BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

23
6 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007 HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença LEONARDO DA VINCI, UM POLÍMATA DA RENASCENÇA J. Martins e Silva Unidade de Biopatologia Vascular do Instituto de Medicina Molecular, Lisboa, Portugal RESUMO Leonardo da Vinci foi um pioneiro e também um notável visionário numa grande diversidade de áreas, tais como em artes, engenharia, anato- mia, fisiologia, geologia, geografia e outras. Natural de Florença, Leo- nardo fez a sua auto-aprendizagem em diversos assuntos em que não tive- ra educação formal, vindo a ser uma notável individualidade da Renascença, que permanece viva através do seu legado de ideias e contri- butos. O presente trabalho resume brevemente a vida de Leonardo da Vinci, os seus primeiros anos de aprendizagem artística, as obras que o consagra- ram como exímio pintor e artista (que acreditava ser a arte a expressão da ciência), o observador curioso de animais, da botânica e das caracterís- ticas geológicas da Natureza que o rodeava, o anatomista meticuloso que estudava e desenhava o corpo humano, comparando-o com o de animais, de que resultaram extraordinárias deduções fisiológicas e patológicas, algumas das quais antecipando em mais de cinco séculos o que viria a ser confirmado na actualidade. ABSTRACT Leonado da Vinci was a pioneer and also a remarkable visionary in a large number of fields of human activity, such as arts, engineering, ana- tomy, physiology, geology, geography, among others. Born near Floren- ce, and a self-educated man, Leonard was an outstanding personality of the Renaissance who is still alive nowadays through his ideas and con- tributions. The present work testimonies briefly his life, the first years of artistic apprenticeship, the consecration as a great painter (who belie- ved that art should express the laws of science), the curious observer of living animals, botany and geologic characteristic of the surrounding Nature, the meticulous anatomist of human bodies, that in comparison with those of animals allowed him to extraordinary physiologic and pathological deductions, some have waited more than five hundred years to be confirmed.

Transcript of BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

Page 1: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

6 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

LEONARDO DA VINCI, UM POLÍMATA DA RENASCENÇA

J. Martins e SilvaUnidade de Biopatologia Vascular do Instituto de Medicina Molecular, Lisboa, Portugal

RESUMO

Leonardo da Vinci foi um pioneiro e também um notável visionárionuma grande diversidade de áreas, tais como em artes, engenharia, anato-mia, fisiologia, geologia, geografia e outras. Natural de Florença, Leo-nardo fez a sua auto-aprendizagem em diversos assuntos em que não tive-ra educação formal, vindo a ser uma notável individualidade daRenascença, que permanece viva através do seu legado de ideias e contri-butos. O presente trabalho resume brevemente a vida de Leonardo da Vinci,os seus primeiros anos de aprendizagem artística, as obras que o consagra-ram como exímio pintor e artista (que acreditava ser a arte a expressão daciência), o observador curioso de animais, da botânica e das caracterís-ticas geológicas da Natureza que o rodeava, o anatomista meticuloso queestudava e desenhava o corpo humano, comparando-o com o de animais,de que resultaram extraordinárias deduções fisiológicas e patológicas,algumas das quais antecipando em mais de cinco séculos o que viria a serconfirmado na actualidade.

ABSTRACT

Leonado da Vinci was a pioneer and also a remarkable visionary in alarge number of fields of human activity, such as arts, engineering, ana-tomy, physiology, geology, geography, among others. Born near Floren-ce, and a self-educated man, Leonard was an outstanding personality ofthe Renaissance who is still alive nowadays through his ideas and con-tributions. The present work testimonies briefly his life, the first yearsof artistic apprenticeship, the consecration as a great painter (who belie-ved that art should express the laws of science), the curious observer ofliving animals, botany and geologic characteristic of the surroundingNature, the meticulous anatomist of human bodies, that in comparisonwith those of animals allowed him to extraordinary physiologic andpathological deductions, some have waited more than five hundred yearsto be confirmed.

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:236

Page 2: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

7Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

INTRODUÇÃO

Num perspectiva contemporânea,Leonardo da Vinci foi um polímatae, também, como alguém afirmou, um“uomo universale”1. Artista, inventor,engenheiro e anatomista, entre outrascapacidades de grande mérito, terásido o primeiro grande investigadorda Renascença e cientista, cujo mé-todo, ideias e inovações estiverammuito à frente da sua época. Os prin-cípios de dedução e experimentaçãopor si utilizados mantêm plena actua-lidade2.

Para Alexander von Humboldt,Leonardo foi “o primeiro a fazerconvergir os nosso sentidos para umconceito da Unidade da Natureza”3.Respeitado em geral pelos seus con-temporâneos, as suas ideias e obser-vações eram contudo menosprezadaspelos académicos e detentores de for-mação escolar na época. Na realida-de, a obra de Leonardo da Vinci co-meçou a ser conhecida e devidamenteaprovada somente a partir do séculoXIX graças ao esforço e muita dedi-cação de Paul Richter, que traduziuuma selecção de extractos dos origi-nais depositados no Castelo de Win-dsor e em outras bibliotecas3.

UMA VIDA MULTIFACETADA

Os primeiros anos em Florença– Leonardo da Vinci nasceu em 1452em Anchiano, aldeia próxima da ci-dade de Vinci, na Toscânia italiana.Filho ilegítimo do notário florentinoSer Piero da Vinci e de uma campo-nesa da localidade, Caterina, Leonar-do foi criado desde os quatro anos deidade junto da família paterna pelosavós e tio Francesco, que lhe assegu-

raram uma educação esmerada e mui-to o estimaram.

De acordo com os costumes daépoca, os filhos ilegítimos não tinhamaceitação entre a burguesia, pelo quea educação escolar era-lhes dificul-tada. Também não podiam frequen-tar a universidade, pelo que não ti-nham acesso a profissões destacadascomo a medicina e o direito. Peranteestas limitações, a educação elemen-tar de Leonardo foi assegurada comlições particulares, por professoresque o seu avô escolhia cuidadosamen-te. Contudo, aquele ensino não incluíalições de Latim, Grego e matemáti-ca, pelo que teve de aprender por siaquelas matérias ao longo da vida.O facto de não ter tido educação clás-sica haveria de se reflectir negativa-mente na apreciação das suas obras eideias pelos contemporâneos comformação académica. Leonardo nãodeixou de anotar mais tarde a amar-gura que aquela situação lhe causavae, também, o menosprezo que sentiapelos seus detractores académicos:

“I am fully concious that, notbeing a literary man, certain pre-sumptuous persons will think thatthey may reasonably blame me; al-leging that I am not a man of let-ters. Foolish folks! do they notknow that I might retort as Ma-rius did to the Roman Patricians” 4

Mais adiantou:

Though I may not, like them, be ableto quote other authors, I shall relyon that which is much greater andmore worthy: on experience, themistress of their Masters. They goabout puffed up and pompous, dres-sed and decorated with [the fruits],

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:237

Page 3: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

8 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

not of their own labours, but of tho-se of others. And they will not allowme my own. They will scorn me asan inventor; but how much moremight they—who are not inventorsbut vaunters and declaimers of theworks of other—be blamed.5

Entre os 12 e os 14 anos de idadefoi enviado pelo pai para Florença,para aprender as bases de pintura eescultura com o seu amigo e famosoartista local, Andrea del Verrocchio.

Aquela aprendizagem não se limi-tava à arte mas também a tarefas arte-sanais com diversos materiais (como omármore e o bronze), trabalhos de ar-quitectura e engenharia aplicadas, eobras equivalentes. Por essa razão, aformação de Leonardo, bem como ados seus colegas aprendizes, era muitodiversificada, abrangendo inclusiva-mente a óptica, a música e a poesia. Osseus traços de génio fizeram diferença,projectando-o para níveis superiores decriatividade e concretização em todosos domínios em que participou.

Leonardo permaneceu no estúdiode Verrocchio até 1476. Nesse perío-do fez também a sua aprendizagemem humanidades, beneficiando daposição destacada que Verrocchiodetinha na sociedade florentina e doconvívio propiciado pela comunida-de intelectual, residente e visitante,que partilhava o seu meio.

Aos 20 anos de idade, Leonardofoi admitido como mestre artesão nagrémio de São Lucas (que reunia ospintores de Florença), por influênciadecisiva do seu mentor Verrocchio,que foi também o primeiro grandeadmirador como génio artístico. Portal terá colaborado num quadro do seumestre, “O Baptismo de Cristo” (Fig.1) com resultados tão bons que, con-

ta-se, Verrocchio terá decidido deixarde pintar2,6. A partir dessa data Leo-nardo começou a executar alguns tra-balhos artísticos independentes. Ain-da no estúdio de Verrocchio pintouna totalidade ou em parte alguns pe-quenos quadros, como a “Madonacom Cravo”, “Madona Benois” e,também, “A Anunciação” (Fig. 2).

Entre 1476 e 1481 Leonardo teveo seu próprio estúdio em Florença.Data deste período o “Retrato de Gi-nevra de Benci”, que marca o primei-ro dos seus trabalhos independentese que também não incide em moti-vos religiosos (Fig. 3).

Uma encomenda para pintar umretábulo para uma capela do PalazzoVecchio, conseguida em 1478 prova-velmente através dos conhecimentosde seu pai, não passou das primeiraspinceladas. A situação repetiu-se trêsanos mais tarde com um quadro sobrea “Adoração dos Magos”, encomen-

Figura 1. Quadro do “Baptismo de Cristo”, porAndrea del Verrocchio (óleo e têmperasobre madeira), pintado cerca de 1472--1475. Leonardo, ainda aprendiz, terápintado o anjo que segura a túnica de Cristo.(Imagem do domínio público/WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:238

Page 4: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

9Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

dado pelos monges, da Igreja de S. Do-nato, em Scopeto (destinado à igrejade um mosteiro próximo de Floren-ça), e outro tendo por tema “S. Jeró-nimo”, para um altar. Não obstanteserem conhecidos numerosos esboçose estudos preparatórios, ambos os qua-dros ficaram inacabados, pelo que re-caiu sobre Leonardo a fama de nãoconcluir os seus trabalhos, a qual ha-via de o acompanhar, quase semprejustificadamente, por toda a sua vida.

A primeira estadia em Milão –Em 1482, desapontado pelo escassoreconhecimento que lhe era concedi-do em Florença, designadamente porparte do seu governante e grande me-cenas das artes, Lorenzo de Medici,Leonardo, já com trinta anos de idade,decidiu mudar-se para Milão, ofere-cendo os seus serviços ao governantelocal, o duque Ludovico il Moro.

Na realidade, não está esclarecidose foi Leonardo a decidir abandonarFlorença (o que parece ser a hipótesemais aceitável) ou se foi enviado aoduque de Milão para o presentear comuma lira concebida por si, e por sertambém um talentoso músico daque-le instrumento2.

A favor daquela primeira hipóte-se é referida o rascunho de uma cartade apresentação que Leonardo escre-veu (mas desconhece-se se a enviou)em 1482 ou 1983 a Ludovico Sforza,em que oferece os seus préstimos demodo assaz auto-elogioso quanto aosseus dotes artísticos como arquitectoe engenheiro militar.

“Most illustrious Lord, Havingnow sufficiently considered thespecimens of all those who procla-

Figura 2. Quadro de “A Anunciação” (pintura a óleo sobre madeira) datada de 1473-1475.(Imagem no domínio público Wikimedia Commons)

Figura 3. Retrato de Ginevra de Benci (óleo etêmpera sobre madeira) pintado cerca de1478-1480.(Imagem no domínio público WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:239

Page 5: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

10 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

im themselves skilled contrivers ofinstruments of war, and that theinvention and operation of the saidinstruments are nothing differentto those in common use: I shallendeavour, without prejudice toany one else, to explain myself toyour Excellency showing yourLordship my secrets, and then offe-ring them to your best pleasureand approbation to work witheffect at opportune moments aswell as all those things which, inpart, shall be briefly noted below.

1) I have a sort of extremely lightand strong bridges, adapted to bemost easily carried, and with themyou may pursue, and at any timeflee from the enemy; and others,secure and indestructible by fireand battle, easy and convenient tolift and place. Also methods of bur-ning and destroying those of theenemy.

2) I know how, when a place is be-sieged, to take the water out of thetrenches, and make endless varie-ty of bridges, and covered ways andladders, and other machines per-taining to such expeditions.

3) Item. If, by reason of the heightof the banks, or the strength of theplace and its position, it is impossi-ble, when besieging a place, to availoneself of the plan of bombardment,I have methods for destroying everyrock or other fortress, even if it werefounded on a rock, &c.

4) Again I have kinds of mortars;most convenient and easy to car-ry; and with these can fling smallstones almost resembling a storm;

and with the smoke of these cau-sing great terror to the enemy, tohis great detriment and confusion.

9) [8] And when the fight shouldbe at sea I have kinds of many ma-chines most efficient for offenceand defence; and vessels whichwill resist the attack of the largestguns and powder and fumes.

5) Item. I have means by secret andtortuous mines and ways, madewithout noise to reach a designa-ted [spot], even if it were neededto pass under a trench or a river.

6) Item. I will make covered cha-riots, safe and unattackable whi-ch, entering among the enemy withtheir artillery, there is no body ofmen so great but they would bre-ak them. And behind these, infan-try could follow quite unhurt andwithout any hindrance.

7) Item. In case of need I will makebig guns, mortars and light ordnan-ce of fine and useful forms, out ofthe common type.

8) Where the operation of bombar-dment should fail, I would contrivecatapults, mangonels, _trabocchi_and other machines of marvellousefficacy and not in common use. Andin short, according to the variety ofcases, I can contrive various and en-dless means of offence and defence.

10) In time of peace I believe I cangive perfect satisfaction and to theequal of any other in architectureand the composition of buildingspublic and private; and in guidingwater from one place to another.

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2310

Page 6: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

11Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Item: I can carry out sculpture inmarble, bronze or clay, and alsoin painting whatever may be done,and as well as any other, be hewhom he may.

[32] Again, the bronze horse maybe taken in hand, which is to be tothe immortal glory and eternal ho-nour of the prince your father ofhappy memory, and of the illus-trious house of Sforza.

And if any one of the above-na-med things seem to any one to beimpossible or not feasible, I ammost ready to make the experimentin your park, or in whatever placemay please your Excellency—towhom I commend myself with theutmost humility &c.” 7

É notório e surpreendente o carác-ter belicista dos instrumentos propos-tos, ao mesmo tempo que se disponi-biliza a executar uma estátua equestreem homenagem aos Sforza, para aexecução da qual aquela família pro-curava (decerto com o conhecimentode Leonardo) um escultor de mérito.

A opinião prevalecente sobre a mis-siva é que Leonardo, acima de tudo,procurava um emprego e, para tal, ofe-recia o que sabia ser uma capacidadeapreciada pelos governantes em épo-ca de constantes conflitos militares2.Porém, apesar dos seus esforços, Leo-nardo não teve a receptividade espe-rada junto de Ludovico, pelo que tevede recorrer à pintura, partilhando oestúdio (e residência) com a famíliaPedris, conhecidos artistas locais.

Através do contacto e conhecimen-to destes Leonardo obteve as suas pri-meiras encomendas, em que a mais sig-nificativa foi para pintar um retábulo

para a capela recém-construída da igrejade S. Francesco Grande. A IrmandadeFranciscana pretendia que a pintura,a executar por Leonardo e por dois ir-mãos da família Pedris, obedecesse adeterminados requisitos quanto às per-sonagens, vestes e outros pormenoresfigurativos. Leonardo pintou o quadrocentral enquanto os dois irmãos se en-carregaram dos dois painéis laterais. Ofacto é que a obra não foi aceite pelosfrades, a par com a sua discordânciaquanto ao pagamento. Os artistas fo-ram processados pela Irmandade Fran-ciscana e o litígio veio a ser resolvidomais de duas décadas depois, com apintura de uma segunda versão do qua-dro por Leonardo (Fig. 4). Quanto ao

Figura 4. Quadro de “A Virgem dos Rochedos” (óleosobre madeira). Existem duas pinturasquase idênticas, uma realizada cerca de1483-1486, e uma segunda versão (aquirepresentada) com dimensões um poucomenores, concluída cerca de 1508.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2311

Page 7: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

12 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

primeiro quadro terá sido vendido a umcomprador que se disponibilizou a pa-gar muito mais do que a Irmandade,suspeitando-se que o interessado fosseo próprio Ludovico Sforza2,6.

Após a grande epidemia de pesteque assolou Milão em 1484, a sortede Leonardo começou a melhorar.Tornara-se um artista conhecido eexecuta uma primeira pintura paraLudovico (Fig. 5). Aos poucos, porvia de conhecimentos influentes, Leo-nardo acaba por seu aceite na côrtemilanesa como artista, engenheiro earquitecto. Mais concretamente, de-pois de 1490, Leonardo foi respon-sável polivalente de todas as obras ecoreografia de eventos grandiososplaneados por Ludovico, que o tor-nariam famoso por toda a Itália e paí-ses representados na côrte milanesa.

Enquanto esperara pela sua oportu-nidade Leonardo amadurecera a ideiade que a pintura e a escultura deveriamorientar-se pelas realidades da Nature-

za. Nesse sentido dispusera-se a estu-dar anatomia e botânica, realizou ex-perimentação animal e desenvolveucapacidades para a abordagem multi-lateral de qualquer problema e de pen-samento transversal. É a partir destaépoca que começa a registar as suasideias, observações e experiências emcadernos de apontamentos8.

Para melhorar os resultados artísti-cos e, em especial, para dar corpo às suasinvenções arquitectónicas e de engenha-ria (em que se incluíram um paraque-das, um aparelho voador, máquinas deguerra, barragens, submersíveis, esca-fandros, sistemas hidráulicos, entre ou-tras), Leonardo precisava de aprendermatemática. Para o efeito aproveitou aestadia em Milão (cerca de 1496) doacadémico e monge itinerante Luca Pa-cioli, depois seu amigo, que lhe ensinouas bases fundamentais para os objecti-vos que Leonardo pretendia desenvol-ver, e com quem colaborou na feiturado tratado “De Divina Proportione”, pu-blicado em 1509. Posteriormente, o seuinteresse pela perspectiva, pela balísticae obras de engenharia incitaram Leonar-do à investigação em matemática, aoponto de a considerar indispensável paraa resolução de qualquer assunto:

There is no certainty in scienceswhere one of the mathematical sci-ences cannot be applied, or whi-ch are not in relation with thesemathematics” 9

e para a elevação cultural do in-vestigador:

and among the great features ofMathematics the certainty of itsdemonstrations is what preemi-nently (tends to) elevate the mindof the investigator 10

Figura 5. Retrato de Cecília Gallerani (Senhora comArminho). Óleo sobre madeira, cerca de 1490.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2312

Page 8: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

13Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Por esta altura Leonardo recebera,entre outras a encomenda de um mu-ral com cerca de nove metros de com-primento para o refeitório do mostei-ro milanês de S. Maria delle Grazie,que o ocuparia durante cerca de trêsanos. O mural, intitulado “A ÚltimaCeia” (Fig. 6), haveria de ser uma dasobras-prima de Leonardo, não obs-tante a série de problemas que lhe sur-giram desde o início6. A qualidade detêmpera e as condições da pintura nãoeram as adequadas e a própria pare-de estava constantemente húmida eexposta às intempéries. Por outrolado, a elaboração da obra prolongou--se demasiado para o que o prior domosteiro pretendia. Grande parte dotempo foi ocupado em reproduzir nofresco personagens com os traços eas expressões pretendidas, a partir deobservações colhidas exclusivamen-te entre os populares de Milão. O fac-to é que o atraso da obra originou pro-

testos por parte do prior responsávelpelo mosteiro junto de Ludovico. Estetambém pretendia a obra concluída atempo de a incorporar no conjuntofunerário para a sua família. O qua-dro foi dado por concluído em 1498.

A qualidade das tintas, a permanen-te humidade da parede, e exposição àchuva e ao sol conduziram a uma con-tinuada deterioração da pintura, aindapor solucionar actualmente.

Cerca de 1489 renascera o interessede Ludovico Sforza pela execução deuma gigantesca estátua equestre dedica-da a seu pai, Francesco Sforza, que haviaficado protelada por outros projectos.

É conhecida uma carta que Sforzateria escrito a Lorenzo de Medici, nosentido deste lhe enviar dois artistasflorentinos com reconhecidas capaci-dades para a realização da obra. Nãose sabe se o escrito foi aceite mas ofacto é que Leonardo se sentiu desafi-ado (talvez fosse esse o objectivo fi-

Figura 6. Quadro de “Última Ceia”, pintado cerca de 1495-1497 no refeitório do mosteiro dominicano de Santa Maria delle Gazie, em Milão.(Imagem no domínio público/Wikimedia Commons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2313

Page 9: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

14 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

nal da carta) a concretizar o projecto,pelo que recomeçou a estudar anato-mia e a desenhar modelos de cavalos2.

Na realidade, Leonardo tinha habili-tações técnicas para a obra e, ainda emFlorença, colaborara com Verrocchio napreparação de um modelo equestre deque este fora encarregado. Todavia, de-vido às múltiplas solicitações da corte,somente quatro anos depois Leonardoconseguiu apresentar um primeiro mo-delo monumental em terracota (em quesó o cavalo tinha mais de sete metros dealtura), na sequência de múltiplos estu-dos anatómicos e de desenhos de cavalos(Fig. 7). O problema fundamental era afundição em bronze do modelo, que seafigurava uma tarefa intransponível,quer pelas dimensões das peças quer

pelo pouco domínio da técnica de fun-dição daquele tipo de obra na época.

Em 1494 a situação política compli-cara-se na Península Itálica, e em Milãoem particular, pelo que a fundição docavalo foi suspensa, sendo o bronze uti-lizado para o fabrico de canhões e outromaterial bélico, destinado a repelir umainvasão francesa liderada pelo rei Char-les VIII, por fim derrotado em 1494.

A situação política entre Milão, Pisa,Florença e Veneza volta a deteriorar-secom as intrigas de Ludovico, cerca de1498. Entretanto, após o falecimentosúbito de Charles VIII, ascende ao tro-no de França Louis XII. Este, por serdescendente dos Visconti, que haviamgovernado Milão até 1450, antes dosSforza, entendeu reivindicar aqueleducado. Para o efeito reuniu um pode-roso exército e isolou Milão dos seusanteriores aliados. No Verão de 1499 apopulação sitiada revoltou-se, Ludovi-co fugiu e, em Setembro, o exército fran-cês entrou em Milão sem qualquer obs-táculo. Um mês mais tarde Louis XIIfoi recebido triunfalmente em Milão.

Leonardo permaneceu na cidade du-rante algum tempo, sendo bem acolhi-do por Luís XII, conhecedor da sua obrae fama. Porém, a situação da cidade ocu-pada modificara-se, sendo grande o des-contentamento dos milaneses. Constaque Leonardo decidiu abandonar Milãocom o seu séquito (em que se incluíatambém Luca Pacioli) em finais de De-zembro, ao verificar que os arqueirosfranceses utilizavam para alvo das suassetas o modelo de cavalo para o monu-mento aos Sforza, o qual ocupava a pra-ça central defronte do palácio ducal.

Anos errantes – Seguiu-se um pe-ríodo de vida em que Leonardo ofere-ceu os seus préstimos a governantes emecenas de diversas cidades italianas.

Figura 7. Estudo para o Monumento Sforza. Desenho em ponta de prata sobre papel azulado, cercade 1488-1489.Este modelo não passou de um ideal que Leonardo teve de abandonar, devido à reconhecidainstabilidade da estátua, que assentaria apenas nas patas traseiras do cavalo, Leonardosubstituiu-o pela forma mais clássica e estável de um cavalo em marcha.(Imagem no domínio público/Wikimedia Commons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2314

Page 10: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

15Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Durante as suas deslocações Leonar-do levava consigo todos os haveres,em que se incluíam as pinturas, dese-nhos, os famosos blocos de aponta-mentos e alguns livros. Adicionalmen-te, havia os pertences do seu séquito,pelo que uma das preocupações deLeonardo era a de assegurar previa-mente que, ao ser acolhido na terra aque oferecia os seus préstimos, lheeram garantidas instalações condignas.

Após sair de Milão Leonardo foi aco-lhido em Mântua pela generosa, mastambém caprichosa, mecenas das artes,Isabelle d’Este, de quem, após algumainsistência desta, preparou um esboçopara uma futura pintura (Fig. 8). Cercade um ano depois, em 1500, Leonardoseguiu para Veneza, onde permaneceupouco mais de um mês, o tempo de pro-por algumas obras de engenharia e dedefesa da cidade, após o que regressoua Florença. O quadro de “A Virgem, o

Menino e Sta Ana” (Fig. 9), comissio-nado pelos monges Servitas de SS. An-nunziata terá sido iniciado em Florençaentre 1500 e 1501. Um outro quadrofamoso (“A Virgem e o Menino” ou“Madona de Fuso”) foi concluído em1501 para o secretário do rei de França6.Nesta data parece que Leonardo estavafatigado de pintar, pelo que procuravauma ocupação semelhante à que tiveraem Milão com os Sforza.

No início de 1502 Leonardo entrouao serviço do duque de Romagna, Ce-sare Borgia (filho ilegítimo e generalchefe do papa Alexandre VI) como seuprincipal arquitecto e engenheiro mili-tar. Naquelas funções passou quase umano a viajar com Borgia pela Itália Cen-tral, elaborando levantamentos topográ-

Figura 8. Retrato de Isabella d’Este (desenho emcarvão, giz preto e pastel sobre papel, comopresumível projecto para um quadro)realizado cerca de 1499-1500, durante aestadia de Leonardo em Mântua.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

Figura 9. Quadro a óleo sobre madeira de “A Virgem,o Menino e Santa Ana”, concluído cerca de1510. Antes, quando ainda estava em Milão,Leonardo desenhara um primeiro esboço doquadro, por encomenda do rei Louis XII.Por ter saído daquela cidade, no seu regressoa Florença Leonardo aceitou a encomendade uma pintura para a igreja da Annuziatta,em que representou o mesmo tema.(Imagem do domínio público/WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2315

Page 11: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

16 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

fico, e estudos relacionados com a es-tratégia militar e fortificações. Conhe-ceu então, e tornou-se amigo, do políti-co Nicolau Maquiavel, que tambémtrabalhava para os Borgia. Em finais de1502, incomodado com as perfídias dosBorgias, Leonardo deixou abruptamen-te a sua companhia, para, algum tempodepois, ocupar o cargo de engenheiro mi-litar da cidade de Florença.

Durante o conflito desta cidade coma de Pisa, Leonardo propôs um estrata-gema que já desenvolvera para Vene-za. O plano, baseado num cuidadosoestudo topográfico elaborado por Leo-nardo, consistia em bloquear o cursodo rio Arno com um enorme dique demadeira, a par com dois canais exten-sos que desviariam a água para um lagoe depois para o mar, sem passar porPisa. A proposta foi aprovada mas, tal-vez por poupança nos materiais, o di-que não aguentou a pressão da água e oprojecto não foi retomado. Porém, oestudo de Leonardo teve o mérito deimpedir que o conflito entre Florença ePisa terminasse em guerra aberta. Poroutro lado, parece que Leonardo, alémda solução militar, perspectivava umaligação por água entre as duas cidades,com estações moinhos e fábricas aolongo do percurso navegável, queabrangeria também outras localidadesmais pequenas situadas no vale, ante-vendo grandes benefícios económicospara todas as comunidades, como sededuz de uma das suas anotações:

“Sluices should be made in the valleyof la Chiana at Arezzo, so that when,in the summer, the Arno lacks water,the canal may not remain dry: andlet this canal be 20 braccia wide atthe bottom, and at the top 30, and 2braccia deep, or 4, so that two of the-se braccia may flow to the mills and

the meadows, which will benefit thecountry; and Prato, Pistoia and Pisa,as well as Florence, will gain twohundred thousand ducats a year, andwill lend a hand and money to thisuseful work; and the Lucchese thesame, for the lake of Sesto will benavigable; I shall direct it to Pratoand Pistoia, and cut through Serra-valle and make an issue into the lake;for there will be no need of locks orsupports, which are not lasting andso will a1ways be giving trouble inworking at them and keeping themup.” 11

É de realçar que a maior parte dosmapas e estudos topográficos elabora-dos por Leonardo datam do tempo emque trabalhou como engenheiro, primei-ro com Cesare Borgia e depois ao servi-ço das autoridades de Florença (Fig. 10).

Na sequência do anterior projectofrustrado, Leonardo retomou a suaactividade artística em Florença, be-neficiando de uma lucrativa propos-ta do governo da cidade, que preten-dia um vasto mural com uma cena

Figura 10. Exemplo dos estudos cartográficos deLeonardo. Mapa de um vale atravessadopor um rio e seus afluentes. Desenho dosfinais do séc. XV ou início do séc. XVI.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2316

Page 12: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

17Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

guerreira para a nova Sala do Conse-lho do Palazzo della Signoria. Datadesta época o conflito entre Leonar-do e Miguel Ângelo, que fora tam-bém convidado para decorar a pare-de oposta do mesmo aposento.

A obra manteve Leonardo ocupa-do durante três anos. Pelo meio mis-turaram-se problemas familiares (amorte do pai, em 1504), a destruiçãodos esboços em papel do mural (quetinha como tema a “Batalha de An-ghiari”) (Fig. 11) por uma inunda-ção da sala, durante uma tempestade,a decisão do tribunal favorável aosmonges que haviam encomendado (epago) “A Virgem dos Rochedos” maisde duas décadas antes, e, por fim, ainsistência de Louis XII de França,que convidara Leonardo a juntar-se àsua côrte em Milão e manifestavagrande e continuada admiração peloseus predicados.

Regresso a Milão – A vontade deLouis XII haveria de prevalecer, peloque em 1506 Leonardo regressou aMilão (governada por Charlesd’Amboise), embora durante os doisanos seguintes voltasse frequente-mente a Florença para continuar omural que, na realidade, nunca foiconcluído.

Já com cerca de cinquenta e cincoanos de idade resolveu (numa dassuas viagens a Florença) pôr algumaordem nos seus cadernos de aponta-mentos. Terá então seleccionado al-guns temas que mais apreciava coma intenção manifesta de os classificarmais tarde, o que, pelas suas palavras,afigurava-se-lhe uma tarefa bastantecomplicada:

“Begun at Florence, in the houseof Piero di Braccio Martelli, on

the 22nd day of March 1508. Andthis is to be a collection withoutorder, taken from many paperswhich I have copied here, hopingto arrange them later each in itsplace, according to the subjects ofwhich they may treat. But I belie-ve that before I am at the end ofthis [task] I shall have to repeatthe same things several times; forwhich, O reader! do not blame me,for the subjects are many and me-mory cannot retain them [all] andsay: ‘I will not write this becauseI wrote it before.’ And if I wishedto avoid falling into this fault, itwould be necessary in every casewhen I wanted to copy [a passa-ge] that, not to repeat myself, Ishould read over all that had gonebefore; and all the more since theintervals are long between onetime of writing and the next”. 12

Neste período morre o tio Fran-cesco, de que resultam disputas sobrea herança com os seus meio-irmãosque muito o perturbam e apressam asua saída definitiva de Florença, em1508. De regresso a Milão pinta umanova versão de “A Virgem dos Roche-dos” (Fig. 4), o que terá resolvidodefinitivamente o conflito com a Ir-mandade Franciscana da ImaculadaConceição, e prossegue os seus estu-dos anatómicos

Algum tempo depois volta a de-sempenhar funções na corte e juntodo governador de Milão semelhantesàs que tinha no tempo de Ludovico,como cenógrafo, decorador, enge-nheiro e inventor. Em simultâneo comtodas aquelas actividades Leonardoinicia uma série de pinturas, em quese incluiem “S. João Baptista” “Ledae o Cisne” e a “Mona Lisa”. Esta úl-

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2317

Page 13: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

18 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

(a) (b)

(c)

Figura 11. Estudos para o mural “Batalha de Anghiari” (obra perdida), cerca de 1503.(a) Rosto de Niccolò Piccinino, chefe das tropas milanesas derrotadas na referida batalha. Ponta

metálica, giz preto e vermelho.(b) Rosto do primeiro cavaleiro florentino. Giz vermelho.(c) Cópia do mural, por autor desconhecido (cerca de 1550), antes da sua destruição, depois

aumentado nas extremidades e pormenores por Peter Paul Ruben (cerca de 1603). Giz brancoe preto, pena e tinta, e retoque a aguarela.(Imagem no domínio público/Wikimedia Commons)

tima obra (Fig. 12) seria o retrato daesposa do mercador toscano Frances-co del Giocondo (donde o nome La

Gioconda também atribuído à obra).Porém há muitas outras versões quan-to à identidade da pessoa retratada.

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2318

Page 14: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

19Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Por razões desconhecidas, aquele foium dos três quadros que continuaramna posse de Leonardo até ao fim dasua vida.

Os últimos anos – Charles d’Am-boise morre em 1511 e, no ano seguin-te, os franceses são expulsos de Milãopor uma coligação de forças que incluí-am as de Veneza, as do Papa Júlio II edo Império Romano-Germânico. O fi-lho de Ludovico, Maximiliano, recu-pera o ducado para os Sforza. Leonar-do manteve-se algum tempo nosarredores de Milão, após o que resolveem 1513 (Fig. 13) viajar para Roma,onde permaneceu até 1516 junto dacorte do novo papa, Leão X (o filhomais novo de Lorenzo de Medici). En-tre outras realizações, recebeu a incum-bência papal de promover a drenagemdos pântanos de Pontini, a sul de Roma.Neste período de vida, Leonardo era

considerado um sábio respeitável e umgrande artista mas de uma época pas-sada, fora de moda. Por isso as obrascomissionadas pelo Vaticano eram atri-buídas a outros artistas, o que decertoterá causado grande mágoa a Leonardo.

Neste período Leonardo não rea-lizou pinturas relevantes mas conti-nuou as investigações anatómicas e apreencher os livros de apontamentoscom novas invenções. Os seus estu-dos anatómicos ganham fulgor, pelaobservação cuidadosa em cadáverese pelos desenhos em que regista comprecisão a disposição de órgãos, mús-culos, nervos e vasos sanguíneos.

Sofre de crises depressivas e para-nóicas, temendo que os seus assisten-tes alemães, em que não confiava, lheroubem as ideias para plágio, pelo quereforça a codificação do que escreve.

Figura 12. Retrato de “Mona Lisa. Óleo sobre ma-deira, realizado cerca de 1503-1507.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

Figura 13. Retrato de Leonardo (desenho a giz ver-melho). O retrato, realizado cerca de 1513,foi considerado durante muito tempo umauto-retrato de Leonardo e, como tal,projectou a sua imagem até hoje. Porém,mais recentemente, é considerado umafalsificação ou uma cópia.(Imagem no domínio público/Wikipedia)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2319

Page 15: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

20 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

A situação acaba por deteriorar o rela-cionamento com o seu mecenas, Giu-liano de Medici, irmão do Papa, quelhe havia disponibilizado aqueles aju-dantes. Daqui resultou que Giullianoacusa Leonardo de necromancia, peloque é proibido pelo Papa de prosse-guir as autópsias e estudos anatómi-cos no hospital de Santo Spirito.

Esta situação demasiada incómo-da, que Leonardo refere com umaanotação breve nos seus cadernos

(“This other hindered me in ana-tomy, blaming it before the Pope;and likewise at the hospital”)13

viria a ser alterada, primeiro pelamorte de Louis XII em 1515 e, no anoseguinte, pela do seu anterior mece-nas Giuliano.

A Louis XII sucedera o seu jovemprimo François I que, de imediato, pro-curou recuperar o terreno perdido naPenínsula Itálica, vindo a ocupar Mi-lão após uma campanha rápida. Para acelebração do armistício Leonardo foiincumbido de elaborar um centro demesa especial, o que concretizou sob aforma de um leão mecanizado que, de-pois de alguns passos, abria o peitoonde, em lugar do coração, figuravamflores-de-lis. A obra reforçou a admi-ração que François I já tinha por Leo-nardo, através do seu antecessor.

Em 1516 Leonardo entra ao servi-ço do novo rei como engenheiro, ar-quitecto, artista e também, conselheiroe guia intelectual. François I apreciavao convívio e as ideias avançadas deLeonardo pelo que lhe concedeu a suaamizade, uma elevada pensão e umcastelo em Cloux (França), próximo daresidência real. Entretanto, além de umprojecto para uma nova residência real,Leonardo ter-se-á limitado a retocar

algumas das suas pinturas e a ordenaros seus livros de apontamentos.

Três anos mais tarde Leonardomorre em Cloux, consta que ampara-do pelo rei, sendo enterrado na capelade S. Hubert, no castelo real de Am-boise. No seu testamento, feito menosde um mês antes de morrer, Leonardolegou a maior parte dos seus bens (emque se incluíam manuscritos, pinturase desenhos) ao seu companheiro e dis-cípulo conde Francesco Melzi.

O OBSERVADOR ARGUTO

Leonardo tinha por hábito registarmeticulosamente todas as observações,ideias e reflexões em pequenos livrosde notas. Não é possível saber exacta-mente em que data começou Leonardoa registar os seus pensamentos e inven-ções em cadernos de apontamentos. Nãocontando com fragmentos, cartas e no-tas pessoais dispersas, parece que Leo-nardo começou as suas anotações siste-máticas em 1485, com cerca de trinta etrês anos de idade, pelo que os manus-critos conhecidos abrangem mais de trin-ta anos de trabalho intenso. Aqueles re-gistos (raramente datados) eram escritoscom a mão esquerda, da direita para aesquerda e com código próprio, basea-dos em ilustrações desenhadas por ve-zes a cores; era frequente na mesma fo-lha haver sucessivas adendas ao longodo tempo, a par com as suas reflexõessobre o assunto, em que incluia as hipó-teses, e os argumentos a favor e contra oseu desenvolvimento. O método analí-tico seguido por Leonardo combinariaa lógica Aristotética com a retórica daRenascença pelo qual eram originadasnovas ideias que, num segundo tempo,eram submetidas ao escrutínio científi-co (regressus demonstratorum )14.

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2320

Page 16: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

21Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Como aprendera Latim muito tar-de, aproximadamente em 1487, foi oprimeiro intelectual a utilizar a lingua-gem comum para tentar expressar(com dificuldade) assuntos académi-cos. No conjunto, e pelas razões apre-sentadas, a decifração dos apontamen-tos requeria bastante prática e nãodeixava de ser uma tarefa complicada(pela forma, pelo conteúdo ou pelo seusignificado), em particular quando ten-tado pelos seus contemporâneos.

Acima de tudo, Leonardo defendiaque a observação era uma norma básicapara quem pretendesse compreender osfactos naturais. Cada problema era des-crito cuidadosamente e definido ao por-menor, sendo todas as conclusões apoia-das por resultados experimentais einterpretadas pragmaticamente.

As limitações técnicas que existiamno século XVI explicam por que muitasdas suas ideias e invenções não pude-ram ser concretizadas ou não foram fi-nalizadas. Tal não obstou a que aquelestextos fossem muito apreciados e tran-saccionados por preços muito elevados,ainda durante os séculos XVI e XVII.

Embora Leonardo tencionasse orga-nizar os seus apontamentos de modo avê-los publicados em temática indivi-dualizada, somente um dos seus traba-lhos (Trattato della Pintura) foi con-cluído e editado após a sua morte, em1651. Francesco Melzi, regressou a Itá-lia com os manuscritos, que totaliza-riam cerca de 13.000 páginas de ano-tações e desenhos tendo conseguidocompletar aquele volume. Quanto aosrestantes cadernos, Melzi, apesar de tertrabalhado até ao fim da sua vida coma ajuda de dois assistentes contratadospara o efeito, não conseguiu qualquerordenamento satisfatório. Decerto quea incompreensão dos conteúdos dosapontamento terá impedido a tarefa2.

Os herdeiros de Melzi, após a suamorte, encarregaram-se de dispersaro material, dando ou vendendo folhassoltas, pelo que actualmente restamenos de um terço do conjunto ini-cial, por sua vez separado por diver-sas colecções museológicas15.

ESTUDOS ANATÓMICOS

No princípio do Renascimento, osconhecimentos médicos e seus fun-damentos anatómicos e fisiológicoscontinuavam a ser determinados peloque Galeno legara cerca de treze sé-culos antes. Embora Leonardo acei-tasse a generalidade das descriçõesanatómicas de Galeno, houve partesem que, pela sua experiência, obser-vação e perspicácia, atingiu perspec-tivas diferentes e inovadoras.

A originalidade das descobertas deLeonardo está em que procurou nãosó definir a estrutura do corpo huma-no e dos seus diversos órgãos, com-parando-os com os de outros animais,mas, essencialmente, avaliar e determi-nar-lhes uma função apropriada8. Aanatomia, além de constituir um de-safio pelo desconhecido, foi uma dasetapas da sua procura de um elo uni-tário que explicasse todos os fenóme-nos da Natureza, que ainda se basea-va no conceito aristotético dos quatroelementos (terra, ar, água e fogo).

Leonardo estudou anatomia huma-na descontinuadamente16.

O primeiro período de estudo ocor-reu no início da sua actividade artística.Por ser membro da agremiação de S.Lucas (que estava associada à confrariados médicos e farmacêuticos sedeada nohospital de Santa Maria Nuova em Flo-rença), Leonardo obteve permissão paraaceder aos cadáveres de doentes aí faleci-

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2321

Page 17: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

22 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

dos para as suas primeiras observaçõesanatómicas. O tempo seguinte, que sepoderá considerar preparatório, decorreaproximadamente entre 1487 e 1495, en-quanto em Milão, onde terá autopsiadono hospital Maggiore.

O período entre 1507 e 1508 fi-cou marcado pela observação e des-crição de lesões ateroscleróticas numdoente falecido no hospital de SantaMaria Nuova de Florença17.

A última fase , iniciada em 1509,quando se encontrava novamenteMilão, marcou o seu afastamento dosconceitos galénicos a favor de umamaior valorização das próprias obser-vações e deduções. Data desta épocaum projecto de um tratado sobre ocorpo humano, jamais concretizado:

“This work must begin with the con-ception of man, and describe the na-ture of the womb and how the foe-tus lives in it, up to what stage itresides there, and in what way it qui-ckens into life and feeds. Also itsgrowth and what interval there isbetween one stage of growth andanother. What it is that forces it outfrom the body of the mother, and forwhat reasons it sometimes comesout of the mother’s womb before thedue time.Then I will describe which are themembers, which, after the boy isborn, grow more than the others,and determine the proportions ofa boy of one year.Then describe the fully grown manand woman, with their proportions,and the nature of their complexi-ons, colour, and physiognomy.Then how they are composed ofveins, tendons, muscles and bones.This I shall do at the end of thebook. Then, in four drawings, re-

present four universal conditions ofmen. That is, Mirth, with variousacts of laughter, and describe thecause of laughter. Weeping in va-rious aspects with its causes. Con-tention, with various acts of killing;flight, fear, ferocity, boldness, mur-der and every thing pertaining tosuch cases. Then represent Labour,with pulling, thrusting, carrying,stopping, supporting and such likethings.Further I would describe attitudesand movements. Then perspecti-ve, concerning the functions andeffects of the eye; and of hearing– here I will speak of music –, andtreat of the other senses.And then describe the nature of thesenses.This mechanism of man we will de-monstrate in ... figures; of whichthe three first will show the ramifi-cation of the bones; that is: first oneto show their height and positionand shape: the second will be seenin profile and will show the depthof the whole and of the parts, andtheir position. The third figure willbe a demonstration of the bones ofthe backparts. Then I will makethree other figures from the samepoint of view, with the bones sawnacross, in which will be shown theirthickness and hollowness. Threeother figures of the bones comple-te, and of the nerves which rise fromthe nape of the neck, and in whatlimbs they ramify. And three othersof the bones and veins, and wherethey ramify. Then three figures withthe muscles and three with the skin,and their proper proportions; andthree of woman, to illustrate thewomb and the menstrual veins whi-ch go to the breasts” 18.

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2322

Page 18: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

23Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Leonardo terá começado os estu-dos anatómicos (preliminares) em fi-nais da década de 1480, em Milão,quando preparava também o modelopara a estátua equestre. A par com asobservações e desenhos pormenoriza-dos da estrutura anatómica dos cava-los que encontrava por Milão, Leonar-do procedia a dissecção de bovinos.Neste período, em 1489, apenas teráconseguido uma caveira humana (Fig.14), que aproveitou para desenhar noconjunto e seccionadas nas mais vari-adas perspectivas, para os seus primei-ros estudos sobre o cérebro, a visão eoutros sentidos, que se prolongaramaté cerca de 1495, após o que suspen-deu as observações anatómicas pormais de uma década16.

A maioria dos estudos anatómicosde Leonardo ocorreu entre 1510 e1513 e já reflectiam uma nova meto-dologia, que era de registar o que ob-servava para depois se investigar asrespectivas funções. A propósito des-ta associação entre a morfologia e afisiologia do corpo humano Leonardodizia que ambas eram necessárias parailustrar e descrever. Data daquela épo-

ca um conjunto de observações reali-zadas não só sobre a visão e sistemanervoso mas ainda sobre os músculosde todo o corpo e seus movimentos(Fig. 15), em que se incluía a mímicafacial (Fig. 16) e a comparação de hu-manos com outros animais (Fig. 17).

Ocupou-se durante largos anossobre o sistema reprodutivo do ho-mem e da mulher (de que legou dia-gramas sobre diversos aspectos ana-tómicos e descrições funcionais), eprosseguiu as investigações sobre aembriologia em vacas e também numfeto humano de sete meses, de queresultaram vários desenhos famosos(Fig. 18). Estabeleceu ainda uma re-lação anatómica entre a laringe, a tra-queia e produção de sons, além de terdesenhado os principais constituintesdo tubo digestivo, embora sem os re-lacionar com o trajecto dos alimen-tos e a respectiva transformação.

A observação era completada pelasua racionalização ou demonstração,apoiando-se em desenhos anatómicosde insuperável clareza, que perspecti-vavam cada peça de quatro ângulos dis-tintos. Adicionalmente, representavaalguns pormenores em corte, criandosecções de observação variadas, p.ex.,do crânio e planos em que se entrecru-zavam nervos e vasos sanguíneos8.

São exemplos ilustrativos da suametodologia, rigor e perfeição de tra-balho a reprodução da forma exactade cavidades ósseas (p.ex., seios ma-xilares e frontais) e dos ventrículoscerebrais, para o que inventou a téc-nica de injectar uma substância soli-dificante. Para o estudo do olho re-correu à impregnação deste com clarade ovo, após o que procedia a cortesdas partes coaguladas, um processoque precederia em cerca de quatro-centos anos as técnicas de corte his-

Figura 14. Desenho de crânio humano em corte comrepresentação de vasos sanguíneos (cer-ca de 1489). Pena e tinta sobre giz preto,em papel.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2323

Page 19: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

24 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Figura 16. Desenhos da mímica facial – cinco ca-beças grotescas (cerca de 1490). Pena etinta sobre papel.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

Figura 17. Estudos de anatomia comparada – mem-bro inferior de homem e pata traseira decão (cerca de 1504-1506). Pena sobre pa-pel vermelho.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

(a) (b) (c)

Figura 15. Desenho de músculos e esqueleto humanos(a) Anatomia de homem nu (cerca de 1504-1506). Pena e tinta sobre giz vermelho sobre papel.(b) Estudo dos ossos da cintura escapular e de membro superior, com indicação de movimentos pelo bicípete (cerca de 1509-1510). Pena e tinta sobre papel.(c) Estudos da articulação do ombro direito e do relevo muscular (cerca de 1509-1510). Pena e tinta sobre papel.(Imagem no domínio público/Wikipedia)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2324

Page 20: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

25Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

tológico; os estudos sobre a luz e avisão culminaram na invenção de ummodelo semelhante à câmara escura.

Convicto da sua metodologia detrabalho, que valorizava a observa-ção, a experimentação e a perícia ad-quirida, Leonardo punha em causa oconhecimento antigo bem como dosteóricos, que menosprezavam o seutrabalho e invenções:

“Though I may not, like them, beable to quote other authors, I shallrely on that which is much greaterand more worthy: on experience, themistress of their Masters. They go

about puffed up and pompous, dres-sed and decorated with [the fruits],not of their own labours, but of tho-se of others. And they will not allowme my own. They will scorn me asan inventor; but how much moremight they – who are not inventorsbut vaunters and declaimers of theworks of others – be blamed.” 19

No total, os milhares de desenhos eilustrações anatómicas que lhe são re-conhecidos, incluindo um com cerca deseiscentas folhas, foram baseados emmais de 30 autópsias que executou emcadáveres de homens e mulheres, du-

Figura 18. Estudos do feto humano em útero (cerca de 1510-1512). Pena e tinta e giz sobre papel.(Imagem no domínio público/Wikimedia Commons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2325

Page 21: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

26 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

rante cerca de 30 anos de observaçãodescontinuada. A par de uma notávelrepresentação dos órgãos internos deuma mulher (Fig. 19), justificam parti-cular referência as observações anató-micas e conclusões fisiológicas queLeonardo legou sobre a estrutura docoração com as suas quatro câmaras,os movimentos de diástole e sístolecardíacas, o sincronismo da contracçãocardíaca com a pulsação periférica, ofuncionamento da válvula aórtica e aejecção sistólica do sangue através daaorta. Leonardo ter-se-á começado a in-teressar pelo assunto quando, numa dassuas visitas a Florença, cerca de 1508,antes de se fixar pela segunda vez emMilão, teve a oportunidade de autopsiarum centenário com quem conversaramomentos antes deste morrer. Dessaautópsia resultou a observação do es-pessamento interno das paredes arte-

riais que, presentemente, seriam classi-ficadas como sinais de aterosclerose.Acresce que ao comparar aquelas le-sões com as que observara na autópsiade uma criança de dois anos, Leonardoconcluiu (notavelmente) que a paredevascular ficaria progressivamente maisespessa com a idade, e que a reduçãoda perfusão sanguínea justificaria a sen-sação de frio e as alterações tróficas pe-riféricas mais frequentes nos idosos20:

“And this old man, a few hours be-fore his death, told me that he hadpassed 100 years, and that he wasconscious of no failure of body, ex-cept feebleness. And thus sitting upona bed in the hospital of Santa MariaNuova at Florence, without any un-toward movement or sign, he passedaway from this life. And I made ananatomy to see the cause of a deathso sweet, which I found to proceedfrom debility through lack of bloodand deficiency of the artery, whichnourishes the heart and the lowermembers. I found this artery verydesiccated, shrunken and withered…the tunics of the vessels behave inman as in oranges, in which the peelthickens and the pulp diminishes theolder they become.. I judge that astructure which is nearer to its sour-ce of nourishment, grows the more;and for this reason these vesselsbeing the sheath for the blood whichnourishes the body, it nourishes theveins in proportion to their proximi-ty to the blood” I judge that a struc-ture which is nearer to its source ofnourishment, grows the more; andfor this reason these vessels being thesheath for the blood which nourishesthe body, it nourishes the veins inproportion to their proximity to theblood 21

Figura 19. Desenho do coração, principais vasossanguíneos, e aparelhos urinário e gine-cológico de uma mulher, realizado cercade 1508-1509. Pena, tinta sobre giz pre-to, sobre papel. É de realçar o pormenore precisão demonstrados neste desenho,de um período mais tardio dos estudosanatómicos de Leonardo.(Imagem no domínio público/WikimediaCommons)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2326

Page 22: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

27Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

Já em Roma, Leonardo aprofundouos seus estudos sobre a sístole ventri-cular e a abertura da válvula aórtica(Fig. 20), relacionando o fluxo e re-fluxo sanguíneo no segmento ascen-dente daquela artéria com os conheci-mentos que tinha da hidrodinâmica21:

“Observe the motion of the surfaceof the water which resembles that ofhair, and has two motions, of whichone goes on with the flow of the sur-face, the other forms the lines of theeddies; thus the water forms eddyingwhirlpools one part of which are dueto the impetus of the principal cur-rent and the other to the incidentalmotion and return flow.” 20

Data desse período a espantosa con-clusão de que seriam os redemoinhos,criados pelo refluxo sanguíneo nos sei-

os de Valsalva que determinariam oencerramento da válvula aórtica22:

“How the blood which turns backwhen the heart reopens is not thatwhich closes the valves of the he-art. This would be impossible be-cause if the blood beat against thevalves of the heart while they arecorrugated, wrinkled and folded,the blood which presses from abo-ve, would weigh and press down thefront of the membrane upon itsorigin…the folds of which, beingweighted down from above, wouldclose in solid contact, whereasNature intended it to be stretchedin height and width”…that whenthe heart contracts, blood from thelower ventricle rushes with impe-tus through the cusps of the aorticvalve, then forms a vortex that gro-

Figura 20. Representação da forma e disposição das cúspides da válvula aórtica, quando aberta e fechada esob várias orientações, baseada num dos desenhos de Leonardo.(Courtesy of Dr. Kevin Patton, www.lionden.com)

1 In: J. Martins e Silva, “Leonardo da Vinci, estudos hemodinâmicos”, Rev. Port. Cardiologia, 2007 (em publicação)

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2327

Page 23: BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd

28 Boletim da SPHM Vol. 22 (2) Abril, Maio, Junho 2007

HISTÓRIAS DA MEDICINA / MEDICAL HISTORIES Leonardo Da Vinci, Um Polímata da Renascença

ws against the walls of the sinusand valve leaflets.” 22 …

Este aspecto do trabalho de Leo-nardo é analisado noutro local1.

Leonardo nunca permitiu que osseus desenhos anatómicos fossem ob-servados enquanto foi vivo. Em partepor temer o plágio e ou por entenderque a compreensão dos esquemas re-queria um espírito especialmente pre-parado. Junto de um dos seus desenhosanatómicos Leonardo escreveu:

“let no man who is not a mathemati-cian red the elements of my work” 23

Depois de morrer, os desenhos quenão foram oferecidos ou desaparece-ram permaneceram guardados pelo fi-lho de Francesco Melzi, até serem re-velados durante o século XVII.Entretanto, Andrea Vesalius que nas-cera quatro anos antes da morte de Leo-nardo, publicaria em 1543 o seu trata-do de Anatomia Humana De HumaniCorporis Fabrica, decerto sem nuncater visto os trabalhos pioneiros daquele.

BIBLIOGRAFIA

1. Baer KA – Leonardo da Vinci (1452-1519). BullMed Libr Assoc 1953; 41:69-70.

2. White M – “Leonardo: The First Scientist”. NewYork: St. Martin’s Griffin, 2000.

3. Richter J-P – “The Notebooks of Leonardo daVinci”, compiled and edited from the originalmanuscripts in 1883. Two volumes. ProjectGutenberg (eBookshttp://www.gutenberg.org/etext/5000)

4. Richter, op cit vol 1, 10 5. Richter, op cit vol 1, 11 6. Zollner K – “Leonardo”. Koln: Taschen, 2000. 7. Richter, op cit vol 2, 1340 8. Kemp M – “Leonardo da Vinci: Experience,

Experiment and Design”. London:V&APublications, 2006

9. Richter, op cit vol 2, 115810. Richter, op cit vol 1, 1311. Richter, op cit vol 2, 100112. Richter, op cit vol 1, 413. Richter, op cit vol 2, 135314. Wells FC, Crowe T – Leonardo da Vinci as a

paradigm for modern clinical research. J ThoracCardiovasc Surg. 2004; 127:929-944.

15. www.museoscienza.org/english/leonardo/manoscritti.asp.

16. Keele KD – Leonardo da Vinci’s influence onRenaissance anatomy. Med Hist 1964; 8:360-370.

17. Keele KD – Leonardo da Vinci’s views onarteriosclerosis. Med Hist 1973; 7:304-308.

18. Richter, op cit vol 2, 79719. Richter, op cit vol 1, 1120. Richter, op cit vol 38921. O’Malley C, Saunders J – Leonardo da Vinci on

the human body. New York: Dover, 2003, pg. 30222. O’Malley C, op cit pg. 26423. Richter, op cit vol 1, 3

BSPHM 22-2 - Miolo 3.pmd 18-07-2007, 10:2328