas
estéticas voltadas para a Europa”69. O fato é que esses dois autores pensam para
além da dinâmica de vergonha e fascinação. Ou melhor, eles pensam justamente as
forças que nos fazem marchar entre a vergonha e a fascinação.70 Para ficar na parte
67 Cf. Buarque, S.B., l985, p.125. 68 Cf. Carvalho, J. M., Os bestializados, São Paulo : Companhia das letras, l99l, pp.40,41. 69 Idem, p.40. 70 Não devemos desconsiderar o fato que eles mesmos, o mulato Lima Barreto e o caboclo Euclides da Cunha, foram enquadrados na categoria da vergonha. E vale recordar aqui que o Barão do Rio Branco, tão empenhando em embranquecer o país aos olhos da Europa, parece ter imposto barreiras à ascensão dos tipos desviantes, entre eles Euclides: “Essa sua preocupação estendia-se à figura e à apresentação dos homens, parecendo explicar o fato de nunca ter aproveitado Euclides da Cunha — em certa época tão desejoso de ir à Europa que pensou ingenuamente em ser professor em Paris —
28
que nos toca, é já na “Nota Preliminar” a Os Sertões que Euclides declara seu
repúdio ao fascínio verberando contra os que vivem “parasitariamente à beira do
Atlântico dos princípios civilizadores elaborados na Europa”. Romper com essa
situação de “mendigos fartos” é condição para fazer o trabalho de pensamento que
até então restara impossível. É que edenização e demonização são perspectivas
impostas desde o início pelos modos de percepção gestados na Europa. Note-se que
precisamente aqueles mestiços tão difamados pela satanização européia serão,
numa inversão então quase inconcebível, quando mal se cumpriam cinco anos da
derrota de Canudos, apresentados por Euclides na Nota Preliminar como
“extraordinários patrícios”.
Essencial, se queremos situar Os Sertões, é compreender que nele a
articulação de edenização e demonização é surpreendida e conduzida pela primeira
vez a uma reflexão temática. O sentido do paradoxo, que Euclides sustenta ao
longo de centenas de páginas, nasce precisamente da imbricação e permanente
reversão das perspectivas de paraíso e inferno. Esta conexão, por sua vez, só se fez
possível com base na noção de desequilíbrio.71 Enquanto as perspectivas teológicas
oscilaram, sem qualquer unificação, entre o paraíso e o inferno, ora louvando um
ora condenando o outro, Euclides os vê acumpliciados. Assim, se o sertão é, como
pretendemos ter mostrado, a profanização geográfica do infernus, nele porém não
estará ausente o paraíso — “E o sertão é um paraíso...”72 A noção de desequilíbrio,
um conceito paradoxal, vive justamente da convergência conflituosa de
divergências. Por isso, Euclides pôde defini-la como “embater de tendências
antagonistas” ou como “jogo permanente de antíteses”.73 É nisso que reside a
e Enéias Martins, senão em missões sul-americanas”. Cf., Freyre, G., Ordem e Progresso, Rio de Janeiro : J. Olympio, 4ª ed., l974, p.cl. 71 Lembremos que isso se faz contra a tendência patriótica então corrente de esconder as vergonhas e ressaltar antes a homogeneidade e o equilíbrio da nação. Nesta direção caminha a seguinte reflexão de Joaquim Nabuco: “A nossa natureza está votada à indulgência, à doçura, ao entusiasmo, à simpatia, e cada um pode contar com a benevolência ilimitada de todos ... Em nossa história não haverá nunca Inferno, nem sequer Purgatório”. Ao reclamar o equilíbrio, e reeditar assim a mitificação, tais compreensões da nacionalidade reatam com a teologia. Cf. Joaquim Nabuco, Minha Formação, Rio de Janeiro : W. M. Jackson editores, 1948, p.4, Grifos nossos. 72 OS., p.130. 73 OS., p.200.
29
distância enorme de Euclides com respeito a outros ensaístas do período — ter
feito o desequilíbrio primar continuamente sobre às prerrogativas, até então
exclusivas, do equilíbrio. Nele não há lugar para a reversão inciente que diz “ora
isto...ora aquilo”, sem unir as duas pontas. Sua direção é sempre a da totalidade,
tanto a social — que aponta a cisão na unidade nacional entre o litoral e o sertão —
quanto a histórica — que discerne entre a herança prejudicial do passado (a
Colônia) e as possibilidades muito problemáticas do futuro (a Nação).74
Ao unir as duas pontas, desligadas na visão teológica, Euclides abre o
caminho da investigação e da crítica. Enquanto prevalece o par vergonha/orgulho,
resta um domínio inteiro da realidade que não é lícito iluminar, devendo antes ficar
sob o abrigo da dissimulação75. Como é bem sabido hoje, o domínio da
dissimulação não conforma apenas nossos limites cognitivos, mas investe-se
também em limites sociais e políticos. Nessa direção, lembremos a política de
74 Já se salientou o papel de Tobias Barreto na demolição religiosa e filosófica nas últimas décadas do século XIX. Seria preciso ver, o que não nos vai ocupar aqui, o quanto seus ataques ao catolicismo em geral e aos jesuítas, de forma especial, preparam o terreno para a desteologização praticada por Euclides da Cunha. Aqui queremos apenas assinalar que seu germanismo, que para os historiadores das idéias no Brasil costuma aparecer como traço de uma personalidade exótica, pode e deve ser aproximado de sua repulsa ao catolicismo. O que lhe importa, sobretudo, é a Alemanha como o país da difusão do protestantismo e, junto com ele, do empenho renovador da cultura moderna. Tobias destacará, neste sentido, “o fato notável de que, no período clássico da literatura alemã, a direção da vida espiritual tocou exclusivamente a protestantes, posto que quase metade do país fosse de católicos”. Cf., Barreto, T., “Ensaio de pré-história da literatura clássica alemã” in Estudos alemães, Ed. do Estado de Sergipe : Sergipe. Obras completas, vol. VIII. 1926. p. 103. De modo mais nítido, se pode apreender a opção pela cultura e a língua alemãs como avessa às tendências do pensamento jesuíta na passagem seguinte: “se pode inferir que a repugnância, que ainda hoje muita gente, aliás pretenciosa de cultura, mostra ter à língua de Kant, não é mais nem menos do que uma repercussão inconsciente deste velho horror jesuítico, para com a língua de Lutero! A origem de tal sentimento, eu creio, não faz muita honra aos atuais germanófobos”. Idem, p. 105. Seria interessante inventariar as diversas direções em que opera o sistemático combate de Tobias Barreto ao catolicismo no país e suas repercussões no pensamento brasileiro do período. Aliás, quanto a este ponto, ressaltemos que falha completamente a avaliação de Cruz Costa ao garantir que em nossos padres “nunca houve, em geral, a agressividade e intolerância que encontramos em outros povos”. Esta idealização, que encobre e esquece o papel dos religiosos na justificação e manutenção do regime escravista por quatrocentos anos, é ainda um modo de recriar motivos edênicos. Cf. Cruz Costa, J., Contribuição à história das idéias no Brasil, Rio de Janeiro : José Olympio. 1956. p. 119-120. 75 Recorde-se aqui a tirada de Monteiro Lobato que lembrava nossa especialidade em “esconder o negro, clarear o mulato e atribuir virtudes romanas aos índios”. Cf., Monteiro Lobato, “Prefácio”, in Melo Meneses, D., Gilberto Freyre, Rio de Janeiro : Ed. Casa do Estudante do Brasil, l944.
30
branqueamento e seus efeitos excludentes, cuja eficácia na segregação das
populações negras e mestiças, marginalizadas com a vitória da emigração, atingem
hoje níveis calamitosos. A ruptura com a dualidade vergonha/orgulho pressupõe,
por sua vez, exatamente a unificação daquilo que a teologia separava: o positivo e
o negativo, o Éden e o Inferno, o superior e o inferior, agora reinterpretados e
unificados por Euclides na perspectiva da nacionalidade. A figura em si mesma
antagônica do sertanejo, Hércules-Quasímodo, é que vai permitir pensar num novo
horizonte, o da Nação, a unidade das antíteses no conceito paradoxal de
desequilíbrio. Mas assim fica fundada a crítica que, acenando para o futuro como
tempo da realização do equilíbrio, pode avaliar as insuficiências do presente —
ressaltando nele a permanência dos traços negativos do passado.76
A primazia dos paradoxos, das antíteses, das dissimetrias no pensamento
euclidiano deve então ser remetida à unificação daqueles extremos que, por
necessidade da limitação da consciência colonial, permaneceram desligados. Não
nos parece, portanto, que se trataria, na primazia das antíteses no discurso de Os
Sertões, de algum barroquismo. O fato é que a discordia concors é ainda um modo
de conciliar e equilibrar, enquanto o pensamento de Euclides se mantém
76 Euclides retira a ênfase do eixo da desigualdade Brasil-Europa para fixar-se noutra desigualdade, agora interna: Nação desequilibrada-Nação do futuro. Difere assim do ensaísmo de Joaquim Nabuco que tendia a tomar como eixo principal aquele primeiro: “A instabilidade a que me refiro, provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; e que na Europa nos falta a pátria, isto é, a forma em que cada um de nós foi vazado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país”. Cf., Op. Cit., p.48. Em seu dualismo, Nabuco via aqui a geografia e lá, na Europa, a história; Euclides, pensa em unidade, numa articulação em desequilíbrio interno, nosso impulso para a história e nosso refluxo para a geografia. Já em relação a Sílvio Romero devemos observar que sua crítica não institui um núcleo de estabilidade que, em estado embrionário (como o sertanejo euclidiano), anunciaria o futuro da Nação. Por isso, Romero gira em apreciações as mais opostas, desde compreender a mestiçagem como nosso caráter autêntico — que deve ser assumido como origem —, até sugerir a salvação pelo branqueamento gradual. Já em Euclides, a diferença entre o sertanejo e o jagunço, ou entre o sertanejo e o mestiço do litoral, representa a diferença entre o estável e o instável ou, ainda, entre o futuro que se prenuncia e o passado que se retarda. Esta antítese, isto é, este desequilíbrio, será ele também explicitado à medida que um mesmo tipo social se apresenta como chance de futuro — enquanto sertanejo — e como ímpeto regressivo — enquanto jagunço ou fanático religioso Cf., Romero, S., História da literatura brasileira, Rio de janeiro : J. Olympio, l980, 7ªed., vol I, p.211,212. Costa Lima, L., “Dependência cultural e estudos literários”, in Op. Cit., p.266.267.
31
permanentemente no confronto renhido do antagonismo. Menos ainda será o caso
de um compromisso mesquinho entre os extremos que os unisse em uma síntese
fácil. Toda a lógica de Euclides se concentra sobre a prevalência das disparidades
afastando energicamente aquele equilíbrio gratuito, inato, que a edenização
compreende como dádiva. Qualquer possibilidade de restaurar ou produzir
equilíbrios passa a depender, como resulta, por exemplo, de sua investigação sobre
as secas, de um trabalho consciente de reversão das tendências e forças presentes
nos antagonismos. Tal princípio de prevalência do antagonismo, como veremos
adiante, virá a constituir o centro da tradição posterior. Mas se o antagonismo
envolve a vinculação de tendências opostas, aqui não se tratará de modo algum de
dualismo, como parece sugerir Paulo Arantes77. A separação simples, como em
Jacques Lambert que discriminava dois Brasis — para distingui-los em termos
temporais, espaciais, e sociais — não pode ser encontrada em Euclides, a não ser
na interpretação barateada que se generalizou78. Em verdade, a distinção
litoral/sertão não se ampara em uma distinção rígida de moderno e arcaico, que a
fundaria. O interesse, muito diferente disso, está em expressar as reversões — a
modernidade do litoral, exterior e postiça, mostra sua contextura arcaica e violenta
em face de Canudos e recua, no tempo, aquém da rudeza sertaneja; o sertão — pela
demonstração de consistência, firmeza, estabilidade, mostrados no embate em
Canudos — aparece como abrigando o “núcleo de força de nossa constituição
futura”. E é importante notar que este “núcleo de força” se ilumina, demonstrando
a ambigüidade de sua força, justamente no episódio da derrota de Canudos, isto é,
da prevalência das forças regressivas e da continuidade, portanto, do projeto
colonial.
As formulações dualistas pressupõem uma ingênua crença no estatuto de
realidade de seus objetos. Confrontam A e B — por exemplo, avanço e atraso —
supondo-os igualmente reais, isto é, consistentes, permanentes, estáveis. Ora, em 77 “Mas não seria preciso recuar até o confronto entre Litoral e Sertão em Euclides da Cunha para perceber que mesmo a chamada ideologia do caráter nacional pautava-se por uma esquematização dual.”, Cf., Arantes, P. E., Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira, Rio de Janeiro : Paz e Terra, l992, p.23. 78 Cf., Lambert, J., Os dois brasis, São Paulo : Ed. Nacional, 13ª ed., l986.
32
Euclides, tanto para o litoral quanto para o sertão, está em causa permanentemente
isso: a consistência e estabilidade do modo de realidade que exibem. Mesmo ali
onde ele pretende ter encontrado a consistência — “encontrei alguma coisa que é
estável” —, no sertanejo, o resultado mais contundente se verifica como uma
anulação — “Retardatários hoje, amanhã se extinguirão de todo”. Muito mais que a
realidade, são suas fantasmagorizações que formam o objeto de investigação.
Portanto, a ‘realidade’ do objeto é a mesma que a de um espectro.79 Em Os Sertões
não são os confrontos simples e mecânicos, mas sempre os paradoxos, as
dissimetrias, os disparates, muitas vezes nos deixando mesmo a sensação de um
certo giro delirante, que ocupam o centro da cena. É verdade, contudo, que se
pode contar alguns momentos, de entusiasmo fervoroso, em que Euclides se excede
em arroubos unilaterais e simplificadores. Não obstante, sua tendência
metodológica é deixar ao futuro, um futuro em tudo problemático e incerto, a
constituição unitária do país — como quando afirma que predestinamo-nos “à
formação de uma raça histórica em futuro remoto, se o permitir dilatado tempo de
vida nacional autônoma”.80 Portanto, a realidade com R maiúsculo, o consistente
79 A não ser para os que apenas repetem fórmulas do pensamento ocidental, a determinação do sentido de realidade em nossa história é um problema de primeira ordem. A questão nasce da impossibilidade de localizar alguma relação que se erga como princípio de universalidade e, assim, sirva como padrão para a mensuração do grau de realidade — permanência, consistência, totalidade, universalidade, etc. — das demais relações. Euclides encontrou esse princípio no sertanejo — “alguma coisa que é estável” — mas em seguida viu eclodir nele o fantasma, na figura dissolvente do jagunço. O mesmo revezamento entre o estável e o instável, na forma da oscilação entre ordem e desordem, fez com que A. Candido, determinasse o realismo das Memórias de um sargento de milícias, como uma “anatomia espectral” do Brasil joanino. Paradoxalmente este “realismo” está na intuição do que há de infixo nesta dinâmica da qual as Memórias apreendem o “princípio estrutural” — na “sua estrutura mais íntima e na sua visão latente das coisas, elas exprimem a vasta acomodação geral que dissolve os extremos, tira o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das idéias, das atitudes mais díspares (...)”. De certo modo, portanto, o realismo aqui está na apreensão do princípio de nossa irrealidade ou, ainda, da “ilogicidade das relações”. Cf., Candido, A., “Dialética da malandragem”, in Memórias de um sargento de milícias, Ed. Crítica de Cecília de Lara, São Paulo : LTC, l978, p.342. 80 Cf. Euclides da Cunha, Op. Cit., p.156,157. Em verdade a dimensão normativa e universal, que não se afirma na “realidade” (passada e presente) das relações sociais, é transferida para o horizonte do futuro que, acenando-nos com seu caráter “normal”, permite aquilatar os déficits que, na atualidade, aguardam ser superados. Vale notar que em Euclides aquele futuro se afirma precariamente, muitas vezes aparecendo em forma condicional, como se vê na passagem acima — “se o permitir dilatado tempo de vida nacional autônoma”. De todo modo, a construção inteira repousa nesse fio de luz tênue que, inconstante, se projeta desde o futuro. Tudo passa a depender então, como veremos no capítulo seguinte, do sucesso coletivo no esforço da formação.
33
e estável, está adiado para o “futuro remoto”, por ora nos resta o cipoal das
antíteses e dos paradoxos. Assim, não no dualismo, cuja crítica metodológica é
mais um cacoete europeu aceito por nós sem maiores considerações, mas naquele
pathos dos contrastes e dos contrários assinalado por Candido — em que os
princípios são “condições antagônicas em função das quais se ordena a história” —
que se deve inscrever a obra de Euclides. E será desse empenho que ela deixará sua
descendência intelectual.
4.A noção de desequilíbrio e a descendência de Os Sertões
Já em Oliveira Viana, se a edenização, como vimos, resguarda certo
direito de cidadania, seu sentido contudo sofre uma reversão. A vida fácil dada ao
brasileiro do interior, terminando por afastá-lo do mercado de trabalho, viria a
compor o leque das deficiências crônicas do país. Nas diversas frentes, o saldo
deixado pelo passado colonial apenas se deixa avaliar negativamente: “Sem
quadros sociais completos; sem classes sociais definidas; sem hierarquia social
organizada; sem classe média; sem classe industrial; sem classe comercial; sem
classes urbanas em geral — a nossa sociedade rural lembra um vasto e imponente
edifício, em arcabouço, incompleto, insólido, com os travejamentos mal ajustados
e ainda sem pontos firmes de apoio”81. Sendo bem conhecida a via de
modernização proposta por Vianna — que indica meios autoritários “para se chegar
no futuro a uma sociedade liberal”82—, nos deteremos aqui brevemente no vínculo
entre o desequilíbrio e o ponto de estabilidade. Para a formação nacional, segundo
ele, os dois desequilíbrios fundamentais seriam a luta entre o princípio de
autoridade e as aspirações liberais, por um lado, e a imposição da unidade contra os
núcleos regionais “inteiramente isolados entre si material e moralmente”, por
81 Cf., Viana, O., Op. Cit., p.146. 82 Cf., Lippi de Oliveira, L., “Uma leitura das leituras de Oliveira Vianna”, in O Pensamento de Oliveira Vianna, p.255.
34
outro.83 Para a constituição futura da nacionalidade, o instrumento eleito por
Vianna — “um Estado centralizado, com um governo nacional poderoso” —, conta
com um núcleo de estabilidade que lhe permitiria resistir às pressões turbulentas do
jagunço, no nordeste, e do gaúcho, ao sul. Este é formado pelas virtudes das
populações meridionais. Melhor dizendo, das elites do centro-sul:
“Dessa catástrofe tremenda nos salva o espírito conservador, a têmpera moderada e
cauta, a brandura de sentimentos das nossas populações meridionais. Graças à
morigeração e à mansuetude dos mineiros, dos fluminenses e dos paulistas, os
Feijós, os Vasconcelos, os Paraná, os Eusébios, os Itaboraís, os Uruguais
encontram, em derredor de si, o campo perfeitamente livre para o pleno
desdobramento da sua ação legalizadora e centralista”.84
Bem considerado, a despeito da homologia estrutural, o rendimento crítico
de Vianna é muito inferior ao de Euclides. Seus problemas soam falso e o que
propõe — a centralização, o governo forte, etc. — encontramos já antecipado pela
realidade histórica, no momento em que ele escrevem, de modo que sua
perspectiva de futuro, em verdade, não é mais que a continuidade do passado. Da
perspectiva dos desequilíbrios diagnosticados, temos em verdade problemas
postiços — nem o nosso liberalismo de fachada algum dia ameaçou o princípio de
autoridade, nem estava na ordem do dia a autonomia regional. Em verdade, estes
são, à revelia das intenções de propriedade de Vianna, problemas importados —
precisamente das nações da América espanhola. Em segundo lugar, o ponto de
estabilidade a sustentar o futuro da nacionalidade será encontrado afortunadamente
no espaço mesmo do status quo. Enquanto a crítica de Euclides partiu de uma
prova contundente da limitação política das elites republicanas — o genocídio de
Canudos — e tomou um ponto de estabilidade na figura outsider do sertanejo,
lastreando assim um posicionamento crítico, a ‘crítica’ de Vianna — valendo-se do
mesmo esquema da formação e do futuro — elege seus heróis entre os donos do
83 Cf., Vianna. O., Idem, p.279. 84 Idem., p.281.
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poder e, então, se desfigura em apologia.85 Precisamente o pressuposto de
equilíbrio retorna agora na caracterização das virtudes das elites do centro-sul —
“o valor inestimável das suas virtudes pacíficas e ordeiras, dos seus instintos de
brandura e moderação, do seu horror do sangue e da luta”86 —, de modo que
precisamente aquela oscilação entre o ornamento civilizado e os comportamentos
violentos, chave interpretativa de grande alcance redescoberta depois por R.
Schwarz, será obscurecido. Recai-se assim na limitação da teologia para conceber
o desequilíbrio. Observemos que, como um signo bastante contundente do laço
com a “amenidade” teológica, o primeiro traço que Vianna apresenta, na passagem
que acabamos de ver, para a caracterização das elites do centro-sul é a sua
“têmpera moderada e cauta”.
Pouco evidente é, à primeira vista, a filiação de Gilberto Freyre à
tradição inaugurada por Euclides. Casa-Grande & Senzala, para ficar em sua obra
principal, parece mesmo contrapor-se frontalmente aos marcos delineados por
Euclides, em particular quando define a lógica da formação brasileira como um
“equilíbrio de antagonismos”. Contudo, já bastaria a vasta lista de antagonismos
que Freyre descobre na história do país para nos convidar a considerar mais
detidamente o assunto:
“Considerada de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade,
como já salientamos às primeiras páginas deste ensaio, um processo de
equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A
cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a
indígena. A economia agrária e a pastoril. A agrária e a mineira. O
católico e o erege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de
85 Não obstante é preciso diferenciar entre a investigação social e histórica em que, rompendo a passividade da mera importação, Oliveira Vianna traz resultados inovadores — como a investigação do patriarcado rural —, e a apologética política. 86 Idem, p.281.
36
engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O
grande proprietário e paria. O bacharel e o analfabeto. Mas
predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e mais
profundo: o senhor e o escravo”.87
Diante dessa variedade de oposições, que sentido cabe à fórmula
“equilíbrio de antagonismos”? Fácil é ver que os antagonismos listados, até o mais
geral e profundo, conformam oposições e relacionamentos antitéticos. Ora, se,
como vimos, a noção de desequilíbrio em Euclides se define justamente como um
“embater de tendências antagonistas”, então, o termo “antagonismo” em Freyre
parece cumprir as mesmas funções que a noção de “desequilíbrio” em Os Sertões.
Nesse caso, a fórmula “equilíbrio de antagonismos”, quando rigorosamente
compreendida, soará de modo paradoxal, isto é, como um “equilíbrio de
desequilíbrios”. Em sendo assim, a própria fórmula do equilíbrio proposta por
Freyre mostra, nela mesma, o jogo antitético. E isto se torna mais claro quando
atentamos para a ambigüidade fundamental em que se desenvolve o
questionamento conduzido em Casa-Grande & Senzala. Por um lado, Freyre
investiga os modos de acomodação e confraternização que apontam o caráter
formativo do encontro das três raças. Nesta direção, a miscigenação, e com ela o
mestiço, aparecem como resultados positivos e propriamente criadores na cultura
brasileira. Contudo, por outro lado, a investigação situa as tendências que
contrariam, ou impedem, a plenificação da confraternização das raças, ao ponto de
fazerem dos mestiços “caricaturas de homens”.88 Entre as tendências desfavoráveis
vão se perfilar a monocultura, a dieta insuficiente, a sifilização precoce, o
latifúndio asfixiante. Há, portanto, considerado o movimento em conjunto, um
87 Cf., Freyre, Op. Cit., p.53. 88 “Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais — mulatos e cafuzos — descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve mole de Brooklyn. Deram-me a impressão de caricaturas de homens. (...) A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em l929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafuzos e mulatos doentes”., Idem, p.xlvii.
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cruzamento de antagonismo em que se dá o enfrentamento das forças contrárias,
como bem ressalta a passagem seguinte sobre o mestiço:
“À vantagem da miscigenação correspondeu no Brasil a desvantagem
tremenda da sifilização. Começaram juntas, uma a formar o brasileiro
— talvez o tipo ideal do homem moderno para os trópicos, europeu
com sangue negro ou índio a avivar-lhe a energia; outra, a deformá-
lo”89.
Não deixa de ser verdade, porém, que a problemática de Freyre, muito
mais cultural que política, o conduz a uma maior valorização dos equilíbrios,
quando comparado a Euclides. Não obstante, em muitos lugares, será precisamente
a perversão do equilíbrio que se vai acentuar.90 Em todo caso, o conjunto
aparecerá como um compromisso de antagonismos, em que se farão sempre
presentes a ambigüidade e a ambivalência. Além desse aspecto de forma lógica, há
ainda outro, mas pertinente ao conteúdo, em que, a despeito das reivindicações
teóricas, se constata a absoluta coincidência da posição de Freyre com a tese
fundamental de Euclides. É a situação do mestiço como protótipo do brasileiro.
Nos dois autores igualmente, as vacas magras das tendências negativas terminam
por devorar as vacas gordas das tendências favoráveis, de modo que o lugar
central, o lugar da consistência, termina lacunar. Se Euclides conclui na destruição
da rocha viva da nacionalidade, Freyre inicia justamente perguntando por que a
“miscigenação resultava naquilo”, isto é, em “caricaturas de homens”.91 Se
89 Idem, p.47. 90 Assim, o latifúnido aparece como o “sistema que viria privar a população colonial do suprimento equilibrado e constante de alimentação sadia e fresca”; de maneira semelhante, será dito que nada “perturba mais o equilíbrio da natureza que a monocultura”; ou, ainda, que o regime de nutrição do brasileiro “ressente-se sempre da falta de equilíbrio”. Idem, p.32,34,42. 91 “Creio que nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração; de nossa maneira de resolver questões seculares. E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse tanto como o da miscigenação. Vi uma vez, depois de mais de três anos maciços de ausência do Brasil, um bando de marinheiros nacionais — mulatos e cafuzos — descendo não me lembro se do São Paulo ou do Minas pela neve
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considerarmos a declaração de Freyre no prefácio à primeira edição de Casa-
Grande & Senzala — “E dos problemas brasileiros, nenhum que me inquietasse
tanto como o da miscigenação” —, perceberemos o quanto é central na obra, em
sua problemática culturalista da formação histórica do país, o fato de que a
miscigenação dê em um resultado negativo. Porém, ainda à semelhança de
Euclides, o mestiço forma o elo entre o presente e o futuro porquanto a ação
histórica encontra nele seu telos — a formação de um tipo especificamente
nacional, “o brasileiro”, como lastro para uma civilização tropical. Se, portanto, a
confluência dos desfavores sociais — sifilização, monocultura, latifúndio, etc. —
fazem degenerar o fruto histórico prometido, isso apenas acentua a tensão entre o
presente e as promessas do futuro.92
Em que pesem os múltiplos matizes, e as diversas tramas secundárias, é
também a noção de desequilíbrio que permite organizar em Raízes do Brasil o
sentido da história brasileira. Entre as origens de nossas raízes e sua possível
liquidação, antevista por Sérgio Buarque nos caminhos tortuosos da “Nossa
Revolução”, ou, ainda, entre o iberismo herdado e o americanismo em vias de se
conquistar, são os desequilíbrios que figuram como marcos ao longo do caminho.
Eles podem ser distribuídos em três momentos. O primeiro diz respeito à
predominânica, massiva durante a Colônia, do meio rural sobre o urbano e às
heranças desse predomínio — a autarquia familiar, a prevalência do sistema
senhorial, do patriarcalismo e do personalismo, a valorização do “talento” e do
saber ornamental. Considerada em sentido amplo, esta situação será compreendida
por Sérgio Buarque como “desequilíbrio entre o esplendor rural e a miséria
mole de Broolyn. Deram-me a impressão de caricaturas de homens. E veio-me à lembrança a frase de um livro de viajante americano que acabara de ler sobre o Brasil: “the fearfully mongrel aspect of most of the population”. A miscigenação resultava naquilo. Faltou-me quem me dissesse então, como em 1929 Roquette-Pinto aos arianistas do Congresso Brasileiro de Eugenia, que não eram simplesmente mulatos ou cafuzos os indivíduos que eu julgava representarem o Brasil, mas cafusos e mulatos doentes“. Conf., Op. cit, Prefácio à 1ª ed., p. xlvii, xlviii. 92 Não obstante, toda vez que a ambigüidade em Freyre oscila para o equilíbrio, e põe nele a prioridade, vence o saudosismo que elege o passado, com suas virtudes senhoriais e hierárquicas, como tempo primordial. No todo, porém, o fato mesmo de compensar os extremos, faz com que em Freyre predomine o equilíbrio.
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urbana”.93 O segundo momento, em forma transitiva, se verifica com a afirmação
dos núcleos urbanos sobre os rurais; afirmação que, contudo, ainda não elimina a
preponderância política e social do patriarcalismo. E aqui, novamente, será a noção
de desequilíbrio que caberá a tarefa de apreender o estado de coisas:
“No Brasil, onde imperou, desde tempos remotos, o tipo primitivo da
família patriarcal, o desenvolvimento da urbanização (...) ia acarretar um
desequilíbrio social, cujos efeitos permanecem vivos ainda hoje.”94
As conseqüências desse desequilíbrio serão muitas. A principal delas, de
feição política, estará na dificuldade dos detentores de posições públicas em
“compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do
público”. Nesse quadro pontificará o funcionário “patrimonial” com sua
identificação da coisa pública com seu interesse particular. Estas limitações, longe
de se restringirem ao domínio político, vão estender-se a âmbitos diversos,
inclusive à esfera econômica. Assim, por exemplo, o fracasso de Mauá será
interpretado por Sérgio Buarque como um “indício eloqüente da radical
incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de nações socialmente mais
avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por
uma tradição de origens seculares”.95 Uma vez atingido o pleno desenvolvimento
do domínio urbano, e configurada inteiramente sua fisionomia social, advém o
último momento do desequilíbrio — este entre as elites políticas imobilizadas no
artificialismo e as novas exigências da vida social. Dele dirá Sérgio Buarque: o
“desequilíbrio singular que gera essa anomalia é patente e não tem escapado aos
observadores”96. E cita Alberto Torres:
“A separação da política e da vida social — dizia — atingiu, em nossa
93 Cf., Holanda, S.B., l992, p.73, Grifo nosso. 94 Cf., Idem., p.105, Grifo nosso. 95 Cf. Op. cit., p.47. 96 Cf., Idem., p.132, Grifo nosso.
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pátria, o máximo de distância. À força de alheação da realidade a política
chegou ao cúmulo do absurdo, constituindo em meio de nossa
nacionalidade nova, onde todos os elementos se propunham a impulsionar
e fomentar um surto social robusto e progressivo, uma classe artificial,
verdadeira superfetação, ingênua e francamente estranha a todos os
interesses, onde, quase sempre com a maior boa-fé, o brilho das fórmulas e
o calor das imagens não passam de pretextos para as lutas de conquista e a
conservação das posições.”97
É com a tematização deste último desequilíbrio, cuja solução se apresenta
como a tarefa urgente do momento, que se encerra a interpretação proposta em
Raízes do Brasil. Sua superação, cujo caminho seria talvez o da “nossa revolução”,
guarda um sentido que “parece ser o do aniquilamento das raízes ibéricas de nossa
cultura para a inauguração de um estilo novo, que crismamos talvez ilusoriamente
de americano, porque seus traços se acentuam com maior rapidez em nosso
hemisfério”.98
Esta fixação do olhar sobre o negativo — comum, até certo ponto, a
Oliveira Viana, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque —, que Hegel designava como a
verdadeira ação do pensamento, a reencontraremos nos rumos posteriores da
tradição. A consideração privilegiada dos antagonismos, antíteses e contradições,
cuja referência inaugural remonta à noção de desequilíbrio em Euclides, chegará à
maturidade no que podemos designar “ciclo das dialéticas”. Neste incluem-se a
dialética da ambigüidade, que Murilo de Carvalho retoma de Guerreiro Ramos; a
dialética do não ser e do ser outro, de Paulo Emílio; a dialética da malandragem,
de Antonio Candido; a dialética de indivíduo e pessoa, proposta por Roberto Da
Matta; a dialética da volubilidade, que é como Paulo Arantes interpretará os
resultados de Roberto Schwarz; a dialética da colonização, de Alfredo Bosi.
97 Cf., Holanda, l992, p.133. 98 Idem, p.127.
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O trabalho em torno dessas dialéticas, iniciado nos anos 50 e ainda em
pleno curso nos dias atuais, revolveu em direções diversas a metodologia
euclidiana das antíteses. Desconsiderando a nomenclatura, por exterior, o índice
ostensivo de parentesco dessas dialéticas com o método de Os Sertões repousa
nisso: todas igualmente prendem-se às tensões e disparidades repudiando, como
ideológicas ou criticamente insuficientes, as compreensões do país orientadas pelas
sínteses fáceis. Internamente, portanto, vinculam-se à intimidade da obra de
Euclides pela atenção aos dilemas, antagonismo, inversões e complementariedades
dissimétricas. Em tudo isso, lateja sempre a noção de desequilíbrio que organiza o
discurso de Os Sertões, com seu “embater de tendências antagonistas” e seu “jogo
permanente de antíteses”. Não obstante, esse desequilíbrio se define por um
correlato — presente ou futuro, atual ou ideal — de equilíbrio que, em sentido
histórico, como lugar de dissolução de todas as antíteses prévias, se situa no futuro
como a Nação realizada. Além disso, uma vez que se descobre invariavelmente um
núcleo antecipador da nacionalidade — como é o caso do sertanejo, em Euclides
—, há sempre já, em meio à densa malha dos desequilíbrios, uma prévia figuração
do equilíbrio. Ora, justo por situar-se como uma antecipação do futuro, caberá a
esta figuração um estatuto mais alto porquanto nela, em meio às danações do
presente, se enunciaria já um pouco da redenção aguardada. Então devemos
localizar aqui o perigo mais constante da tradição, este que, não raro, a faz trair-se
e perder-se — o de conceder um peso desproporcionado ao que de início contava
apenas como antecipação, de modo que o que começa sendo apenas uma figura
embrionária termina, por vezes, investido como o organismo completo.99 É esse o
risco que constantemente mantém-se à espreita — o de, acentuando antes o
equilíbrio que o desequilíbrio, ceder à nostalgia teológica do mito, invertendo então
furtivamente a crítica em apologia.
99 Caso típico é o desse amálgama nebuloso, muitas vezes reinvocado, que se costuma designar “povo brasileiro”.
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Disponível em: <http://www.revistahumanas.org/bajonas_artigo2.pdf>Acesso em: 3 dez. 2012