Bruno Peron - Aresta Da Saturação

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Aresta da Saturação Bruno Peron

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Bruno Peron, Aresta Da Saturação, Julho de 2014

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  • Aresta da Saturao Bruno Peron

  • ARESTA DA SATURAO

    Bruno Peron

    Brasil Edio do Autor

    1 Edio Julho de 2014

  • PERON LOUREIRO, Bruno. Aresta da saturao. Brasil, Publicao Autnoma, Livro Eletrnico, 1 Edio, Julho de 2014. Fonte: .

    No necessrio pedir autorizao ao autor desta publicao para consulta, leitura, gravao em disco, divulgao, encaminhamento a outros leitores e reproduo dos trechos e captulos contidos nela desde que se atribua devidamente o crdito da obra ao autor e fonte.

  • NDICE

    Prefcio.................................................................................. 1 1. Cultura e setor da moda........................................................ 3 2. Meios e cultura digital........................................................... 5 3. Esteretipo e cultura brasileira................................................ 7 4. Presena brasileira no mundo.................................................. 10 5. Alimento para bocas brasileiras................................................ 12 6. Relaes de consumo no Brasil................................................ 14 7. Do Capito Amrica ao Bin Laden............................................ 16 8. gua-viva no Mamdromo Nacional......................................... 18 9. Conveno das bruxas........................................................... 20 10. Gusano no mescal brasileiro.................................................... 22 11. Janela do presdio de Guantnamo............................................ 25 12. Desalojamento pelo porrete.................................................... 27 13. Frenesi de lusfonos conectados............................................... 29 14. Uso do crack e dores da marginalidade........................................ 31 15. Chapeuzinho e a lobo-mania................................................... 33 16. Da abundncia escassez........................................................ 35 17. Paralaxe de cidados............................................................. 37 18. Vagido de um pas ps-democrtico.......................................... 39 19. Rastreando o espio criminoso................................................. 42 20. Entre o Papa e o pecado......................................................... 44 21. Brasil: Arca de No do mundo................................................. 46 22. Polmica sobre o Mais Mdicos................................................49 23. Tudo e tudo poder ser....................................................... 51 24. Elysium e problemas atuais..................................................... 53 25. Territrio e Estado-nao....................................................... 55 26. Arte material e arte espiritual.................................................. 57 27. O fato e a lenda................................................................... 59 28. Vigilncia e seres sociais......................................................... 61 29. Bits e microchips de guerra....................................................... 63 30. Horizonte das redes sociais..................................................... 65 31. Avaliao do ensino secundrio................................................ 67 32. Tutorial de iluses............................................................... 69

  • 33. Glebas do Novo Mundo......................................................... 71 34. Cultura e leis da natureza....................................................... 73 35. Ministrio de Cidadania e Identidade......................................... 76 36. Boas maneiras em Pedro Malasartes.......................................... 78 37. Periguetes de Bollywood........................................................80 38. Urbanizao no Brasil............................................................ 82 39. Estivadores e leiloeiros.......................................................... 85 40. Caatinga literria e poltica..................................................... 87 41. Curiosidades da bela poca tupinica............................................ 89 42. Debandada de pintinhos......................................................... 91 43. Truo da corda bamba........................................................... 93 44. Po francs para ingls ver...................................................... 95 45. Relao entre protesto e violncia............................................ 97 46. Tradio de misonesmo........................................................ 99 47. Imposto sobre importados...................................................... 101 48. Furor democrtico............................................................... 104 49. Alvoroo cervejeiro no Brasil.................................................. 106 50. Brasil, pas de convergncias................................................... 109 51. Redes de combate pobreza................................................... 111 52. Direitos e deveres no Brasil.................................................... 113 53. Pressupostos do Risco Brasil................................................... 115 54. Lassido das foras repressivas................................................. 117 55. Fuga de crebros e talentos..................................................... 119 56. Instintos da espcie humana.................................................... 122 57. Grilhes da produtividade...................................................... 124 58. Padro de beleza no Brasil...................................................... 126 59. Identidade brasileira no samba................................................. 128 60. Sal em bunda de passarinho..................................................... 130

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    PREFCIO

    hegou o momento de posicionar outra aresta entre as superfcies de um poliedro que caiu em minha mo desde incio de 2005. Comprometi-me,

    a partir de ento, a entender aspectos diversos do Brasil e de nossa gente que renderam centenas de publicaes na imprensa. Nunca enxerguei este pas como um desafio pequeno. Por isso encontrei nas arestas de um poliedro a maneira mais pertinente de expressar minhas ideias sobre o Brasil contemporneo.

    verdade que cada aresta deste poliedro representa um sentimento que predominou no perodo em que escrevi os textos. Na srie de arestas, este livro uma compilao dos meus escritos de fevereiro de 2013 a maio de 2014. Eu ainda estava distante do Brasil em corpo, mas presente em alma em todos seus rinces. Mantive minha cautela na escolha de fontes de notcia para informar-me sobre o Brasil. Em muitas oportunidades, quase vi sangue jorrar do monitor devido ao sensacionalismo como alguns peridicos narram o aumento da violncia no Brasil. Algumas vezes, as narrativas destes meios foram realistas, mas revelaram descuido, imprudncia e pessimismo noutras ocasies.

    neste contexto que me vi saturado de tanta desorientao poltica no Brasil, cuja culpa tambm reside na meia-cidadania dos brasileiros. Incomodei-me com a imagem que desenham do Brasil e que nos vendem ao exterior como pas bola da vez no crescimento econmico, na incluso social e na Copa do Mundo. Estvamos inebriados de tanta mentira que orienta nossa mo-de-obra para fazer festas insustentveis em casa. Tenho duas outras insatisfaes: uma com a imediatez de polticas pblicas que desconsideram avanos duradouros para o pas; outra com a multiplicidade de opinies que, em vez de reforar nosso regime democrtico, divide o pas em classes definidas por cor, bairro

    e consumismo. H um redimensionamento das desigualdades com apoio das foras de segurana que no sabem mais para quem apontar suas armas.

    Com essa fartura de despropsitos e injustias no Brasil, reduzi um pouco o contedo poltico explcito de alguns textos e olhei para aspectos culturais. Apesar disso, discusses sobre cultura continuaram tendo, a meu ver, implicaes polticas, embora estas nem sempre sejam evidentes. Foi s uma questo de foco e prioridade. Obtive, assim, outro nvel de saturao. Saciei-me de conhecimentos sobre temas culturais, li intrpretes de cultura e investiguei

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    sobre polticas culturais. Tive acesso a uma fartura de saberes que aprofundariam meu entendimento de identidades e processos culturais no Brasil.

    Desse modo, Aresta da saturao no alude somente ao enfastiamento causado por notcias ruins nos meios de comunicao. Penso tambm numa fase proveitosa de obteno de conhecimento que me habilita a entender profundamente algumas necessidades do Brasil. preciso coletar a maior quantidade possvel de informaes de fontes diversas para ter entendimento criterioso das carncias do pas, para emitir uma opinio sobre elas, e para propor solues que melhorem a qualidade de vida das pessoas.

    Os textos desta Aresta da saturao do um passo frente nas interpretaes que venho fazendo do Brasil h quase dez anos. Eles contm minha observao do Brasil em seu mago, porquanto trazem tambm reflexes sobre aspectos culturais e sobre a formao educativa e poltica de suas pessoas. fundamental, em meus escritos, que o leitor se entenda como colaborador de uma srie de transformaes de interesse pblico no pas. Diferentemente de quando se l uma notcia e se vira a pgina do jornal, e de quando se mastiga um chiclete e se joga fora o que restou, incentivo o leitor a que se realize no trabalho para que um dia veja o Brasil prosperar, como quero muito ver.

    Prefcio escrito em 3 de julho de 2014.

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    1. Cultura e setor da moda

    epresentantes da Associao Brasileira da Indstria Txtil e de Confeco (ABIT) reuniram-se em So Paulo em janeiro de 2013 com Henilton

    Menezes Secretrio de Fomento e Incentivo Cultura do Ministrio da Cultura para discutir incentivos fiscais atravs da Lei Rouanet. O principal argumento dos debatedores de que a moda deve ser entendida como um setor cultural importante e, por isso, ela merece ajuda financeira.

    A Lei Federal de Incentivo Cultura que conhecida como Lei Rouanet instituiu-se em dezembro de 1991. Cidados e empresas tornam-se, por meio desta lei, patrocinadores de atividades e projetos culturais. Para isso, eles direcionam parte de seus impostos de renda (at 6% para pessoas fsicas e at 4% para pessoas jurdicas) para financiar produtores culturais atravs de uma solicitao documental ao Ministrio da Cultura.

    A ABIT definiu, assim, sete categorias de moda para que a Comisso Nacional de Incentivo Cultura (CNIC) avalie e aprove a solicitao de que a moda tambm deve receber os incentivos de renncia fiscal. As categorias so: Desfile Nacional; Desfile Internacional; Acervo; Aquisio; Transferncia de

    Tecnologia; Plano Anual de Manuteno, e Formao de Jovens Talentos (http://www.cultura.gov.br/site/2013/01/21/moda-e-cultura-2/).

    A ministra da cultura Marta Suplicy, em reunio com a ABIT em outubro de 2012, props que o setor da moda tivesse um representante atravs de curadoria nas Arenas Culturais da Copa do Mundo em 2014 (http://www.cultura.gov.br/site/2012/10/22/ministra-garante-espaco-da-moda-na-copa2014/). Estas Arenas estaro presentes nas cidades que sediaro as partidas de futebol da Copa do Mundo para que os visitantes (tanto de outras regies do Brasil como estrangeiros) conheam melhor as diversidades brasileiras em dana, moda, gastronomia, culturas afrodescendentes e indgenas, entre outras. A proposta de ter um curador responsvel pela moda para organizar as exposies deste setor.

    Portanto, o procedimento inicial do MinC o de abrir o leque quanto ao que pode ser considerado cultura de modo a desfazer preconceitos e restries a um campo que naturalmente amplo e inclusivo. Notcia do MinC de setembro de 2010 j inclua a moda no mbito da cultura na medida em que

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    a moda passa a ser compreendida definitivamente como uma linguagem

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    No entanto, uma das implicaes de aumentar a amplitude do que se entende por cultura que, logo, outros setores que no deixam tambm de ser culturais, como o automobilstico e o publicitrio, reivindiquem o direito aos incentivos de renncia fiscal pela Lei Rouanet. Esta lei surgiu para estimular o mbito at ento restrito da cultura. Sendo assim, qualquer setor teria condies de dizer que suas atividades so culturais, por um lado, porque o so e, por outro, porque auferem benefcios financeiros por caracterizar-se deste modo.

    Outra implicao de que os incentivos fiscais caiam majoritariamente nas mos de peixe grande em vez de ajudar os filhotes em sua fase de crescimento. Assim, pelos nomes de alguns empresrios da moda com quem Marta Suplicy tem-se reunido, podemos ter uma ideia dos maiores interessados nas negociaes pela incluso do setor da moda na Lei Rouanet. Moda igualmente um setor muito amplo: uma coisa ser fabricante de roupas; outra ser confeccionador; outra ser desenhador da grife; outra ser revendedor.

    As desconfianas em torno das negociaes entre representantes da moda e gestores culturais do governo federal so menores que as boas expectativas sobre seu desdobramento, contudo. A economia da cultura tem favorecido o desenvolvimento de setores que, ainda que no se considere sua obviedade como culturais, no eram vistos como um investimento em cultura.

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    2. Meios e cultura digital

    s culturas digitais surgiram a partir de experincias, prticas e usos atravs dos meios eletrnicos de comunicao. Estes tm importncias relativas

    em funo dos interesses de seus consumidores-usurios e da tecnologia destes meios.

    Os video games j no oferecem somente entretenimento a poucos jogadores por animaes grficas, mas trazem tambm espao em memria fsica para armazenar arquivos e sistemas de acesso Internet que permitem jogar em tempo real com pessoas de outros pases.

    H portais virtuais que oferecem acesso a centenas de estaes de rdio do mundo todo sem que se tenha que ligar aparatos convencionais de som. Ouve-se a rdio pelo computador. A indstria editorial tambm se modifica com o comrcio de livros digitais, como o leitor Kindle da Amazon.

    Hoje tudo passa por um monitor. A comodidade dos consumidores-usurios dos meios eletrnicos de comunicao inibe-os at de folhear dicionrios impressos porque os virtuais so mais geis (para os que tm prtica de digitao e navegao) e dispem de acepes mltiplas. Os tradutores virtuais tm reduzido as distncias lingusticas entre pessoas que no se entendiam por no conhecer nenhuma das lnguas europeias hegemnicas ou no mais que uma delas (ingls, francs, italiano, alemo, espanhol, portugus, etc.).

    Contudo, as culturas digitais ainda se adaptam tendncia de fazermos tudo pela Internet. J se compra em supermercados virtuais. A situao se complicar se, nas prximas eleies, pudermos votar pela Internet em substituio s exemplares urnas eletrnicas brasileiras, que evitam tanta dor de cabea a contraexemplo das ltimas eleies presidenciais mexicanas.

    Fazer poltica pela Internet tem duas facetas. Esta prtica proveitosa na medida em que este meio tem servido para formar foros de discusso, espalhar denncias, discutir promessas de campanha e dar recomendaes a outros internautas. Notcias espalham-se rapidamente pela Internet, cujo meio transformou-se numa praa pblica onde as pessoas encontram-se e interagem. Estes so alguns dos argumentos que encontro para no demonizar os meios

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    como causadores dos males atuais da humanidade. Podemos suprimir boa parte de nossa ignorncia com pouco esforo atravs da Internet.

    No entanto, h grupos e instituies que discutem formas de censurar e controlar contedos e prticas na Internet. O mais enrgico deles o de direitos de propriedade intelectual. H os que brigam contra a queda abrupta da venda de discos compactos que se explica pelas formas digitais de consumir msica (YouTube) e baixar arquivos (Torrent). Cantores tm tido que vender seu trabalho com mais criatividade para que no feneam, como aconteceu com as indstrias fonogrficas que no se adaptaram s mudanas. Produtores musicais tm investido em eventos (shows) e usos publicitrios (aparies de cantores famosos para oferta de produtos).

    A criatividade passa a ser uma necessidade no s dos produtores, mas tambm dos distribuidores e estrategistas de consumo das culturas digitais.

    O tema das culturas digitais remete, portanto, s novas dimenses da militncia poltica e ao deslocamento das prticas criativas plataforma digital atravs de redes sociais, comrcio eletrnico, mecanismos de busca e labores virtuais. Os acessrios que do acesso Internet, que hoje so desde celulares a tablets, esto prestes a vestir-se como roupas ntimas da humanidade.

    As formas indiretas de interagir com outros consumidores-usurios da Internet no so as nicas que sofrem modificao. Uma explicao se deve a que os usos da criatividade demandam novos hbitos e regularidades no cumprimento das necessidades quase bsicas de imerso na Internet.

    Portanto, fica cada vez mais difcil diferenciar hbitos-razes de hbitos enraizados, visto que os meios de comunicao tendem a selecionar certas expresses culturais (muitas delas estranhas ao nosso vocabulrio) para que todos as celebremos como nossas sem sabermos se realmente so ou no.

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    3. Esteretipo e cultura brasileira

    m visita a Cool Britannia em dezembro de 2012, a ministra brasileira da cultura Marta Suplicy defendeu que o Brasil modifique seu esteretipo de

    pas do Carnaval e do futebol atravs do uso do poder brando frente a outros pases. Ela elogiou os trabalhos dos ingleses nas Olimpadas de Londres porque nelas se mostrou uma imagem de pas multicultural e organizado.

    No entanto, difcil fugir de esteretipos quando o que est em jogo, alm da previso da Copa em 2014 e dos Jogos Olmpicos no Rio de Janeiro em 2016, o que caracteriza os brasileiros em sua identidade nacional. A estratgia do governo, at a realizao destes dois eventos esportivos, a de descentralizar o que se entende como brasileiro, e dar nfase s suas identidades regionais. A poltica ser a de exibir a produo cultural de vrios estados em arquitetura, artes plsticas, cinema, dana, teatro e outras expresses culturais.

    O que o Brasil mostrar na abertura das Olimpadas no Rio de Janeiro? Algo na direo de que a ideologia de ordem e progresso estampa de sua bandeira bem moda francesa apenas uma faceta da diversidade de seu povo. E de que no erigiu indstrias e locomotivas a vapor com a mesma velocidade dos pases que estiveram na vanguarda da Revoluo Industrial porque o Brasil dever oferecer um socorro espiritual s ideologias egostas e materialistas.

    A diferena fundamental entre os pases das duas sedes Olmpicas que, enquanto Cool Britannia barbarizou e espoliou culturas do mundo todo e logo guetizou-as em multiculturas, o Brasil acolheu costumes, estilos de vida, formas de pensar e prticas de nativos e imigrantes de vrios rinces. Quando consultei um ingls sobre a dificuldade de encontrar comida tpica de Cool Britannia em seu prprio pas, respondeu-me que porque gostam de sentir o sabor do mundo todo. Cool Britannia reduziu a diversidade do mundo na tentativa de erigir um sistema econmico mundial hierrquico, escravista e opressivo, enquanto o Brasil ofereceu ao mundo uma frmula conciliatria e pacfica.

    A diplomacia cultural importante para o esteretipo de um pas, e tambm a impresso que os meios de comunicao, os migrantes, os turistas, etc. deixam ao mundo. Quase sempre nos informamos sobre outros pases espontaneamente, por exemplo nosso interesse em ler seus livros (do original

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    ou da traduo) e ouvir sua msica. A circulao da cultura brasileira no mundo deve-se tambm ao interesse dos brasileiros de difundir nossa cultura porque, de outro modo, os estrangeiros dificilmente se interessam na nossa produo artstica e cultural. A Biblioteca Nacional realizar um programa de traduo de livros brasileiros ao espanhol e ingls. Na melhor das hipteses, estrangeiros aprenderiam o idioma portugus s para ler-nos. A esperana de que este diagnstico mude com o aclamado interesse econmico de outros pases no Brasil.

    Iludem-se os que pensam que a promoo da lngua portuguesa um bom incio para difundir a cultura brasileira ao mundo. Estaramos fazendo um favor para uma ex-metrpole em vez de contar ao mundo aquilo que ele ainda no sabe: que temos algo diferente de Portugal, e que atrativo curiosidade e ao turismo. No podemos comear pela lngua porque ela no nossa. Cool Britannia tem o Conselho Britnico; Alemanha tem o Instituto Goethe; Espanha tem o Instituto Cervantes; Portugal tem o Instituto Cames; La France tem a Aliana Francesa; China tem o Instituto Confcio. Todos estes pases tm idiomas prprios, que surgiram por razo outra que a colonizao. Brasil teria que Aliana, Conselho ou Instituto?

    Apesar disso, a ideia de uma Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa bem-vinda porque o idioma acaba sendo um canal de transmisso da cultura nacional entre pases que compartilham uma histria parecida. A diplomacia brasileira, no sculo XXI, tem diversificado seus parceiros comerciais, culturais e polticos.

    A comunidade brasileira que vive no exterior (e considervel nalguns pases) e ganha a vida trabalhando com arte e cultura merece ateno da diplomacia cultural brasileira porque nosso esteretipo tambm passa por tal comunidade. Sua ao e seu trabalho divulgam-se em espaos pblicos e meios de comunicao estrangeiros. Contudo, h um risco de que as exposies de cultura brasileira no exterior tendam a exibir o que os estrangeiros j sabem sobre o Brasil em vez de desvendar seus mistrios artsticos diante de espectadores que enxergam atravs de lentes estereotipadas. Ainda, os eventos costumam estar desvinculados da rotina do espectador estrangeiro quando se instalam em lugares de circulao majoritariamente brasileira (Consulados, restaurantes brasileiros, etc.), aonde dificilmente pessoas de outra nacionalidade vo por vontade prpria ou sem conhecer algum brasileiro que as convide.

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    Centros de difuso da cultura brasileira no exterior contribuem para mostrar o que produzimos em artes visuais, literatura e msica. Eles divulgam nossa arte, nossa msica e nosso cinema. Porm, somente sua criao no nos d a sensao de dever cumprido, uma vez que o interesse pelo seu uso partir quase sempre de brasileiros que residem noutro pas. mais proveitoso estimular a ateno de estrangeiros ao que o Brasil no tem de corrupo, festas interminveis, praias paradisacas, prostituio e tragdias que se podem evitar.

    O desafio tem sido encontrar um tradutor eficiente para a intraduzibilidade da complexa e rica cultura brasileira. Esta dificuldade ocorre porque no somos aquilo que os outros pensam nem estamos inteiramente convencidos de que somos aquilo que pensamos de ns mesmos.

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    4. Presena brasileira no mundo

    s Centros Culturais Brasileiros (CCB) espraiam-se em vrios pases atravs dos Chefes da Misso Diplomtica e dos Consulados do Brasil. Os

    CCB tm a misso de difundir a lngua portuguesa (embora o portugus do Brasil esteja mais prximo do falado nos outros pases que ratificaram o Acordo Ortogrfico que vigora desde janeiro de 2013), literatura brasileira, artes visuais, cinema, msica e teatro, conferncias, informaes tursticas e outras expresses culturais de nosso pas.

    O Departamento Cultural do Itamaraty considera os CCB o principal instrumento de execuo da nossa poltica cultural no exterior (http://dc.itamaraty.gov.br/lingua-e-literatura/centros-culturais-do-brasil). J o CCB de El Salvador admite que tambm se esfora para promover el acercamiento comercial, diplomtico y acadmico (http://www.ccbes.org.sv/Paginas/historia.html) entre Brasil e El Salvador. As metas especficas dos CCB variam de um pas a outro de acordo com a necessidade de cooperao entre eles.

    Desde fim dos anos 1940, o Ministrio das Relaes Exteriores brasileiro criou 21 CCB: 12 na Amrica (Assuno, Georgetown, La Paz, Lima, Mangua, Cidade do Mxico, Cidade do Panam, Paramaribo, Porto Prncipe, Santiago do Chile, Santo Domingo, San Salvador), 3 na Europa (Barcelona, Helsinque, Roma) e 6 na frica (Bissau, Luanda, Maputo, Praia em Cabo Verde, Pretria, So Tom). Rumores indicam a previso de outros CCB em Timor Leste, Guatemala e Tunsia.

    Basta mudar uma palavra da expresso Centro Cultural Brasileiro para que alguma outra entidade se apresente tambm como estudiosa, produtora, gestora ou difusora da realidade brasileira. Teramos ento o Centro de Estudos Brasileiros em Barcelona, o Centro Cultural Brasil-Estados Unidos em Coral Gables, e o Instituto Cultural Brasileiro em Zurique. O Portal Brasil informa-nos de que h em torno de 2500 Centros Culturais no Brasil, que geralmente se referem a um museu, uma galeria, um teatro, uma biblioteca ou uma Casa de Cultura (http://www.brasil.gov.br/sobre/cultura/centros-de-cultura).

    A despeito das diferenas de propsito de criao de cada uma destas instituies, elas tm em comum o interesse de desvendar a natureza humana do

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    Brasil, que trafega das aventuras martimas portuguesas s contradies de sua insero na economia-mundo. O que havia antes no era Brasil, visto que o pas se fundou em 1500 em vez de haver sido descoberto.

    Dos esforos colonizadores de mascarar os costumes e usos dos milhes de indgenas que habitavam este territrio, impor-lhes uma lngua (portuguesa), religio (Catolicismo) e prtica econmica (mercantilismo), atravessamos mais de cinco sculos com um dever estranho que transcende a preocupao com a identidade nacional. A ordem do dia divulgar ao mundo as conquistas centenares por vezes, dbias e controversas das culturas ditas brasileiras.

    O esforo mais notvel desta prtica de diplomacia cultural o de enlatar num Centro Cultural tudo aquilo que somos e queremos. Seu propsito convencer nossos vizinhos hispano-americanos de que no somos subimperialistas, nossos irmos africanos de que tambm fomos explorados como eles, e nossos algozes europeus de que tambm somos seres pensantes.

    No entanto, o ensino da lngua portuguesa como carro-chefe dos Centros Culturais Brasileiros a tecedura que mais nos enjaula na sensao de que Portugal a legtima Ptria Me. Este um equvoco, por certo. mais uma expresso da nossa cultura de favores, pela qual os brasileiros sentimos necessidade de quitar dvidas oferecendo algo em troca. Esta tem sido a nossa estratgia oficial de aproximao entre universos culturais diferentes.

    De outro modo, a promoo de eventos que evento no cultural exceto inundaes, maremotos, a Doutrina de Segurana Nacional EUAna e outras catstrofes ambientais? acaba por atrair pessoas que buscam entretenimento em vez de educao. A promoo de eventos tambm atrai as pessoas que possuem cdigos e hbitos apurados para o consumo artstico. H que encontrar maneiras de pluralizar o entendimento da realidade brasileira sem a miopia do observador forneo.

    Os Centros Culturais Brasileiros tm um mrito neste aspecto. o de conferir presena brasileira no mundo sem o mtodo corsrio e impositivo de British Museumificao dos outros pases nem a porquidade maniquesta EUAna que incita uns povos contra outros (chamando isso de Primavera rabe na

    frica Setentrional e no Oriente Mdio) em vez de irman-los. Estou seguro de que, neste sentido, o Brasil tem algo diferente para mostrar ao mundo.

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    5. Alimento para bocas brasileiras

    proposta de exonerao de impostos federais sobre a cesta bsica no de ontem. Desconfia-se de que a preocupao maior do governo brasileiro

    com a reduo da inflao e a estabilizao da economia. Alm disso, para evitar dvidas de mrito partidrio, coloquemos de lado a suspeita de que o Partido dos Trabalhadores no o nico que considerou mudanas na cesta bsica. O que no se pode ignorar jamais o interesse coletivo e o bem-estar das pessoas.

    Nesta perspectiva, reside o mrito da presidente Dilma Rousseff. Ela anunciou, em 8 de maro de 2013, a desobrigao de impostos federais (Imposto sobre Produtos Industrializados e os Impostos do Programa de Integrao Social e da Contribuio para o Financiamento da Seguridade Social) sobre produtos da cesta bsica (carnes, leite, frutas, legumes, arroz, feijo, leo de cozinha, po, etc.) e alguns itens de higiene pessoal (creme dental, papel higinico e sabonete). Esta medida entrou em vigor no dia seguinte de seu anncio oficial, embora preveja a reduo de R$ 7,3 bilhes de recolhimento de impostos por ano (http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-03-08/dilma-anuncia-desoneracao-de-todos-os-produtos-da-cesta-basica).

    Nalguns itens da cesta bsica (por exemplo: arroz, feijo e leite), j no incidia a cobrana de impostos federais. Somente a desonerao de PIS/COFINS implica a reduo de impostos em 9,25% em cesta bsica e 12,25% em produtos de higiene pessoal. Esta resoluo da presidente brasileira a favor da cesta bsica segue a da reduo do preo da tarifa eltrica.

    O pronunciamento oficial de Rousseff dirigiu-se especialmente s mulheres brasileiras por ocasio do Dia Internacional da Mulher e seus esforos em combater a violncia contra este gnero. Suas palavras deram um incentivo: Com esta deciso, voc, com a mesma renda que tem hoje, vai poder aumentar o consumo de alimentos e de produtos de limpeza, e ainda ter uma sobra de dinheiro para poupar ou aumentar o consumo de outros bens. (http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/a-integra-do-pronunciamento-de-dilma-sobre-a-cesta-basica/).

    Com esta deciso poltica, Rousseff pretende estimular o comrcio e a indstria, combater a inflao, encorajar o empreendedorismo, aumentar o consumo de famlias pobres e gerar empregos no Brasil. Outra das finalidades de

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    interesse pblico que a presidente props a melhora dos mecanismos de proteo do consumidor. A Fundao de Proteo e Defesa do Consumidor (PROCON) o organismo principal que atua com estes fins no Brasil.

    A alimentao um fator importante para a economia brasileira, que se baseia principalmente no setor agrcola e industrial. A alimentao tambm relevante para o aproveitamento da renda, uma vez que os brasileiros gastamos em mdia 20% de nossos salrios em alimentos, e finalmente para a qualidade de vida. No basta ingerir alimentos; eles tm que ser de boa qualidade. Que o digam os nutricionistas.

    Alimento de boa qualidade abunda no Brasil. Nem todo pas tem este privilgio.

    Estive em conversa recente com uma pessoa que se queixou de que frutas no tm sabor em Cool Britannia, onde se aplicam medidas para fomentar o consumo de alimentos ditos orgnicos. A indstria inglesa de doces adiantada e tentadora, apesar de sua importao de acar. H consumidores que pensam duas vezes antes de substituir os cupcakes, cookies e muffins pelas frutas inspidas (mas fisicamente atraentes e simtricas) nas compras em supermercados.

    O Brasil investe em alimento que vem da terra. A nenhuma famlia brasileira dever faltar cesta bsica em lugar dos produtos enlatados industriais que se nos oferecem de pases industrialmente mais avanados.

    A resoluo da presidente Rousseff toca no s uma questo econmica (reduo de impostos) e cidad (aperfeioamento das relaes de consumo), mas tambm nos hbitos alimentares dos brasileiros numa terra que subaproveita sua abundncia. No Brasil, temos as melhores condies para a produo de alimentos, porm ou estes no nos atendem, ou desperdiamos a colheita ou mandamos o melhor do que produzimos ao exterior porque eles pagam melhor.

    Toca-nos resolver um srio conflito histrico: valorizar-nos em nossas identidades e reverter o papel de modelo. Por muito tempo, chegaram-nos ideias (positivismo), mtodos (produtividade) e prticas (neoliberalismo) para fazer o pas crescer e se desenvolver. A ltima vem com o selo da sustentabilidade. De agora em diante, reconheceremos que nossas frutas e verduras tm sabor, vm da terra e alimentam o povo brasileiro antes de qualquer outra boca.

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    6. Relaes de consumo no Brasil

    ois aspectos so essenciais no debate sobre o Plano Nacional de Consumo e Cidadania, que Dilma Rousseff criou em maro de 2013 a fim de tratar

    a proteo do consumidor como poltica de Estado. O primeiro sua premncia devido aos abusos impunes que a esfera do lucro comete contra a esfera da coletividade. O segundo a suspeita em torno de que Rousseff reforce a formao dos brasileiros como consumidores em vez de cidados. Assim, o governo federal protege-nos prioritariamente nas relaes de consumo em detrimento das relaes cidads. H que tomar cuidado para no confundir a esfera do consumismo com a da cidadania.

    A proposta poltica do Plano Nacional de Consumo e Cidadania melhorar a qualidade dos servios e dos produtos que circulam e se consomem em territrio nacional; alm disso, o Plano tem o fim de encorajar o aperfeioamento e a transparncia das relaes de consumo atravs da criao de trs Comits Tcnicos (Consumo e Regulao; Consumo e Turismo; Consumo e Ps-Venda). Seu primeiro passo , dentro de um ms, compor uma lista de produtos sobre os quais os consumidores devero ter resposta imediata do fabricante diante de suas demandas e queixas desde que estejam em garantia. De duas, uma: ou os brasileiros nos conscientizamos do nosso papel ativo na melhora destas relaes, ou o Plano ser um balco de poucos grandes anncios.

    Finalmente o governo federal decidiu dar um incentivo ao trabalho dos mecanismos municipais de Proteo ao Consumidor (PROCON), que tm sido incapazes de conter os abusos cometidos pela falsidade daquilo que empresas prometem aos consumidores. Esta poltica vai de mos dadas com a de fortalecimento das agncias reguladoras, que se criaram com as concesses de empresas de gesto pblica nos anos 1990. Notcia da Agncia Brasil (Luciene Cruz. Governo federal lana Plano Nacional de Consumo e Cidadania, 15 de maro de 2013) informa que as queixas principais referem-se telefonia celular (9,17%), os bancos comerciais (9,02%), os servios de carto de crdito (8,23%), a telefonia fixa (6,68%) e a rea financeira (5,17%).

    Em realidade, o Plano merece mais elogios que crticas. uma poltica que tardou porque havia sido um capricho, mas veio para ficar como poltica de Estado. O Plano aumenta a exigncia dos consumidores quanto qualidade do

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    produto que compram e do servio que contratam, clareza de informao, cumprimento de prazo, satisfao do cliente, e canais de atendimento. Enquanto o Brasil melhora suas relaes de consumo a fim de evitar insatisfaes e transtornos em seus consumidores, alguns criticam a deteriorao destas relaes em Cool Britannia, onde se descobriu a venda em supermercados de carne de cavalo em lasanhas cuja etiqueta anunciava conter carne bovina.

    por esta e outras razes que pouco do Primeiro Mundo serve para o Terceiro Mundo. Esta afirmao no poupa, portanto, uma boa dose de escrnio ideolgico.

    Enquanto as prticas de mercado aprofundam seus mtodos de abordar e conquistar o consumidor (por exemplo: panfletagem nos portes das casas e tempo de propaganda maior que os dos prprios programas na televiso), os gestores pblicos legtimos do o primeiro passo desde o Estado para regulamentar as relaes de consumo no Brasil. Sua aposta, contudo, deve ser to sofisticada a ponto de incluir neste Plano modernizador o comrcio eletrnico, que mereceria outra seo devido importncia do tema. Isto se deve a que as caixas de entrada de nossos correios eletrnicos enchem-se de spams porque eles se comercializam pela Internet. De maneira similar, a publicidade que nos atinge de websites de nosso interesse se direciona de acordo com pesquisa de gosto encomendada pelos browsers (navegadores com os quais acessamos a Internet).

    indiscutvel que a qualidade dos produtos e dos servios precisa melhorar no Brasil, porm este avano no poder ocorrer se se deixar de lado a nossa formao como cidados e nossa participao ativa nas resolues do pas. inadmissvel que, na menor chuva, bairros inteiros fiquem temporariamente sem energia eltrica ou que, em horrio de pico, a velocidade da banda larga de alguns servios de Internet se reduza drasticamente. Exemplos como estes so uma afronta dignidade do brasileiro no s como consumidor seno tambm como cidado.

    A crtica que fao de que o Brasil se prepare to competitivamente no comrcio mundial e to satisfatoriamente nas relaes internas de consumo sem formar bem seus jovens aprendizes, pequenos empreendedores e outros brasileiros em busca do sentido pblico de cidadania. Poderamos passar de uma posio de defesa ou proteo do consumidor como vtima constante a outra

    em que o cidado seja artfice resoluto de uma brasilidade nova e exemplar.

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    7. Do Capito Amrica ao Bin Laden

    SA Fora-da-Lei e para benefcio de sua inexplcita poltica cultural tem obsesso por heris e outros personagens ufanistas. No toa que o

    culto personalidade neste pas reproduz-se no xito mundial de seus atores e sua indstria cinematogrfica. Dois destes heris chamam ateno: Capito Amrica, que combate em nome do Bem, e Bin Laden, que aterroriza em nome do Mal. O aspecto mais curioso nesta relao maniquesta que os paradigmas divinos e infernais, que se contrastam no plano das ideias, assumem dimenses planetrias.

    Num destes dias de rotina cronometrada, entrei na estao de metr de Euston em Londres e uma mulher me pediu informao de itinerrio. Depois que a encaminhei na direo certa, perguntei de onde era e me respondeu: Da Amrica. Retruquei-lhe: Eu tambm. Do Brasil. Pasmou. Olhou-me ento com estranhamento, como se o breve dilogo no estivesse bem ajustado. Provavelmente achou que eu fosse responder Chicago, Los Angeles, Dallas, Houston, Kentucky Fry Chicken ou Starbucks Coffee. Mas a Amrica um continente com trinta e cinco pases em vez de outra referncia ao Tio Sam.

    O cenrio de (des)informao que muitos desenham mentalmente e mantm com convico tem a ver com a facilidade como se justifica a gesto mundial que inexiste nos termos das relaes internacionais como se fosse um jogo eletrnico. Ademais, s h ganhadores e perdedores nos polos competitivos de USA Fora-da-Lei; os intermedirios relegam-se invisibilidade.

    Desta forma, USA Fora-da-Lei mantm presena militar no Oriente Mdio a contragosto dos povos desta regio, que pouco podem fazer diante dos tanques que exterminam civis e das cmeras que selecionam imagens autorizadas para divulgao. Muitos deles no hesitam em protestar e queimar a bandeira EUAna. USA Fora-da-Lei o maior portador de armas nucleares no planeta, mas no aceita que Coreia do Norte e Ir tambm as fabriquem para dissuadir outros Estados de uma possvel invaso. A propsito, o atentado na maratona de Boston em abril de 2013 rendeu um suspeito identificado como muulmano em vez de procedente de tal ou qual pas. Outra vez e desnecessariamente o fator religioso impera sobre outros aspectos que identificam uma pessoa.

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    Por um lado, Capito Amrica foi criado em USA Fora-da-Lei durante o perodo da Segunda Guerra Mundial em 1941. um dos heris tpicos que colorem os desenhos animados e os gibis EUAnos. Por outro lado, conta-se que Osama Bin Laden nasceu na Arbia Saudita, em famlia rica e influente no mbito petroleiro. Alguns relatos informam que Bin Laden s conheceu a Al Qaeda organizao considerada por USA Fora-da-Lei autora dos atentados de 11 de setembro de 2001 quando ele se interessou no Islamismo. Ento Bin Laden passou a financiar guerrilheiros afegos.

    Qui Capito Amrica seja mais real que Bin Laden no plano das fantasias que sustentam a vida diria dos cidados ordinrios. Sendo assim, h dvida sobre se Bin Laden realmente existiu. Em caso afirmativo, outra dvida sobre se realmente o mataram em maio de 2011 perto da capital paquistanesa como afirmam as agncias de notcias que fizeram a reportagem. Na hiptese de que o tenham exterminado, no se sabe quem ser o prximo adversrio que justificar o revide ao terrorismo com atrocidades piores que as dos terroristas.

    No se sabe ao certo se foi realmente Osama Bin Laden e os planos de sua organizao Al Qaeda (A Base) que derrubaram as duas torres do World Trade Center em Nova York e lanaram um avio contra um prdio do Pentgono. No entanto, a poltica exterior EUAna conquistou seus objetivos estratgicos no territrio anteriormente controlado pelo personagem mundial Bin Laden apesar das milhares de perdas humanas. A suposta relao do Afeganisto com o terrorismo rendeu benefcios a USA Fora-da-Lei na justificativa de sua invaso quele pas aps os acontecimentos de 11 de setembro de 2001. Era o Bem contra o Mal, Capito Amrica contra Bin Laden.

    Entre um personagem e outro, fica o sabor do cinismo de um pas e da apatia de meio-cidados que acreditam em tudo que passa na tev.

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    8. gua-viva no Mamdromo Nacional

    s eventos que desencadearam a apresentao da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Cultura no Teatro Jos de Alencar de Fortaleza

    cerimonializam a noo de cultura que se distribuir pelos bilhetes do Vale-Cultura e por outros financiamentos do banquete elitista-industrial no Brasil. Em nosso pas, um feixe de luz indistinto irradia da cpula de um teatro mgico. O maior mrito nesta histria institucional, no obstante, a evidncia sem precedentes da cultura no cenrio de polticas pblicas nacionais.

    Trs propostas se discutem no mbito da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Cultura da Cmara dos Deputados: 1) o Procultura (que uma proposta de reforma das normas de financiamento da cultura que hoje se regulam pela Lei de Incentivo Cultura de dezembro de 1991); 2) os direitos autorais (que provocam tanto rudo na comunidade artstica pela prioridade que as indstrias do proteo de seu trabalho em vez do autor, e pela disseminao descontrolada de cpias e usos ilegais); e 3) a Lei Cultura Viva (que uma proposta de incentivo a iniciativas de produo cultural pela populao de escolaridade e renda baixas).

    No fim de fevereiro de 2013, a Comisso de Educao e Cultura desmembrou-se para que cada um de seus mbitos constitutivos recebesse ateno setorial em debates e deliberaes de polticas pblicas. Mais de trezentos parlamentares renem-se para acompanhar a poltica governamental, os projetos e programas direcionados promoo da cultura e preservao do patrimnio histrico (material e imaterial), arquitetnico, alm de incentivar e fomentar mecanismos de preservao e difuso da cultura popular brasileira

    (Frente Parlamentar em Defesa da Cultura. A Frente, s.d.).

    relevante que um grupo heterogneo e numeroso de parlamentares negligencie suas diferenas partidrias para debater sobre o esqueleto ideolgico que deve sustentar a identidade brasileira. Desta forma, o debate sobre polticas pblicas para a cultura no Mamdromo Nacional perpassa o af de aperfeioar os dotes cidados da populao, contemplar as diversidades regionais e contribuir para o desenvolvimento de setores emergentes como o da economia da cultura.

    Alguns destes nimos trazem desafios de longa data que demonstram que os problemas tpicos do Brasil (desigualdade, excluso, injustia, m

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    educao, etc.) tm pouca esperana de resoluo sem um olhar perscrutador sobre cultura. relevante entender como se forma o ser brasileiro, e quais so suas relaes, carncias e necessidades. o algo a mais sem o qual o algo a menos no funciona por disjuno das partes do todo.

    Projetos de lei do setor de cultura levam como de praxe burocrtica muito tempo para que o trmite se finalize e seu proponente comemore. A estratgia mais comum a de estabelecer acordos polticos com a oposio ou convencer os demais parlamentares de que a cultura movimenta a economia, reduz gastos com sade e impulsiona a educao. Assim se os persuade facilmente de que o Vale-Cultura contornar a crise de audincias que esvazia concertos, exposies artsticas e apresentaes teatrais.

    Vozes de liderana (como a de Jandira Feghali) so necessrias para a continuidade e o xito da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Cultura. No entanto, os participantes deste grupo poltico setorial passam a gua-viva de um para outro porque eles tm receio de debater sobre um tema que queima por ser to candentemente fundamental. Uma das esperanas reflete-se no meu desejo de que a multiplicidade de interlocutores e so mais de trezentos! desafie a administrao da Cultura com C maisculo.

    Como num exerccio de reanimao por respirao boca-a-boca, a cultura que se (re)desenha como identidade nacional dever sair do mago de todo brasileiro sem que perea por haver perdido os sentidos.

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    9. Conveno das bruxas

    Maquinrio brasileiro aliado condicional da nataiada tupinica (que se cr europeia e civilizada), ludibriador assduo do povo brasileiro, e

    inimigo mortal dos povos originrios. Mas a esta verificao no se chega sem contrastar o Brasil da oficialidade com o Brasil da realidade; o primeiro fantasioso e no se reproduz sem o recurso desinformao e ingenuidade.

    As crianas usam sua ingenuidade como acicate para a transformao cultural, poltica e social do seu meio to logo descobrem as desconformidades deste mundo. Um filme marcante e ao qual assisti na minha fase de infncia foi Conveno das bruxas (1990). Em seu roteiro, as bruxas reuniam-se regularmente numa sala de eventos de um hotel para discutir seus planos contra os seres de bem (em referncia aos humanos) e como transform-los em ratos. As bruxas disfaravam-se de humanos e, quando estavam somente entre elas, retiravam as mscaras e entreolhavam-se atravs de suas feies repugnantes. As bruxas sentiam pelo odor quando algum ente de bem estivesse prximo. O eflvio deste ente incomodava as narinas perniciosas das bruxas.

    Conveno das bruxas foi marcante porque sua narrativa no est somente no plano ficcional. O contedo deste filme impacta e ofusca a ingenuidade das crianas, mas afortunadamente no lhes anula o desejo de transformar a humanidade desconforme em seres de bem.

    Alguns grupos agem notoriamente numa conveno contra os seres humanos: os membros permanentes do Conselho de Segurana das Naes Unidas punem outras naes por to somente obter capacidade de dissuaso militar na era nuclear; o Banco Mundial faz recomendaes comerciais absurdas aos pases de industrializao incipiente, tais como os investimentos bilionrios na construo de estdios de futebol no Brasil que decolou sem asas.

    Tenho confiado mais em notcias sobre o Brasil que me chegam como integrante de uma lista de correios eletrnicos de uma universidade canadense que da imprensa brasileira, que pouco se atreve a denunciar as barbaridades cometidas nas terras sem lei. Melhor me refiro s terras onde a lei tem dono e

    onde os polticos locais se compram pelos bandeirantes de ltima hora.

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    Entre estas terras onde a lei tem dono, cito a obra criminosa, descabida, injustificada, invasora e ilegtima da usina hidreltrica de Belo Monte no Par. Este megaempreendimento no s no reduzir o preo da eletricidade dos consumidores de outras regies, que j foi negociado sob os acordos de concesses pelo ministro Edison Lobo, como tambm arruinar a vida das populaes nativas (humana, flora e fauna) e antecipar a destruio da Amaznia.

    Igualmente grave a invaso s terras indgenas nos estados de Amazonas, Rondnia, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul a fim de que o Brasil bata os recordes de quantidades de gros e de pedaos de animais que se exportam. Esta remessa de mercadorias ao exterior seria ainda melhor segundo reportagem recente do Fantstico se a construo da ferrovia que ligaria o Brasil de Norte a Sul no fosse superfaturada e feita sem planejamento. A omisso do governo brasileiro assustadora e inaceitvel. Legisladores do Mamdromo Nacional e alguns executivos fazem vista grossa ao massacre dos indgenas em plena era dos direitos humanos. Representantes do grupo indgena Munduruku se dizem desrespeitados, enganados e humilhados pelo governo brasileiro.

    Por esta razo, no h terra sem lei, mas donos da lei que impem aos

    povos originrios o princpio mais esprio do bandeirantismo ao criminalizar o outro e suas formas de subsistncia. Mesmo recurso usou o algoz Domingos Jorge Velho, que envergonhou So Paulo ao aniquilar o movimento digno de resistncia afrodescendente no corao do quilombo dos Palmares.

    O Maquinrio brasileiro solicita uma guinada que corrija completamente seus rumos. S assim deixar de representar os interesses da nataiada, de ludibriar o digno e sofrido povo brasileiro, e de malquistar os povos originrios em suas lutas pela preservao de suas comunidades e da natureza. Para o cumprimento deste objetivo, preciso coibir as convenes das bruxas em suas tristes decises de transformar seres humanos em ratos.

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    10. Gusano no mescal brasileiro

    lgum me explicou, em minha experincia vivendo no Mxico, que o mescal mais do que uma bebida alcolica tpica mexicana. O consumo

    do mescal finaliza-se com o ritual de comer o gusano (uma espcie de verme minsculo) que fica no fundo da garrafa. Quem d o ltimo gole do mescal come o gusano. Poucos se aventuram, mas os que obedecem s convenes do ritual dizem que o ato no um bicho de sete cabeas, mas s de uma com sabor bem forte.

    Em maio de 2013, o embaixador brasileiro Roberto Carvalho de Azevdo o primeiro profissional sul-americano que se tornou diretor-geral da Organizao Mundial do Comrcio (OMC) mediante um processo eleitoral disputado. Ele assumir o cargo em 1 de setembro de 2013 por quatro anos. As reunies e as deliberaes da OMC discutem regras multilaterais de comrcio que a maioria dos pases acata como membros da Organizao das Naes Unidas.

    Azevdo declarou, em entrevista imprensa, que sua vitria contra o candidato mexicano Herminio Blanco significa uma presena maior do conjunto da Amrica do Sul neste organismo internacional que delibera sobre assuntos comerciais e econmicos. Azevdo mostrou-se preocupado com o momento crtico de paralisia da OMC. Se o Mxico, por um clculo meramente

    geogrfico, gaba-se de pertencer Amrica do Norte, logo se justifica que a vitria de Azevdo significa um incentivo ao desenvolvimento da Amrica do Sul.

    Notcia da Agncia Brasil informa que vinte anos o tempo aproximado que Azevdo possui de experincia na rea de comrcio internacional; e que seu histrico profissional no setor amplo por ter chefiado, entre 2005 e 2006, o Departamento Econmico do Ministrio das Relaes Exteriores, e ter participado ativamente nas negociaes da Rodada Doha da OMC. (Renata Giraldi, OMC: Azevdo diz que sua eleio representa a fora da Amrica Latina, Agncia Brasil, Braslia, 9 Maio 2013.) A Rodada Doha surgiu em Qatar com o propsito de, sobretudo entre 2001 e 2005, promover negociaes entre representantes de pases desenvolvidos e de subdesenvolvidos a fim de reduzir as tarifas que encarecem o comrcio entre eles.

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    O Brasil tem sido convidado ao grupo que toma decises de relevncia mundial. O procedimento inicial de aceitao do convite fundamentalmente ideolgico; primeiro o Brasil se reconhece como parte de um grupo de pases

    em desenvolvimento, cuja noo a OMC adota. A prxima jogada e oxal consiga faz-lo ser a de oferecer uma perspectiva distinta sobre os temas em pauta para que, depois de o Brasil haver entrado pela porta da frente da OMC, no tenha que sair desta e de outras instituies pela porta do fundo.

    Os desafios que a OMC enfrenta logo aps o inconveniente da crise econmica mundial no so os mesmos de outrora. Um porta-voz de USA Fora-da-Lei deu a primeira cotovelada ao dizer que Azevdo no conseguir acordo algum na primeira grande reunio em Bali, Indonsia, e que a OMC dever propor regras para a nova economia digital. Esta uma rea em que o Brasil tem dependncia de importaes devido sua baixa industrializao neste setor tecnolgico. E assim seguimos comemorando as toneladas de gros de soja produzidas e estocadas no porto de Santos em troca de poucas mas de alto valor agregado e que ainda vm de fora com uma mordida.

    USA Fora-da-Lei um dos pases que tm tendncia de negociar cedendo o mnimo possvel de seus interesses e de esquivar-se de obrigaes multilaterais. No entanto, quando a situao aperta para o lado dos pases mais ricos e poderosos, como a crise derradeira comprova, pedem consulta aos outros pases aparentemente menos afetados pela crise em questo.

    Ademais, nenhum pas adere completamente ao comrcio livre. H sempre setores da economia nacional que devem ser protegidos, enquanto outros so mais competitivos e esto preparados para participar de processos de abertura de mercados. A Unio Europeia cnica ao sugerir constantemente que o Brasil deve abrir as pernas de sua economia para que seus burocratas e polticos meream cargos em organismos internacionais importantes. Embora a simpatia dos membros da OMC pelo Brasil se deva abertura comercial brasileira, houve resistncia escolha do candidato brasileiro diretoria-geral da OMC porque o Brasil acusado de elevar os impostos sobre produtos importados e de favorecer empresas locais em compras do governo.

    A eleio de Azevdo poder sugerir novos rumos OMC a despeito do risco de cooptao. Isso o que a Amrica do Sul espera dele. A sugesto dos pases dominadores a de colocar um verme europeizado numa garrafa de embalagem europeia para disseminar suas polticas europeizantes. Os vermes so

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    to imponderados que poucas personalidades se importam de vender at a alma para saciar suas vaidades e seus anseios de poder na (des)ordem econmica mundial. Nossos estadistas devem ficar atentos para no fazer aquilo que convm aos pases europeus (liberais, social-democratas, trabalhistas, etc.) e deixar nossa gente a consumir migalhas e tomates com preos em ascenso.

    A abertura comercial no Brasil significa auxlio estatal formao de oligoplios em vez do incentivo competio comercial. Azevdo poder comear denunciando o leilo do petrleo das terras brasileiras se ele realmente se importa com o povo brasileiro. Entre um trago e outro do mescal, algum chegar ao gusano, mas ciente de que poder causar-lhe indigesto.

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    11. Janela do presdio de Guantnamo

    esenhemos uma cena atual de barbrie: um grupo de patriotas foi agredido, agrilhoado e transferido a um presdio localizado numa ilha

    caribenha, que est bem longe de seus pases de origem. Isto ocorreu porque este mesmo grupo de pessoas defendeu seus pases (e tentou preservar seus povos, suas culturas, seus modos de vida, seus bens patrimoniais, etc.) contra a invaso estrangeira. Algo no muito diferente passou-se sculos atrs com os africanos que sofriam de banzo (saudade da terra natal), desnutrio e humilhaes enquanto eram desterrados em direo ao solo americano para o trabalho escravo.

    A maioria dos 166 detentos de Guantnamo de origem afeg e paquistanesa. Foram aprisionados na misso blica invasora, ilegtima e unilateral de USA Fora-da-Lei no Oriente Mdio por suspeita de ligao com a organizao Al Qaeda. Desde que chegaram a Guantnamo, no se lhes tem dado nenhuma garantia de quanto tempo permanecero encarcerados e em que situao.

    Em meados de maio de 2013, 100 destes 166 presidirios cumpriram 100 dias fazendo greve de fome em protesto aos abusos, maus tratos, condies insalubres das instalaes, roubo de seus pertences por carcereiros e atos de desprezo do Alcoro (livro sagrado dos muulmanos) por soldados EUAnos.

    O presdio de Guantnamo (Guantanamo Bay Detention Camp, que contm os espaos Camp Delta, Camp Iguana e Camp X-Ray de tortura a asiticos) construiu-se numa base militar de USA Fora-da-Lei no sudeste de Cuba. Projetou-se como um espao de deteno temporria, embora tenha tomado outro rumo. L foram levados, noutros perodos histricos, detentos de origem japonesa e vietnamita, quase todos aps guerras (respectivamente Segunda Guerra Mundial e Guerra do Vietn).

    O governo da ilha ofende-se pela presena militar EUAna em seu quintal, cuja poro territorial de 116 quilmetros quadrados foi tomada por USA Fora-da-Lei em 1903 em acordo com o governo cubano daquela poca para fins de explorao mineira e naval. A posse EUAna da Baa de Guantnamo uma herana pr-Revoluo Cubana, que levou patrulha ostensiva da rea a partir de incio da dcada de 1960 e proibio de soldados EUAnos de cruzar o limite com Cuba.

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    Algo srio est passando na Baa de Guantnamo e a greve de fome dos encarcerados tenta despertar ateno mundial sobre o tema. Nas vizinhanas de praias caribenhas paradisacas, ecoa o martrio de 166 enjaulados por um pas em desacordo com normas internacionais. Esto l sem terem sido competentemente julgados e sentenciados por uma corte legtima. H um desequilbrio de foras nas relaes internacionais que mantm a impunidade dos atos unilaterais e silencia os mais fracos.

    Nossa Amrica uma regio de contrastes. A Marinha EUAna intensificou a patrulha da costa da Flrida, aonde milhares de cubanos chegavam em embarcaes precrias e superlotadas para tentar a vida em USA Fora-da-Lei. Poucos navegantes obtinham xito. A distncia das guas entre Flrida e Cuba, para eles, era menor que a dos desertos escaldantes na fronteira entre USA Fora-da-Lei e Mxico.

    Instituies que se inspiram no modelo de direitos humanos do Velho Continente, da Organizao das Naes Unidas e da Unio de Naes Sul-Americanas so as que mais pressionam a favor do fechamento do presdio de Guantnamo. Elas reivindicam que somente a transferncia dos detentos a outro presdio no garantia de resoluo dos problemas que instituies como a Cruz Vermelha Internacional reconheceram. Algumas delas tiraram suas concluses aps visita de seus profissionais e tcnicos a Guantnamo.

    Embora uma das promessas da primeira campanha do presidente EUAno Barack Obama tenha sido o fechamento do presdio de Guantnamo, o espao continua funcionando normalmente. Uma medida paliativa que muitos esperavam era pelo menos a transferncia dos detentos a outros crceres, mas isto tampouco ocorreu. A entrada dos presidirios de Guantnamo ao territrio estadunidense poder prescindir de visto, mas eles continuaro espiando o mundo por uma janela que pior que a maior parte dos programas da televiso sempre que esta for entendida como uma janela para o mundo.

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    12. Desalojamento pelo porrete

    duas causas dos desalojamentos: naturais e foradas. A primeira decorre de condies ambientais como eroso de solos, cada de rvores, chuvas

    excessivas e inundaes. No entanto, abordarei a segunda como um aspecto da falta de conciliao entre o discurso oficial do Maquinrio brasileiro e os desalojados, que sustentam lutas histricas por maior insero social.

    A modernidade estabeleceu uma incompatibilidade entre o meio rural e o urbano: adotam-se prticas agrcolas modernas no campo e criam-se distritos industriais. Milhes de pessoas mudam sua forma de vida ou passam a viver noutro lugar. As maiores vtimas do desalojamento so os povos originrios e as comunidades ribeirinhas onde se constroem barragens, camponeses e pequenos produtores rurais que sentem a presso do agronegcio, favelados e moradores de reas irregulares que incomodam a lucratividade do setor imobilirio.

    No h casas para todos nem condies para que todos tenham casa prpria devido ao aumento populacional descontrolado e falta de planejamento urbano no Brasil. Dentro deste panorama pouco animador, o governo traa algumas polticas que amenizam a marginalizao, tais como seu programa de financiamento habitacional Minha Casa, Minha Vida.

    A essncia do problema dos desalojamentos no Brasil est na diviso entre aqueles que tm muito poder e aqueles que tm pouco poder para dialogar e negociar com o Maquinrio brasileiro. Tendo em vista este cenrio, o governo tenta abrandar o dficit habitacional e as lutas nacionais pela reforma agrria atravs de foras policiais e da defenestrao daqueles que no se inserem plenamente no sistema moderno que funciona sem consentimento. Anulam-se os direitos do outro e do marginalizado, e desdenham-se suas lutas devido reproduo de um modelo doentio e insustentvel de proteo da propriedade privada. A defesa da propriedade privada no insana quando se faz com antecedentes consentidos e justificados, mas reduz sua legitimidade quando oriunda da especulao imobiliria na cidade e do avano latifundirio no campo.

    O problema dos desalojamentos no Brasil assume dimenses transnacionais. Os brasiguaios encurralam os povos de descendncia guarani no Paraguai com a mesma fora como mantm os bois em seus currais espera do abate. Igualmente, a situao dos desalojamentos dos indgenas nos

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    territrios brasileiros ditos sem lei mais severa, pois a imprensa alternativa e os blogueiros so os poucos que transmitem notcias fidedignas aos leitores que no digerem o que as agncias de notcias da imprensa hegemnica dizem.

    As obras de preparao do Brasil para a Copa (2014) e as Olimpadas (2016) tm sido responsveis pelo desalojamento de 170 mil pessoas, segundo a Articulao Nacional dos Comits Populares da Copa e das Olimpadas. Copa e Olimpadas so duas marcas internacionais que tm promovido uma reorganizao forada da infraestrutura dos pases que sediam estes eventos. Estas reformas no costumam partir de uma necessidade interna, mas da exigncia internacional para acomodar eventos deste porte. Disso vem o desperdcio de dinheiro e o desalojamento de moradores de reas que sofrem readequao infraestrutural.

    O que mais preocupa sobre as polticas de desalojamento forado no Brasil sua falta de visibilidade nos meios de (des)informao e o tratamento violento dado pelas foras de segurana. A retirada forada de pessoas do lugar em que elas vivem intensifica o problema habitacional (sobretudo o do dficit de moradias) e sacia o apetite individual e egosta do grande agente que instiga o desalojamento (por exemplo: proprietrios de uma fbrica que desaloja moradores de um bairro para realizar suas atividades industriais). Pior que isto, a poltica do porrete acumula a dvida social do pas e aumenta o descontentamento com as decises do Maquinrio brasileiro.

    As consequncias infaustas dos desalojamentos forados no afeta somente os desalojados, mas todos ns. Hoje so eles; amanh seremos ns. necessrio, portanto, reavaliar os direitos e as garantias sobre a propriedade privada e o modelo de gesto inconsequente do Maquinrio brasileiro.

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    13. Frenesi de lusfonos conectados

    crescimento do uso da Internet no Brasil corrobora a tese de seleo natural do bilogo e viajante Charles Darwin. Enquanto o Plano

    Nacional de Banda Larga aumenta o nmero de internautas com acesso de 1 Mbps, a Telefnica e outras empresas lanam servios acima de 100 Mbps de velocidade em fibra ptica. A obsolescncia tecnolgica e a abertura inconsequente ao mercado conduzem primazia dos mais fortes, que tm interesses e procedncias nem sempre claros aos usurios de Internet independentemente de seus idiomas.

    Dados da Unio Internacional de Telecomunicaes (UIT) indicam que 83 milhes de usurios de Internet no mundo comunicam-se em portugus e que este idioma o quinto mais usado nesta rede de computadores. O ingls a lngua oficial de 565 milhes de internautas; logo est o chins (mandarim) com 510 milhes; em seguida, o espanhol com 165 milhes; e, em quarto lugar, 99 milhes de usurios comunicam-se em japons. (Jamil Chade, Portugus 5 lngua mais usada na web, O Estado de So Paulo, 14 de maio de 2013.). Os usurios de Internet que se comunicam em ingls ou em mandarim representam juntos 50% do total de internautas no mundo.

    Os 83 milhes de internautas que se comunicam em portugus significam aproximadamente um tero dos 250 milhes de falantes de portugus. Enquanto tememos a expanso das indstrias culturais faladas em ingls, o novo Acordo Ortogrfico e o fortalecimento da Comunidade de Pases de Lngua Portuguesa pressionam por uma unidade lingustica que ameaa os idiomas rabe, alemo e francs, que so menos influentes que o portugus na Internet. Alm disso, o Acordo Ortogrfico pode ser entendido aqui como uma estratgia global de promoo de pases que compartilham um idioma.

    Estes dados assinalam que o portugus o quinto idioma mais usado em bate-papos, comrcio eletrnico, redes sociais, troca de correios eletrnicos, e acesso a websites. No s o quinto maior nmero de todos os usurios de Internet comunica-se nesta lngua, como o contedo da rede virtual tambm se produz, circula, distribui-se, assimila-se e visualiza-se em portugus.

    O Brasil investe pesadamente no acesso Internet, como atravs de seu Plano Nacional de Banda Larga. O governo brasileiro quer conectar o maior

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    nmero de pessoas aos recursos amplos e infindveis da Internet. A UIT estima que, entre 2000 e 2011, o acesso Internet cresceu 481,7% em todo o mundo e que 2,099 bilhes de pessoas de uma populao mundial que h pouco alcanou 7 bilhes tm acesso a ela (Redao Portal Imprensa, Mais de 82,5 milhes de pessoas usam o portugus para se comunicar na Internet, Portal Imprensa, 16 de maio de 2013.).

    O Brasil integra-se de fora para dentro; com o xito deste processo, empresas que investem em tecnologia so as mais aptas a competir e sobreviver. Assim se traou o destino da Rede Globo, que, tanto durante o regime militar (19641985) e a dcada perdida dos anos 1980, preparou sua infraestrutura para os desafios tecnolgicos vindouros. A Rede Globo fundou-se em abril de 1965, quando h poucos meses se havia instaurado a ditadura; hoje est na vanguarda da televiso digital.

    Entretanto, assinalo que a lngua menos importante que o contedo que se comunica pela Internet. Sendo assim, recordo que os domnios da Internet, as linguagens de programao e as principais redes sociais (como o Facebook) surgiram em USA Fora-da-Lei e controlam-se desde escritrios numa baa provecta da Califrnia. Justifico assim por que USA Fora-da-Lei tem receio de que os governos de outros pases envolvam-se no controle do contedo da Internet, embora algumas de suas indstrias se prejudiquem, como pela cpia e uso ilegais de msica e filme.

    O nmero massivo de usurios da Internet de alguns pases no significa que a maioria de seus cidados tenha acesso Internet. Apesar de a populao da Alemanha ser de 82 milhes de pessoas, aproximadamente 80% de falantes de alemo tm acesso Internet. A Alemanha considera-se, assim, um pas bastante conectado Internet, ao contrrio de outros pases que caminham nesta direo atravs de polticas de democratizao do acesso rede virtual.

    Malgrado a notcia frentica de que o portugus o quinto idioma mais falado na Internet, a lngua apenas outro meio assim como a Internet atravs do qual se divulga uma mensagem. Comemorar o xito dos meios de comunicao em vez do contedo que os atravessa, portanto, no a maneira mais eficaz de garantir que os lusfonos estejam bem conectados.

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    14. Uso do crack e dores da marginalidade

    s usurios de crack sofrem de efeito colateral de um modelo de sociedade que no deu certo alhures, mas que se aplica sem adaptaes no Brasil.

    Alguns dos males da Amrica emanam da podrido valorativa da Europa. A competitividade, a decepo e o sentimento de frustrao so alguns de seus sintomas. Os custos sociais da incompatibilidade deste transplante medram e arrolam-se na conta de todo brasileiro. Uma de suas consequncias a fuga de uma situao insuportvel; desse modo, os narcticos usam-se como remdio para as dores psquicas da marginalizao.

    No entanto, o problema das sociedades capitalistas modernas nunca est em seu bojo, segundo seus promotores; ele est noutro lugar. Assim argumentam pases de alto consumo e baixa produo de narcticos. Desta maneira, o uso de narcticos no a passagem do terror ao bem-estar, mas certifica o rebaixamento da ordem contraveno. A ateno que se tem dado aos usurios de crack ilustrativa desta tenso social nas cidades brasileiras.

    O programa intersetorial e interministerial Crack, Possvel Vencer, do Governo Federal, oferece bases mveis equipadas com cmeras de monitoramento, que capturam imagens a centenas de metros de distncia, e acessrios de represso a cidades de porte mdio e grande. Embora o programa tenha sido criado em dezembro de 2011, as primeiras cidades que receberam as bases mveis so Braslia, Rio de Janeiro e So Paulo em maio de 2013.

    Muitas outras cidades de vrios estados brasileiros aderiram ao programa Crack, Possvel Vencer, enquanto outras demonstraram interesse em implant-lo. Por ter sido criado como intersetorial, o programa tambm visa a tomar medidas preventivas, de cuidados salutares e de assistncia social aos usurios de crack. Seus trs eixos so: autoridade, preveno e sade.

    Primeiramente, localiza-se o territrio dos usurios de crack nos locais mais propcios a estas atividades (praas, ruas mal iluminadas, redutos de pontes), mas tambm em escolas e outros lugares que se supunham isentos do narcotrfico e do narcoconsumo. Outro fator relevante a ter em considerao que o perfil dos usurios de crack costuma ser diferente do daqueles que usam narcticos mais caros e mais difceis de consegui-los. Os usurios destes

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    narcticos nem sempre so vtimas de marginalizao social; muitas vezes, so os provocadores indiretos da marginalizao.

    A poltica federal de combate ao crack no Brasil insere-se dentro do quadro mais amplo do debate sobre o trfico e o uso internacionais de narcticos, de qual deve ser o mtodo mais eficaz para reduzir sua circulao e seu consumo, e de como tratar os traficantes e os viciados. Nalguns pases, discute-se a legalizao do consumo de narcticos devido mudana de perspectiva sobre o tratamento dos viciados: eram vistos como criminosos; hoje so vistos como doentes.

    Algo diferente sucede com a viso repressiva com a qual gestores governamentais fazem uma relao entre uso de crack e segurana pblica. No entanto, as posies de burocratas e polticos dividem-se quanto ao tratamento do usurio de narcticos como criminoso ou enfermo. Regina Miki Secretria Nacional de Segurana Pblica bem assegurou, em entrevista ao Portal Brasil, que a pior doena que pode existir a criminalizao. Esta viso demonstra a

    maturidade de algumas ideias que vm da cpula governamental e que visam resoluo do problema. E de fato me impressionei com a lucidez como Regina Miki conhece a carncia dos viciados. Ela e alguns outros gestores pblicos sensibilizam-se com o contexto rduo em que vive o viciado.

    A rvore cresce torta enquanto no se trata a raiz enferma. Medidas repressivas no corrigem as deficincias sociais. A maioria dos usurios de crack sente o fardo da marginalizao social, a que se sujeitaram por deficincias educativas ou por negligncia das oportunidades que lhes apareceram na vida. Se no for o crack, ser outro narctico. O programa Crack, Possvel Vencer ser bem sucedido se observar, com cautela, as necessidades sociais dos viciados.

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    15. Chapeuzinho e a lobo-mania

    s brasileiros reescrevem o captulo da malversao de dinheiro pblico que causa prurido na enciclopdia da democracia no Brasil. Em sua

    sociedade altamente patriarcal e de troca de favores, o sistema equilibra-se atravs de um pacto que institucionaliza a corrupo, justifica o acmulo de riquezas e prorroga qualquer forma de protesto. Esta via de manifestao no a favorita dos brasileiros, que preferem a resignao e a zombaria, porm as mobilizaes de junho de 2013 trazem uma lio de democracia para o pas. Descobrimos que, quando provocados at o limite, a nossa fera interior fica indomvel.

    Os protestos que soergueram o Brasil em unssono compem as linhas de um novo captulo na histria da democracia e dos movimentos sociais na Amrica do Sul. Seus irmos prximos so a luta pela reforma educativa no Chile e a continuidade dos avanos sociais na Venezuela. O fator em comum que o povo cansou das vias tradicionais de luta poltica: voto obrigatrio nas eleies, crena nos partidos polticos e conformidade com a imprensa hegemnica. Os brasileiros organizaram-se nas redes sociais da Internet e saram s ruas.

    A aparncia de ingenuidade dos brasileiros acendeu a labareda de sua carncia profunda.

    A particularidade dos protestos no Brasil que os Lobos Maus deixaram cair moedas no valor total de R$ 0,20 no caminho casa da Vovozinha. a pista. Pensaram que vinte centavos no fizessem diferena. Mas Chapeuzinho coletou-as pela estrada afora que seguiu sozinha e comeou a desconfiar da muito boa vontade do Lobo Mau de indicar-lhe um caminho alternativo. Embora estas moedas no prejudiquem o oramento do Lobo Mau, elas moveram todo o pas a cobrar-lhe prestao de outras contas. Caiu a ficha dos brasileiros.

    Depois de uma jornada longa, Chapeuzinho bate na porta da casa de sua Vovozinha. At ento, tudo parecia normal. A Vovozinha espera sua neta, Chapeuzinho entra e faz algumas perguntas. A Vovozinha responde que seus olhos grandes so para enxerg-la melhor. Em seguida, a Vovozinha retruca que suas orelhas grandes so para escut-la melhor.

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    E assim as Prefeituras baixam as tarifas de nibus, legisladores prometem rever seus projetos polmicos de lei, e a presidente Dilma Rousseff prope um pacto com os governadores dos estados para atender as reivindicaes populares. Da mesma forma, gestores da Copa das Confederaes hesitam sobre a continuidade ou no dos jogos, e a imprensa mundial rev sua posio sobre o Brasil emergente. A culpa no s de uma pessoa seno de

    uma matilha de Lobos Maus que corrompem a esperana dos brasileiros. O povo paralisa as ruas em todo o Brasil. S assim para que os holofotes o iluminem.

    Outra particularidade dos protestos no Brasil a sensao generalizada de que todos tm alguma reivindicao e, portanto, seu carter apartidrio e inclusivo. Todo brasileiro inclusive integrantes da Polcia Militar que se escondem atrs dos escudos sente-se parte dos protestos independentemente de qual foi seu candidato nas eleies ltimas e dos transtornos que enfrenta (como o atraso em voos de Cumbica devido ao fechamento das avenidas em Guarulhos, a queima de pneus em Braslia e o saque de lojas no Rio de Janeiro).

    A cultura poltica do brasileiro revela o limite da desconfiana at a pacincia estourar numa manifestao autntica de seus direitos democrticos. Esta rajada de reivindicaes em todo o pas orgulha o ser brasileiro malgrado os desvios minoritrios de conduta que maculam os protestos, praticam a violncia e destroem patrimnios pblicos e privados. Estes casos espordicos no fazem mais que dificultar a tarefa dos lutadores dignos da democracia no pas.

    No entanto, somente o enaltecimento da democracia no atende a demanda dos brasileiros. Os governos municipais concentraram suas medidas na reduo das tarifas de nibus, o governo federal enfatizou o avano democrtico e a televiso focalizou os atos de vandalismo. preciso tomar cuidado para que nenhuma bandeira sectria se alce durante estes protestos. No desviemos o rumo positivo das mudanas vindouras. Na possibilidade de obter ganhos, no queremos s o almoo porque, mais tarde, teremos que jantar. Tampouco queremos que o governo nos faa aquilo que depende de nossos esforos.

    Os brasileiros despertam-se depois de perguntar ao Lobo Mau sobre a utilidade de sua boca.

    Solicitamos uma prestao de contas sobre a estrada nvia que o Lobo Mau nos sugeriu.

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    16. Da abundncia escassez

    brasileiro nasce num pas de abundncia, mas contraditoriamente cresce na escassez. Vive um conflito ntimo-social entre esperana e

    mesquinharia. A primeira advm da intuio de viver num pas de riquezas naturais exuberantes e alegrias contagiantes, enquanto a segunda justifica o endividamento das elites egostas por no repartir seu prato de abundncia. O resultado deste conflito no poderia ser outro que a desconfiana, a insegurana e o protesto.

    Mais que o despertar de um gigante, digo que o Brasil desafia seus fantasmas histricos. Alguns efeitos desta atividade so vistosos. O aumento das tarifas de nibus em vrias capitais brasileiras motivou protestos de seus usurios em Porto Alegre, Natal, Salvador, Goinia, Rio de Janeiro e So Paulo. Menciono somente algumas cidades onde os protestos tiveram repercusso na imprensa nacional, embora o aumento de tarifas tenha ocorrido em vrias cidades brasileiras. A prioridade sobre o uso do carro e o desuso do transporte coletivo evidente no Brasil. O governo federal tenta encobrir esta situao atravs do Plano Nacional de Mobilidade Urbana.

    Houve tambm manifestaes contrrias poltica de desalojamento, desapropriao de terras e uso de dinheiro pblico no financiamento de construes e reformas prediais para os eventos esportivos vindouros. Uma destas manifestaes a do movimento Copa para Quem? em Braslia. Polticos disseram que os manifestantes que queimaram pneus e pararam o trnsito no Eixo Monumental esto interessados em prejudicar a imagem do Brasil atravs dos protestos contrrios Copa e s Olimpadas. No entanto e desde uma perspectiva bem diferente, digo que h brasileiros preocupados com a difuso da imagem fiel e verdadeira da escassez no pas.

    O Brasil no o pas do futebol como muitos pensavam, mas o pas dos grandes negcios. Alguns previram que o Brasil assumiria o papel de nova Amrica (em referncia a Amrica, que um ttulo nobilitrio que se deu USA Fora-da-Lei na falta de outra terminologia mais arrogante). Assim, junto as peas do quebra-cabea tupinica para oferecer uma explicao coerente de como o Brasil joga com a abundncia e a escassez sem que o rbitro deste jogo estipule as regras de atuao do Estado e do mercado.

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    A tnica governamental e da Rede Globo o crescimento econmico e a necessidade de investir na infraestrutura porturia (principalmente em Paranagu e Santos) devido ao acmulo recorde de gros de soja nos portos espera de exportao. Esperam que o povo brasileiro comemore o aumento das exportaes. Enquanto isto, os produtores no interior do pas expandem seu cultivo de soja com baixa sustentabilidade ambiental, massacram ndios e enganam o povo brasileiro com a insegurana alimentar. O aumento das exportaes de poucos produtos, dessarte, reduz o cultivo de alimentos bsicos, que encarecem e faltam na mesa dos brasileiros.

    Bem-aventurado ser aquele que fizer bom uso do sincretismo de costumes e ideias que o Brasil herda de muitas civilizaes. Malgrado a impossibilidade do consenso, a nossa abundncia est no s nos frutos prdigos da natureza, mas tambm na convergncia da diversidade, que forma o ser brasileiro e o transforma com o advento de outras matrizes civilizatrias.

    Nossa abundncia, por vezes, alimenta o desperdcio dos mais fortes e perpetua a escassez dos mais fracos. Nesta relao desigual de foras, os descontentes ganham entusiasmo por acreditar na energia da convergncia da diversidade e entend-la a seu favor. S assim recuperaremos o encanto no Brasil tirando-o das mos das elites impostoras, mendazes e predadoras.

    O sofrimento do nosso povo no se pode converter num Favela Tour ou, em breve, em pacotes tursticos desportivos. No se brinca com a imagem da abundncia e a discrio da escassez. Todo brasileiro tem o direito de protestar como tem ocorrido em todo pas por motivos vrios sem que recebam balas de borracha ou gases lacrimogneos como se fossem criminosos.

    A dialtica entre abundncia e escassez mostra que o pas mudar a partir de baixo e de dentro, no de cima e de fora como muitos pensam.

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    17. Paralaxe de cidados

    oa parte das demandas que irromperam dos protestos de junho de 2013 no Brasil sugere um reforo dos compromissos do Estado com os brasileiros.

    Porm, o cuidado que se deve ter diz respeito a como entendemos quais so as responsabilidades do Estado como garantidor do interesse pblico enquanto as nossas so como cidados independentes. Noutras palavras, devemos cobrar menos dos outros e agir mais para conquistar o pas que queremos.

    A mfia do papel prevalece sobre a satisfao das necessidades sociais no pas. Exemplo disto a reao xenfoba de mdicos brasileiros contratao de mdicos estrangeiros para trabalhar em regies carentes, pobres e remotas. Eles tm que revalidar seus diplomas e sofrem discriminao como se fossem de pior qualidade. Pouco lhes interessa revelar que mdicos brasileiros nem sempre se disponham a trabalhar em regies longnquas, ou que muitos destes mdicos sejam cubanos e que sua medicina uma das mais desenvolvidas no mundo.

    Outra situao quando caminhoneiros interditaram 92 trechos de rodovias em vrios estados brasileiros nos primeiros dias de julho de 2013. Suas demandas principais tm relao com a diminuio dos custos de transporte (combustvel, pedgio) e melhoria dos seus direitos trabalhistas. O modelo de concesses de rodovias pblicas a empresas privadas e a variao de preos de combustveis em funo do mercado exigem um debate com a sociedade.

    Embora o Estado se entenda mal como provedor de todos os servios (nem sempre coletivos), ele deve orientar sua burocracia ao dever de garantir o interesse pblico. Este conceito ltimo precisa de esclarecimentos, uma vez que o Estado no o nico agente que o promove. H associaes comunitrias, empresas privadas, movimentos sociais, organizaes sem finalidade lucrativa, entre outros, que direcionam suas atividades promoo das coletividades.

    Temos uma ideia preconcebida de que o Estado deve prover-nos quase tudo (tarifa zero, salrios mais altos, benefcios) enquanto contraditoriamente queremos que ele baixe os impostos (como o painel Impostmetro da Associao Comercial de So Paulo sugere). Para seguir este modelo de Estado, no haveria outra maneira de tirar dinheiro que da cartola de um mgico ou das meias de um poltico corrupto. Precisamos, ao contrrio, ativar nossa cidadania

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    a fim de cumprir bem o papel que nos cabe a cada um; deste modo, pensaremos menos no interesse prprio e mais no interesse coletivo.

    Os movimentos de protesto que emergiram no Brasil em junho de 2013 tm a caracterstica de sustentar causas e insatisfaes mltiplas, mas se direcionam amide contra inimigos no-identificados. Ora os protestos se dirigem a polticos corruptos (bradando Fora Renan) e ineficincia do Estado

    (propondo reforma poltica, mais sade e mais educao), ora explorao

    de empresas privadas (pedgios abusivos, preo alto de combustvel).

    O que notei neles que h uma tendncia de as massas seguirem apologias enrgicas e acusaes infundadas, como o projeto de lei mal-entendido que se alcunhou cura gay. Por culpa nossa, as bolinhas de sabo de nossa meia-cidadania sopram-se por meios de comunicao hegemnicos e oportunistas que aguardam sua oportunidade de agir contra o interesse pblico.

    Sendo assim, o balano dos protestos de junho de 2013 no Brasil, que comearam pelas redes sociais na Internet e amansaram-se pela imprensa, tem menos a ver com democracia que com um conflito de paralaxe de cidados.

    Ao sairmos s ruas e situarmo-nos como manifestantes, descobrimos que no somos baderneiros, vndalos e agitadores como a televiso nos

    desenha. Em vez disso, ns todos temos alguma demanda poltica sria a fazer para que o Brasil melhore. Cansamos de viver de aparncias e enganos.

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    18. Vagido de um pas ps-democrtico

    s protestos no Brasil tm mais a ver com o subdesenvolvimento da meia-cidadania dos brasileiros que com o sobredesenvolvimento das

    instituies democrticas. O que entendemos como avanos democrticos (ou falta de democracia, nalgumas situaes) tem menos a ver com este regime poltico (a democracia) e mais com a estagnao de nossa formao cidad.

    Isto se deve a que temos dificuldades ingentes no uso dos canais institucionais que o regime poltico democrtico nos oferece. Destarte, o grito do gigante que acorda uma aluso ao reconhecimento dos direitos e

    deveres dos cidados atravs dos canais democrticos existentes. No entanto, h divergncias entre os que dirigem o gigante e os que esto no banco de

    passageiros. A proposta mais ambiciosa do governo uma reforma poltica, enquanto os manifestantes organizam-se para uma revoluo social.

    Assim, a presidente Dilma Rousseff cogitou um plebiscito para repartir o banquete do poder com o povo. Esta inteno super-democrtica logo se arrefeceu pelo freio do Mamdromo Nacional, que no o propor para votao popular antes das eleies de 2014. O calor das revoltas, contudo, perturba a presidente Dilma e os governadores dos estados onde se bloqueiam rodovias e se pratica a violncia. Eles no querem nenhum ato que prejudique quem no protesta. Portanto, o direito de protesto entra em conflito com o de ir e vir. Para citar um exemplo, manifestantes queimaram todas as cabines de pedgio de uma rodovia de Cosmpolis (interior de So Paulo) que est sob concesso.

    O impacto nacional e global dos protestos, a pressa parlamentar de tomar decises e a reviravolta na imagem exterior do Brasil contribuem para uma reflexo sobre o papel dos cidados nas instituies. At meados de junho de 2013, acreditou-se na sobrevalorizao dos modelos institucionais de nossa democracia. Este um efeito psicossocial que os brasileiros herdaram das lutas pelas Diretas J e da sensao de liberdade devido ao incentivo ao consumismo.

    Porm, o mapeamento dos protestos d resultados surpreendentes para os que depositaram sua confiana unicamente na urna da democracia. As manifestaes de junho e julho de 2013 despertam a populao e no o pas.

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    No o pas que se levanta porque quem est fora, e observa os cartazes contra a Copa e contra os polticos de modo geral, nota a mcula da imagem de Brasil emergente e paraso de oportunidades. Enquanto isto, nem todos os que esto dentro compartilham uma luta anti-sistmica (por exemplo: o pedido de ciclovias para incentivar pedaladas, e a crtica aos termos do Ato Mdico).

    Portanto, a populao brasileira brinca com o quebra-cabea da democracia e procura canais para liberar o fogo que arde dentro de cada um. Este efeito pirotcnico tem nos meios de comunicao seu maior amparo intelectual, embora o extintor que eles usam tem dono e prazo de validade.

    Aconteceu um pouco daquilo que eu esperava. Os manifestantes perderam gradualmente o controle da situao. Do mesmo jeito que tudo comeou pelos meios de comunicao (principalmente a partir de redes sociais da Internet com sede na Califrnia), tudo tende a terminar pelos meios de comunicao atravs das denncias de espionagem EUAna no Brasil. Os olhos do Tio Sam no piscam uma s vez.

    Ainda bem que o subsolo brasileiro generoso porque, s assim, os ministros e os parlamentares discutem se melhoram ou no a educao e a sade. Ganha destaque a notcia de que Alozio Mercadante ministro da educao defende a diviso dos royalties do petrleo da Bacia de Santos em 75% para a educao e 25% para a sade. Do contrrio, teramos mais um ponto favorvel noo de Brasileiros pocot que o escritor Luciano Pires prope. A diviso de bonificaes que vm da explorao do petrleo no Brasil a forma mais recente como se discute a entrega deste nosso recurso natural.

    A fumaa dos nimos que se acalmam pelos extintores dos meios de comunicao a ferramenta que a populao possui neste pas ps-democrtico. Enquanto quase sempre botamos a culpa das desgraas no outro, fazemos pouco para desenvolver uma sensibilidade poltica que efetivamente transforme o pas num lugar bom e justo para todos. Portanto, os protestos trazem mais uma chance de juntar os escombros para promover um recomeo feliz.

    Assim espero que a greve sindicalista de 11 de julho de 2013 tenha contribudo para as lutas gerais dos brasileiros. H rumores de que profissionais que exercem suas atividades em vrios setores (bancos, construo civil, magistrio, metalurgia, servidores pblicos, transporte, etc.) uniram-se, durante este episdio grevista, para reivindicar algo mais que aumento salarial.

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    O grito das massas nas ruas enseja o vagido de um pas ps-democrtico.

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