Bruno Perandin Monografia Complementaridade Final

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BRUNO PERANDIN DE MELO OS ELEMENTOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS NA ATIVIDADE DE RADIODIFUSÃO E O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS SISTEMAS PÚBLICO, ESTATAL E PRIVADO FACULDADE DE DIREITO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO SÃO BERNARDO DO CAMPO 2009

Transcript of Bruno Perandin Monografia Complementaridade Final

BRUNO PERANDIN DE MELO

OS ELEMENTOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS NA

ATIVIDADE DE RADIODIFUSÃO E O PRINCÍPIO

CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS

SISTEMAS PÚBLICO, ESTATAL E PRIVADO

FACULDADE DE DIREITO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2009

2

3

BRUNO PERANDIN DE MELO

N° 12290 – 5° G

OS ELEMENTOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS NA

ATIVIDADE DE RADIODIFUSÃO E O PRINCÍPIO

CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS

SISTEMAS PÚBLICO, ESTATAL E PRIVADO

MONOGRAFIA APRESENTADA À

FACULDADE DE DIREITO DE SÃO

BERNARDO DO CAMPO COMO

EXIGÊNCIA PARCIAL PARA

OBTENÇÃO DO TÍTULO DE

BACHAREL EM DIREITO.

REVISADA E CORRIGIDA DE

ACORDO COM AS CONSIDERAÇÕES

DA BANCA EXAMINADORA,

COMPOSTA PELO PROFESSOR

ORIENTADOR CARLOS EDUARDO

BATALHA DA SILVA E COSTA,

PROFESSORA CARMEN SILVIA

FULLIN E PROFESSOR ROBERTO

BAHIA.

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2009

4

“Qualquer um é cidadão na proporção do que consome,

Será que estamos indo para o lado errado?”

Ecos Falsos, Findo Milênio

5

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 6

1. A REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO BRASIL: BREVE DESENVOLVIMENTO

HISTÓRICO ..................................................................................................................................... 7

1.1 Noções técnicas de radiodifusão e de televisão por radiodifusão...................................... 7

1.2 Do rádio à televisão: 1922 a 1950 ....................................................................................... 8

1.3 Das emissoras locais de televisão à criação da Embratel: 1950 a 1965 ............................ 12

1.4 Das redes nacionais (de integração) aos governos civis democráticos: 1965 a 1985 ....... 14

2. A REGULAÇÃO JURÍDICA DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE

DIREITO........................................................................................................................................ 16

2.1 Os serviços de radiodifusão como serviços públicos ........................................................ 18

2.2 Elementos dos serviços públicos. ...................................................................................... 19

2.3 Identificação dos elementos dos serviços públicos nas atividades de radiodifusão ........ 21

2.3.1 Elemento subjetivo dos serviços públicos de radiodifusão ....................................... 21

2.3.2 Elemento material dos serviços públicos de radiodifusão ......................................... 23

2.3.3 Elemento formal dos serviços públicos de radiodifusão............................................ 25

3. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS SISTEMAS DE

RADIODIFUSÃO: COMENTÁRIOS AO CAPUT DO ART. 223 .......................................................... 27

3.1 Os sistemas de televisão por radiodifusão ........................................................................ 33

3.2 Sistema privado ................................................................................................................. 34

3.3 Sistemas público e estatal: identidade ou distinção? ....................................................... 39

3.3.1 Sistema estatal ........................................................................................................... 41

3.3.2 Sistema público em sentido estrito ............................................................................ 43

CONCLUSÃO ................................................................................................................................ 46

BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................................. 48

6

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 prevê, em seu art. 223, caput, que o Poder

Executivo, ao outorgar e renovar as concessões, permissões e autorizações para os

serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens, deverá observar o princípio da

complementaridade dos sistemas público, estatal e privado da atividade.

A doutrina publicista é pacífica ao classificar os serviços de radiodifusão

como serviços públicos, independentemente da forma da prestação – pública, estatal ou

privada por meio de concessão, permissão ou autorização.

No entanto, há corrente recente que defende a classificação do sistema

privado, especificamente de televisão, como atividade econômica em sentido estrito,

sob a égide, portanto, do direito privado.

Acerca dos sistemas estatal e público de radiodifusão, discute-se se são

idênticos ou distintos. Se distintos, diverge-se quanto às suas características

diferenciadoras, especialmente nos serviços televisivos.

O presente trabalho busca abordar tais aspectos, não pretendendo esgotar o

tema. Trata-se de uma singela contribuição a um debate necessário, que vem sendo

travado por distintos atores, com interesses e posições também diversas acerca da

classificação dos serviços de radiodifusão como serviços públicos e do princípio

constitucional da complementaridade dos seus sistemas.

7

1. A REGULAÇÃO DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO BRASIL:

BREVE DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO

1.1 Noções técnicas de radiodifusão e de televisão por radiodifusão.

Antes que seja desenvolvido o tema do presente trabalho, imperioso se faz

apresentar alguns delineamentos técnicos necessários para a compreensão da matéria

jurídica que envolve a radiodifusão e os serviços televisivos prestados por meio desta

técnica, comumente chamados de “televisão aberta”.

Em primeiro lugar, observe-se que a radiodifusão consiste, basicamente, na

transmissão de informação através do espectro eletromagnético. A técnica da

radiodifusão permite que informações como sons, imagens e dados sejam transmitidas

na forma de ondas elétricas e, quando recebidas, convertidas novamente às formas

originais.

Espectro eletromagnético é o espaço por onde as ondas são transmitidas.

Esse espaço, cumpre elucidar, é limitado, pois comporta um determinado número de

faixas de freqüências por onde as ondas elétricas de diferentes tamanhos são enviadas.

Mal comparando, é como se o espectro eletromagnético fosse a malha

viária, composta por ruas, avenidas, rodovias, espaço por onde trafegam ônibus, carros,

motos etc., estes sendo as ondas eletromagnéticas que transportam as informações, que

podem ser de serviços de televisão, rádio, telefonia e internet sem fio, entre outros.

A televisão por radiodifusão consiste no envio de ondas que contém

informações de sons e imagens por meio do espectro eletromagnético e no recebimento

dessas ondas por um aparelho televisor, que as converte à forma de sons e imagens

novamente.

Neste sentido, “televisão é o processo técnico de transmissão de imagens a

distância, mediante a conversão de ondas luminosas em elétricas e a posterior

8

reconversão à forma anterior”1, sendo que o meio por onde essas ondas trafegam, no

caso da radiodifusão, é o espectro eletromagnético.

Nas ciências jurídicas, Ericson Meister Scorsim, advogado e Doutor pela

Universidade de São Paulo, apresenta o conceito técnico do serviço de televisão por

radiodifusão, nos seguintes termos:

“O serviço de televisão por radiodifusão é prestado mediante a transmissão

pela estação de radiodifusão dos sinais de vídeo e áudio, com a utilização do

espaço eletromagnético para fins de propagação das ondas radioelétricas

(mediante a consignação de um canal de freqüência de 6 MHz a cada

concessão do serviço), com o amparo de uma rede de antenas, localizadas

em terra, de repetição e retransmissão dos sinais, e com o auxílio de

satélites, até os domicílios dos receptores”2.

É esta a definição adotada no presente trabalho. Sendo assim,

suficientemente aclarados, mesmo que de maneira superficial, os aspectos técnicos que

permeiam o objeto em estudo, passa-se à indispensável exposição de um breve histórico

da regulação dos serviços de radiodifusão no Brasil.

1.2 Do rádio à televisão: 1922 a 1950

A primeira transmissão de ondas radiodifusoras no Brasil aconteceu em 7 de

julho de 1922, na cidade do Rio de Janeiro. Naquela ocasião, reproduziu-se o discurso

do Presidente da República Epitácio Pessoa para menos de 100 aparelhos receptores

trazidos dos Estados Unidos e espalhados pela cidade.

Não havia no País, ainda, regulação jurídica da atividade de radiodifusão.

Nas palavras de Bruno Vicchi, “dado o seu ineditismo, as Constituições Federais

brasileiras de 1824 e 1891 não trataram do tema radiocomunicação/radiodifusão. Do

ponto de vista legal, a radiocomunicação/radiodifusão, no Brasil, nasce somente em 27

1 BITTAR. Televisão. In: Enciclopédia saraiva do direito, p. 188.

2 SCORSIM, Ericson Meister. TV digital e comunicação social: aspectos regulatórios: TVs pública, estatal e

privada. Belo Horizonte: ed. Fórum, 2008. p. 97.

9

de maio de 1931, com a publicação do Dec. 20.047, subscrito pelo então Presidente da

República, Sr. Getúlio Vargas.”3.

Citado Decreto aprovou o Regulamento da Execução dos Serviços de

Radiocomunicação no país, fixando a competência exclusiva da União para disciplinar,

entre outras modalidades de comunicações, a radiodifusão. Em seguida, foi editado o

Decreto nº 21.111/32, com o objetivo de complementar o anterior, especificamente

estabelecendo a competência exclusiva da União para legislar e explorar serviços de

“radiocomunicação”, diretamente ou mediante concessões e permissões.

Este último Decreto trouxe à ordem jurídica brasileira, além da definição de

“radiocomunicação” como a transmissão ou recepção sem fio, de escritos, signos,

sinais, imagens ou sons de qualquer natureza, por meio de ondas hertzianas, a

explicitação dos conceitos de radiodifusão, que seria a “radiocomunicação de sons e

imagens destinada a ser livremente recebida pelo público”, e, em antecipação aos

serviços existentes no país, apresentou o conceito de radiotelevisão, como sendo

“radiocomunicação de imagens animadas”, embora ainda não existissem emissoras de

televisão no Brasil.

Em 1934 a “radiocomunicação” ganha previsão constitucional. A Carta

Magna daquele ano foi a primeira a contemplar, em seu artigo 5º, inciso VIII, a

competência privativa da União para “explorar ou dar em concessão os serviços de

telégrafos, radiocomunicação e navegação aérea”.

Em seguida, a Constituição de 1937 é a primeira a exibir a expressão

“radiodifusão”. No entanto, a previsão constitucional foi concebida para possibilitar a

prática da censura prévia, conforme se depreende do artigo 122, item 15, alínea a.

Por sua vez, a Constituição de 1946 altera a sistemática anteriormente

estabelecida, separando os serviços de radiodifusão das modalidades de

radiocomunicação. “Para Saint-Clair Lopes, a preocupação jurídica na década de 40

consistia na destinação das emissões, o que configuraria o critério para distinguir a

radiocomunicação (destinação certa e determinada de suas emissões) em face da

3 VICCHI, Bruno. In BITELLI, Marcos Alberto Sant’Anna. O direito da comunicação e da comunicação

social – São Paulo : ed. Revista dos Tribunais, 2004. p. 93.

10

radiodifusão (destinada ao público em geral, sem limitações de destino, orientando-se

no sentido da universalidade) (...)”4.

Acerca do tratamento constitucional conferido à radiodifusão em 1946, é

mister trazer à colação a detalhada lição de Antonio Chaves5, que data de 1952:

“Nossa Constituição define a radiodifusão como serviço público, suscetível

de concessão por prazo determinado, uma vez que atribui à União, art. 5º,

XII, „explorar diretamente ou mediante autorização ou concessão os

serviços telégrafos, de radiocomunicação, de radiodifusão, de telefones

interestaduais e internacionais‟, além de outros. A radiodifusão, portanto, é

um serviço público, da competência da União (...). Encontramo-nos, assim,

num meio termo entre os países que, como a Grã-Bretanha, consideram a

radiodifusão atividade intimamente ligada a interesses públicos, exercendo-

a diretamente, e os países da doutrina oposta, como os EE.UU., que a

consideram como atividade comercial privada. Desde logo se observa que a

Constituição não tem a radiodifusão na conta de uma das modalidades de

radiocomunicação, uma vez que as menciona separadamente, daí deduzindo

a Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara Federal, no relatório

citado, que devam ser autônomas as leis respectivas. (...) Conclui-se que no

Brasil a radiodifusão é um serviço público de competência da União, que

pode atribuir sua execução a particulares, por meio de concessão, e a

entidades públicas e administrativas, mediante autorização (...)”.

Não obstante os termos constitucionais da época distinguirem a radiodifusão

da radiocomunicação, foi ratificada pelo Brasil a Convenção Internacional de

Telecomunicações de Atlantic City, em 1947, revista em Buenos Aires em 1952, que

estabeleceu: (i) “telecomunicação” como toda transmissão ou recepção de símbolos,

sinais, fac-símiles, imagens, sons ou informações de qualquer natureza, por fio,

radioeletricidade, meios óticos ou outros sistemas eletromagnéticos; (ii)

“radiocomunicação” como toda telecomunicação por meio de ondas hertizianas e; (iii)

4 In SCORSIM, Ericson Meister. Op. cit. p. 45.

5 CHAVES, Antonio. Proteção internacional do direito autoral de radiodifusão. São Paulo ; Empresa

Gráfica da RT.

11

“radiodifusão” como serviço de radiocomunicação que efetua emissões destinadas à

recepção direta pelo público em geral, que pode compreender emissões sonoras, de

televisão ou de fac-símiles e outras espécies.

Conforme se observa, a Constituição de 1946 não estabeleceu as diretrizes

para a radiodifusão e a radiocomunicação em observância estrita aos padrões

internacionais, mas levou em conta os fins da radiodifusão perante a sociedade, mesmo

que isso tenha significado deficiência no delineamento técnico dos serviços. A este

respeito, mais uma vez são pertinentes as palavras de Saint-Clair Lopes6: “justifica-se,

porém, a heresia técnica do texto constitucional. O legislador viu mais longe do que o

emaranhado de fios e válvulas; compreendeu a missão social da radiodifusão e

destacou-a como era mister”.

Sob este contexto regulatório foi estreada, em 1950, na cidade de São Paulo,

pelas mãos de Assis Chateaubriand, a televisão brasileira. Fernando Morais narra o

episódio com riqueza de detalhes tanta que é possível visualizar a tensão e a euforia que

pairaram sobre o evento, valendo a transcrição:

“Às sete em ponto (do dia 18 de setembro de 1950), como tinha sido

marcado, o salão do restaurante do Jockey Club fervilhava de gente. Em

pontos estratégicos da cidade foram instalados 22 receptores nas vitrinas das

dezessete lojas revendedoras de televisores, em quatro bares e no saguão

dos Diários Associados, na Rua Sete de Abril. No estúdio também estava

tudo preparado: as três câmeras que iam transmitir o primeiro programa

estavam prontas, e no chão as marcações com giz indicavam onde cada

artista deveria se colocar. Longe do alcance das lentes, espalhavam-se por

todos os cantos as „dálias‟ – pedaços de cartolina com os lembretes das falas

de cada um dos apresentadores e cantores. Suando nas mãos, Walter Foster

esperava a luz vermelha da câmera um se acender para pronunciar uma

breve mensagem: Está no ar a PRF-3-TV Tupi de São Paulo, a primeira

estação de televisão da América Latina. Para desespero generalizado,

aconteceu o que ninguém poderia imaginar: uma das câmeras pifou. Não é

verdadeira a versão de que o defeito tenha sido provocado por uma garrafa

6 In SCORSIM, op. cit.

12

de champanhe quebrada na câmera (...). Com uma hora e meia de atraso

(...), o que Obermüller viu na tela, ao contrário da tragédia que previra, foi

um programa correto do começo ao fim. Improvisado e irresponsável, é

certo, mas impecável. Ao final de duas horas de programação, só um

especialista familiarizado com o funcionamento de um canal de TV (...)

poderia perceber que apenas duas, e não três câmeras, haviam focalizado

Walter Foster (...)”7.

1.3 Das emissoras locais de televisão à criação da Embratel: 1950 a 1965

No Brasil, até a década de 1960, as regras que regiam o setor de

telecomunicações eram fragmentadas e apresentavam-se por meros decretos. Não

existia um sistema normativo congruente que adotasse padrões obrigatórios de

transmissão. Nesse cenário, empresas locais e regionais prestavam os serviços de

radiodifusão adotando diferentes formatos técnicos, de modo não coordenado, o que

dificultava a repetição das ondas eletromagnéticas por estações retransmissoras e

impedia a formação de uma rede nacional.

Durante a década de 1950, as transmissões da televisão limitavam-se ao

espaço onde estavam instaladas as antenas, cujo sinal era captado pelos telespectadores

em um raio máximo de 100 quilômetros do transmissor. É Priolli quem bem resume

esse período, explicando que “a televisão brasileira, portanto, nasceu local e assim

permaneceu por uma década, antes de que a evolução técnica a projetasse além das

fronteiras municipais”8.

Esse panorama começa a ser alterado em 1962, quando a Lei 4.117, de 27

de agosto instituiu o Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT. Foi previsto no

diploma a competência da União para executar diretamente os serviços de radiodifusão

ou através da concessão, autorização ou permissão. O CBT apresentava uma unicidade

entre serviços de radiodifusão ou radiocomunicação, espécies do gênero

7 In BITELLI, Marcos Alberto Sant’Anna. Op. cit. p. 89.

8 PRIOLLI. Antenas da Brasilidade. In: BUCCI, Eugênio (Org.). A TV aos 50: criticando a televisão brasileira

no seu cinqüentenário. In SCORSIM, Ericson Meister. p. 49

13

telecomunicações, conforme o artigo 4º. Nesse sentido, o serviço de radiodifusão não

foi disposto como um conceito autônomo, apenas sendo um dos serviços de

telecomunicações, nos termos do artigo 6º, alínea d.

A novidade trazida pelo Código Brasileiro de Telecomunicações, no

entanto, consistiu na autorização para que fosse criada, pela União, uma entidade

destinada à exploração de “serviços dos troncos que integram o Sistema Nacional de

Telecomunicações, inclusive suas conexões internacionais” e também dos “serviços

públicos de telégrafos, de telefonia interestaduais e de radiocomunicações, ressalvadas

as exceções legais”.

No ano seguinte à publicação do diploma legal foi aprovado o Regulamento

dos Serviços de Radiodifusão, por meio do Decreto nº 52.795/63, que classificou a

atividade quanto ao tipo de transmissão (de sons ou de sons e imagens), quanto à área

de serviço (local, regional e nacional), quanto ao tipo de modulação (amplitude

modulada – AM – ou freqüência modulada – FM), quanto ao tempo de funcionamento

(horário limitado ou ilimitado) e quanto à faixa de freqüência e comprimento das ondas

radioelétricas, de acordo com os critérios estabelecidos no item 5º do artigo 4º.

Dois anos depois, em 1965, foi criada, pela União, a entidade autorizada

pelo CBT que organizaria o setor das telecomunicações nacionalmente. Sob a forma de

empresa pública, passa a existir a Empresa Brasileira de Telecomunicações –

EMBRATEL. Eugenio Bucci faz uma sucinta, porém esclarecedora, narração do

surgimento da entidade, nas seguintes palavras:

“A Embratel nasceu em 16 de setembro de 1965, sob a ditadura militar. Sua

origem não pertence à tradição autoritária, mas deve ser buscada no período

anterior: a autorização para sua criação já se encontrava na lei nº 4.117, de

27 de agosto de 1962, que instituiu o Código Brasileiro de

Telecomunicações. Trata-se, portanto, de uma empresa de inspiração

nacionalista, mas não nos moldes autoritários - seus compromissos com a

doutrina da segurança nacional só iriam acontecer mais tarde. Em 1967, a

Embratel passou a integrar o Ministério das Comunicações, instituído

naquele ano e, em 1972, foi transformada em sociedade de economia mista

14

e virou uma subsidiária da Telebrás, Telecomunicações Brasileiras S. A.,

criada pela lei 5.792, de 11 de julho de 1972”9.

1.4 Das redes nacionais (de integração) aos governos civis democráticos:

1965 a 1985

Conforme se expôs, a televisão brasileira da década de 1950 a meados de

1960 tinha caráter exclusivamente local. No entanto, com a criação da EMBRATEL em

1965 iniciou-se a organização nacional do setor, que em 1967 já contava com três

sistemas de microondas, ligando o Rio de Janeiro a São Paulo, Belo Horizonte e

Brasília.

Em 1969, com a inauguração, no Rio de Janeiro, do primeiro Centro de TV

da Empresa Brasileira de Telecomunicações, foi possível a interligação das emissoras

de TV ao Sistema Nacional de Telecomunicações, tornando-se viáveis as transmissões

nacionais diretas de televisão. Vale dizer, passaram a existir as precondições necessárias

à criação de uma rede nacional de televisão.

Nesse contexto, a Constituição de 1967, em sintonia com o marco

regulatório do setor das telecomunicações, o CBT, concentrou em mãos da União a

competência para a outorga dos serviços de telecomunicações, evitando a dispersão com

os Estados e Municípios, o que poderia prejudicar a organização de um sistema

nacional.

A partir desse cenário normativo a União instalou e administrou a maioria

das operadoras do País, pois, nas palavras de Pastoriza10

, “a idéia básica era criar um

sistema nacional de telecomunicações que permitisse unificar e compatibilizar

tecnicamente a rede, uma vez que a fragmentação da indústria havia produzido grande

heterogeneidade de equipamentos, prejudicando a internalização entre as diversas

regiões do país e elevando o custo de operação do sistema”.

9 BUCCI, Eugênio: disponível em:

http://www2.mre.gov.br/cdBrasil/itamaraty/web/port/comunica/tv/crescim/embratel/index.htm. Acessado em 14.06.2009. 10

In SCORSIM, Ericson Meister. Op. cit. p. 29-30.

15

Ainda em 1967 aprovou-se o Decreto-Lei nº 236, de 28 de fevereiro, que

modificou o Código Brasileiro de Telecomunicações nos aspectos relacionados à

outorga das licenças e instituiu penalidades e regras no controle da concentração da

propriedade das emissoras de rádio e televisão, prevendo-se que cada entidade poderia

ter concessões ou permissões para executar os serviços de radiodifusão de sons e

imagens no número máximo de 10 (dez) em todo o território nacional, sendo limitadas a

5 (cinco) em VHF e 2 (duas) por Estado e, no caso da radiodifusão de sons, estabeleceu

limites locais, regionais e nacionais, nos termos do artigo 12 do referido Decreto-Lei11

.

A implantação desse modelo de concessões e permissões centralizadas na

competência da União foi um dos fatores essenciais para o desenvolvimento da infra-

estrutura de telecomunicações no Brasil. A criação desse sistema nacional significou,

para os militares, uma ferramenta para a concretização do projeto de “integração

nacional”. A Rede Básica de Microondas inaugurada em 1969 permitiu a “interligação

entre as diversas regiões por sistemas confiáveis de telefonia e transmissão de TV, rádio

e dados”, com a “transmissão de programas ao vivo, em tempo real(...)”12

.

Por fim, anote-se que o Código Brasileiro de Telecomunicações e o seu

Regulamento dos Serviços de Radiodifusão continuam em vigência e são, até hoje, os

diplomas que editam as regras a serem observadas nas atividades de rádio e televisão.

A seguir se demonstrará o tratamento conferido pela Constituição Federal

de 1988 e suas Emendas ao setor, bem como as alterações da legislação de regência da

matéria até os dias atuais.

11

Não é preciso uma pesquisa aprofundada para se constatar que essa regra jamais foi respeitada. Hoje, a principal razão desse descumprimento é a estranha interpretação que o Ministério das Comunicações faz da disposição. Venício A. de Lima expõe que “por razões inexplicáveis o Ministério das Comunicações, que deve fiscalizar o cumprimento da lei, interpreta ‘entidade’ como ‘pessoa física’ e considera, portanto, a óbvia situação de propriedade cruzada que predomina em vários grupos de mídia do país como observando as limitações legais”. LIMA, Venício A. de Lima. Mídia: Teoria e Política. São Paulo : ed. Fundação Perseu Abramo. 2007. p 96. 12

SCORSIM, Ericson Meister. p. 30-31.

16

2. A REGULAÇÃO JURÍDICA DOS SERVIÇOS DE RADIODIFUSÃO NO

ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

A Constituição promulgada em 1988 é a primeira na história do Brasil a

dedicar um capítulo exclusivo à comunicação social. O capítulo V, composto pelos

artigos 220 a 224, expõe regras aplicáveis a todos os meios de comunicação social,

impressos ou eletrônicos, como, por exemplo, a vedação à censura, a liberdade de

manifestação do pensamento, criação, expressão e informação, sob qualquer forma,

processo ou veículo, garantindo que essas liberdades não sofrerão qualquer restrição,

observadas as disposições constitucionais.

Além dessas regras de aplicação a todos os meios, a radiodifusão é,

especificamente, objeto de tratamento constitucional nos artigos 221 a 223 da Carta

Magna, bem como no artigo 21, inciso XII, alínea a), donde se depreende o regime

jurídico especial ao qual estão sujeitos o rádio e a televisão, estabelecendo-se a

competência da União para explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão

ou permissão, os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens. Ademais, o artigo

22, inciso IV, estabelece competência privativa da União para legislar sobre o setor, e,

ainda, no artigo 49, inciso XII, se vê que é da competência exclusiva do Congresso

Nacional apreciar os atos de concessão e renovação de concessão de emissoras de rádio

e televisão.

Depreendem-se dos citados dispositivos as competências legislativa e

administrativa sobre a matéria. A começar pela legislativa, observa-se que a União é,

privativamente, competente para estabelecer os diplomas de regência da radiodifusão.

Administrativamente, também compete à União explorar os serviços de rádio e

televisão, sendo que quando houver a exploração por particulares, os atos de outorga e

de renovação das concessões serão apreciados pelo Congresso Nacional, em verdadeira

função fiscalizatória.

Importa anotar que o §4º do artigo 223 da Carta Magna dispõe que o

cancelamento de concessão ou permissão, antes de vencido o prazo de vigência,

17

depende de decisão judicial, sendo a radiodifusão o único serviço que, outorgado ao

particular pela Administração, tem a extinção unilateral da concessão ou permissão,

antes de decorrido o prazo de vigência, condicionada ao Poder Judiciário.

O prazo de vigência das concessões, nos termos do artigo 223, § 5º da CF, é

de dez anos para as emissoras de rádio e de quinze para as de televisão. Tal previsão

também é encontrada no artigo 33, §3º, do Código Brasileiro de Telecomunicações e no

artigo 27 do Decreto 52. 795 de 1963, de onde se extrai que as concessões poderão ser

renovadas por igual período, dependendo de decisão do Estado e mediante determinadas

condições.

Nesse sentido, estabelece o § 2º do artigo 223 da Constituição Federal que a

não-renovação da concessão dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do

Congresso Nacional, em votação nominal. Não obstante a intenção constituinte de

submeter ao crivo do Congresso Nacional os atos da União pertinentes à radiodifusão,

tal regra não significou uma atuação muito criteriosa dos parlamentares13

. Scorsim

comenta que “na prática, ocorre a renovação automática das concessões”14

.

Uma diferenciação que se faz pertinente é a de “propriedade” das

freqüências concedidas e da propriedade dos meios de comunicação por radiodifusão.

Não há que se fazer tal confusão, pois, em verdade, a propriedade das freqüências por

um particular é juridicamente impossível, sendo concedido pelo Estado apenas a sua

exploração, por prazo determinado e mediante condições previstas no Código Brasileiro

de Telecomunicações, no Regulamento dos Serviços de Radiodifusão e na própria

Constituição Federal. É necessário observar que o que existe, sim, é a propriedade

privada dos meios de produção e de transmissão de conteúdo, por meio dos quais atuam

as empresas privadas nos meios de comunicação.

Nessa esteira, a Constituição Federal traz regras para a propriedade dos

meios de comunicação social. O §5º do artigo 220 estabelece que não pode haver, direta

ou indiretamente, monopólio ou oligopólio no setor. O artigo 222 prevê em seu caput

13

É de se compreender que um senador ou deputado federal não tenha disposição para, abertamente, votar pela não-renovação de uma concessão de rádio ou televisão, sob pena de ser pautado nesses meios de uma forma pouco favorável, sendo prejudicado perante seu eleitorado. 14

SCORSIM, Ericson Meister. Op. cit. p. 327.

18

que “a propriedade de empresa jornalística e de radiodifusão sonora e de sons e

imagens é privativa de brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, ou de

pessoas jurídicas constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sede no País”.

Por fim, cumpre-se anotar a separação entre telecomunicações e

radiodifusão procedida pela Emenda Constitucional nº 8 de 1995. Decorreu dessa

Emenda a distinção jurídica dos serviços de telecomunicações dos serviços de

radiodifusão, sendo editada a Lei nº 9.472, de 1997, Lei Geral de Telecomunicações,

para a disciplina daqueles, e estes permaneceram sob a égide da Lei nº 4.117, de 1962, o

Código Brasileiro de Telecomunicações.

Sendo assim, apresentadas as normas pertinentes aos serviços de

radiodifusão no Estado Democrático de Direito, necessário agora analisá-los à luz do

Direito Administrativo quanto ao enquadramento da atividade como serviço público.

2.1 Os serviços de radiodifusão como serviços públicos

Doutrinariamente, são apresentados elementos dos serviços públicos aos

quais os serviços de radiodifusão se enquadram sem maiores dificuldades, não obstante

suas especificidades estabelecidas em nosso ordenamento pelo constituinte e pelo

legislador ordinário, sobre as quais se tratou no capítulo anterior.

Neste ponto é necessário observar que o conceito de “serviço público” é

objeto de grandes divergências doutrinárias. Isso porque tal definição vincula-se às

diversas percepções acerca do papel do Estado perante a sociedade e o mercado e, por

isso, modifica-se de acordo com as diferentes convicções dos autores.

Portanto, não se buscará, aqui, a definição do que seja serviço público,

sendo certo que tal não é objeto do trabalho. O que se pretende com este capítulo é

trazer à tona as formulações doutrinárias sobre os elementos comuns aos serviços

públicos para que tais traços sejam identificados nos serviços de radiodifusão.

19

2.2 Elementos dos serviços públicos.

Na lição de Odete Medauar15

, as atividades qualificadas como serviços

públicos devem apresentar dois elementos: “a) vínculo orgânico com a Administração,

que tem previsão constitucional no caput do art. 175, e; b) quanto ao regime jurídico, a

atividade de prestação é submetida total ou parcialmente ao direito administrativo.”

(destaques da autora).

Celso Antônio Bandeira de Mello16

também apresenta dois elementos que

compõem a noção de serviço público: “(a) um deles, que é seu substrato material,

consistente na prestação de utilidade ou comodidade fruível singularmente pelos

administrados; o outro, (b) traço formal indispensável, que lhe dá justamente caráter de

noção jurídica, consistente em um específico regime de Direito Público, isto é, numa

„unidade normativa‟.” (destaques do autor).

Destas lições é possível a extração de três elementos dos serviços públicos:

o subjetivo, o material e o formal. Tais são apresentados por Maria Sylvia Zanella Di

Pietro17

, que ensina terem surgido no período do Estado Liberal e que permanecem

compondo a definição dos serviços públicos, com sensíveis diferenças com relação à

sua concepção original devido à evolução histórica.

O elemento subjetivo é apresentado por Odete Medauar como o “vínculo

orgânico [do serviço] com a Administração”, que corresponde à titularidade do Estado

sobre a atividade. Para Di Pietro, a criação de serviço público é feita por lei, como

opção do Estado na execução de determinada atividade que não parece ser conveniente

depender da iniciativa privada, sendo que a sua gestão também é incumbência do

Estado, direta ou indiretamente.

O elemento material é, nas palavras nunca demais citadas de Celso Antônio

Bandeira de Mello, a caracterização do serviço como de “utilidade ou comodidade

15

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno – 11. ed. – São Paulo : Revista dos Tribunais, 2007. p. 315. 16

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo – 26. ed. – São Paulo :

Malheiros, 2009. p. 668. 17

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo – 19ª ed. – São Paulo : Atlas, 2006. p. 112-116.

20

fruível singularmente pelos administrados”. A este respeito, depreende-se da lição de Di

Pietro que os autores “todos consideram que o serviço público corresponde a uma

atividade de interesse público”18

, mas a professora ressalva que nem toda atividade de

interesse público é serviço público, pois algumas delas, quando exercidas por

particulares, tem como objetivo primeiro a satisfação do interesse do próprio prestador,

e não o interesse geral, que também é contemplado pela atividade, mas de forma

secundária. Sendo assim, pontua a autora que é necessário que a lei atribua o objetivo de

interesse público ao Estado para que se caracterize o serviço público.

Quanto ao elemento formal, trata-se da sujeição do serviço a um regime

específico de direito público. Sobre o assunto, Medauar admite a aplicação total ou

parcial do Direito Administrativo ao serviço público. Importa apresentar também a lição

de Di Pietro, que estabelece uma divisão entre serviços públicos não comerciais e não

industriais e serviços públicos comerciais e industriais para a definição do elemento

formal de cada um deles, vale dizer, a caracterização dos regimes jurídicos aplicáveis

nos diferentes casos. É pertinente a transcrição destes ensinamentos, que por sua riqueza

e exatidão não se faz possível o resumo:

“O regime jurídico a que se submete o serviço público também é definido

por lei. Para determinados tipos de serviços (não comerciais ou industriais)

o regime jurídico é de direito público: nesse caso, os agentes são

estatutários; os bens são públicos; as decisões apresentam todos os atributos

do ato administrativo, em especial a presunção de veracidade e a

executoriedade; a responsabilidade é objetiva, os contratos regem-se pelo

direito administrativo. Evidentemente, isso não exclui a possibilidade de

utilização de institutos de direito privado, em determinadas circunstâncias

previstas em lei, especialmente em matéria de contratos como os de locação,

comodato, enfiteuse, compra e venda.

Quando, porém, se trata de serviços comerciais e industriais, o seu regime

jurídico é o de direito comum (civil e comercial), derrogado, ora mais ora

menos, pelo direito público. Em regra, o pessoal se submete ao direito do

18

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Op. cit. p. 115

21

trabalho, com equiparação aos funcionários públicos para determinados fins;

os contratos com terceiros submetem-se, em regra, ao direito comum; os

bens não afetados à realização do serviço público submetem-se ao direito

privado, enquanto os vinculados ao serviço têm regime semelhante ao dos

bens públicos de uso especial; a responsabilidade, que até recentemente era

subjetiva, passou a ser objetiva com a norma do artigo 37, § 6º, da

Constituição de 1988. Aplica-se também o direito público no que diz

respeito às relações entre a entidade prestadora do serviço e a pessoa

jurídica política que a instituiu. Vale dizer, o regime jurídico, nesse caso, é

híbrido, podendo prevalecer o direito público ou o direito privado,

dependendo do que dispuser a lei em cada caso; nunca se aplicará, em sua

inteireza, o direito comum tal qual aplicado às empresas privadas.”

É de se destacar que as diferentes formulações doutrinárias não se anulam,

pelo contrário, apresentam integralmente o elemento formal dos serviços públicos, na

medida em que aplicado o regime do direito administrativo em maior ou menor

proporção em cada caso, em nenhum deles a atividade poderá fugir do interesse público

e sempre estará submetida a um regime de direito público elaborado em função de

valores previstos de forma especial nas normas de regência da atividade.

Sendo assim, definidos os elementos dos serviços públicos conforme os

ensinamentos da melhor doutrina pátria, passa-se à identificação de tais características

nos serviços de radiodifusão.

2.3 Identificação dos elementos dos serviços públicos nas atividades de

radiodifusão

2.3.1 Elemento subjetivo dos serviços públicos de radiodifusão

Neste item, cumpre demonstrar a titularidade estatal dos serviços de

radiodifusão no sistema normativo pátrio, não obstante alguns dos dispositivos que

22

trazem essa regra já terem sido citados no capítulo que tratou da regulação dos serviços

de radiodifusão no Estado Democrático de Direito.

Em primeiro lugar, importa trazer à colação o disposto no artigo 21, inciso

XII, alínea a) da Constituição Federal:

“Art. 21. Compete à União:

(...)

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou

permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens;”

Depreende-se da regra constitucional, sem margem para dúvidas, que a

União é titular dos serviços de radiodifusão, podendo explorá-los diretamente e também

transferir a prestação da atividade a particulares, mediante autorização, concessão ou

permissão.

Neste sentido, estabelece o caput do artigo 223 da Carta Magna que

“compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e autorização

para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens, observado o princípio da

complementaridade dos sistemas privado, público e estatal”.

Como se vê, é notório o vínculo das atividades de radiodifusão com o

Estado, em sua esfera federal, conferido pelo constituinte, identificando-se facilmente,

portanto, o elemento subjetivo desse serviço público. Ademais, não obstante a

titularidade dos serviços de radiodifusão, estes compõem a única espécie de serviços

públicos em que o Estado tem a obrigação de prestar diretamente e também de outorgar

aos particulares, por força do princípio da complementaridade dos sistemas. Tal aspecto

é analisado mais detidamente no próximo capítulo, que trata especificamente deste

princípio constitucional.

Evidenciado, portanto, que a titularidade dos serviços de radiodifusão é do

Estado, especificamente da União, a ela competindo a sua prestação direta e também os

23

atos de concessão, permissão ou autorização da prestação dos serviços, é necessário

diferenciar a titularidade dos serviços e a prestação dos serviços. Resumidamente, na

lição de Celso Antônio Bandeira de Mello19

, a titularidade dos serviços públicos é

sempre do Estado e o que se consigna ao particular é somente a prestação de tais

serviços.

Neste diapasão, dispõe o parágrafo único do artigo 24 do Regulamento dos

Serviços de Radiodifusão (Decreto n.º 52.795/63) que “em qualquer caso, as

freqüências consignadas não constituem direito de propriedade da entidade, incidindo

sempre sobre as mesmas o direito de posse da União”. Resta claro, portanto, a diferença

entre a titularidade dos serviços de radiodifusão, que é do Estado, e a prestação, que

pode ser direta ou indireta.

Sendo assim, demonstrado o elemento subjetivo dos serviços públicos de

radiodifusão, passa-se à identificação do seu elemento material.

2.3.2 Elemento material dos serviços públicos de radiodifusão

Em primeiro lugar, para definir o elemento material dos serviços em estudo,

cumpre expor o papel de utilidade e comodidade que os meios de comunicação por

radiodifusão representam para a população brasileira. Para tanto, é mister apresentar

alguns dados sobre a presença da televisão e do rádio nos lares dos brasileiros.

De acordo com pesquisa realizada em 2005 pelo Comitê Gestor da Internet

no Brasil – CGIBR -, intitulada “Pesquisa Sobre o Uso das Tecnologias da Informação e

da Comunicação No Brasil 2005”, “o bem mais popular no Brasil é a televisão. Mais de

95% das famílias brasileiras possui um aparelho de TV. A TV é mais popular até

mesmo que um bem muito mais barato, o rádio que é propriedade de quase 92% da

população”20

.

19

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit. 20

Trecho extraído do relatório final da pesquisa. Disponível em http://www.cetic.br. Acessado em 14.06.2009.

24

No mesmo sentido concluiu a pesquisa formulada em 2007 pelo Programa

Nacional de Conservação de Energia Elétrica – PROCEL – intitulada “Pesquisa de

Posse de Equipamentos e Hábitos de Consumo”. Segundo os dados colhidos “o

aparelho eletro-eletrônico mais presente nos lares brasileiros é a televisão, com 97,1%

deles contando com pelo menos uma tevê, superando o refrigerador, que pode ser

encontrado em 96% das casas. A força da televisão pode ser medida por outro dado: a

média do número de televisores por residência é de 1,41, ou seja, há mais de um

aparelho do tipo por casa”21

.

Conforme se observa, a televisão é o aparelho eletrodoméstico com maior

presença nos lares brasileiros, estando o rádio também presente em mais de noventa por

cento dos domicílios. Sendo assim, não é preciso muito esforço para reconhecer a

utilidade e a comodidade que esses meios de comunicação representam à população.

No entanto, tal aspecto não é bastante para caracterizar o elemento material

dos serviços de radiodifusão como serviços públicos. Além das estatísticas sobre a

presença dos aparelhos de rádio e televisão nos lares, é necessário compreender o papel

que estes meios de comunicação assumem perante a sociedade brasileira, já que são os

mais difundidos do País.

Não se pode olvidar que estes veículos são centrais à função de informar a

população brasileira, pois nenhum outro meio comunicativo tem inserção tão grande

quanto os de radiodifusão. Sendo assim, é pertinente que tais serviços sejam eleitos

como públicos pelo Estado, pois podem (e devem), efetivamente, satisfazer interesses

gerais de veiculação de conteúdos de caráter educativo, artístico, cultural e informativo,

promovendo a cultura nacional e regional e estimulando a produção independente que

objetive divulgação, nos termos do artigo 221 e incisos da Constituição Federal.

Neste sentido, é mister colacionar a magistral lição de Eros Roberto Grau:

21

Trecho extraído do sítio eletrônico da Eletrobrás, em artigo de título “Procel apresenta pesquisa sobre posse e uso de equipamentos elétricos”, de 18.04.2007. Disponível em http://www.eletrobras.com. Acessado em 14.06.2009.

25

“(...) a comunicação social viabilizada pelas empresas de radiodifusão

sonora e de sons e imagens é, em última instância, instrumental da

concreção da soberania nacional”22

.

2.3.3 Elemento formal dos serviços públicos de radiodifusão

Quanto ao elemento formal, necessário delinear o regime jurídico pertinente

aos serviços de radiodifusão. É ponto pacífico na doutrina que o Direito Administrativo

rege as relações entre o delegante e o delegado23

do serviço público, incidindo sobre a

atividade, portanto, os princípios que informam a atuação do Estado e seus atos de

outorga.

É de se destacar que a Constituição Federal apresenta, no artigo 221,

princípios a serem atendidos pelas emissoras de rádio e televisão, bem como o

Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (aprovado pelo Decreto nº 52795/6), em seu

artigo 67 dispõe que as concessionárias e permissionárias dos serviços deverão atender

uma série de exigências, dentre as quais destacam-se a limitação a um máximo de vinte

e cinco por cento do horário da programação diária o tempo destinado à publicidade

comercial e destinar no mínimo cinco por cento para a transmissão de serviço noticioso.

Tais disposições compõem, exatamente, a unidade normativa que

caracteriza o elemento formal de um serviço público, a qual Celso Antônio Bandeira de

Mello preleciona ser “(...) formada por princípios e regras caracterizados pela

supremacia do interesse público sobre o interesse privado e por restrições especiais,

firmados uns e outros em função da defesa de valores especialmente qualificados no

sistema normativo”24

.

Sobre a forma de escolha do particular que irá prestar serviços de

radiodifusão, tratando-se de serviço público, deverá ser obedecido o artigo 175 da

Constituição Federal, que prevê a obrigação do Poder Público conceder ou permitir a

22

GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. São Paulo : Malheiros. p. 139. 23

GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 140. 24

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit.

26

atividade sempre através de licitação. A este respeito, o Regulamento supra citado, em

seu artigo 1º, com redação determinada pelo Decreto 2.180/96, estabelece que, quanto à

outorga para execução dos serviços, deverão ser observadas as disposições da Lei

Federal nº 8.666, de 21 de junho de 1993, que traz as regras gerais das licitações.

Há disposição constitucional a ser observada pelos concessionários e

permissionários dos serviços de radiodifusão e pelos parlamentares, que é a do artigo

54, alínea a, do inciso I, onde se estabelece que deputados e senadores não podem

“firmar ou manter contrato com (...) empresa concessionária de serviço público”.

O Código Brasileiro de Telecomunicações estabelece, ainda, a proibição a

quem esteja no gozo de “imunidade parlamentar” e, também, de foro especial, de

exercer função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão,

conforme o parágrafo único do artigo 38.

Nestes termos, estão demonstrados os elementos formal, material e

subjetivo da atividade de radiodifusão, concluindo-se, portanto, que trata-se de um

serviço público. Sendo assim, passa-se à análise do princípio da complementaridade dos

sistemas de radiodifusão.

27

3. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA COMPLEMENTARIDADE DOS

SISTEMAS DE RADIODIFUSÃO: COMENTÁRIOS AO CAPUT DO ART. 223

Dispõe o artigo 223, caput, da Constituição Federal de 1988:

“Compete ao Poder Executivo outorgar e renovar concessão, permissão e

autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens,

observado o princípio da complementaridade dos sistemas privado, público

e estatal”.

Este dispositivo traz verdadeira inovação ao ordenamento jurídico pátrio. A

previsão do princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal de

radiodifusão não existiu nas Constituições anteriores à de 1988. O preceito é um sopro

da grande inspiração democrática que pautou os trabalhos da Assembléia Constituinte,

devendo, portanto, ser analisado sob esta perspectiva.

Não há melhor maneira de iniciar a digressão sobre o princípio senão

colacionando a didática lição de Celso Antônio Bandeira de Mello25

sobre esta peculiar

espécie de serviço público, que é a radiodifusão:

“Há uma espécie de serviços públicos que o Estado, conquanto obrigado a

prestar por si ou por criatura sua, é também obrigado a oferecer em

concessão, permissão ou autorização: são os serviços de radiodifusão sonora

(rádio) ou de sons e imagens (televisão). Isto porque o art. 223 determina

que, na matéria, seja observado o princípio da complementaridade dos

sistemas privado, público e estatal. Se esta complementaridade deve ser

observada, o Estado não pode se ausentar de atuação direta em tal campo,

nem pode deixar de concedê-los, pena de faltar um dos elementos do

trinômio constitucionalmente mencionado”.

Conforme se depreende, o princípio constitucional significa que, além da

radiodifusão privada, deverão existir a pública e a estatal. O professor apresenta a

25

Op. cit. p. 683.

28

necessidade de o Estado prestar os serviços diretamente, constituindo este o sistema

estatal, bem como a obrigação em conceder a prestação, sendo esta a configuração do

sistema privado26

.

Em sentido diverso é a palavra de Ives Gandra Martins27

, que ao tecer suas

considerações sobre o dispositivo constitucional que trouxe o preceito ao nosso

ordenamento, prega:

“O princípio da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal

diz respeito a que a atuação do Poder Executivo apenas complementará a

atuação dos setores privado, público e estatal. Isso confirma a interpretação

ofertada na primeira parte destes comentários, vale dizer, a competência

formal de atribuições é complementar, no que diz respeito à liberdade de

ação, estando a exploração privada em primeiro lugar”

Tal posicionamento, com o devido respeito, não condiz com os preceitos

regentes do regime jurídico da radiodifusão e seus sistemas. Um serviço público, cuja

prestação e exploração é outorgada pelo Estado, deve reger-se pelos princípios da

indisponibilidade e da supremacia do interesse público sobre o privado (BANDEIRA

DE MELLO, Celso Antônio. 2009) e, conforme se demonstrará, nem sempre os

interesses dos radiodifusores comerciais se coadunam com os interesses e as demandas

da coletividade. Nessa trilha, não se pode entender que o particular tenha preferência na

exploração da atividade de radiodifusão frente ao próprio Estado, pois desta maneira o

serviço público estaria sendo desviado de sua própria finalidade, que é a satisfação do

interesse público.

Mais adequada é a lição de José Afonso da Silva28

:

“Importante é frisar que a Constituição autoriza sistemas públicos de

radiodifusão, e o princípio da complementaridade, aí, não significa que o

sistema diretamente explorado pelo Poder Público complementa o privado.

26

Não obstante o mestre referir-se ao “trinômio” constitucional, não há em sua lição elementos que diferenciem os sistemas público e estatal. Essa distinção será estudada adiante, em item pertinente. 27

BASTOS, Celso Ribeiro, MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, vol. 8, 1998, ed. Saraiva. São Paulo. p. 866. 28

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. São Paulo : Malheiros, 2009. p. 833.

29

O princípio da complementaridade, nesse sentido, só se aplica às atividades

econômicas, não pode aplicar-se à exploração de serviço público. Seria

absurdo que o próprio titular do serviço o explorasse apenas como

complemento de delegações que ele próprio outorga para exploração desses

serviços.”

Esta última interpretação, ao que parece, é mais fiel à intenção do

constituinte. Nada melhor que as palavras do próprio relator do capítulo da

Comunicação Social da Constituição Federal, o pranteado ex-deputado Artur da Távola,

para delinear o sentido original do preceito e corroborar o posicionamento:

" (...) Eu era o Relator da matéria e considerava que o mais importante era

algo que significasse a democratização na outorga dos canais. (...) E eu

defendia a tese de haver um equilíbrio na concessão. Parecia-me que,

havendo um equilíbrio na concessão, se alcançaria o pressuposto da

democratização nos meios de informação. Então, criei ali a figura da

complementaridade do sistema. Eu era Relator e criei esta figura, que a

autorização, a concessão, a permissão para o serviço de radiodifusão sonora

e de sons e imagens observasse o princípio de uma complementaridade dos

sistemas privado, público e estatal (...).”29

Como se observa, é de grande inspiração democrática o dispositivo,

permitindo-se concluir que a interpretação no sentido de que o sistema privado é o

prioritário e que os público e estatal cumprem papel meramente coadjuvante é

inapropriada e não deve prevalecer.

Nem se queira argumentar que “a única forma de permitir que a liberdade

de imprensa [na radiodifusão] não seja afetada por preferência ou dirigismo

decorrentes de interesses dos detentores do poder reside em considerar que o

29

Exposição feita em reunião da antiga Subcomissão de Rádio e Televisão da Comissão de Educação do Senado Federal, realizada em 9 de setembro de 1999, citada por Venício A. de Lima em em seu artigo intitulado O Princípio da Complementaridade. Disponível em: http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art233.asp . Acessado em 14.06.2009

30

dispositivo [art. 223 da CF] é formal”, sendo certo que “se houver canais disponíveis,

não poderão ser negadas as concessões(...)”30

.

Ora, trespassar por inteiro a prestação dos serviços de radiodifusão à

iniciativa privada não parece, nem de longe, uma solução ou garantia à liberdade de

imprensa e de expressão que, diga-se, devem ser amplamente respeitadas no Estado

Democrático de Direito.

Pelo contrário, um sistema privado comercial de radiodifusão hipertrofiado

é prejudicial a tais liberdades e nocivo à própria democracia. Isso se diz porque os

atores comerciais defendem interesses próprios que podem, por vezes, censurar posições

divergentes e colidir com o interesse público.

Deve-se ter em consideração que ao se conceder à exploração comercial

todos os canais de radiodifusão disponíveis, os interesses privados dos empresários e de

seus “colaboradores” serão defendidos unanimemente nas programações. Não está se

pretendendo, aqui, a supressão dessa defesa, mas ela deve ser contraposta, debatida e,

porque não, combatida por aqueles que defendem outro posicionamento. É assim que

deve ocorrer se o que está se querendo salvaguardar são as liberdades de expressão e de

imprensa.

Para tanto, é necessário que existam espaços para a veiculação dos

contrapontos, e esses espaços só podem ser os sistemas público e estatal de

radiodifusão. Nesse sentido, sobre o princípio da complementaridade, Scorsim aponta:

“Trata-se de uma manifestação particular do princípio do pluralismo no

campo da comunicação social por meio da radiodifusão em prol da

estruturação policêntrica do sistema de radiodifusão, isto é, em favor da

diversidade das fontes de informação e da multiplicidade de conteúdos

audiovisuais para a sociedade brasileira. Vale dizer, a interpretação da

referida norma constitucional deve ser feita com base no princípio do

pluralismo nos seus âmbitos quantitativo (pluralidade de estruturas

organizacionais comunicativas) e qualitativo (pluralidade de conteúdo

audiovisual diverso). Assim deve ser porque tal norma tem por função a

30

MARTINS, Ives Gandra. Op. cit., p. 865.

31

oferta equilibrada de programas de televisão nos setores privados, público e

estatal, cabendo ao Estado a adoção de normas e procedimentos para

cumprir tal tarefa (...)”31

.

É de se evidenciar que na ausência dos instrumentos de radiodifusão pública

e estatal prevalecerá na programação, em uníssono, cotidianamente, a exposição de

conteúdos sob um enfoque de interesse privado que, por vezes, não respeitarão sequer

os direitos humanos32

.

Denota-se, portanto, que a radiodifusão constituída nestes moldes, com a

predominância do sistema privado sobre o público e o estatal, por si só, contraria os

princípios da indisponibilidade e da supremacia do interesse público sobre o privado e

não é esse, por óbvio, o sentido do princípio da complementaridade.

Para além das ciências jurídicas, são rechaçadas as convicções de inspiração

liberal sobre meios de comunicação e liberdade de imprensa, como as apresentadas por

Martins. Especificamente na área do conhecimento humano das Comunicações, Venício

A. de Lima preleciona que:

“Na verdade, estudos feitos a partir dessa perspectiva [liberal] trazem

implícitos pressupostos que muitas vezes conduzem a sérios equívocos de

interpretação e análise. Em primeiro lugar, alguns estudos supõem que as

instituições da mídia são autônomas e servem ao „interesse, à conveniência

e às necessidades do público‟, além de serem fiscais (watchdogs) numa

permanente relação de confronto com o governo. (...) Muitos estudos sobre

a relação entre mídia e política acabam por descartar a possibilidade de que

a mídia, ela própria, com freqüência e deliberadamente distorce, omite e

promove informação com objetivo político. Esse objetivo pode ou não estar

31

SCORSIM, Ericson Meister. Op. Cit. 32

Citando apenas um exemplo, foi o que ocorreu com o programa “Tardes Quentes”, capitaneado pelo apresentador João Kleber. Vale uma leitura sobre o assunto: INTERVOZES. A sociedade ocupa a TV - o caso Direitos de Resposta e o controle público da mídia. 2007. Disponível em: http://www.c3fes.net/docs/direitos.pdf. Acessado em 14.06.2009

32

alinhado com os interesses do regime, numa determinada circunstância e

num determinado momento.”33

A melhor ilustração desta criticada perspectiva encontra-se em discurso de

Roberto Marinho, ex-presidente das Organizações Globo, em entrevista concedida ao

The New York Times (RIDING, 1987, p. A4):

“Sim, eu uso o poder [da Rede Globo de Televisão], mas eu sempre faço

isso patrioticamente, tentando corrigir as coisas, buscando os melhores

caminhos para o país e seus estados. Nós gostaríamos de ter poder para

consertar tudo o que não funciona no Brasil. Nós dedicamos todo o nosso

poder para isso. Se o poder é usado para desarticular o país, para destruir

seus costumes, então, isso não é bom, mas se é usado para melhorar as

coisas, como nós fazemos, isso é bom”.

Como se vê, amplamente respeitada a liberdade de imprensa dos

concessionários comerciais da radiodifusão. Mas se vê também que essa liberdade

torna-se verdadeira afronta ao interesse público e privilégio dos empresários se somente

a eles forem outorgados os serviços de rádio e televisão. Fica evidente, mais uma vez,

que o princípio da complementaridade não foi elaborado com este sentido. Pelo

contrário, o constituinte buscou, justamente, eliminar esta prática.

Nesta senda, a complementaridade dos sistemas de radiodifusão quer

significar que as outorgas devem ser estendidas a outros atores, que prestarão os

serviços sob postulados diferentes dos abraçados pela iniciativa privada, sendo que o

indigitado princípio constitucional visa garantir a existência dos sistemas público e

estatal nas mesmas proporções do privado.

No entanto, ainda hoje, quando se liga o aparelho de rádio ou de televisão o

que se percebe é à hegemonia do sistema privado. Em cada faixa do espectro a

programação predominante é a comercial, em clara inobservância ao preceito da

complementaridade dos sistemas. Diante desta constatação, não se pode dizer

desproporcional a defesa de Scorsim no sentido de que, para as outorgas dos serviços de

radiodifusão, deve ser observada a preferência aos atores de caráter público e estatal até

33

Mídia: Teoria e Política. São Paulo : ed. Fundação Perseu Abramo. 2007. p. 143

33

que se corrija a gestão do espaço eletromagnético com vistas ao equilíbrio dos sistemas,

de acordo com o mandamento constitucional34

.

Mais uma vez é pertinente trazer à baila a intelecção produzida por Venício

A. de Lima35

na área das ciências da comunicação, que, quanto ao que chama de

“grande imprensa”, preleciona:

“Outra alternativa – talvez a mais importante – é a mídia estatal, já existente

(Radiobrás, Rede Brasil36

, TVs e rádios educativas), e a mídia pública, que

está ainda por ser construída. Buscar o equilíbrio entre os sistemas privado,

estatal e público é não só uma exigência constitucional (art. 223), mas,

provavelmente, a principal alternativa à hegemonia histórica da mídia

privada e comercial no Brasil.”

Desta feita, conforme preleciona a melhor doutrina de direito administrativo

e constitucional, nos termos das lições ofertadas por Venício de Lima na área dos

conhecimentos da comunicação, e de acordo com a visão do próprio constituinte relator

da matéria, depreende-se que o preceito constitucional em análise caminha no sentido

de que não há hierarquia entre os sistemas de radiodifusão. Vale dizer, os sistemas

público e estatal não devem ser considerados secundários, pois têm importância

fundamental, tanta quanto tem o sistema privado, para que seja alcançado e consolidado

o regime democrático-constitucional no setor.

A seguir, passa-se ao estudo de cada um dos sistemas de radiodifusão no

Brasil, especificamente sobre os serviços de televisão.

3.1 Os sistemas de televisão por radiodifusão

Neste momento serão apresentados os sistemas de televisão por radiodifusão

previstos na Constituição Federal e suas características. A exposição é restringida aos

serviços de radiodifusão de sons e imagens devido às diferenças jurídicas e de fato que

34

p. 258-259. 35

Mídia: crise política e poder no Brasil – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2006. p. 173. 36

Incorporadas à Empresa Brasil de Comunicação (EBC).

34

existem entre este tipo de comunicação e o serviço de radiodifusão de sons, que é o

rádio.

A diferença jurídica mais marcante entre rádio e televisão decorre da Lei nº.

9.612, de 19 de fevereiro de 1998, que instituiu o “Serviço de Radiodifusão

Comunitária”. O artigo 1º deste diploma identifica este tipo de serviço de radiodifusão

como “sonora, em freqüência modulada, operada em baixa potência e cobertura restrita,

outorgada a fundações e associações comunitárias, sem fins lucrativos, com sede na

localidade de prestação do serviço”.

Seria possível dizer que este tipo de rádio compõe o sistema público de

radiodifusão, pois apresenta elementos consonantes a este. No entanto, conforme a se

demonstrará, tal sistema, previsto na Constituição Federal, ainda não tem previsão na

legislação infra constitucional de regência da radiodifusão. Portanto, se buscará na

doutrina as formulações existentes acerca deste sistema.

Na prática, não obstante o rádio estar presente na maioria dos lares

brasileiros conforme já demonstrado, o serviço de maior inserção é, sem dúvida, o de

radiodifusão de sons e imagens, já que em 2007 esteve presente em mais de noventa e

sete por cento dos lares brasileiros, sendo a televisão o aparelho eletrodoméstico que

ganhou o primeiro lugar neste ranking.

Por tais motivos preferiu-se eleger os serviços de radiodifusão de sons e

imagens como objeto de análise. Sendo assim, passa-se a analisar os sistemas privado,

público e estatal, tratando-se especificamente dos serviços de televisão por radiodifusão.

3.2 Sistema privado

O sistema privado de radiodifusão é formado por particulares que recebem

outorga estatal para a execução dos serviços e o fazem com fins lucrativos. Os serviços

de sons e imagens prestados nestes moldes podem ser denominados, portanto, televisão

comercial.

35

Estes atores privados preenchem papel hegemônico em toda a história da

radiodifusão brasileira, situação que permanece nos dias atuais, sendo possível notá-la

empiricamente simplesmente “zapeando” os canais de televisão aberta disponíveis em

nossos televisores.

Aqui se fará uma breve análise da atuação privada no setor televisivo. Em

primeiro lugar deve-se ter em conta que é legítima esta participação, sendo que o

princípio da complementaridade entre os sistemas torna dever da Administração

outorgar os serviços de radiodifusão a estes atores. Isso porque a perspectiva sobre a

qual eles pautam sua programação, marcada pelo interesse privado, não pode ser

censurada e representa os anseios de uma parcela da sociedade, que devem, sem dúvida,

ser expostos.

No entanto, conforme se informou acima, o sistema privado de radiodifusão

é hegemônico no Brasil. Ocorre, portanto, um desequilíbrio entre este e os sistemas

público e estatal, que serão abordados adiante.

É de se destacar que a radiodifusão feita em bases comerciais desempenha,

hoje, papel de verdadeiro espaço público. No entanto, ali são pautados diversos assuntos

sob a perspectiva privada destes agentes somente. Neste sentido, cumpre observar que o

incentivo que a radiodifusão privada possui para maximizar suas receitas é a ampliação

de sua audiência, agregando maior valor ao seu espaço publicitário.

Sendo assim, este agente que busca maior audiência constituirá sua

programação, via de regra, com conteúdos que apresentem um “mínimo denominador

comum” entre os diferentes telespectadores. Vale dizer, “o programador da televisão ou

rádio, ao tentar maximizar a audiência potencial de um programa, pode procurar apenas

oferecer algo suficientemente atraente para evitar que o espectador ou ouvinte desligue

o aparelho e vá fazer algo diverso”37

.

Esta “programação de massas” pode não apenas deixar completamente

desatendidos certos segmentos da sociedade e seus respectivos interesses, mas atender

de modo insatisfatório a generalidade do público. Isso porque “o comportamento das

37

FARACO, Alexandre Ditzel. Radiodifusão pública e regulação do audiovisual no Brasil. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 6, n. 21, p. 15.

36

pessoas não é o de assistir somente aquilo que melhor corresponda à sua principal

preferência pessoal”38

, sendo que se o conteúdo oferecido apresentar denominadores

comuns que agradem, minimamente, por diferentes aspectos, diversos telespectadores,

com diferentes demandas, esta será a melhor programação na perspectiva comercial de

televisão.

Não obstante esta característica intrínseca ao sistema privado de televisão,

deve ser reafirmado que este segmento é representativo de uma parcela da sociedade e,

portanto, em tese cumpre um papel democrático quando não é dependente de recursos

estatais para seu funcionamento, mas tão-somente da iniciativa privada comercial.

Neste diapasão, Alexandre Ditzel Faraco, professor da Pontifícia

Universidade Católica do Paraná e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo,

preleciona:

“Se é possível elaborar uma defesa da mídia privada, essa não deveria ser

reduzida à caricatura de que estaria melhor atendendo às preferências

pessoais dos seus usuários (mas deveria estar, antes, baseada principalmente

nos potenciais benefícios que, sob certas condições, pode representar para a

democracia). O empresário não está focado em maximizar a satisfação

dessas preferências, mas em maximizar seus resultados. A oferta de

informações e entretenimento pelos meios de comunicação social apresenta

características (...) que, numa terminologia econômica neoclássica,

representam „falhas de mercado‟, cuja existência demonstra não ser possível

afirmar que a busca do lucro conduzirá à disponibilização de produtos mais

adequados ao que demandam os usuários”39

.

38

FARACO, Alexandre Ditzel. Op. cit. p. 15. O autor expõe, ainda, que “(...) Enquanto os empresários de outros setores estão focados em atender um determinado tipo de consumidor, no setor de radiodifusão é preciso buscar um equilíbrio entre o que demanda o público e o que querem os anunciantes. Por vezes, o interesse dos anunciantes (e não a preferência do público) determinará certos parâmetros de programação. Aqueles visam não apenas espaço para seus anúncios em momentos com grande audiência, mas também programas que possam estimular o espectador a consumir seus produtos. Um eventual documentário sobre uma crise humanitária, que possa provocar mais um movimento de compaixão do que de consumo, não seria um espaço preferencial para anúncios de cerveja (os quais, por outro lado, são uma presença constante nos grandes eventos esportivos).” (15). 39

Op. cit. p. 13.

37

Outro aspecto que se cumpre expor sobre o sistema privado de televisão por

radiodifusão é a sua plena caracterização como serviço público, conforme já restou

demonstrado, de uma maneira geral, no item 3.1. Sendo assim, não obstante a natureza

comercial do sistema privado e a obtenção do lucro pelo particular, sem o qual ele não

se interessaria na sua prestação, este também é um serviço público.

Não obstante esta caracterização, há recente posicionamento doutrinário que

vem propondo uma mudança no regime jurídico a que se submete o sistema privado de

televisão. Ericson Meister Scorsim, em sua tese de doutorado, orientado pela professora

Odete Medauar, defende que “os fundamentos básicos constitucionais do sistema de

radiodifusão privado são: a livre iniciativa (art. 170, caput, parágrafo único), a

propriedade privada (art. 170, II) e o mercado interno como elemento integrante do

patrimônio nacional (art. 219)”40

.

O autor propõe que os emissores privados de televisão, “fundando-se nos

direitos fundamentais à liberdade de expressão, informação e de comunicação,

propriedade privada e livre iniciativa econômica privada”, não sejam caracterizados

como prestadores de serviços públicos, mas como atores de uma “atividade econômica,

com o intuito de lucro, o qual é buscado mediante receitas do mercado publicitário”.

Para tanto, seria necessária uma mudança legislativa no sentido de que a

concessão desses serviços fosse substituída pelo instituto da autorização, mediante

licitação na modalidade leilão para a escolha do particular que realizaria a atividade, nos

termos defendidos pelo autor.

Pauta-se o proponente no próprio princípio da complementaridade para

justificar tal defesa, apresentando uma formulação estranha à intenção do constituinte,

de que o sistema público constitui-se como serviço público não privativo do Estado, o

sistema estatal como serviço público privativo do Estado, enquanto o sistema privado

significa uma atividade econômica em sentido estrito desenvolvida pelos particulares.

Com o devido respeito, esse posicionamento não deve prosperar. Primeiro

porque, conforme já se demonstrou, a doutrina mais autorizada assume que os serviços

privados de radiodifusão compõem serviços públicos. Segundo, deve-se ter em conta

40

Op. cit. p. 314.

38

que a Constituição Federal não faz qualquer ressalva quanto ao regime jurídico

pertinente aos serviços privados de televisão por radiodifusão, não havendo que ser

afastado, portanto, o elemento formal do serviço público, conforme se depreende da

defesa do autor proponente.

Neste sentido, mais uma vez é pertinente transcrever as lições de José

Afonso da Silva acerca do artigo 223 da Constituição Federal:

“O caput do artigo admite os sistemas privado, público e estatal de

radiodifusão. É preciso entender o que isso significa, porque radiodifusão,

em qualquer de suas modalidades, é serviço público. Não existe, pois,

serviço privado de radiodifusão. O modo de exploração do serviço é que

pode ser privado, público ou estatal”41

Conforme já se demonstrou, os serviços de radiodifusão preenchem os

elementos subjetivo, material e formal dos serviços públicos. Sendo assim, o sistema

privado, não obstante sua natureza comercial e a obtenção do lucro pelo particular, não

pode ser classificado como atividade econômica. Vale dizer, o fato de o sistema privado

constituir atividade comercial lucrativa não basta para que seja afastada a caracterização

de serviço público da atividade.

É nesta senda a preleção de Celso Antônio Bandeira de Mello:

“É indispensável – sem o quê não se caracteriza a concessão de serviço

público – que o concessionário se remure pela „exploração‟ do próprio

serviço concedido.

Isto, de regra, se faz, como indicado, „em geral‟ e „basicamente‟ pela

percepção de tarifas cobradas dos usuários. Entretanto, dita exploração

poderia ser feita, em alguns casos, por outro meio. É o que sucede nas

concessões de rádio e televisão (radiodifusão sonora ou de sons e imagens),

em que o concessionário se remunera pela divulgação de mensagens

publicitárias cobradas dos anunciantes. Não se trata de tarifas e quem paga

41

Op. cit. p. 833-834.

39

por isto não será necessariamente um „usuário‟. Mas há, aí, igualmente,

exploração do próprio serviço público concedido.”42

.

Por fim, não obstante já se haver exposto doutrina de peso que rechaça o

entendimento do sistema privado de radiodifusão como atividade econômica, é a lição

de Marcelo Figueiredo que joga uma pá de cal sobre o assunto, nos seguintes termos:

“Há, sem dúvida uma deformação no processo que vislumbra na atividade

de comunicação social um „negócio‟, (ou atividade econômica) dominado

por interesses particulares e lucrativos, quando segundo o regime

constitucional, estamos diante de um serviço público de relevante interesse

social.

Inverte-se a lógica do sistema constitucional, como se o mesmo franqueasse

o exercício da atividade sem peias aos particulares, ao frágil e inconsistente

argumento da „liberdade econômica‟. Na verdade estamos diante de um

serviço público não privativo do Estado, fortemente regulado, disciplinado,

em prol e em benefício do interesse público e social”43

.

3.3 Sistemas público e estatal: identidade ou distinção?

Antes de deter-se à exposição das características dos sistemas público e

estatal em separado, necessário é estabelecer a distinção entre eles. Adverte-se, no

entanto, que a doutrina não é pacífica ao admitir esta diferenciação. A começar pela

lição de Ives Gandra Martins, de onde se extrai não existir a separação. São as palavras

do autor:

“É de se lembrar que os vocábulos „público‟ e „estatal‟ são idênticos, visto

que toda atuação pública é uma atuação estatal.

42

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit. p. 697. 43

FIGUEIREDO, Marcelo. A Democratização dos Meios de Comunicação – O Papel da Televisão. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº 2, maio, 2001, p. 4.

40

Nem se diga que o constituinte pretende cuidar das empresas estatais, visto

que também estas compõem a Administração Pública indireta.

No caso, a sinonímia entre os dois vocábulos é absoluta”44

.

Em sentido diverso, José Afonso da Silva preleciona, em meio aos seus

comentários ao princípio da complementaridade, que “(...) Fica também a questão de

saber que diferença há entre serviço de radiodifusão público e estatal, porque o estatal

também é público, mas nem todo público é estatal”45

.

Não é rasa a discussão. Convém esclarecer que esse ofuscamento é histórico

e advém, especificamente na comunicação social, do fragmentado conjunto normativo

do setor, com normas da década de 1960, época em que não se vislumbrava a existência

de um público não estatal, conforme foi a intenção do Constituinte de 1988 relator da

matéria da comunicação social, que defendia "a idéia de um (sistema) público que

represente não apenas o Estado, mas o que houver de possivelmente organizado na

chamada sociedade"46

.

Observa-se que a Lei nº 4.117/62 enfatiza o papel preferencial das emissoras

de entidades de direito público, mas não estabelece regras quanto às formas de

organização. O Decreto-Lei 236/67, que modificou a Lei nº 4.117/62, mencionou as

televisões educativas, que têm por finalidade a “divulgação de programas educacionais,

mediante a transmissão de aulas, conferências, palestras e debates”, nos termos do

artigo 13, prevendo no parágrafo único que tais emissoras não deveriam ter “caráter

comercial”, sendo vedada “a transmissão de qualquer propaganda, direta ou

indiretamente, bem como o patrocínio dos programas transmitidos, mesmo que

nenhuma propaganda seja feita através dos mesmos”.

Passadas duas décadas, continuaram em vigência tais regras. No entanto, os

acontecimentos históricos, principalmente o questionamento e a queda do regime

ditatorial militar, ofereceram condições para que emergisse a noção da coisa pública

não-estatal, objeto de atuação direta da sociedade civil organizada.

44

Op. cit. 45

Op. cit. p. 833. 46

Artur da Távola in LIMA, Venício A. de. O Princípio da Complementaridade. Disponível em: http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art233.asp. Acessado em 14.06.2009.

41

Essa formulação é vista pela primeira vez no setor da radiodifusão no Brasil

em documento entregue ao presidente Tancredo Neves em dezembro de 1984,

formulado pelo Centro de Estudos de Comunicação e Cultura, donde se depreende a

distinção dos sistemas estatal e público, importando colacionar suas palavras:

“Sem prescindir tanto do estado quanto da iniciativa privada, este

documento privilegia a criação e a consolidação de um sistema público de

radiodifusão. Entendemos como sistema público aquele que sendo

financiado tanto por contribuições diretas do público, como pelo estado e/ou

pela iniciativa privada tem, todavia, sua programação sob o controle de

segmentos organizados da sociedade civil (cf. CEC, "A Transição Política e

a Democratização da Comunicação Social"; Brasília, 1985; p. 7)”47

.

Pelo exposto, parece mais coerente com os dias atuais adotar a distinção

entre os sistemas público e estatal de radiodifusão, principalmente porque esta

formulação pautou a confecção do princípio constitucional da complementaridade.

Neste diapasão, pode-se afirmar que o termo “público” é o gênero que compreende as

espécies estatal e público em sentido estrito de sistemas de radiodifusão.

Sendo assim, passa-se à análise dos sistemas de radiodifusão estatal e

público em sentido estrito.

3.3.1 Sistema estatal

O sistema estatal de radiodifusão é composto por emissoras criadas pelo

Poder Público, que têm como principal objetivo a comunicação institucional do Estado

com os seus utentes. Diga-se que não só a esfera do Poder Executivo é competente para

prestar os serviços estatais de radiodifusão, mas também as emissoras do Legislativo e

do Judiciário compõe este sistema.

47

In LIMA, Venício A. de. O Princípio da Complementaridade. Disponível em http://www.contee.org.br/noticias/artigos/art233.asp. Acessado em 14.06.2209.

42

É de se destacar também que a atividade de radiodifusão pode ser exercida

pelos entes da federação e Municípios em seus respectivos âmbitos. Vale dizer, podem

existir emissoras da União, dos Estados, do Distrito Federal e municipais, prescindindo,

para a regular prestação dos seus serviços, de autorização do Executivo federal, que é

competente para administrar as freqüências do espectro.

Quanto ao conteúdo da programação, a radiodifusão estatal vincula-se,

obviamente, ao regramento do Estado, significando que deverão ser seguidos os

preceitos do Direito Administrativo, dentre eles o princípio da impessoalidade. Neste

sentido, o artigo 47 do Código Brasileiro de Telecomunicações estabelece que

“nenhuma estação de radiodifusão, de propriedade da União, dos Estados, Territórios ou

Municípios ou nas quais possuam essas pessoas de direito público maioria de cotas ou

ações, poderá ser utilizada para fazer propaganda política ou difundir opiniões

favoráveis ou contrárias a qualquer partido político, seus órgãos, representantes ou

candidatos, ressalvado o disposto na legislação eleitoral”.

A radiodifusão estatal também cumpre papel importante quanto ao princípio

da publicidade, pois sua função primordial é, como já se especificou, a comunicação

institucional, entendida como a difusão de atos, programas, obras, serviços e campanhas

dos órgãos públicos, com fundamento na regra constitucional do art. 37, § 1º, que

permite a realização da publicidade institucional pela Administração Pública com

“caráter educativo, informativo ou de orientação social”, reforçando-se ainda o princípio

da impessoalidade, pois o dispositivo estabelece que dessa comunicação não poderá

constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades

ou servidores públicos.

Deve-se mencionar que o sistema estatal de televisão também é integrado

pelas televisões educativas. De acordo com Scorsim, “estas foram modeladas no direito

brasileiro como entidades estatais criadas pela União e pelos Estados, sofrendo forte

intervenção governamental, em sua maioria sob a forma de fundações e autarquias”48

.

48

Op. cit. p. 113-115.

43

Por fim, necessário citar a criação da Empresa Brasil de Comunicação -

EBC, pela Medida Provisória nº 398, de 10 de outubro de 2007, convertida na Lei nº

11.652, de 7 de abril de 2008.

Tal diploma legal trata dos princípios e objetivos dos serviços de

radiodifusão “pública” explorados pelo Poder Executivo federal ou outorgados a

entidades de sua administração indireta. De acordo com a distinção que se fez dos

sistemas estatal e público, quer parecer que a lei adota o sentido amplo do termo

público, pois em verdade a EBC se apresenta como uma prestadora de serviços de

comunicação de caráter estatal.

A corroborar, a referida Lei dispõe que em razão da criação da EBC, fica

extinta a estatal Radiobrás, sendo que seus bens e equipamentos serão incorporados à

nova empresa pública.

3.3.2 Sistema público em sentido estrito

O sistema público em sentido estrito de radiodifusão é aquele cujos serviços

não têm fins lucrativos e que servem para a satisfação das demandas de comunicação

dos diversos setores da sociedade, ou seja, diferencia-se da radiodifusão estatal no

sentido de que esta cumpre um papel prioritário de comunicação institucional do Estado

com a população, enquanto a radiodifusão pública em sentido estrito caracteriza-se

como um complexo comunicativo dos segmentos sociais com a própria sociedade.

A este respeito, Scorsim define que “o sistema de radiodifusão público

requer a plena participação da sociedade civil na organização da programação da TV

Pública. Ou seja, uma emissora de televisão, cujo controle pertença de direito e de fato à

sociedade civil, e não ao governo, nem às emissoras privadas”49

. Para este autor, a

televisão pública é serviço de prestação direta da sociedade civil organizada e sem fins

lucrativos, não se admitindo a criação de entidades estatais para intermediar a relação

dos cidadãos com o Estado na atividade.

49

Op. cit. p. 116.

44

Em outro sentido, Faraco admite a possibilidade da existência de agentes

estatais que cumpram papel de intermédio entre o sistema público de radiodifusão e a

sociedade, fazendo, no entanto, a correta ressalva de que “esses agentes não privados

não podem ser organizados como simples empresas estatais”50

, sendo primordial

“buscar uma efetiva separação estrutural entre o governo e o Legislativo e as

instituições encarregadas dos serviços de radiodifusão pública”.

A lei de regência da radiodifusão brasileira, da década de 1960, não

vislumbrou, conforme já se expôs, a possibilidade de um sistema público não-estatal de

radiodifusão. Sendo assim, a única previsão desse sistema no nosso ordenamento

jurídico é o próprio princípio da complementaridade. Mais uma vez, portanto, é mister

recorrermos à exposição do ex-deputado constituinte Artur da Távola, para que

possamos vislumbrar alguns elementos do sistema público.

Segundo o ex-parlamentar, seu raciocínio decorreu de uma analogia com o

capítulo que tratou da educação e da cultura na Constituição Federal. Nada melhor que

as suas próprias palavras, valendo a extensa citação:

“Eu tinha na mente, não era, digamos assim, assunto do conhecimento

específico dos demais Constituintes, porque não estavam trabalhando

diretamente sobre a matéria, eu tinha em mente, como eu era Relator

também do capítulo de educação e de cultura, de que lá no capítulo de

educação criamos, para o conceito de escola pública, algo que escapasse ao

exclusivo conceito de escola estatal como definição de escola pública.

Havia naquela época uma pressão muito grande nas empresas privadas na

questão da educação e tínhamos o problema político de tirar da mesma luta

as (escolas) privadas qualificadas e as (escolas) privadas comerciais de

educação. Em outras palavras, a igreja, algumas escolas evangélicas

importantes, acabavam ficando no mesmo bolo dos tubarões do ensino

porque a questão da educação privada é que as unificava. E criamos no

capítulo da educação essa idéia da instituição pública que não é

necessariamente estatal, desde que sem fins lucrativos, desde que

50

Op. cit. p. 10.

45

comunitária, desde que filantrópica. (...) Eu tinha em mente que havíamos

criado essa figura da entidade pública ao lado das entidades estatal e privada

e pareceu-me importante criá-la também dentro da comunicação."

Assim, resta aclarado que o sistema público de radiodifusão, portanto, é

aquele cujos serviços são prestados por particulares, não havendo, no entanto, fim

lucrativo. É de grande importância para o regime democrático o preceito constitucional

da complementaridade, que admite a existência desse sistema público de radiodifusão,

pois, na lição de Faraco, “(...) envolve, primordialmente, a possibilidade de os cidadãos

participarem do processo de exercício e controle do poder político em outros níveis.

Essa participação se traduz, em termos ideais, na existência de um espaço público de

debate, integrado potencialmente por todos os cidadãos (e não apenas pelos ocupantes

eleitos para certos cargos)”51

.

É este, portanto, o início dos estudos sobre os sistemas de televisão por

radiodifusão e o princípio constitucional da complementaridade.

51

Op. cit. p. 10.

46

CONCLUSÃO

Os serviços de radiodifusão no Brasil foram inaugurados na Década de

1920, com a primeira transmissão de rádio. Em 1950 surge a televisão, que até meados

da década de 1960 tinha cobertura somente regional. Com a criação da Embratel e a

inauguração de seu sistema de microondas em 1969 torna-se possível a criação de uma

rede nacional de telecomunicações, vista pelos militares como parte de seu plano

político de integração nacional.

No Estado Democrático de Direito, continua em vigência o Código

Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, bem como seu Regulamento dos Serviços de

Radiodifusão do ano de 1963. A Constituição Federal, no entanto, apresenta o regime

jurídico especial a que se submetem os serviços de radiodifusão, estabelecendo que

compete à União administrar e legislar sobre o setor.

Os serviços de radiodifusão se encaixam, sem grandes problemas, aos

elementos dos serviços públicos apresentados pela doutrina, quais sejam: o subjetivo, o

material e o formal.

O artigo 223, caput, da Constituição Federal estabelece que o Poder

Executivo, ao renovar e outorgar os serviços de radiodifusão, deverá observar o

princípio da complementaridade dos sistemas público, estatal e privado.

Tal complementaridade deve ser entendida como um equilíbrio entre os três

sistemas, não havendo que se falar em hierarquia ou maior importância de qualquer um

deles.

O sistema privado de televisão por radiodifusão, historicamente hegemônico

no Brasil, é composto por atores privados que objetivam o lucro da exploração da

atividade, mediante a remuneração feita pela venda de espaço publicitário.

O sistema estatal, de outra forma, não tem fim lucrativo e é veículo de

comunicação dos poderes públicos dos entes federativos e municípios com a população,

objetivando a divulgação institucional das atividades estatais.

47

O sistema público também não tem fim lucrativo, mas o que o diferencia do

sistema estatal é o ator competente para executar os serviços, que é a sociedade civil e

seus setores, caracterizando-se como um meio de comunicação dos diversos segmentos

sociais com a sociedade em geral.

48

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