Bruno Guimarães de Miranda O chamado de Jesus ao rico notável · características e o tema do...
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Bruno Guimares de Miranda
O chamado de Jesus ao rico notvel Comentrio exegtico de Lc 18,18-23
Dissertao de Mestrado
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao
em Teologia da PUC-Rio como requisito parcial para
obteno do grau de Mestre em Teologia.
Orientador: Prof. Jos Otacio Oliveira Guedes
Rio de Janeiro
maro de 2017
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Bruno Guimares de Miranda
O chamado de Jesus ao rico notvel. Comentrio exegtico de Lc 18,18-23
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno
do grau de Mestre pelo Programa de Ps-graduao em
Teologia do Departamento de Teologia do Centro de Teologia
e Cincias Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comisso
Examinadora abaixo assinada.
Prof. Jos Otacio Oliveira Guedes
Orientador
Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Waldecir Gonzaga
Departamento de Teologia PUC-Rio
Prof. Tomson Michael Aerathedathu
IFTSJ
Prof. Monah Winograd
Coordenadora Setorial de Ps-graduao e Pesquisa do
Centro de Teologia e Cincias Humanas PUC-Rio
Rio de Janeiro, 07 de maro de 2017.
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Todos os direitos reservados. proibida a reproduo total ou
parcial do trabalho sem autorizao da universidade, do autor e
do orientador.
Bruno Guimares de Miranda
Graduou-se em Teologia pela PUC-Rio em 2013. Lecionou as
disciplinas Escatologia e Grego I e II no IFTSJ Instituto de
Filosofia e Teologia do Seminrio So Jos, em Niteri.
Atualmente leciona as disciplinas Sinticos e Atos e Grego I no
mesmo Instituto.
Ficha Catalogrfica
CDD: 200
Miranda, Bruno Guimares de O chamado de Jesus ao rico notvel :comentrio
exegtico de Lc 18,18-23 / Bruno Guimares de Miranda ; orientador: Jos Otacio Oliveira Guedes. 2017.
99 f. ;30 cm Dissertao (mestrado)Pontifcia Universidade
Catlica do Rio de Janeiro, Departamento de Teologia, 2017. Inclui bibliografia 1. Teologia Teses. 2. Rico notvel. 3. Chamado de
Jesus. 4. Vocao. 5. Discipulado. 6. Seguimento de Cristo. I. Guedes, Jos Otacio Oliveira. II. Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Ttulo.
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Agradecimentos
Aos meus pais, Jos Luis e Zelia, pelo amor que sempre me dedicaram e pela
confiana que me inspiraram na busca por meus objetivos.
A Dom Jos Francisco Rezende Dias, arcebispo de Niteri, pelo apoio que me deu
para que eu pudesse prosseguir meus estudos.
Ao prof. Dr. Pe. Jos Otacio Oliveira Guedes, meu orientador e amigo, pela ajuda
preciosa e inestimvel, muito alm do mbito acadmico.
Aos demais professores do Departamento de Teologia da PUC-Rio, pela acolhida
e pelo denso aprendizado que me proporcionaram.
Aos colegas do programa de Ps-graduao, com quem tambm aprendi muito,
pelo convvio fraterno e f partilhada.
Aos funcionrios da secretaria do Departamento de Teologia da PUC e da
biblioteca da PUC, pela dedicao e pacincia em todos os momentos.
CAPES e PUC-Rio, pelos auxlios financeiros sem os quais esta pesquisa se
tornaria invivel.
Aos paroquianos da Parquia Nossa Senhora das Neves, em So Gonalo, pela
compreenso diante de minhas ausncias, necessrias para a dedicao ao estudo.
Por fim, aos amigos que de inmeras maneiras me estimularam a cumprir esta
meta.
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Resumo
Miranda, Bruno Guimares de; Guedes, Jos Otacio Oliveira. O chamado
de Jesus ao rico notvel. Comentrio exegtico de Lc 18,18-23. Rio de
Janeiro, 2017. 99 p. Dissertao de Mestrado Departamento de Teologia,
Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro.
Esta pesquisa buscou analisar o chamado de Jesus ao rico notvel, conforme
o relato do Evangelho segundo Lucas, e perceber em que medida tal convite no
se destina somente ao personagem em questo, mas pode ser estendido a todos
aqueles que se aproximem de Jesus reconhecendo nele o caminho para a vida
eterna. Concluiu-se que o ncleo do chamado no o cumprimento dos
mandamentos e nem mesmo a distribuio dos bens aos pobres, mas o seguimento
de Jesus. Como decorrncia, esta adeso a Cristo se traduz na acolhida da vida
eterna como graa, e no conquista pessoal; alm disso, aquele que acolhe tal
chamado incorporado Igreja, comunidade dos seguidores de Jesus. Em
oposio frustrante hesitao do rico notvel, outros casos de vocao e
discipulado em Lc e At mostram como a acolhida do chamado de Jesus era
possvel, e seria fonte de alegria duradoura. A pesquisa combinou o mtodo
histrico-crtico com mtodos de carter sincrnico, como a anlise retrica.
Palavras-chave
Rico notvel; chamado de Jesus; vocao; discipulado; seguimento de
Cristo.
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Abstract
Miranda, Bruno Guimares de; Guedes, Jos Otacio Oliveira (Advisor). The
call of Jesus to the rich young ruler: an exegetical commentary of Lc
18,18-23. Rio de Janeiro, 2017. 99 p. Dissertao de Mestrado
Departamento de Teologia, Pontifcia Universidade Catlica do Rio de
Janeiro.
This survey sought to analyze the call of Jesus to the rich young ruler, as
narrated in the Gospel according to Luke, and realize to what extent such an invite
is not destinated only to the character in case, but can be extended to all those who
approach Jesus recognizing in him the path to eternal life. It was concluded that
the center of the call is not the accomplishment of the Commandments, and not
even the distribution of the goods to the poor, but the follow of Jesus. As a
consequence, this adhesion to Christ signifies the reception of eternal life as grace,
and not as self achievement; besides, the one who accepts such call is
incorporated to the church, the community of Jesus followers. In opposition to
the frustrating hesitation of the rich young ruler, other cases of vocation and
discipleship in Luke and Acts show how the acceptance of the call of Jesus was
possible, and would be a source of lasting joy. The survey combined the
historical-critical method with synchronic character methods, such as the
rhetorical analysis.
Keywords
Rich young ruler; call of Jesus; vocation; discipleship; follow of Christ.
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Sumrio
1. Introduo
2. Questes preliminares
2.1. O autor
2.2. Destinatrios
2.3. A obra lucana
2.4. Caractersticas de Lc e At
2.5. O discipulado em Lucas
3. A percope de Lc 18,18-23
3.1. Opes de traduo
3.2. Delimitao
3.3. Contexto imediato
3.4. Anlise semntica
3.4.1. Vida eterna
3.4.2. Mandamentos
3.5. Gnero literrio, dinmica do texto e sinopse
3.5.1. Gnero literrio
3.5.2. Dinmica do texto
3.5.3. Sinopse
4. Comentrio exegtico
4.1. Algum importante pergunta
4.2. Que fazer para herdar a vida eterna
4.3. Ningum bom seno o Deus nico
4.4. Fiel desde a juventude
4.5. Distribui teus bens aos pobres e segue-me
4.6. Um desfecho frustrante
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5. Reflexes teolgicas
5.1. Um chamado possvel
5.2. Um exemplo de generosidade
5.3. Respostas diferentes
5.4. Alguns desdobramentos
6. Concluso
7. Referncias Bibliogrficas
7.1. Bibliografia bsica
7.2. Bibliografia secundria
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Introduo
Esta dissertao tem como objeto material a percope de Lc 18,18-23,
conhecida como a passagem do rico notvel, ou tambm do jovem rico. O objeto
formal , no mbito da Teologia Bblica, a exegese do chamado de Jesus ao
personagem para o seu seguimento sem reservas, bem como do frustrante
desfecho.
Como objetivo principal, pretendemos analisar o chamado de Jesus ao
personagem em questo, e mostrar como a resposta ou o caminho proposto por
Jesus para a vida eterna no so propriamente os mandamentos, mas o seu
seguimento, a adeso ao seu Evangelho. Sustentamos que a percope no sugere
dois nveis de doao, um genrico com os mandamentos e outro com a venda dos
bens, que seria especfico para alguns.
A partir dessas reflexes, poderemos avaliar em que medida a palavra de
Jesus ao rico notvel constitui um chamado pessoal especfico, ou pode ser
estendido, como modelo de discipulado, a qualquer outra pessoa que se aproxime
de Jesus vendo nele a chave para a vida eterna. Destaca-se assim a temtica da
vocao, considerando-se que Cristo chama a todos ao discipulado.Pretendemos
analisar como esse chamado da parte de Cristo, quais suas caractersticas, e qual
o perfil daquele que responde positivamente.
Assim, o propsito deste trabalho refletir sobre a proposta de Jesus
generosidade de um homem que se aproxima em busca do ideal mais nobre,
alcanar a vida eterna. Nosso intento mostrar que no dilogo Jesus no
necessariamente apresenta um caminho simples e j percorrido pela tradio de
Israel, a saber, a Lei de Moiss. H na percope elementos suficientes para
sustentar que, na verdade, as palavras de Jesus no so uma mera repetio do que
diziam os rabinos, mas soam como uma provocao, insinuam algo novo e
superior, de acordo com a percepo que as primeiras comunidades tm do
mistrio de Cristo e da vida nova que ele traz, com seu mandamento novo e o
chamado ao seu seguimento.
Como objetivos anexos a este, queremos demonstrar: a) que esta adeso a
Cristo comporta a acolhida da vida eterna como graa, e no como conquista
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pessoal pelas prprias obras, e como esta doutrina subjaz percope em questo;
b) que tal adeso supe o ingresso na comunidade dos fiis, na nova famlia
fundada por Cristo, e que estes seriam justamente os pobres a serem favorecidos
pela generosidade proposta por Jesus ao rico notvel; c) que uma resposta
favorvel era possvel e seria fonte de profunda e duradoura alegria, como sempre
experimentaram os discpulos desde as primeiras comunidades crists. Assim
veremos que o chamado de Jesus ao rico notvel no era um ideal inatingvel, mas
poderia sim ser correspondido.
Aps a introduo, o segundo captulo tratar das questes preliminares,
sobre o autor e destinatrios do Evangelho de Lucas, a obra lucana e suas
caractersticas e o tema do discipulado em Lucas.
No terceiro captulo ser feita uma anlise da percope, com opes de
traduo, delimitao, contexto imediato e anlise semntica dos conceitos
principais da percope, nomeadamente os de vida eterna e mandamentos. Este
terceiro captulo abordar ainda o gnero literrio, a dinmica dos textos a partir
dos lxicos e uma sinopse.
O quarto captulo ser dedicado ao comentrio exegtico propriamente dito.
Nele procuraremos tratar especificamente de cada aspecto que compe o relato do
dilogo entre Jesus e o rico notvel.
O quinto captulo apresentar algumas reflexes teolgicas, a partir da
exegese desenvolvida. Nestas reflexes a comparao com outros casos de
vocao mostrar como a resposta favorvel era possvel e seria fonte de alegria e
comunho com Jesus e com a Igreja, como foi o caso dos apstolos Pedro e
Andr, Tiago e Joo, Paulo e Barnab. No sexto captulo, ser feita a concluso,
com base nos objetivos apresentados na introduo.
Aplicaremos percope o mtodo histrico-crtico. Pretendemos tambm
fazer uso dos aportes de outros mtodos, de carter mais sincrnico, tais como a
anlise retrica. A partir da, apresentaremos as reflexes bblico-teolgicas
extradas dessa metodologia.
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Questes preliminares
No presente captulo, antes ainda de entrar no estudo especfico da percope
do rico notvel, sero analisadas algumas caractersticas prprias de Lucas, e ao
final a questo do discipulado, bem de acordo com o tema desta pesquisa.
2.1
O autor
De acordo com o prprio prlogo do Evangelho (Lc 1,2), Lucas no foi
testemunha ocular do ministrio de Jesus, mas depende dos que o foram
diretamente; deve ter sido um cristo da segunda ou terceira gerao.1
Provavelmente no era judeu de nascimento, pois em At 15,10 ele considera
a Lei um jugo intolervel; ademais, os tementes a Deus captam a sua ateno,2
como o centurio que construiu a sinagoga (cf. Lc 7,5), ou aqueles de toda e
qualquer nao citados por Pedro em seu discurso (cf. At 10,35). V-se tambm
que dificilmente pode ser considerado nativo da Palestina: Seu escasso
conhecimento da geografia e dos costumes locais uma clara prova de sua origem
estrangeira.3 Sua provenincia da gentilidade se constata tambm pela ausncia
das diversas polmicas de Jesus contra a compreenso farisaica da Lei.4
No se deve subestimar sua caracterstica de historiador; trata-se de algum
que investigou minuciosamente os fatos antes de escrever, e assim produziu uma
obra de qualidade formal e solidez.5 Diferentemente dos demais evangelistas, o
autor se expressa pessoalmente no prlogo do Evangelho (a mim pareceu), e
1 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 71. 2 Cf. F. BOVON. El Evangelista Lucas. Retrato y proyecto: Forma y funcin de la doble obra
lucana. In A. PIERO (Ed.). Fuentes del Cristianismo: Tradiciones primitivas sobre Jess.
Cordoba: Ed. Almendro; Madrid: Complutense, 1993; p. 219. 3 J. A. FITZMYER. Loc. cit. 4 Cf. W. KMMEL. Introduo ao Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 1982; pp. 186-187. 5 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 287.
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sob um ns nos Atos, mas guarda o anonimato, distinguindo-se assim de Paulo
em suas cartas ou do autor do Apocalipse.6
Sabemos sobre Lucas que era um missionrio das primeiras comunidades
crists, talvez companheiro de Paulo em algumas de suas viagens. J desde os
primeiros sculos Irineu, por exemplo, sustenta que Lucas sempre esteve em sua
companhia e era inseparvel de Paulo.7 Neste sentido se expressa Bovon:
No devemos situar nosso autor acomodado em um gabinete de trabalho, nem no lugar de
um bispo encarregado de uma comunidade local. Antes, Lucas nos aparece como um
missionrio itinerante. Ele se interessa pela fundao da comunidade, no por sua
edificao. Batizados os primeiros convertidos, ele parte para novas conquistas. Seu olhar
no o de um diretor de conscincias nem de um pastor em sua parquia, mas de um
missionrio mesmo, um companheiro de viagens de Paulo. Lc um paulinista, mas que
deseja a unidade com os Doze.8
No entanto, preciso reconhecer que, apesar de ter sido sim um importante
colaborador de Paulo, os relatos deixam claro que tal associao no foi
inseparvel.9 Ademais, as diferenas entre a teologia de Paulo e o paulinismo de
Lucas so inegveis.10
E ainda, Lucas no conhece as cartas, e das sees-ns
somente se pode deduzir que o acompanhou em alguns momentos.11
Alguns vo
alm, e sustentam ser evidente que Lucas no est familiarizado com a teologia
paulina, o que salta aos olhos na concepo a respeito da morte de Jesus, sem
qualquer referncia noo de uma morte expiatria.12
Lucas desponta como um homem da segunda13
ou terceira14
gerao da
tradio crist, e tem o propsito de basear-se na tradio da primeira gerao
crist, por ele examinada, para construir, a partir dos acontecimentos colhidos,
uma obra com pretenso literria.15
6 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles.Madrid: Cristiandad, 1982; p. 214. 7 IRINEU. Adversus Haeresis. 3.14. Apud J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas:
Introduccin General. Madrid: Cristiandad, 1986; p. 75. 8 F. BOVON. El Evangelista Lucas. Retrato y proyecto: Forma y funcin de la doble obra
lucana. In A. PIERO (Ed.). Fuentes del Cristianismo: Tradiciones primitivas sobre Jess.
Cordoba: Ed. Almendro; Madrid: Complutense, 1993; pp. 218-219. 9 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 92. 10 Ibidem. 11 R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5 ed.
So Paulo: Ave-Maria, 2012; p. 333. 12 Cf. W. KMMEL. Introduo ao Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 1982; pp. 185-186. 13 Cf. R. FABRIS; B. MAGGIONI. Os Evangelhos II. 4 Ed. So Paulo: Loyola, 2006; p. 11. 14 Cf. W. KMMEL. Op. cit.; p. 158. 15 Ibidem.
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Ainda que, segundo o prlogo, Lucas tenha investigado as fontes e
testemunhas oculares, ele no um simples compilador de dados, e se no pode
ser considerado um historiador no sentido moderno da palavra, trata-se
inegavelmente de um grande artista literrio do seu tempo.16
2.2
Destinatrios
Os dois livros de Lucas vo dedicados a um certo personagem chamado
Tefilo, do qual pouco ou nada sabemos alm do nome. Especula-se que possa ter
sido um patrocinador da produo e difuso do texto, o que poca exigia muitos
recursos.17
Seja o caso ou no, esta dedicatria uma conveno literria,18
mais
que a descrio do destinatrio. Na verdade, Lucas espera ter inmeros leitores. A
convico universalista a respeito do cristianismo, to prpria de Lucas, faz com
que o alcance de sua obra seja extremamente amplo.19
Ao que tudo indica, Lucas desejava com a sua obra alcanar um pblico
variado, e familiariz-los com a f crist. E queria tambm confirmar as
convices dos fiis.20
De fato, conforme o prlogo inicial (Lc 1,4), Lucas-Atos
destinado aos crentes que j receberam uma formao na f.21
A obra lucana se
apia em tradies e fontes de dentro da Igreja, e sugere um cristianismo com dois
plos, com cristos procedentes do judasmo e do paganismo.22
E sua simpatia
pelos tementes a Deus constitui sem dvidas uma mostra de sua preocupao
missionria.23
16 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p.160. 17 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 214. 18 Idem; p. 278. 19 Ibidem. 20 Cf. F. BOVON. El Evangelista Lucas. Retrato y proyecto: Forma y funcin de la doble obra
lucana. In A. PIERO (Ed.). Fuentes del Cristianismo: Tradiciones primitivas sobre Jess.
Cordoba: Ed. Almendro; Madrid: Complutense, 1993; p. 203. 21 R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5 ed.
So Paulo: Ave-Maria, 2012; p. 336. 22 Cf. F. BOVON. El Evangelista Lucas. Retrato y proyecto: Forma y funcin de la doble obra
lucana. In A. PIERO (Ed.). Fuentes del Cristianismo: Tradiciones primitivas sobre Jess.
Cordoba: Ed. Almendro; Madrid: Complutense, 1993; pp. 203. 23 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 278.
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A opinio mais aceita atualmente supe um pblico cristo proveniente em
sua maioria do paganismo. Uma das razes seria o ntido interesse do autor de
abrir aos pagos a salvao prometida a Israel no Antigo Testamento.24
Essa
perspectiva tambm explica a eliminao de certos materiais de suas fontes, Mc
ou Q, de preocupao tipicamente judaica.25
Alm disso, Lucas estende a
genealogia de Jesus at Ado, indo alm dos limites de Mateus, que comea por
Abrao. E a utilizao do termo genrico Judeia para abarcar toda a Palestina
sugere que o autor escrevia para um pblico no propriamente daquela regio.26
Tambm o livro dos Atos dos Apstolos estava destinado a leitores
provenientes do paganismo. Na obra, fica claro que os pagos tomaram parte nos
dons concedidos a Israel, ou seja, a salvao enviada em primeiro lugar ao povo
israelita reconstitudo se estendeu, por desgnio de Deus, a todos os povos e sem
as obrigaes prescritas na Lei. Assim o autor explica a relao entre os cristos
vindos do paganismo, destinatrios de sua obra, e o antigo Israel.27
Vale ressaltar
ainda que esses cristos provenientes do paganismo, destinatrios da obra lucana,
no viviam em ambiente predominantemente judaico; antes, eram convertidos que
se encontravam em meio predominantemente pago.28
Assim, no seria inadequado ampliar o alcance dos destinatrios da obra
lucana, estendendo-os s sucessivas geraes nas diversas naes s quais
chegaria o Evangelho. Desde as narrativas da infncia, j o profeta Simeo
anuncia que o menino seria luz para iluminar as naes (2,32); e os
antepassados de Jesus, como visto, remontam a Ado, o qual filho de Deus
(3,38); esses antepassados, portanto, no param em Abrao como que diante de
uma porta fechada, uma barreira ou um limite intransponvel, progenitor de um
povo e de uma raa privilegiada.29
Ao final, o mandato de Cristo aos apstolos
24 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p.108. 25 Ibidem. 26 Idem; p. 109. 27 Idem; p. 110. 28 Idem; p. 111. 29 A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Comentrio ao Evangelho de So Lucas. Petrpolis:
Vozes, 1979; p. 19.
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tambm confirma tal universalismo, j que em seu nome (de Cristo) seria pregado
o arrependimento para a remisso dos pecados a todas as naes (24,47).30
Se verdade que o Evangelho de Lucas estende a salvao de Cristo a todos
os povos e naes, e de maneira total, pois cobre todas as necessidades do
homem,31
tambm verdade que h os destinatrios privilegiados, a saber, os
pecadores, os pobres, as mulheres e os samaritanos. E esta inverso da lgica,
nota marcante dos textos lucanos, fonte de alegria para os at ento excludos,
que em Cristo encontram finalmente acolhida da parte de Deus.32
Sobre o tema,
assim se expressam Monasterio e Carmona:
A salvao de Jesus, nico Salvador, total, porque salva tudo, inclusive do pecado e da
morte, onde no chega a salvao humana, e salva a todos, universal, mas os
marginalizados da salvao humana so os privilegiados, especialmente os pobres-
miserveis e os pecadores.33
O Evangelho mostra Jesus indo ao encontro dos pecadores (cf. 19,7),
comendo com eles (cf. 5,29-31), perdoando-os (cf. 7,48-50), a fim de resgat-los
segundo a misericrdia do Pai; a converso deles traz grande alegria ao cu (cf.
15,7).34
De fato, se o Evangelho se estende a todos os homens, ser
necessariamente um anncio de misericrdia e de acolhida sem restries aos que
o acolhem. E por isso mesmo os pecadores so os primeiros e principais
beneficirios desse anncio. Dir-se-ia at que so uns privilegiados em
comparao com os justos, e o so com certeza se comparados com aqueles que
presumem ser justos (16,15; 18,13).35
Quanto aos pobres, no exagero qualificar o evangelho de Lucas como o
evangelho dos pobres.36
So destinatrios privilegiados do Evangelho tanto os
miserveis e famintos (cf. 6,21; 14,13.21), por causa da lei de compensao (cf.
16,20), como os cristos perseguidos por causa da f (cf. 6,22-23), e por fim os
que vivem a pobreza por austeridade, pois o discpulo deve evitar a cobia e no
depositar sua confiana no dinheiro (cf. 12,15-21), alm de ser generoso com os
30 Cf. A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Comentrio ao Evangelho de So Lucas. Petrpolis:
Vozes, 1979; p. 19. 31 R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5 ed.
So Paulo: Ave-Maria, 2012; p. 317. 32
Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Op. cit.; pp. 317-318. 33
R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Op. cit.; p. 342. 34 Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Op. cit.; p. 318. 35
A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Op. cit.; p. 19. 36 R. FABRIS; B. MAGGIONI. Os Evangelhos II. 4 Ed. So Paulo: Loyola, 2006; p. 110.
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irmos, sobretudo os mais pobres (cf. 12,33-34),37
como alis podemos ver
claramente no chamado de Jesus ao rico notvel, percope de nossa pesquisa.
Por outro lado, o prprio fato de Jesus ter chamado ao seu seguimento um
homem que era extremamente rico ( ), em vez de trat-lo com
desprezo, mostra que Jesus era avesso s riquezas, mas amigo dos ricos, como de
todos os homens, e tambm a eles queria salvar e chamar converso (cf. 7,36-
50; 19,5).38
Ocorre que com os ricos Jesus se mostra mais exigente, bem de
acordo com sua palavra, que tambm a eles pode ser aplicada: quele a quem
muito se deu, muito ser pedido, e a quem muito se houver confiado, mais ser
reclamado (Lc 12,48). Pagola reflete:
Jesus no exclui ningum. A todos anuncia a boa notcia de Deus. Mas esta notcia no
pode ser ouvida por todos da mesma maneira. Todos podem entrar em seu reino, mas nem
todos da mesma maneira, porque a misericrdia de Deus est urgindo antes de mais nada
que se faa justia aos mais pobres e humilhados. Por isso a vinda de Deus uma sorte para
os que vivem explorados, enquanto se transforma em ameaa para os causadores dessa
explorao.39
Os samaritanos tambm tm o seu lugar nos textos lucanos, o que notvel,
considerando-se a hostilidade que ainda vigorava entre judeus e samaritanos
poca (cf. Lc 9,53; Jo 4,9). Os samaritanos aparecem no Evangelho como modelo
de virtudes dentre as mais nobres e elevadas, como a gratido (cf. 17,11-19) e a
misericrdia (cf. 10,29-37); e apesar da resistncia inicial a Jesus (cf. Lc 9,52-56),
acolhem a evangelizao j no tempo da Igreja nascente (cf. At 8,25).40
Salta aos olhos o destaque extraordinrio que os escritos lucanos do s
mulheres. Na infncia de Jesus, as mulheres so as protagonistas; em sua vida
pblica, Jesus as cura (cf. Lc 8,43-48), defende-as e as perdoa (cf. Lc 7,36-50),
ressuscita uma jovem (cf. Lc 8,49-56) e o filho de uma viva (cf. Lc 7,11-17), e
elogia a generosidade de outra viva (cf. Lc 21,14); alm disso, aceita-as como
discpulas e colaboradoras materiais (cf. Lc 8,1-3), o que no era comum,41
e as
37
Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5
ed. So Paulo: Ave-Maria, 2012; pp. 318-319. 38
Idem; pp. 320-321. 39 J. A. PAGOLA. Jesus: Aproximao histrica. 7 Ed. Petrpolis: Vozes, 2014; p. 130. 40
Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Op. cit.; p. 321. 41 Jesus, contrariando uma norma consagrada pelo uso rabnico daquela poca, as aceita em sua
seqela, permitindo-lhes segui-lo em suas peregrinaes e aliviar suas fadigas com sua assistncia.
Dessa maneira, elas so chamadas por Jesus tarefa e dignidade de colaboradoras do
Evangelho. A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Comentrio ao Evangelho de So Lucas.
Petrpolis: Vozes, 1979; p. 23.
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ensina (cf. Lc 10,38-42); so tambm as primeiras testemunhas da ressurreio
(cf. Lc 24,1-11.22). E ainda nos relatos das primeiras comunidades, as mulheres
esto sempre presentes (cf. At 1,14; 6,1).42
Lancellotti e Boccali apresentam a
seguinte lista de mulheres atuantes nos Evangelhos:
Lucas nos faz admirar as qualidades dessas devotas discpulas, sempre solcitas, corajosas e
fiis: Maria, me de Jesus; Isabel, dcil ao Esprito Santo; a velha Ana, assdua orante no
templo; a pecadora annima que lava nas lgrimas e na gratido a sua vida; a mulher de
Naim, viva aflita; Marta, conhecida pela sua solicitude; e Maria pela fidelidade em ouvir;
as mulheres de Jerusalm, compassivas e aflitas pela condenao de Jesus.
Alm desse panorama de figuras femininas, h tambm a viva insistente junto ao juiz
perverso, a qual se torna smbolo da orao persistente; a mulher da dracma perdida, que
simboliza a salvao de Deus para o homem perdido; a mulher das duas moedinhas,
smbolo da pobreza e da generosidade evanglicas; a mulher doente havia 18 anos, smbolo
da libertao messinica; a mulher que, pela primeira vez, glorifica a me de Jesus.43
Ainda uma palavra sobre os destinatrios da obra lucana: deve-se destacar a
importncia do apstolo Paulo na segunda parte do livro dos Atos, numa espcie
de paralelo com Pedro, o grande protagonista dos primeiros captulos. Paulo
quem, conduzido pelo Esprito, chega at os confins da terra, cumprindo portanto
o mandato ou programa de Jesus em At 1,8. Alm disso, o livro deixa aberto o
final, com Paulo no crcere, e como que convidando o leitor a dar seguimento
evangelizao.44
Tudo isso se explica perfeitamente se aceitarmos como destinatrios da obra uma
comunidade de origem paulina, cujo fundador duramente desacreditado, porque na
comunidade nascem dvidas sobre a legitimidade de sua origem. Lucas-Atos oferece
segurana sobre essa origem e convidam a continuar na linha de Paulo.45
2.3
A obra lucana
A obra de Lucas se diferencia das demais obras do NT fundamentalmente
por seu carter dplice, constando de um Evangelho, que narra com centralidade a
vida e ministrio de Jesus, e de um livro dos Atos dos Apstolos, que narra os
42
Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5
ed. So Paulo: Ave-Maria, 2012; p. 321. 43 A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Comentrio ao Evangelho de So Lucas. Petrpolis:
Vozes, 1979; p. 23. 44
Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Op. cit.; p. 341. 45
R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Op. cit.; p. 341.
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incios da comunidade crist e a expanso do Evangelho. Nota-se sem dvida uma
continuidade entre os dois relatos, mas as distines tambm so claras, em razo
dos personagens centrais e dos episdios apresentados. Comparado aos demais
evangelistas, Lucas se distingue em razo de sua dupla obra.46
O conjunto
representa o empreendimento literrio mais ambicioso do cristianismo primitivo,
que pela primeira vez procurava autocompreender-se no marco da Histria da
Salvao.47
A teologia lucana encenada na histria e na geografia.48
De fato, Lucas
apresenta a histria de Jesus,de trs diferentes maneiras, em clara conexo com a
histria de seu tempo49
: primeiro, ao relacionar o nascimento de Jesus em Belm
com o censo ordenado pelo imperador Augusto, sob Quirino (2,1s); depois, ao
apresentar a histria de Jesus como o comeo da histria da Igreja em marcha: A
histria de Jesus para Lucas apenas o comeo da histria escatolgica da
redeno, na qual os eventos de Jesus so levados frente pela pregao;50
ao
tentar demonstrar a no-culpabilidade poltica de Jesus perante os romanos, como
Pilatos ou o centurio aos ps da cruz: No h margem para dvida quanto
inteno poltico-apologtica, pois os romanos saem completamente absolvidos
do pecado da crucifixo de Jesus.51
Assim, a diferena de Lucas para os demais
evangelistas consiste em relacionar a vida de Jesus no somente com o ambiente e
a cultura da poca, mas tambm com o desenvolvimento e expanso da Igreja
nascente.52
Por outro lado, no difcil perceber as semelhanas do seu Evangelho com
os de Mateus e Marcos. No por acaso so chamados sinticos, e a semelhana
dos temas e dos relatos pode ser facilmente constatada pela simples leitura dos
referidos textos. Mas uma anlise cuidadosa tambm dar conta de diferenas
46 Cf. F. BOVON. El Evangelista Lucas. Retrato y proyecto: Forma y funcin de la doble obra
lucana. In A. PIERO. (ed.). Fuentes del Cristianismo: Tradiciones primitivas sobre Jess.
Cordoba: Ed. Almendro; Madrid: Complutense, 1993; pp. 207. 47 Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5
ed. So Paulo: Ave-Maria, 2012; pp. 267-268. 48 R. E. BROWN. Introduo ao Novo Testamento. 2 ed. So Paulo: Paulinas, 2012; p. 330. 49 Cf. W. KMMEL. Introduo ao Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 1982; p. 172. 50 W. KMMEL. Op. cit.; p. 173. 51 Idem; p. 174. 52 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 71.
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marcantes, que tm relao com os objetivos de cada autor e o pblico a que se
dirige.
Comparado a Mc, Lc apresenta melhores qualidades literrias. No material
comum, o que poderia parecer vulgar ou ferir a sensibilidade dos cristos
substitudo por expresses mais apropriadas. Comparado a Mt, Lc mais
helnico: omite ou transforma passagens de carter excessivamente judaico, que
seriam incompreensveis ou sem interesse para seus leitores. Comparado a Jo, Lc
se comporta mais como historiador, menos ligado a sentidos espirituais e a
smbolos.53
Note-se ainda que, nos materiais narrativos, Lc se aproxima mais de Mc, e
nos discursos de Jesus, de Mt. Em relao a Jo, h semelhanas temticas54
e
marcas da evoluo do cristianismo nas comunidades primitivas.
Lucas traz inmeros textos exclusivos, alguns deles de grande importncia
para a f crist. Muitos desses relatos esto nos Atos dos Apstolos, como a vinda
do Esprito Santo em Pentecostes, ou as descries das primeiras comunidades.
Mas tambm no Evangelho h significativo material exclusivo, como as parbolas
do filho prdigo ou do bom samaritano, ou a apario do Ressuscitado aos
discpulos de Emas.55
Apesar disso, opinio quase unnime que Lucas no s estava ciente de
que havia outros relatos sobre a vida de Jesus, mas que de fato os utilizou para
compor a sua narrativa sobre Jesus.56
H muitos e claros indcios, por exemplo, de
que o Evangelho segundo Marcos tenha influenciado o relato lucano.57
53 Cf. F. BOVON. El Evangelista Lucas. Retrato y proyecto: Forma y funcin de la doble obra
lucana. In A. PIERO (Ed.). Fuentes del Cristianismo: Tradiciones primitivas sobre Jess.
Cordoba: Ed. Almendro; Madrid: Complutense, 1993; p. 206. 54 A ao do Esprito Santo, o papel de destaque das mulheres, a rejeio dos judeus em contraste
com a f dos pagos, dentre diversos outros. Cf. I. MAZZAROLO. Lucas em Joo: uma nova
leitura dos evangelhos. 2 ed. Rio de Janeiro: Mazzarolo Editor, 2004. 55 Cf. R. FABRIS; B. MAGGIONI Os Evangelhos II. 4 Ed. So Paulo: Loyola, 2006; p. 11. 56 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 121. 57 Cf. W. KMMEL. Introduo ao Novo Testamento. So Paulo: Paulus, 1982; pp. 36-93. No
est no foco do presente trabalho o aprofundamento das fontes lucanas ou a questo sintica.
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2.4
Caractersticas de Lc e At
Dentre os evangelistas, Lucas o que melhor maneja a lngua grega.
Escreve com elegncia, e apresentado como o evangelista da mansido de
Cristo.58
Quando quer, escreve com todos os recursos literrios, como no prlogo
do Evangelho59
ou no discurso de Paulo em Atenas, a fim de mostrar que o
cristianismo consegue dialogar com a cultura grega em seu melhor nvel.60
Mas o
faz excepcionalmente apenas; via de regra, escreve de maneira simples, renuncia
nfase e evita o que pode soar chocante.61
Monasterio e Carmona ensinam:
Desde a poca patrstica considera-se o grego de Lucas, junto ao dos Hebreus, como o mais
cultivado e o mais elegante de todo o Novo Testamento. Emprega com correo literria a
koin, de uma forma superior ao uso vulgar do povo e de muitos escritos bblicos, mas sem
chegar a ser um classicista ou aticista.62
O autor varia de estilo, e ao lado de uma narrativa bem construda, sabe
tambm trazer a linguagem semtica para as palavras de Pedro, e conferir a Paulo
o talento de um orador judeu da dispora.63
A variedade de estilos, longe de
refletir fontes divergentes, atesta o talento de um autor.64
comum distinguir em
Lc trs estilos: o estilo verdadeiramente literrio do prlogo; o grego semitizante
das narraes da infncia;65
e o grego corrente do restante da obra, em Lc e At.66
Lucas no escapa regra crist, mas sabe ser original tambm. Por exemplo,
o seu Evangelho, como os demais, comea com Joo Batista; mas sua
originalidade est em apresentar o precursor e o Messias no apenas na idade
58 F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 213. 59O Evangelho segundo Lucas o nico que comea com um perodo rotundo de excelente
construo grega. Este prlogo convencional, ainda que extremamente esmerado, corresponde aos
cabealhos usuais desta classe de obras na literatura grega contempornea poca de Lucas. J. A.
FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad, 1986; p.
186. 60 Cf. F. BOVON. Op. cit.; p. 221. 61 Ibidem. 62 R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5 ed.
So Paulo: Ave-Maria, 2012; pp. 273-274. 63 Cf. F. BOVON. Op. cit.; p. 222. 64 F. BOVON. Op. cit.; p. 222. 65 Diga-se o que for a propsito dos presumidos semitismos do grego lucano, ao final sempre se
deve contar com um influxo decisivo do grego da LXX; J. A. FITZMYER. El Evangelio segn
Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad, 1986; p. 209. 66 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 186.
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adulta, mas desde o ventre materno.67
Apresenta diversos temas estruturantes: o
protagonismo do Pai e a ao do Esprito Santo no ministrio de Jesus;a salvao
universal destinada tambm aos gentios; a incredulidade judaica, com as
perseguies e tribulaes da decorrentes; a necessidade da orao constante; a
demora da parusia e, como conseqncia, o sentido do tempo da Igreja; o
apostolado e o discipulado.68
Ao lado das caractersticas humanas de Jesus, Lc enumera outras que
transcendem sua condio humana: sua concepo virginal por obra do Esprito
Santo, seu ministrio pblico guiado pelo Esprito Santo, sua estreita relao com
o Pai, sua ressurreio dentre os mortos e sua ascenso aos cus:69
Seja como for,
a autntica concepo lucana do acontecimento Cristo radica na combinao dos
aspectos transcendentes e dos puramente humanos na existncia de Jesus.70
Lucas sublinha o papel indispensvel das mediaes. O Deus dos pais, cuja
imagem fora distorcida, d-se a conhecer de verdade na pessoa de seu Filho, Jesus
Cristo; e este, por sua vez, ausente a partir da ascenso, d-se a conhecer
mediante a palavra proferida por seres de carne e osso.71
Mas a simples
recordao no suficiente para garantir essa continuidade entre Jesus e sua
Igreja. a que Lucas faz intervir o Esprito Santo: aps a ascenso, o
Ressuscitado pode enviar seu Esprito sobre os apstolos, e o faz em Pentecostes,
conferindo queles homens a segurana que no tinham para desempenhar o
mandato missionrio recebido de Cristo.72
Sobre esse papel da Igreja, Fitzmyer
afirma:
E se assim, se na perspectiva de Lucas a salvao chega ao ser humano atravs da Igreja,
isto , por meio da comunidade crist com suas estruturas, porque na Igreja a Palavra de
Deus pregada eficazmente e se administra o batismo em nome do Senhor Jesus. Mas
reduzir toda a eclesiologia lucana a este nico ponto de vista seria uma amputao
intolervel da totalidade da obra. A Igreja tambm comunidade que parte o po (At
67 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 224. 68 Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5
ed. So Paulo: Ave-Maria, 2012; pp. 280-281. 69 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; pp. 324-326. 70 J. A. FITZMYER. Op. cit.; p. 330. 71 F. BOVON. Op. cit.; p. 279. 72 Cf. F. BOVON. Op. cit.; p. 280.
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2,42.46; 20,7.11), sem que isto suponha exclusivismos salvficos, que ora em comum (At
1,14; 2,42; 4,24 etc) e experimenta a orientao do Esprito de Deus.73
Quanto teologia, muito mais comum os autores apresentarem as
concepes teolgicas de Paulo e Joo, como os dois grandes expoentes da
teologia do NT.74
O espao dedicado teologia de Lucas muito reduzido, e
geralmente implicado no problema das relaes sinticas.75
Alguns autores,
porm, defendem uma viso sinttica da concepo teolgica de Lucas, no s
como aparece em sua redao dos materiais evanglicos, mas especialmente no
impacto de sua prpria composio, tanto na narrao evanglica como no livro
dos Atos dos Apstolos: O que deve ser objeto de sntese a totalidade da obra,
o produto acabado da criatividade do autor.76
Fitzmyer apresenta algumas caractersticas da teologia lucana: a sua tpica
proclamao do querigma; sua perspectiva geogrfica e histrica; sua cristologia e
soteriologia; o acento na atividade do Esprito Santo, durante o ministrio de
Jesus, na sua ressurreio e com os discpulos no cumprimento da misso; a
imagem do discpulo, que pela f se abre converso e assume as exigncias do
seguimento de Cristo.77
Quanto historicidade dos relatos, preciso reconhecer que a recordao de
fatos histricos no era propriamente a finalidade da tradio evanglica na
comunidade primitiva; nunca se pretendeu reproduzir escrupulosamente as
ipsissima verba Iesu.78
Por outro lado, ningum como Lucas destaca o alcance
histrico do acontecimento Cristo e de sua proclamao querigmtica; isto se v
quando Paulo apresenta sua defesa ante o rei Agripa, e afirma que todo o ocorrido
no se deu num recanto remoto, 79 (At 26,26); ou quando Clofas
pergunta ao peregrino desconhecido se ele o nico que ignora o que se sucedeu
73 J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 434. 74 Cf. R. BULTMANN. Teologia do Novo Testamento. So Paulo: Ed. Teolgica, 2004; pp. 245-
247; 433-442. 75 Cf. J. A. FITZMYER. Op. cit.; pp. 239-240. 76 J. A. FITZMYER. Op. cit.; pp. 240-241. 77 Cf. J. A. FITZMYER. Op. cit.; pp. 241-243. 78 A lembrana dos acontecimentos histricos no era o objetivo prioritrio da proclamao
querigmtica; por outro lado, desnudar completamente o querigma de seu carter de evocao
histrica suporia cortar todos os seus vnculos com a realidade do Jesus histrico. J. A.
FITZMYER. Op. cit.; p. 287. 79 canto, ngulo. A. BAILLY. Dictionnaire Grec-Franais. Paris: Hachette, 1894; p. 423.
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em Jerusalm naqueles dias (cf. Lc 24,18)80
: Em Lucas coexistem em perfeita
harmonia a dimenso querigmtica e a perspectiva histrica.81
Outra caracterstica bem marcante de Lucas, presente nos seus dois livros,
a alegria que marca os relatos, pelo dom gratuito da salvao que dado aos
homens em Cristo, e que toma a vida dos que abraam a f. claro que esta
alegria tambm est presente nos demais livros do Novo Testamento,
especialmente dos evangelhos, que so justamente apresentados como boa
notcia, alegre notcia. Mas inegvel que tal alegria crist tem destaque nas
narrativas lucanas.82
Este dado ainda mais relevante para a presente pesquisa,
levando em conta que o rico notvel termina triste, justamente porque resiste ao
chamado de Jesus ao discipulado.
2.5
O discipulado em Lucas
Nos textos lucanos o discipulado recebe destaque, talvez em funo do
atraso na parusia e consequente percepo do ofcio da Igreja na continuidade da
misso de Jesus. Em todo o tempo, fica claro que o discpulo de Cristo tem um
mandato, o de anunciar aos demais a ressurreio de Jesus, conforme o
testemunho dos apstolos, apresentando aos judeus como Messias aquele que fora
crucificado.83
E o mesmo discurso de converso chega aos pagos, chamados a
abandonar os dolos e voltar-se para o Deus vivo e seu Filho.84
De fato, como j
visto,85
uma peculiaridade de Lucas sua abertura ao universalismo do desgnio
salvfico divino,86
e claro que tal abertura se estende tambm ao apostolado e
seguimento do Cristo. E o universalismo de Lucas no se refere somente relao
entre judeus e pagos; vemos Jesus aberto aos mais diversos representantes de
80 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; pp. 287-288. 81 J. A. FITZMYER. Op. cit.; p. 292. 82 Cf. R. A. MONASTERIO; A. R. CARMONA. Evangelhos sinticos e Atos dos Apstolos. 5
ed. So Paulo: Ave-Maria, 2012; pp. 321-322. 83 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 281. 84 Ibidem. 85 Cf. supra 2.2 Destinatrios. 86 Cf. J. A. FITZMYER. Op. cit.; p. 313.
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todas as classes sociais: samaritanos, publicanos (como Levi ou Zaqueu),
pecadores pblicos (at o malfeitor crucificado com ele), as mulheres (como a
viva de Naim, o grupo de mulheres que o seguiam, Marta e Maria, a mulher
encurvada, a viva pobre que ofereceu tudo), e os pobres em geral.87
Deve-se
dizer ainda, neste temtica, que Lucas mostra um interesse particular pelos mais
oprimidos e marginalizados,88
pelos que constituem como que o lixo da
sociedade.89
Tambm por isso seu Evangelho particularmente severo com os
ricos, que encontram ali inmeras advertncias sobre o perigo das riquezas e
exortaes generosidade com os pobres.90
Nessa linha, Fabris e Maggioni
ensinam:
Lucas realista: sabe que o homem rico no pode ser livre e disponvel, tem demasiadas
coisas a amarr-lo. Da a consequncia: a condio para seguir a Jesus a pobreza radical,
sem meio-termo; o que quer dizer, na prtica: pr todos os bens disposio dos pobres
(12,21.33; 14,33). esta pobreza de base que torna os discpulos disponveis para o reino
de Deus, com plena confiana e coragem, sem medo de extorses e represso (12,1-
7.11.22-32). Os discpulos so portanto homens livres, fiis e generosos no servio
comunidade e ao homem necessitado, sem compensaes, nem distines raciais ou
culturais (10,25-37: o bom samaritano). A exemplo do mestre, os discpulos escolhem os
pobres como destinatrios privilegiados de seu amor e servio (14,12-14.15-24).91
Em Lucas o ensinamento moral no a primeira preocupao, no sentido de
que o evangelista conhece a Lei, mas no faz dela o seu foco.92
No seu Evangelho,
o escriba que a resume no duplo mandamento do amor (a Deus e ao prximo)
87 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; pp. 321-322. 88 Cf. supra 2.2 Destinatrios. 89 Cf. J. A. FITZMYER. Op. cit.; p. 322. 90 Outro fato que impressiona na leitura do evangelho de Lucas, sempre sob o perfil
socioeconmico, a pesada condenao dos ricos, a qualificao do dinheiro como injusto ou
inquo, e o subseqente apelo ao abandono radical dos bens. S Lucas relata os quatro ais para os
ricos, fartos, folgazes, paralelos s bem-aventuranas para os pobres (6,24-25). S Lucas usa a
expresso Mamon (Dinheiro) de iniquidade (16,9). E quando se trata de abandonar os bens ou
vend-los e d-los aos pobres, geralmente Lucas quem carrega na dose em relao aos outros
evangelhos sinticos: deve-se deixar tudo (cf. Lc 5,11.28), deve-se renunciar a tudo (14,33;
18,22). S no terceiro evangelho acham-se as parbolas sobre o perigo das riquezas ou da
acumulao dos bens: o rico sem qualificaes morais que no socorre ao pobre, na hora da
morte precipitado numa runa sem remdio (16,19-31); o latifundirio que planeja celeiros
maiores, confiando unicamente na fartura de seus bens, um insensato (12,16-21); a parbola do
administrador astucioso que torna amigos alguns clientes para prover a seu futuro um convite a
se servir dos bens com perspiccia e deciso em favor dos verdadeiros clientes e amigos, os pobres
(16,1-9). R. FABRIS; B. MAGGIONI. Os Evangelhos II. 4 Ed. So Paulo: Loyola, 2006; p.
112. 91 R. FABRIS; B. MAGGIONI. Op. cit.; p. 19. 92 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 282.
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felicitado por Jesus (cf. 10,25-28).93
E na percope em estudo encontra-se um
resumo dos mandamentos. Mas curiosamente no livro dos Atos nem os
mandamentos nem o resumo da Lei voltam a aparecer. De fato, a moral
evanglica no contradiz a Lei, mas a radicaliza.94
A atitude moral tem unidade e
coerncia: implica uma transformao da pessoa, um compromisso no servio de
Deus, uma abertura ao outro e uma viso nova da realidade.95
Essa abertura e
servio ao prximo caracteriza os discpulos; assim refletem Fabris e Maggioni:
Atravs do retrato dos discpulos, pode-se adivinhar o empenho e o ideal que animam as
comunidades s quais Lucas dirigiu o seu evangelho. Um empenho e uma dedicao que se
alimentam no tirando de novo o p de velhos programas de moral ou de um sistema
disciplinar, mas no contato vivo e permanente com o Mestre e Senhor, que est sempre
adiante de seus discpulos.96
No possvel falar do discipulado sem levar em conta a Igreja, a
comunidade constituda por Jesus para reunir e agregar seus discpulos. Lucas
mostra que no se trata de uma criao ex nihilo, mas do resto de Israel,
restaurado e reconstitudo.97
Nela o poder se exerce no servio (cf. Lc 22,24-27).
dessa nova comunidade de irmos que o discpulo ser chamado a fazer parte.
A concepo lucana do discpulo no se reduz a um catlogo de exigncias
impostas ao indivduo, mas compreende tambm um estilo de vida comunitrio e
organizado, uma vida em Igreja.98
O presente trabalho est focado justamente no tema do discipulado. O
chamado de Jesus a tantos com quem se encontrou, como os pescadores beira
mar, ou Mateus na coletoria de impostos, aparece no dilogo com o rico notvel
de maneira privilegiada. Podemos ver ali de maneira bem completa uma
apresentao lucana das exigncias para o discipulado, bem como consequncias
da resposta ao seguimento de Cristo. E analisando as primeiras comunidades,
apresentadas por Lucas em sua segunda obra, v-se que o discipulado no se
esgota nos chamados da vida pblica de Jesus, mas se estende pelas geraes
seguintes queles que acolhem o anncio dos apstolos. Alm do caso
93 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER (dir.).
Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 282. 94 Ibidem. 95 F. BOVON. Op. cit.; p. 283. 96 R. FABRIS; B. MAGGIONI. Op. cit.; p. 20. 97 Cf. F. BOVON. Op. cit.; p. 283. 98 J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 424.
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extraordinrio de Paulo, vemos a generosidade e entrega de homens como
Barnab, dentre tantos outros missionrios da Igreja nascente.
Para esse seguimento de Cristo, o Evangelho de Lucas faz fortes exigncias,
e convida o discpulo a abandonar tudo, sem meias medidas ou interpretaes
espirituais tergiversantes.99
Assim, o discpulo chamado a uma vida rica de
boas obras, vida de doao e generosidade, buscando agradar a Deus pela ateno
e cuidado com os pobres.100
Lancellotti e Boccali refletem:
Deus um bem to grande, o Cristo seu filho um dom to inestimvel, e o Evangelho uma
Boa-Nova e uma posse to preciosas, que no h outra coisa no mundo que se lhes possa
comparar. (...)
Quem portanto coloca a sua confiana nas coisas mundanas, especialmente na riqueza, na
posse de bens, no poder desse mundo, no ter condies de colocar sua confiana em outro
salvador e noutra salvao, mesmo quando oferecida por Deus.101
Mas preciso notar que o chamado de Jesus por inteiro, e inclui o seu
destino final. Ele ensina que o discpulo deve negar-se a si mesmo e tomar sua
cruz a cada dia nesse seguimento (cf. Lc 9,23). Dessa forma, Jesus j sinaliza aos
seus seguidores at onde devem segui-lo. Como afirma Fitzmyer:
Ser discpulo de Jesus significa seguir seus passos, acompanh-lo em sua viagem a
Jerusalm, onde vai cumprir-se seu destino de morte, seu xodo, sua passagem para o
Pai. (...)
O imperativo segue-me j se encontra em Mc, mas a intensidade que toma em Lc
extraordinria. (...)
Na concepo lucana, ser discpulo de Cristo inclui no s a aceitao dos ensinamentos do
Mestre, mas tambm a identificao pessoal com o estilo de vida de Jesus e com seu
destino de morte, que o que verdadeiramente cria uma dinmica interna de seguimento.102
Apesar disso, o discpulo de Jesus no vive angustiado nem teme a morte.
Sabe que segue o nico que pode lhe dar a verdadeira liberdade, e que enche de
sentido e plenitude a sua vida. A alegria uma marca caracterstica sua. Fabris e
Maggioni recordam:
Pode parecer estranho que, justamente neste caminho rumo cruz, o clima dominante seja
o do entusiasmo e da alegria (10,17.20-21; 15,7.10.32; 19,6). Mas deve-se lembrar que a
meta da caminhada de Jesus e dos discpulos no a morte, mas a libertao plena e a vida
99 A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Comentrio ao Evangelho de So Lucas. Petrpolis:
Vozes, 1979; p. 25. 100 Cf. A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Op. cit.; pp. 25-26. 101 A. LANCELLOTTI; G. BOCCALI. Op. cit.; p. 25. 102 J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 407.
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nova, de que eles j possuem uma antecipao nos gestos de acolhimento e nas palavras de
misericrdia e perdo de Jesus (15; 19,1-10).103
103 R. FABRIS; B. MAGGIONI. Os Evangelhos II. 4 Ed. So Paulo: Loyola, 2006; pp. 19-20.
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A percope de Lc 18,18-23
Eis o texto de Lc 18,18-23, segundo a 28 edio do Nestl-Aland, com a
devida segmentao e a traduo que apresentamos:
18a E perguntou-lhe algum
importante dizendo:
,
;
18b Bom mestre, que hei de fazer
para herdar a vida eterna?
19a Disse-lhe ento Jesus:
; 19b Por que me chamas bom?
104
. 19c Ningum bom seno o Deus
nico.
20a Conheces os mandamentos:
, 20b No cometas adultrio,
, 20c no mates,
, 20d no roubes,
, 20e no prestes falso testemunho,
.105
20f honra teu pai e me.
21a Ele ento disse:
.106
21b Tudo isso tenho observado desde
a juventude.
104 A presena do lxico (um), para referir-se a Deus, parece ser uma remisso ao texto fundamental da f de Israel no Deus nico, .em Dt 6,4 , 105 O cdigo Sinatico (a) e diversos manuscritos trazem a palavra , ficando portanto a concluso do versculo assim: . Mas outros importantes
manuscritos e cdigos, dentre eles o Vaticano (B), no apresentam tal palavra. Fazemos portanto a
opo por esta ltima redao, pois mais fcil explicar o acrscimo do termo por questes de
paralelismo entre pai e me, do que explicar a retirada do termo, o que no teria, em princpio,
nenhuma justificativa razovel. 106 O cdigo Sinatico e diversos manuscritos trazem a palavra mou; j o cdigo Vaticano, tambm acompanhado de diversos outros manuscritos, no traz tal palavra. Parece mais razovel a opo
por esta ltima redao, pois mais fcil explicar o acrscimo, seja por questes de elaborao e
estilo, ou para melhor caracterizar a juventude ( mou), do que explicar a retirada do termo, que no teria razo de ocorrer.
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107
22a Tendo ouvido, Jesus lhe disse:
22b Ainda uma coisa te falta:
22c Tudo o que tens
22d vende
108
, 22e e distribui aos pobres,
,
22f e ters um tesouro nos cus,
. 22g e ento segue-me.
109
23a Tendo ouvido isso ficou muito
triste;
. 23b porque era extremamente rico.
107 Algumas variantes trazem, aqui, a palavra tauta, ficando o texto: tauta . (ouvindo essas coisas Jesus disse a ele). Mas esta no parece ser a melhor opo.
Alm do peso dos testemunhos em contrrio (o termo est ausente nos cdigos Sinatico e
Vaticano), mais coerente explicar, como nos casos anteriores, o acrscimo do termo, para fins de
melhor compreenso, que a sua excluso, que no teria uma motivao razovel. 108 O cdigo Sinatico, acompanhado de outros e de alguns manuscritos, traz em vez de ,
lendo-se portanto d em vez de distribui (teus bens aos pobres). Os cdigos Vaticano e o
Cantabrigiensis (D) apresentam , o que sugere melhor elaborao. Apesar disso, a opo
do Nestle-Aland e do Greek New Testament. Ao que parece, essa melhor elaborao prpria de
Lucas, que prefere (distribui) a (d). S. Lgasse nota que em Lucas o dever de ajudar
os pobres ocupa um lugar preponderante. Esta a razo por que em vez de dizer dar (),
Lucas diz distribuir (), da a semelhana com o que se pode ler em At 4, 35: vendiam-
nas... repartia-se. S. LGASSE. Apelo ao rico in VV. AA. A pobreza evanglica. So Paulo:
Paulinas, 1976; p. 82. 109 Os cdigos Sinatico e Vaticano trazem , enquanto outros cdigos (por exemplo,
Alexandrino [A] e Cantabrigense) e manuscritos trazem . Trata-se do mesmo verbo grego,
, que pode ser traduzido por tornar-se, ficar. Mas no primeiro caso, o verbo est
conjugado no indicativo aoristo passivo, 3 pessoa do singular; j no segundo caso, est no
indicativo aoristo mdio depoente, mesma pessoa. Vale notar que o termo , no aoristo
passivo, s tem trs ocorrncias nos textos lucanos, sendo duas no Evangelho (20,17, alm da
nossa percope) e uma nos Atos (4,4). J o termo bastante recorrente, aparecendo nesses
textos 122 vezes, sendo 69 vezes no Evangelho e 53 nos Atos dos Apstolos. Isso pode significar
que as verses que trazem tentam uma harmonizao, o que seria mais um motivo para
preferir . Mas alm disso, h que se notar que muito forte o indcio de que seja
mesmo a verso mais confivel. Neste texto, o autor escolhe um verbo que no costuma usar,
ento razovel concluir que foi bem escolhido. A traduo para os termos poderia ser a mesma.
Portanto, na verdade, no parece haver mudana semntica significativa, qualquer que seja a
opo. Ficamos com a primeira, considerando a autoridade dos cdigos Sinatico e Vaticano, ao
lado da 28 edio do Nestle-Aland.
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3.1
Opes de traduo
Ainda antes de tratar da delimitao da percope, pretendemos justificar
algumas opes de traduo adotadas no estudo.
Quanto ao lxico , pode ser traduzido como um chefe, ou magistrado,
de maneira genrica.110
De fato, o termo freqente, e seu significado s pode ser
deduzido do contexto; parece ser um representante da observncia da Lei, talvez
um chefe de sinagoga.111
Note-se que a percope traz na verdade a expresso
, que pode ser traduzida por algum importante, ou certo chefe. Tal
expresso est separada na sentena, com o lxico intercalado entre os
termos. O termo vem depois, mais ao final da sentena, e portanto com
maior destaque. A retrica estilizada frequentemente separa os termos para dar
maior efeito aos elementos por seu isolamento; tal palavra, tirada do seu contexto
e tornada mais independente, mais enftica quando posicionada ao final da
sentena.112
Por essa razo, para manter o aspecto genrico da palavra e ao mesmo
tempo dar-lhe o devido destaque, optamos pela traduo da expresso
como algum importante.
Na pergunta que o personagem faz a Jesus, o verbo ,
indicativo futuro do verbo , que significa herdar. A pergunta traz um
verbo no particpio aoristo ativo, , e outro no indicativo futuro:
;. Uma traduo mais prxima da lngua original
poderia ser algo como: O que tendo feito vida eterna herdarei? Mas em ateno
lngua de chegada da traduo, preferimos, como apresentado na segmentao:
Que hei de fazer para herdar a vida eterna? Assim se mantm a semntica do
texto, mas a pergunta fica mais inteligvel em Portugus.
No desfecho da percope, o chamado solene de Jesus o seguinte:
, []
, . Traduzimos: Ainda uma coisa te falta: vende
110 Cf. A. BAILLY. Dictionnaire Grec-Franais. Paris: Hachette, 1894; p. 283. 111 Cf. J. A. FITZMYER. El Evangelio segn Lucas: Introduccin General. Madrid: Cristiandad,
1986; p. 21; 112 Cf. F. BLASS; A. DEBRUNNER. A Greek grammar of the New Testament: and other early
christian literature. Chicago: The University of Chicago Press, 1961; p. 249.
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tudo o que tens e distribui aos pobres, e ters um tesouro nos cus, e ento segue-
me. Muitas tradues, nessa ltima ao proposta por Jesus trazem termos tais
como depois, segue-me, ou depois, vem e segue-me. No nos parece a melhor
opo, pois o texto grego no apresenta nenhum advrbio de tempo, nem
preposio ou qualquer termo ou expresso que transmita a ideia de um momento
posterior, de algo que ocorra depois.113
Ao contrrio, temos uma sequncia de
verbos interligados simplesmente pela conjuno . preciso atentar para o fato
de que Jesus acabara de dizer: uma s coisa te falta. Portanto, parece-me que a
melhor traduo aquela que respeita uma tal conexo entre os verbos que esses
aparecem como uma s ao. Uma traduo que contemplasse uma pausa antes do
ltimo verbo, associada ao advrbio depois, poderia insinuar que, na verdade,
ao rico notvel faltavam duas aes consecutivas: vender os bens e distribuir aos
pobres, e depois seguir Jesus. No o caso. Temos um nico ato proposto naquela
sucesso de aes, e o texto deixa isso claro. No h porque chegar ao ponto de
quase dividir a ao em duas justapostas, ferindo o sentido do texto.
Ademais, o advrbio tem em primeiro lugar a noo de espao, sendo
melhor traduzido como aqui. H outras possibilidades, mas nenhuma delas
aproxima-se de depois. A ideia na percope em questo a de como um
estmulo, a fim de encorajar o interlocutor.114
um advrbio de local,
primeiramente, com sentido de proximidade; mas funciona bem tambm como
uma interjeio: Eia! Vamos!115
Significado bem apropriado, sem dvida, para a
percope em questo. Parece de fato que foi nesse sentido que Jesus interpelou o
personagem; mais que depois, segue-me, algo como eia, vamos, segue-me.
Da mesma maneira, nas diversas outras passagens em que aparece o
advrbio , ele sempre est associado a uma sada de si, a um gesto de ir ao
encontro de Deus. No discurso de Estvo, em At 7,2-53, isso ocorre duas vezes.
No v. 3, quando Deus fala a Abrao: Sai da tua terra e da tua parentela, e vai para
113 Para essa idia de um momento posterior, Lucas prefere usar a preposio mais o
complemento no acusativo, em inmeras passagens (cf. Lc 2,46; 12,4; At 10,37.41; 14,23 etc). F.
BLASS; A. DEBRUNNER. A Greek Grammar of the New Testament: and other early
Christian literature. Chicago: The Universityof Chicago Press, 1961; p. 172. Raramente outros
termos, como o advrbio , em Lc 16,7 ou em Lc 8,1; mas nunca o advrbio ,
que no tem esse sentido temporal. 114 Cf. A. BAILLY. Dictionnaire Grec-Franais. Paris: Hachette, 1894; p. 449. 115 Cf. H. G. LIDDELL; R. SCOTT. A Greek-English Lexicon. Oxford: University Press, 1968;
p. 381.
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a terra que eu te mostrarei, ,
. No mesmo discurso, mais frente, no v. 34,
Deus diz a Moiss: Eu vi, eu vi o sofrimento de meu povo no Egito, e ouvi seus
gemidos. Por isso desci para livr-los. Agora vem, eu vou enviar-te ao Egito. No
original,
,
. Em Jo 11,43, Jesus, clamando em voz alta, chama Lzaro para fora:
, . Em Ap 17,1, um dos sete anjos chama o narrador e diz:
Vem!Vou mostrar-te o julgamento da grande Prostituta que est sentada beira
de guas copiosas. O texto original traz: ,
. E mais ao final, em Ap 21,9, o anjo
chama para mostrar a esposa, convidando: Vem!Vou mostrar-te a Esposa, a
mulher do Cordeiro! No original: ,
. Assim, o advrbio , como nas demais passagens acima citadas, est
sempre ligado a um chamado de Deus, e sempre traz consigo um convite sem
volta ao desapego da prpria vida e das prprias seguranas, confiana ousada
no cuidado de Deus. No difcil perceber que este exatamente o caso do
convite de Jesus ao rico notvel. S isto lhe faltava. Por isso optamos por essa
traduo.
No ltimo versculo, fiz a opo de no repetir o mesmo advrbio em
Portugus, no caso, muito (evitando ficou muito triste porque era muito rico),
levando em conta inclusive que sequer aparece no versculo uma palavra em
grego equivalente a muito. Temos na verdade outros lxicos que expressam
grande intensidade, seja de tristeza () ou de riqueza (), e por isso
fizemos a opo de traduzir por um advrbio comum na lngua de chegada, em
vez de usar superlativos ou palavras menos usuais (tristssimo, desolado). Em
funo disso, para no repetir o advrbio muito, preferi traduzir por
extremamente, at porque o advrbio supe mesmo uma intensidade extrema.
Assim, temos a escolha por tendo ouvido isso, ficou muito triste, porque era
extremamente rico.
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3.2
Delimitao
A percope em questo no apresenta dificuldades de delimitao no seu
incio. Em Lc 18,17, Jesus acolhe as crianas e d um ensinamento citando-as
como exemplo. O versculo 18 introduz uma nova personagem com uma pergunta
direta a Jesus. Na sequncia, com o dilogo que se estabelece, no difcil
perceber a conexo entre os versculos, tanto formalmente, nas conjunes e
demais termos conectivos, como materialmente, pela lgica das perguntas e
respostas.
J quanto concluso da percope, a questo no to simples. O versculo
23 parece conclu-la, pois o dilogo termina e o homem fica triste; o texto no
afirma categoricamente, mas insinua que ele saiu da presena de Jesus, retirou-se.
O certo que ele no respondeu nada a Jesus, parecendo encerrar o assunto.
Entretanto, o versculo seguinte parece falar sobre a tristeza do homem: Vendo-o
assim, Jesus disse: Como difcil aos que tm riquezas entrar no Reino de
Deus!. E segue tratando do tema do perigo das riquezas, e como podem afastar
do caminho da salvao. De fato, a expresso vendo-o sugere que se trate da
mesma percope, e dificulta a sua separao. Ainda assim, parece-me que este
versculo 18,24 constitui como que um versculo-ponte entre as duas percopes,
faz a passagem para um tema prximo. Note-se tambm que a partir de 18,24 h
um novo gnero literrio: no h mais um dilogo entre Jesus e o rico notvel,
mas uma exortao de Jesus a um outro pblico, os seus ouvintes,
(18,26), h um ensinamento do Mestre destinado aos seus discpulos.
Alm disso, defendemos que o tema central da nossa percope o chamado
de Cristo ao discipulado. E o que pe em risco o seu seguimento no somente o
perigo das riquezas, mas tambm o perigo do apego s prprias seguranas, sejam
as riquezas ou a Lei mosaica; tambm esta pode constituir um obstculo ao
seguimento de Cristo, e pr em xeque a salvao. Diante dessas consideraes,
entendemos que a percope de nosso trabalho termina no v. 23. Por fim, no
parece haver no texto indcios de diversas camadas redacionais. Com efeito, no
h rupturas, duplicatas ou afins.
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3.3
Contexto imediato
Dentro do Evangelho de Lucas, a percope do rico notvel encontra-se na
grande seo intermediria em que o autor narra a viagem de Jesus da Galileia
para Jerusalm (9,5119,28). Nesta seo esto mais presentes os relatos ligados
ao discipulado, com diversas passagens referentes ao seguimento de Jesus. Em
alguns materiais prprios, Lc destaca qual a vida justa aos olhos de Deus; ela
comea com o reconhecimento da prpria misria e a acolhida da graa divina
como um dom.116
o que vemos na parbola do fariseu e do publicano (18,9-15)
e no episdio da visita casa de Zaqueu (19,1-10). E entre essas duas percopes,
Lc insere trs relatos tomados de Mc: o acolhimento das crianas (18,15-17), o
rico notvel, nossa percope de estudo (18,18-23), e o cego de Jeric (18,35-42).
Tais relatos se prestam bem aos objetivos de Lucas, telogo da converso e da
salvao, que quer no tanto definir a atitude boa em contraste com a pecadora,
mas antes contrastar a justia aos olhos de Deus com a justia aos olhos dos
homens.117
Comentando o Evangelho segundo Lucas, Ivo Storniolo encaixa a percope
do rico notvel dentro de um bloco amplo, 18,1-30, que prope o desapego de si e
a confiana em Deus: clamar por justia e confiar (1-8), como a viva; pedir
perdo e sair justificado (9-14), como o publicano; acolher o Reino de Deus (15-
17), como as crianas; repartir com os pobres e seguir a Jesus (18-30), como
proposto ao rico notvel.118
Javier Pikaza sublinha o mesmo bloco, 18,1-30, mas entende que a percope
do rico notvel est ao final das palavras de Jesus sobre a orao e a confiana em
Deus (viva, publicano, crianas) justamente para afastar o perigo da passividade
absoluta, na medida em que o episdio ilustra bem a funo da riqueza, e
justamente num israelita modelo, que julga poder aproximar-se de Deus por sua
116 Cf. F. BOVON. Evangelios de Lucas y Hechos de los Apstoles. In E. CHARPENTIER
(dir.). Evangelios Sinpticos y Hechos de los Apstoles. Madrid: Cristiandad, 1982; p. 239. 117 Ibidem. 118 Cf. I. STORNIOLO. Como ler o Evangelho de Lucas: os pobres constroem a nova histria. 2
ed. So Paulo: Paulus, 1992; pp. 160-164.
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retido de fariseu. A ele se contrapem Pedro e os demais discpulos que,
conforme 18,28-30, deixaram tudo para seguir Jesus119
.
LEplattenier insere a percope do rico notvel em uma grande sequncia
com diversas imagens da salvao, de 18,9 a 19,28, ltimo bloco antes da entrada
definitiva em Jerusalm. Apresenta o caminho indicado por Jesus como uma
exigncia superior s foras humanas, a qual recorda portanto que a salvao do
homem , antes de tudo, obra de Deus. O autor menciona ainda os discpulos, que
foram tornados capazes dessa renncia a seus bens, e que o comentrio de Jesus
aponta justamente para a narrao eclesial do livro dos Atos, o qual mostra essa
renncia como portadora de novas riquezas nas relaes humanas.120
J segundo a anlise retrica de Roland Meynet, a percope est em um
bloco maior, que comea ainda em 17,11 e se estende at 18,30, e tem por tema o
abandono pelo Reino. So trs subsequncias de maneira concntrica (17,11-37;
18,1-14; 18,15-30), sempre intercalando os fariseus (ou o notvel da nossa
percope) e os discpulos.121
No centro est o Filho do Homem que vir para
julgar (18, 8b). Antes, as perguntas sobre quando e onde se dar o Reino de Deus
(17,20-37); e depois, como acolh-lo e receber a vida eterna (18,15-30). Nossa
percope est no centro desta ltima subsequncia; esta comea com o seguimento
de Cristo como uma criana e termina com a promessa aos discpulos que tudo
deixaram para seguir a Cristo. Em todo esse grande bloco, a chave para o
abandono pelo reino a f; e no ncleo central est a pergunta dramtica de Jesus
em 18,8b, uma provocao que repercute por todas as geraes crists: Mas
quando o Filho do Homem vier, encontrar a f sobre a terra? (
;). Todo o bloco se desenvolve,
como em dois lados, em torno a essa pergunta, com o tema da f:
A pergunta central sobre a f (v. 8b) se conecta com o primeiro lado (que a precede)
mediante a retomada de Filho do homem como em 17,22.24.26 e 30; vindo retoma o
verbo da primeira pergunta dos fariseus (17,20) e indica o juzo como aquele do dilvio
(17,27). A palavra f se encontra apenas ao final da primeira passagem (17,19), mas
somente desta que se trata em todo o resto da sequncia: aquela de No e de L que
escutaram a palavra de Deus e foram salvos (17,26-29), aquela que permitir ser salvo
quem, como L, renuncia a buscar as prprias coisas (17,31), aquela da viva que no se
119 Cf. J. PIKAZA. A teologia de Lucas. 2 ed. So Paulo: Paulinas, 1985; p. 108-109. 120 Cf. C. LEPLATTENIER. Leitura do Evangelho de Lucas. So Paulo: Paulinas, 1993; pp.
164-172. 121 Cf. R. MEYNET. Il Vangelo secondo Luca: Analisi Retorica. Roma: Dehoniane, 1994; p. 493.
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cansou de pedir e viu o dia no qual se lhe fez justia (18,2-6), aquela de Jesus e dos
discpulos que aceitam perder a prpria vida (17,25 e 33). No segundo lado da sequncia
(aps a pergunta central), a f se ope Lei em cuja observncia o fariseu (18,11) como o
chefe (18,20-21) depositaram sua confiana. a f que permite ao discpulo deixar tudo
(18,28) e abandonar-se como as crianas (18,16-17) e como o publicano (18,13)
misericrdia de Deus. Esta f se volta a Jesus: o seu dia aquele do Reino de Deus (17,20-
30); segui-lo entrar no Reino de Deus e herdar a vida eterna (18,15-30).122
3.4
Anlise semntica
Neste momento do trabalho, analisaremos qual era a compreenso a respeito
dos principais temas da percope em questo, tanto para o interlocutor que aborda
Jesus como para os ouvintes e destinatrios do relato lucano. Os principais termos
que merecem ateno so os conceitos de vida eterna, , finalidade da
pergunta dirigida a Jesus, e o de mandamentos, ai,, presentes na sua resposta
inicial.
3.4.1
Vida eterna
Quanto ao conceito de vida eterna, cabe o questionamento: qual a
compreenso que um fiel cumpridor da Lei mosaica poderia ter a respeito dessa
vida eterna? certo que devemos considerar, na elaborao do texto, os
destinatrios do Evangelho de Lucas, a saber, cristos provenientes do
paganismo123
que j conhecem os ensinamentos de Cristo e que, portanto, como
membros das primeiras comunidades ps-pascais, j acolheram o dom da vida
eterna; para eles que a percope est relatada. Mas ainda assim a pergunta
pertinente: Em que consistiria esta vida eterna para um judeu fiel no cumprimento
da Lei?
No judasmo palestinense, Deus Senhor sobre a vida e a morte, colocou
nos homens o sopro da vida como uma bno. Seus mandamentos so vida, suas
122 R. MEYNET. Il Vangelo secondo Luca: Analisi Retorica. Roma: Dehoniane, 1994; p. 519. 123 Cf supra, 2.2 Destinatrios.
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palavras so de vida.124
Com o decurso dos sculos, cresce a convico de que a
verdadeira vida deve ser eterna, pois procede do Deus que no tem fim de dias.
Assim, no judasmo tardio, os fariseus defendem a ressurreio academica-
mente125
, e nisso confrontam os saduceus (cf. Mt 22,23.34). Este dado, bastante
conhecido, leva concluso de que o rico notvel est muito mais afinado com a
doutrina dos fariseus do que com os saduceus.
No judasmo helenstico, a alma, como portadora da vida, imortal. A
expectativa de vida aps a morte muito difundida, mas a imortalidade da alma
substitui parcialmente o conceito de ressurreio, e o julgamento acontece
imediatamente na morte.126
No NT, a vida sujeita morte apenas temporria; a verdadeira vida, em
Deus, indestrutvel. A nossa ressurreio est baseada na ressurreio de
Cristo,127
ao qual o fiel est unido. Vida sujeita morte no merece ser chamada
vida. A verdadeira vida dada por Deus como bem escatolgico. Essa vida vida
eterna.128
Dessa forma, associado ao conceito de vida, temos o de eternidade, . O
termo est presente na LXX (cf. Am 9,11; Is 45,17; Sl 45,6), e no AT significa
primeiro que Deus sempre foi e sempre ser, diferentemente dos mortais. O NT
tomou essa construo judaica e estendeu a eternidade a Cristo (Hb 1,10; Ap 1,17-
18; 2,8)129
, mediante quem tal eternidade alcana os fiis.
Para Paulo, a vida eterna consiste no fato de que tudo o que era velho deu
lugar ao novo em Cristo, o segundo Ado, autor da nova humanidade; se h um
cumprimento futuro, h tambm uma renovao presente.130
E para Joo, os
crentes j passaram da morte para a vida; Jesus a ressurreio e a vida, e por isso
os que nele creem vivero ainda que morram.131
124 Cf. G. KITTEL; G. FRIEDRICH (orgs.). Dicionrio Teolgico do Novo Testamento. vol. I.
So Paulo: Cultura crist, 2013; p. 323. 125 Idem; p. 324. 126 Ibidem. 127 Idem; p. 325. 128 A. STGER. O Evangelho segundo Lucas. Vol. 3/2. Petrpolis: Vozes, 1974; p. 126. 129 Cf. G. KITTEL; G. FRIEDRICH (orgs.). Op. cit.; pp. 35-36. 130 Idem; p. 325. 131 Idem; pp. 326-327.
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3.4.2
Mandamentos
O segundo conceito importante a analisar nesta etapa o de mandamentos,
ai,. Qual a percepo que poca havia a respeito dos mandamentos?
A palavra em grego, no acusativo plural no texto, , e na tradio
judaica tem importncia fundamental. Os mandamentos da Lei so a base da
fidelidade a Deus; aquele que obedece aos mandamentos agradvel ao Deus de
Israel e pode ser considerado justo. Os mandamentos so um conceito
fundamental do Antigo Testamento, base da aliana de YHWH com Israel;
aparecem com freqncia no plural, significando todos os mandamentos de
Deus,132
como o caso da percope em questo.
Em grego a palavra h, feminina, e uma traduo do termo hebraico
h'wcmi, que pode ser traduzido por mandamento, preceito, ordem, lei, ou significados afins.
133 No Antigo Testamento, os equivalentes a h, aparecem
muitas vezes (da raiz hwc, temos h'Wci 344 vezes, e h'wcmii 159 vezes).134 A maior ocorrncia no Pentateuco; pode ser empregada para uma ordem humana, mas
geralmente refere-se a mandamentos divinos.135
H outras palavras, derivadas de
outras razes (dqp, rbd, qwx) que tambm so traduzidas por h,, e sempre no sentido dos preceitos e estatutos ditados por Deus para Israel, e exigindo
correspondncia do povo.136
Esta a prpria aliana de Deus com seu povo eleito.
E a fidelidade deste a tais normas ocasionar a bno, o amparo e o perdo de
Deus.137
Mas por influncias helnicas, especialmente esticas, o judasmo dos
tempos de Jesus vivia em tenso.138
No mundo helenstico, h, a traduo
grega da LXX para o h'wcmii hebraico, e por isso tal palavra ganha um solene
132 Cf. H. G. LIDDELL; R. SCOTT. A Greek-English Lexicon. Oxford: University Press, 1968;
p. 576. 133 Cf. L. A. SCHKEL. Dicionrio Bblico Hebraico-Portugus. 5 reimpresso. So Paulo:
Paulus, 2012. 134 Cf. C. BROWN e L. COENEN. Dicionrio Internacional de Teologia do Novo Testamento.
Vol.I. So Paulo: Vida Nova, 2000; p. 1243. 135 Idem; p. 1244. 136 Ibidem. 137 Idem; pp. 1243-1245. 138 Idem; p. 1246.
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sentido religioso. Mas entre os esticos no era um termo valorizado, estava na
parte mais baixa da moralidade, j que o ato voluntrio era superior a um ato que
foi ordenado. O verdadeiro sbio conhece e pratica a virtude sem os
mandamentos, que s podem ser tolerados pelos imaturos e ignorantes.139
Nos evangelhos sinticos, vemos Jesus endossando todos os mandamentos,
mas ultrapassando-os pelo mandamento positivo do amor. E ao atacar os
mandamentos humanos, concentra-se no principal e vai essncia dos
mandamentos, o amor a Deus e ao prximo (Mt 22,36-40; Lc 10,25-28).140
E
ensina que tais mandamentos so inseparveis. Alm do primeiro, o segundo
semelhante a esse (...) Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os
Profetas (Mt 22,39-40). Apontando para a raiz do mandamento, a saber, uma
oferta de vida que brota do amor de Deus, possvel, em gratido, amar tanto ao
prximo como a Deus.141
O episdio objeto desta pesquisa um bom exemplo nos ensinamentos de
Jesus. O rico notvel foi desafiado a distribuir todos os seus bens aos pobres a fim
de viver, sem reservas, conforme o cuidado dirio da parte de Deus enquanto
seguia a Jesus.
Nos escritos joaninos, h alguns sentidos a serem destacados para h,.
Em Jo 10,18, Jesus recebeu do Pai a h, de dar a vida e retom-la. Mais
frente, d aos discpulos uma nova h,, o mandamento do amor como o do
prprio Cristo (13,14; 15,12). Jesus pode falar com toda a propriedade deste novo
mandamento porque cumpriu total e completamente o mandamento de Deus no
sentido de abrir mo de si mesmo em prol da humanidade.142
E ainda, guardar as
aj, de Cristo a marca do amor verdadeiro a ele (14,15.21). Se o amamos,
guardamos seus mandamentos e os cumprimos. Mas no h uma relao legalista;
como o Filho faz a vontade do Pai, assim faz o discpulo em relao a Cristo;
portanto, estamos diante de uma relao pessoal de amor. A h, do Pai a vida
eterna (Jo 12,50) no porque algum poderia cumpri-lo e assim ganhar a vida
eterna, mas porque o ato do Filho, em cumprir este mandamento, importa em vida
139 Cf. G. KITTEL; G. FRIEDRICH (orgs.). Dicionrio Teolgico do Novo Testamento. Vol. I.
So Paulo: Cultura crist, 2013; p. 259. 140
Idem; p. 260. 141
C. BROWN e L. COENEN. Op. cit.; pp. 1246-1247. 142
Idem; p. 1247.
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eterna para o mundo.143
Por fim, nas cartas joaninas, o amor a Deus no uma
unio mstica, mas est intimamente relacionado ao amor ao prximo, aos irmos.
No combate ao gnosticismo, h a nfase na ligao entre h, e f (1Jo 3,23),
bem como a insistncia em que os mandamentos no so opressivos (5,3