Bult Mann

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Capítulo IV RUDOLF BULTMANN, VIDA E TEOLOGIA Introdução No primeiro quartel deste século, registrou-se uma reviravolta decisiva na teologia protestante por obra da Escola Dialética. Ela subverteu os princípios da teologia liberal: liquidou o racionalismo, o imanentismo e o humanismo que estavam em sua base e substituiu-os pelo princípio da infinita diferença qualitativa que distancia Deus do homem e o homem de Deus. Como sabemos, os expoentes máximos da Escola Dialética são Barth, Brurmer, Tillich, Niebubr e Bultmann. 206 Rudolf Bultmann sacudiu o mundo teológico nada menos do que duas vezes durante o nosso século. A primeira vez foi quando de sua conversão à teologia dialética, introduzindo na exegese bíblica, então conduzida segundo os princípios da crítica histórica liberal, o método histórico- morfológico (Formgeschichte). A segunda vez foi quando inventou a teoria da demitização. Por esses dois títulos, o método histórico-morfológico e a demitização, ele já era no passado e é ainda mais no presente uma das figuras mais significativas da teologia no século XX. 207 Sua teologia, além do novo método hermenêutico e da demitização, caracteriza-se também pela utilização da filosofia existencialista. Portanto, na apresentação essencialmente teológica do pensamento de Rudolf Bultmann, devemos levar 206 Mondin, p.145. 207 Idem.

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Capítulo IV

RUDOLF BULTMANN, VIDA E TEOLOGIA

Introdução

No primeiro quartel deste século, registrou-se uma

reviravolta decisiva na teologia protestante por obra da Escola

Dialética. Ela subverteu os princípios da teologia liberal:

liquidou o racionalismo, o imanentismo e o humanismo que

estavam em sua base e substituiu-os pelo princípio da infinita

diferença qualitativa que distancia Deus do homem e o homem

de Deus. Como sabemos, os expoentes máximos da Escola

Dialética são Barth, Brurmer, Tillich, Niebubr e Bultmann.206

Rudolf Bultmann sacudiu o mundo teológico nada

menos do que duas vezes durante o nosso século. A primeira

vez foi quando de sua conversão à teologia dialética,

introduzindo na exegese bíblica, então conduzida segundo os

princípios da crítica histórica liberal, o método histórico-

morfológico (Formgeschichte). A segunda vez foi quando

inventou a teoria da demitização. Por esses dois títulos, o

método histórico-morfológico e a demitização, ele já era no

passado e é ainda mais no presente uma das figuras mais

significativas da teologia no século XX.207

Sua teologia, além do novo método hermenêutico e da

demitização, caracteriza-se também pela utilização da filosofia

existencialista. Portanto, na apresentação essencialmente

teológica do pensamento de Rudolf Bultmann, devemos levar

206 Mondin, p.145. 207 Idem.

em consideração sobretudo esses três aspectos: método,

filosofia e demitização.208

1. Origens: Rudolf Karl Bultmann nasceu em Wiefelstede

(Oldenburg), na Alemanha, em 20 de agosto de 1884. Filho

mais velho de um ministro protestante da Igreja Luterana,

cresceu num ambiente profundamente religioso. Cursou a

escola primária em Rastede, para onde seu pai fora

transferido. Já o ginásio e o liceu ele freqüentou em

Oldenburg. No liceu, além do estudo da religião,

distinguiuse também pelo estudo do grego e da história da

literatura alemã.

2. Formação Teológica: Concluído o liceu, iniciou seus

estudos teológicos na Universidade de Tübingen, em 1903.

No ano seguinte, passou para a Universidade de Berlim e

dois anos depois para a de Marburg. Foi aí que, em 1910,

licenciou-se em teologia, com a tese Der Stil der

Paulinischen Predigt und die Kynischstoische Diatribe (O

Estilo da Pregação Paulina e a Diatribe209 Cínico-estóica), e

dois anos mais tarde obteve a livre docência, com uma

dissertação sobre a exegese de Teodoro de Mopsuéstia.

Seus mestres foram homens de clara fama liberal e de

orientação histórico-crítica. Ele mesmo deixou a lista

daqueles em relação aos quais sente-se particularmente

devedor: em Tübingen, o historiador da Igreja Karl Müller;

em Berlim, o estudioso vétero-testamentário Hermann

Gunkel e o grande historiador do dogma Adolf Harnack; em

208 Mondin, op., cit., p.146. 209 Diacronismo. Método dos filósofos da Grécia antiga - 1. Dissertação

crítica que os filósofos faziam acerca de alguma obra; 2. Crítica severa e

mordaz; 3. Discurso escrito ou oral, em tom violento e afrontoso, em que

se ataca alguém ou alguma coisa; 4. Discussão exaltada. Dic. Eletrônico

Houaiss.

Marburg, dois estudiosos do Novo Testamento, Adolf

Jülicher e Johannes Weiss, e o teólogo sistemático Wilhelm

Hermann. Foi a conselho de Weiss que Bultmann se

orientou para os estudos de exegese neotestamentária.210

3. Carreira Acadêmica: Em 1912, começou sua brilhante

carreira acadêmica, inicialmente na qualidade de livre

docente de exegese neotestamentária na Universidade de

Marburg, depois como encarregado na Universidade de

Wroclaw (Breslau). Em 1920, foi chamado a suceder o

célebre biblista Wilhelm Bousset na Universidade de

Giessen. Mas apenas um ano depois preferiu deixar essa

universidade para retomar a Marburg, que ele sempre

considerou a sua pátria acadêmica, a fim de assumir a

cátedra de Novo Testamento e de História da Igreja

Primitiva. Desde então, permaneceu sempre em Marburg,

até 1951, ano em que se retirou do ensino.

Nesse meio tempo, casara-se em 1920, tendo duas filhas de

seu feliz matrimônio.

4. Publicações: Em 1921, publicou uma de suas obras mais

significativas, a célebre Die Geschichte der Synoptischen

Tradition (História da Tradição Sinótica), na qual introduzia

no âmbito da pesquisa neotestamentária o método histórico-

morfológico Formgeschichte). Ao mesmo tempo,

abandonava a orientação liberal na qual tinha crescido e

começava a trabalhar e participava da fundação da Teologia

Dialética, notoriamente antiliberal e antimodernista,

justificando sua atitude com esta nobre motivação: “O objeto

da teologia é Deus e a refutação da teologia liberal baseia-se

no fato de que não se ocupa de Deus, mas do homem”.

210 Mondin, p.146.

5. A influência de Heidegger: Na década de vinte, também

ensinava em Marburg Martin Heidegger. Bultmann teve

assíduos contatos com ele e assimilou com entusiasmo sua

ifiosofia existencialista. Via nela o único instrumento

filosófico apto a exprimir a mensagem cristã de um modo

inteligível para o homem moderno.211 Em 1926, publicou

um livreto intitulado Jesus, em que apresentava a mensagem

de Jesus em termos existencialistas. Contudo, tanto o uso da

filosofia existencialista, como meio de expressão da

mensagem cristã, como o emprego da Formgeschichte, com

uma forte acentuação do elemento histórico-crítico,

separaram pouco a pouco Bultmann de Barth e dos outros

dialéticos.

6. Rompendo com a dialética: Em 1926 já se observara um

sinal da ruptura inevitável, quando Bultmann analisou o Die

Auferstehung der Toten (A Ressurreição dos Mortos) de

Karl Barth. Em seu escrito, Bultmann censurava o teólogo

da Basiléia por não levar muito em conta a critica histórica e

filológica e, ademais, por desenvolver um conceito de fé

demasiado sobrenaturalista, sem nenhuma relação com a

consciência. Com efeito, Barth e Bultmann já se

encontravam encaminhados em duas sendas diversas: uma

levava à analogia da fé e à Die Kirchliche Dogmatik - a

outra levava à demitização e ao Neues Testament und

Mythologie.212

7. A demitização: Em 1941, Bultmann publicou Neues

Testament und Mythologie (Novo Testamento e Mitologia),

o célebre ensaio em que lançou o famoso programa de

demitização do Novo Testamento. O seu escrito obteve

ressonância mundial e exerceu uma influência positiva sobre

211 Mondin, p. 147. 212 Idem.

toda a teologia depois da última Grande Guerra. Por isso, o

ano de 1941 encontra-se entre os mais significativos da

teologia no século XX. Bultmann sempre foi um homem

integral. Como nunca separou o filósofo do teólogo nem o

teólogo do exegeta, também nunca separou a doutrina da

vida. Quando, em 1935,o governo nazista proibiu que as

faculdades de teologia se intrometessem nas controvérsias

entre Estado e Igreja, Bultmann respondeu com uma carta

em que dizia, entre outras coisas: “Para um docente de

teologia, é absolutamente impossível deixar de tomar

posição sobre aquilo que interessa à Igreja, se não quiser

perder todo contato entre atividade literária e vida concreta,

da qual a primeira retira a sua vitalidade”. O fato de ele

recolher donativos junto com o sacristão, depois da homilia

aos domingos, também confirma como a especulação

filosófica nunca se separou da vida religiosa concreta em

Bultmann. Durante a velhice, Bultmann foi atormentado por

várias doenças, entre as quais a cegueira; morreu em 30 de

julho de 1976. 213

8. Suas obras: A produção literária de Bultmann não é tão

vistosa como a de Barth, mas todos os seus escritos são

altamente significativos e levam a marca de um

A lista completa das publicações de Bultmann até 1949 pode

ser encontrada em Pestschrift RudolfBultmann, rum 65.

Geburtstag, Stuttgart, 1949, pp. 241-251; tal lista é

atualizada até 1 de agosto de 1954 pela Theologische

Rundschau, 954, pp. 3-20. Estudioso consciencioso, atento,

agudo, profundo e genial, dotado de uma bagagem crítica,

filológica e também filosófica incomum. Já tivemos

oportunidade de recordar alguns títulos de suas obras: Der

Stil der Paulinischen Predigt und die Kynisch-stoische

Diatribe (Vandenhoek e Ruprecht, Gottingen, 1910), Die

213 Mondin, p.147.

Geschichte der Synoptischen Tradition (idem, 1921) e Jesus

(Deutsche Bibliothek, Berlim, 1926). As outras obras são:

Das Evangelium des Johannes (Vandenhoek e Ruprecht,

G5ttingen, 1941). Nessa obra, Bultmann opera uma

reviravolta decisiva no rumo da investigação histórico-

morfológica, até então centrada exclusivamente nos

sinóticos e esquecida do quarto evangelho e da questão

joanina. Em seu vigoroso comentário, por um lado

reivindica a importância do quarto evangelho para a

compreensão da formação da primitiva fé cristã e, por outro,

ressalta a considerável rede de influências helenísticas,

gnósticas e “mandéias”214 a que o autor de tal evangelho foi

submetido. Theologie des Neuen Testaments, em três

volumes (Mohr, Tübingen, 1948, 1951, 1953). E uma

espécie de summa de todo o pensamento bultmanriiano. Das

Urchristentum im Rahmen der Ántiken Religionen (Artemis,

Zurique, 1949). O título da obra, O Cristianismo Primitivo

no Quadro das Religiões Antigas, é eloqüente: reflete a

exigência de estudar o cristianismo em suas relações com o

mundo, no seio do qual surgiu, como condição para captar o

seu significado próprio e o seu caráter peculiar.

“Considerado como fenômeno histórico”, podemos ler no

prefácio, “o cristianismo tem sua origem no seio do

judaísmo declinante, que, ele mesmo derivado da religião de

Israel, como foi dada a conhecer pelos livros do Antigo

Testamento, nutriu-se, por seu turno, de sua herança.

Entretanto, o cristianismo primitivo é um fenômeno

complexo. Seu crescimento e a forma por ele assumida

foram sem demora fecundados e determinados pelas forças

espirituais do helenismo pagão, que, por sua vez, conservava

214 Referindo-se o estilo lingüístico ou influência semítica das escrituras dos

mandeus, semelhante o aramaico, mas, com influências mesopotâmicas

no vocabulário. Dic. Eletrônico Houaiss.

a herança da história espiritual grega, mas também era

estimulado e enriquecido pela contribuição das religiões do

Oriente Próximo...” The Presence of Eternity: History and

Eschatology (Harper, Nova York, 1957) e Jesus Christ and

Mythology (Scribner, Nova York, 1958). Nesses dois

livretos, o autor clarifica o seu pensamento sobre pontos de

importância capital para a sua teologia, como a natureza, a

necessidade e os limites de demitização, a necessidade do

emprego da filosofia existencialista na interpretação da

mensagem cristã (o Kerygma), a história como parte

estrutural mítica da Revelação, a escatologia como decisão

atual de cada crente, e assim por diante.215 Glauben und

Verstehen, em quatro volumes (Mohr, Tübingen, 1 948ss). E

uma coletânea de ensaios antes publicados em revista ou

outras publicações. Tem grande valor para quem quiser

seguir a gênese e a evolução do pensamento bultmanniano e

para quem quiser penetrar no mundo espiritual íntimo do

discutido teólogo de Marburg. Ensaios como Das Problem

der Hermeneutik, Der Begriff der aflenbãrung im Neuen

Testament e Die Escatologie des Johannes-Evangeliums

revelam melhor do que qualquer outra obra os contornos do

verdadeiro Bultmann. São muitos os temas colocados e

sucessivamente retomados, aprofundados e precisados. Mas

três são aqueles aos quais o autor retorna mais

freqüentemente: história e revelação, revelação e pregação,

pregação e existência. Offenbarung und Heilsgeschehen

(Lempp, Munique, 1941). Inclui dois ensaios: Die Frage der

Natürlichen Offenbarung e Neues Testament und

Mythologie. Como já dissemos, o segundo contém o famoso

programa de demitização do Novo Testamento.

Die Drei Johannes Briefe (Mohr, Tübingen, 1969) e Der

Zweite Brief an die Korinther (idem, 1976).

Para uma bibliografia completa, a cargo de E. Dinkler, cf.

215 Mondin, p.148.

Exegefica, pp. 483-507.

9. A teologia e seus instrumentos: a história, a hermenêtica e

a filosofia – Bultmann assevera com insistência que uma das

funções essenciais da teologia de cada época é compreender

o keiygma (a mensagem revelada) e bem traduzi-lo,

tornando-o a cada vez atual para quem o escuta. Essa função

tornou-se tanto mais urgente em nossa época na medida em

que a roupagem conceitual com que se vestiu no passado já

se gastou; já não atinge mais, não atrai mais; pelo contrário,

tornou-se motivo de escândalo. Essa roupagem pertence a

uma mentalidade superada, uma mentalidade ingênua, pré-

científica, que acreditava nos anjos e demônios, que

colocava o paraíso no céu e o inferno sob a terra. Essa

mentalidade envolveu o kerygma numa visão cósmica que

hoje constitui um forte obstáculo para a aceitação do próprio

kerygma. E preciso, portanto, interpretá-lo e reexprimi-lo

através de categorias mentais que reflitam a

autocompreensão que hoje o homem tem de si mesmo. Para

fazê-lo, segundo Bultmann, o teólogo deve valer-se da

história, da hermenêutica e da filosofia. As duas primeiras o

ajudarão a descobrir o núcleo central da mensagem cristã; a

terceira lhe permitirá exprimi-lo de maneira eficaz e

inteligível para o homem moderno.216 Vejamos adiante

como Bultmann se utiliza desses três instrumentos do seu

“teologar”:

a) A história - Como é sabido, o ponto de partida da

Teologia Dialética foi o protesto contra a pretensão de a

teologia liberal chegar ao objeto da fé somente através

da investigação histórica. Bultmann também emprestou

seu nome ao novo movimento, porque não aprovava o

historicismo dos teólogos liberais. Entretanto, a critica

216 Mondin, op., cit., p.149.

aos seus exageros nunca impediu o teólogo de Marburg

de prestar a Hamack e seus colegas a devida

homenagem de reconhecimento por ter introduzido o

método da critica histórica e ter defendido a tese

incontestável de que o cristianismo é essencialmente um

fenômeno histórico. Em 1950, para celebrar o

cinqüentenário de O que é o Cristianismo? Bultmann

organizou a republicação dessa célebre obra de

Harnack. Na introdução, Bultmann afirma que a

chamada interpretação liberal do cristianismo “não é

absolutamente um resíduo já gasto de outros tempos,

que não se precisa mais levar a sério. Ao contrário, a

concepção ‘liberal’, no mínimo, contém impulsos

ativos, os quais, apesar de obscuros, ainda conservam a

sua legitimidade e validade... Equivale a dizer que a

obra de Harnack deve ser lida não como um simples

documento histórico, mas como uma contribuição à

discussão teológica hodierna... E, tendo em vista o

perigo atual da nova ortodoxia e do retomo de um

‘denominacionismo’ rígido, é necessário que essa voz

não se apague”. Contudo, precisa Bultmann, Harnack

deve ser lido criticamente: “A verdadeira lealdade

nunca é repetição arcaizante, mas uma assimilação

crítica que se apropria dos impulsos legítimos e os

recobre de nova validade por meio de uma nova forma”.

Ora, a leitura crítica de Harnack, segundo o teólogo de

Marburg, mostra que sua obra é viciada por um defeito

substancial. Com efeito, “ainda que ele tenha se

proposto descrever a essência do cristianismo

principalmente na condição de historiador, de fato

nunca conseguiu representar sua própria essência como

fenômeno histórico”. Mas por que razão um mestre tão

excelso de crítica histórica como Harnack não

conseguiu captar a essência do cristianismo? Segundo

Bultmann, isso ocorreu porque o autor de O que é o

Cristianismo? partiu de uma concepção naturalista da

história, à qual, sempre segundo Bultmann, é uma

concepção errada. Na introdução ao Jesus, onde nos

oferece um esboço de sua concepção da história, o

autor explica antes de mais nada a razão de a concepção

naturalista ser inadmissível.“Se quisermos compreender

a história naquilo que ela tem de essencial, não se pode

‘observá-la’ como se observa o mundo que nos

circunda, para dela extrair certas informações. São

diversas as relações que o homem mantém com a

história e a natureza. A diversidade diz respeito à

possibilidade de compreender-se a si mesmo no seu

próprio ser. Ora, quando ele se volta para a natureza a

fim de observá-la, encontra só uma forma de ser que

não é a sua. Entretanto, quando se volta para a história,

não pode deixar de constatar que faz parte dela e que ele

próprio está envolvido no sistema de forças que

determina o seu curso... Qualquer juízo sobre a história,

de alguma maneira, diz também algo sobre nós. Assim,

não pode haver um modo objetivo de observar a história

como há para observar a natureza. Por esse motivo,

nossa exposição não pode ser outra coisa senão um

diálogo permanente com a história, se não quiser

limitar-se a ser apenas uma coletânea de informações

sobre importantes acontecimentos do passado... Não se

pode efetuar um verdadeiro encontro com a história a

não ser no diálogo. Somente quando percebemos que

somos colocados em movimento por forças históricas,

portanto sem fazermos o papel de observadores neutros,

e quando estamos dispostos a dar atenção às exigências

da história, é que podemos compreender

verdadeiramente aquilo que acontece na história... A

história não fala quando tapamos os ouvidos para ela,

isto é, quando pretendemos poder ficar neutros diante

dela; mas, quando vamos a ela movidos por questões e

pelo desejo de aprender alguma coisa, então a história

fala”. Para ser compreendida, a história deve ser

abordada com atitude e espírito existencial. Segundo

Bultmann, a história não é um museu de documentos

antigos que devesse ser visitado de maneira mais ou

menos distraída, mas um conjunto de acontecimentos

que interessam direta e pessoalmente a cada um de nós.

E só quem os aborda com participação existencial pode

eompreendê-los.217 Essa abordagem existencial é o

princípio primeiro da filosofia bultmanniana da história.

Mas não é o único. Ainda há outros dois princípios. O

primeiro diz que aquilo que interessa na história não são

os personagens, mas as obras. Por exemplo, se

quisermos compreender Platão, Dante, Lutero e

Napoleão, não cessitamos nos deter em suas

personalidades. E preciso que nos identifiquemos neles;

porque eles, certamente, não pensavam em suas

personalidades, mas sim em suas obras. Por “obra”,

precisa Bultmann, não se entende o resultado dos seus

esforços, a soma dos efeitos históricos, porque eles não

podiam adotar como objetivo de suas ações a soma de

tais efeitos. “Colocando-se em sua perspectiva, a obra

representa aquilo que eles verdadeiramente quiseram,

aquilo pelo que trabalharam.218 E é nessa perspectiva

que eles se constituem em objeto da pesquisa histórica,

desde que interrogar a história não consista em

informar- se de modo neutro sobre os acontecimentos

objetivamente verificáveis e pertencentes ao passado,

mas sim consista em se preocupar com a questão de

saber como nós, envolvidos no movimento da história,

217 Mondin, op., cit., pp.149-150. 218 Idem, ibid., pp.151-152.

podemos alcançar a compreensão da nossa existência,

ou seja, como podemos ser iluminados sobre as

possibilidades e necessidades da nossa vontade”. O

outro princípio fundamental da filosofia bultmanniana

da história diz respeito à dificuldade de alcançar

resultados seguros através da investigação histórica. Do

método histórico-crítico, Bultmann aprendeu a lição de

que são muito poucas as verdades indiscutíveis na

história. A aplicação dos três princípios expostos à vida

de Jesus e ao Novo Testamento dá os resultados que a

seguir descrevemos. Do princípio da dificuldade de

alcançar conclusões seguras através da investigação

histórica deriva que “nós não podemos, por assim dizer,

saber mais nada da vida e da personalidade de Jesus,

seja porque as fontes cristãs não se interessaram por

isso, seja porque não existem outras fontes sobre Jesus”.

Mas essa situação, segundo Bultmann, não justifica

nenhum ceticismo, por duas razões. Antes de mais nada,

porque “o fato de duvidar que Jesus tenha

verdadeiramente existido não tem nenhum fundamento

e não merece nem mesmo ser refutado. E indiscutível

que Jesus encontra-se na origem do movimento

histórico de que a comunidade palestina primitiva

representa o primeiro estágio tangível”. Em segundo

lugar, porque a impossibilidade de estabelecer em que

medida a comunidade tenha sabido conservar fiel e

objetivamente a imagem que tinha dele e de sua

pregação tem importância para quem se ocupa da

personalidade de Jesus, mas não para quem se interessa

por sua obra. Do princípio de que aquilo que conta na

história não são os personagens, mas sim suas obras,

resulta o propósito de Bultmann de eliminar do estudo

de Cristo todas as expressões “que o descrevem como

um grande homem, um gênio, um herói”. Jesus deve ser

estudado com o mesmo critério com que se deve estudar

todos os homens célebres, vale dizer, através de sua

obra, recordando que em seu caso a atividade primordial

consistiu em pregar; por isso, quem procura descobrir

“aquilo que Jesus queria, deve antes de mais nada

estudar o seu ensinamento”.219 Por fim, do principio de

que não devemos abordar a história com espírito

naturalista, mas sim com espírito existencial, deriva a

conseqüência de que o ensinamento de Jesus não deve

ser tomado como uma ponte para chegar à sua

personalidade nem como um sistema de verdades

gerais, um sistema de proposições que têm valor

independentemente da situação concreta na qual se

encontrava quem as pronunciou. O ensinamento de

Jesus deve ser considerado como proveniente da

situação concreta de um homem que viveu em

detenninado tempo, como um ensinamento capaz de

explicar a nossa existência situada no movimento, na

insegurança e na decisão, e em condições de exprimir

uma possibilidade de compreensão dessa nossa

existência, uma tentativa para fazer brotar as

possibilidades e exigências do nosso existir. “Por isso,

quando nos encontramos diante das palavras de Jesus,

não devemos criticá-las partindo de um sistema

filosófico, em função de sua validade racional; ao

contrário, elas devem vir ao nosso encontro como

questões sobre o nosso modo de conceber nossa própria

existência; isso pressupõe, bem entendido, que nos

preocupemos pelo problema do nosso existir”. Se nos

aproximamos da Palavra de Jesus com essa disposição,

ela nos revelará uma nova compreensão da nossa

existência, uma compreensão radicalmente oposta à que

tínhamos anteriormente. O principal objetivo de

219 Mondin, op., cit., p.152.

Bultmann no admirável ensaio que é o seu Jesus reside

em mostrar que a essência da mensagem de Cristo está

na Revelação desse novo modo de compreender o nosso

existir. O teólogo de Marburg identifica o anúncio da

vinda do Reino de Deus e da salvação com o anúncio

desse novo modo de existir, renúncia ao mundo e

aceitação da vontade de Deus. “As palavras de Jesus

querem conduzir o homem a tomar consciência do

caráter absoluto da exigência divina; elas mostram que

não se pode seguir ao mesmo tempo a vontade de Deus

e os próprios interesses, mas que se trata de um aut-aut.

A mesma tese é retomada em Jesus Christ and

Mythology, onde podemos ler: “A Palavra de Deus

conclama o homem a renunciar ao seu egoísmo e à

segurança ilusória que construiu para si. Conclama-o a

voltar-se para Deus, que está além do mundo e do

pensamento científico. E o conclama ao mesmo tempo a

reencontrar o seu verdadeiro eu. O eu do homem, com

efeito, a sua vida interior e a sua existência pessoal,

também estão além do mundo visível e do pensamento

racional. A Palavra de Deus interpela o homem em sua

existência pessoal e, assim, toma-o livre das

preocupações e da angústia que o sufocam quando se

esquece do além”.220 No ensaio O Cristianismo como

Religião do Oriente e do Ocidente,Bultmaim sustenta

que o êxito do cristianismo deve-se à nova compreensão

da existência humana pregada por Cristo. “Se o

cristianismo – inicialmente uma religião oriental –

torna-se também uma religião ocidental, aliás mundial,

é um fenômeno cujas razões não deveriam ser buscadas

no fato de que contém possibilidades fundamentais para

a compreensão da existência humana, possibilidades

que encontramos imutáveis em toda parte e em toda

220 Mondin, op., cit., p.153.

época, tanto no Oriente como no Ocidente?” Bultmann

responde que o cristianismo deu à existência humana

um sentido que o mundo antigo jamais conhecera.

Apresentou o homem “como alguém que, tornado

consciente do seu isolamento diante de Deus, enfrenta o

mundo de uma maneira desconhecida para a antiguidade

grega. Enfrenta-o como uma entidade

fundamentalmente transcendente, radicalmente diversa

de tudo aquilo que pertence ao mundo”. Essa

transcendência é particularmente visível na doutrina

cristã da dor. “Através da dor se desenvolve no homem

uma força interior pela qual se coloca fora do

alcance da má sorte: a dor é para ele fonte de energia. A

essência mais íntima do cristianismo encontra-se aqui:

Deus se revela no Crucificado, que, enquanto

Ressuscitado, ele transformou em Senhor”. Ao término

da apresentação do pensamento de Bultmann sobre a

história, temos a impressão de que ele incorre numa

grave contradição, quando, por um lado, sustenta que a

Revelação cristã tem caráter histórico e, por outro, nega

que haja nela algo que possa ser investigado mediante

as técnicas do método histórico. Como se pode falar de

acontecimento dotado de caráter histórico e, ao mesmo

tempo, subtraí-lo à investigação histórica? Bultmann

não ignorou essa dificuldade e procurou dissipá-la com

a famosa distinção entre Historie e Geschichte. A

Historie, que poderíamos traduzir pelo termo “crônica

histórica”, pertencem os fatos determinados no tempo,

sujeitos à investigação e à constatação do método

histórico... A Geschichte (“História”) pertencem as

realidades que, mesmo sem prescindir dos fatos

historicamente documentados, estão no tempo mas não

são temporais, no sentido de que não têm uma data, nem

se encontram subjacentes à constatação da investigação

histórica. Essas realidades não recaem sob o domínio da

razão, mas só podem ser recebidas pela fé. A

Geschichte e não à Historie, por exemplo, pertencem a

criação e a redenção como acontecimentos que não

podem ser objetivados. Já a crucifixão é ambivalente:

indica certamente o fato que pode ser datado, de crônica

histórica, da morte de Jesus, mas também o

acontecimento histórico (geschichtlich) da libertação do

homem da escravidão do pecado e de sua reconciliação

com Deus.221 Eis, portanto, a solução da dificuldade:

não há nenhuma contradição na afirmação de que a

revelação cristã é histórica, mas não verificável

historicamente. Com efeito, é histórica na medida em

que pertence à Geschichte, mas não é verificável

historicamente na medida em que não pertence à

Historie.222

b) A Hermenêutica – Em estreita conexão com o problema

histórico encontra-se o problema hermenêutico. Assim,

relacionando-se com a correta compreensão do texto

sagrado, que, como sabemos, relata um fenômeno

histórico, esse problema não pode deixar de coincidir,

em muitos aspectos, com o problema histórico.

Portanto, é compreensível que Bultmann, ao

desenvolver o seu pensamento em torno da

hermenêutica, retome muitos conceitos que já

encontramos anteriormente, quando examinamos a sua

concepção de história. O problema hermenêutico revela

melhor do que qualquer outro os três grandes momentos

do desenvolvimento do pensamento teológico de

Bultmann. Efetivamente, ele está presente de maneira

evidente em todos os três momentos. No primeiro, o da

221 Mondin, op., cit., p.154. 222 Seria a história no sentido mais concreto.

passagem da teologia liberal para a teologia dialética,

temos a elaboração de um novo método exegético, o

método histórico-morfológico (Formgeschichte). No

segundo, o da passagem da teologia dialética para a

teologia existencialista, encontramos o reconhecimento

da necessidade de uma “pré-compreensão” do texto por

parte do exegeta. No terceiro, o da demitização, temos

uma nova e mais radical formulação das funções da

hermenêutica.223

O método histórico-morfológico – Na polêmica com a

escola liberal, Bultmann, juntamente com Dibelius,

desenvolve o método histórico-morfológico

(Formgeschichte). Esse método conserva alguns

elementos do método histórico-critico da teologia

liberal, mas possui dois elementos novos, muito

importantes: um diz respeito à natureza do objeto, o

outro ao modo de abordálo. No método histórico-

morfológico, o objeto da investigação não é mais o

Cristo em si mesmo, mas o Cristo como aparecia para a

comunidade primitiva. Para descobrir a representação

que a comunidade primitiva tinha dele, o método

histórico-morfológico analisa os Evangelhos, separa os

elementos que os compõem segundo os vários gêneros

literários, depois reagrupa-os novamente e, de tal modo,

obtém diversas representações de Cristo, ditadas pelas

múltiplas exigências da comunidade primitiva

(exigências catequéticas, polêmicas, apologéticas,

exorcistas, missionárias, etc.). Por fim, através da

análise de tais representações, procura estabelecer qual

era a tradição cristã primitiva.224 Para o correto uso do

método histórico-morfológico, Bultmann ressalta a

223 Mondin, op., cit., p.155. 224 Mondin, op., cit., pp.155,156.

importância, por um lado, de fixar para cada elemento o

seu Sitz im Leben, ou seja, “o lugar de aparecimento e o

ponto de inserção na comunidade” e, por outro lado, de

enquadrar cada elemento no gênero literário apropriado.

A exegese neotestamentária logo se assenhoreou do

método históricomor-fológico, cujo uso fez com que

realizasse notáveis progressos. Mas muitos exegetas

empregavam-no do mesmo modo como a escola liberal

utilizara o método-critico, vale dizer, com a presunção

de obter resultados “objetivos”, ou seja, tradições e

representações naturalistas e atemporais de Cristo.

Logo que se converteu à filosofia existencialista de

Heidegger, Bultmann apressou-se em protestar contra

essa utilização da exegese histórico-morfológica

e de qualquer exegese em geral. Então, ele proclamou

que não é possível uma verdadeira compreensão do

texto bíblico, como de resto de qualquer texto, sem

uma pré-compreensão existencial.

A pré-compreensão existencial – Antes de mais nada,

declara Bultmann, não se pode considerar o texto como

uma coleta de informações, nem como uma descrição de

algo qualquer (was). Se os fatos narrados fossem

considerados como comunicação de algo, eles não

poderiam ter, em última análise, nenhuma pretensão;

tampouco se poderia ter deles uma autêntica

compreensão, mas apenas um saber ou um ter-como-

verdadeiro. As coisas narradas seriam cadáveres e nós

seríamos necroscópicos. Com efeito, não se pode extrair

nenhuma relação vital de testemunhos históricos do

passado. Certamente permanece vital o interesse da

coisa em si mesma, mas ela só se torna vital através do

aspecto por meio do qual se manifesta. “Toda

interpretação que tenciona compreender deve pressupor

uma relação de vida preliminar com a coisa que se

apresenta no texto ou indiretamente nas palavras,

porque tal relação serve de guia para a intencionalidade

da pesquisa. Sem essa relação vital em que texto e

intérprete são correlatos, não são possíveis nem o

interrogar nem o compreender, aliás, não há nenhum

motivo para uma pesquisa. Por isso é que se diz, isto

sim, que toda interpretação deve basear-se

necessariamente numa certa pré-compreensão

(Vorverstãndnis) do objeto em discussão ou em exame”. 225Além disso, prossegue Bultmann, é preciso interrogar

o texto. Quem quer compreender deve ter uma

disposição de pesquisa, de quem interroga, de

quem226está pronto para ouvir. O teólogo de Marburg

chama esse conjunto de disposições de “pré-

compreensão”, como já o haviam feito os estóicos e

clemente de Alexandria. “Se os textos não são

interrogados, permanecem mudos”. Bultmann

acrescenta no caso da Biblia também uma disposição

especial, relacionada com a existência de Deus. Com

efeito, enquanto narração do agir divino, a Bíblia

implica uma compreensão do significado fundamental

da ação de Deus na medida em que ela difere da ação

do homem e dos acontecimentos naturais. “A pré-

compreensão diz respeito ao problema de Deus que

move a vida humana. Portanto, ela não significa que o

exegeta deva conhecer todo o possível de Deus, mas

sim que tenha consciência do fato de que parte do

problema existencial de Deus, independentemente da

forma que tal problema pode assumir de cada vez na sua

consciência, seja o problema da salvação, o da

libertação da morte, o da segurança diante do destino

225 Mondin, op., cit., p.157.

caprichoso ou o da verdade deste mundo enigmático”.

Por fim, conclui Bultmann, repetindo a propósito disso

o quejá dissera ao tratar da história, a pré-compreensão

deve ter um caráter existencial. A interrogação

fundamental deve ser dirigida a si mesmo, ao próprio

eu. O texto trata de mim, é algo pessoal. A mensagem

me interpela em minha existência e me impele a

escolher novamente essa minha existência; solicita-me

uma nova decisão. “O ser humano é um poder-ser

(Sein-konnen), que deve se realizar na autodecisão. Sem

essa decisão, sem essa disponibilidade do homem a ser

um ser humano, uma pessoa que assume a

responsabilidade da própria existência, não se pode

captar uma só palavra da Bíblia como palavra dirigida à

própria existência pessoal”249. Por outro lado, esse

encontro existencial com a Palavra de Deus é de

importância capital, porque de tal encontro depende a

realização sobrenatural do próprio ser. A plena

realização do próprio ser só é possível através da

aceitação da relação com essa Palavra. Sem o encontro

com ela, uma escolha de si mesmo seria contraditória,

porque então eu poderia escolher a mim mesmo, ou

seja, poderia fundar minha existência em mim mesmo.

Já quando, através do encontro com a Palavra de Deus,

me é oferecida a possibilidade de decidir além de mim

mesmo sobre mim mesmo, então eu fujo a esse absurdo. 227

c) A Filosofia - A teologia é por definição inteilectusfidei,

inteligência da fé. A sua função primária é obter e

conservar a inteligibilidade da Revelação. Para cumprir

essa fumção, serve-se precipuamente da filosofia.

Quando examinamos o pensamento de Bultmann sobre

227 Mondin, op., cit., p.157.

a história e a hermenêutica, já vimos que para ele o

teólogo não pode prescindir da filosofia. Com efeito,

tanto o historiador como o exegeta devem ter uma pré-

compreensão do seu objeto. Ora, toda pré-compreensão

implica uma filosofia. A dificuldade de que nessa

concepção a exegese, a história e, conseqüentemente,

também a teologia podem cair sob o controle da

filosofia, Bultmann responde que na realidade assim é;

“mas é preciso perguntar-se de que modo isso deve ser

entendido. Com efeito, é ilusório pretender que uma

exegese possa ser independente das representações

mundanas. Todo intérprete, consciente ou

inconscientemente, depende das representações que

herdou de uma tradição; e toda tradição se subordina a

uma filosofia, qualquer que seja. Assim, por exemplo, a

exegese do século XIX era, quando muito, tributária da

filosofia idealista, de suas idéias e de sua compreensão

da existência humana. Muitos inérpretes são ainda hoje

influenciados pelas representações idealistas. Disso

deriva que nunca se deveria realizar cegamente um

estudo histórico e exegético, sem levar em conta as

concepções que o orientam. Isso significa, em outras

palavras, colocar a questão da filosofia ‘justa”.

Bultmann passa então a demonstração de que, hoje, a

filosofia “justa”, aquela que assegura uma pré-

compreensão apta a entender o fenômeno histórico do

cristianismo e os textos bíblicos, éo existencialismo.

“Aqui, devemos ver bem claro que nunca haverá uma

filosofia justa no sentido de um sistema filosófico

absolutamente perfeito, capaz de responder a todas as

questões e resolver todos os enigmas da existência

humana. A questão reside apenas em saber qual é a

filosofia que hoje oferece as perspectivas e os conceitos

mais apropriados para a compreensão da existência

humana. Parece-me que, chegados a esse ponto,

devemos aprender algo da filosofia da existência,

porque a existência é o objeto primeiro sobre o qual

essa escola filosófica volta sua atenção. A filosofia da

existência pode oferecer representações apropriadas

para a interpretação da Bíblia, porque esta se interessa

pela compreensão da existência”. Por conseguinte, a

quintessência da mensagem bíblica consiste na

revelação de uma nova compreensão da existência,

entendida como submissão total e obediência a Deus.

Mas não é possível compreender a mensagem bíblica

sobre a existência se não se sabe nem mesmo o que

significa existir. Numa palavra, é necessária uma pré-

compreensão da existência. Por que a pré-compreensão

a ser adotada na interpretação da Escritura deve ser

exatamente a do existencialismo? Por que não pode ser

a do idealismo ou do romantismo? Segundo Bultmann,

a pré-compreensão idealista e a romântica não estão

aptas porque não se limitam a fornecer esquemas gerais

de compreensão, mas já os preenchem com seu

conteúdo, razão pela qual terminam por controlar

totalmente a interpretação da Escritura.228 Tanto o

idealismo como o romantismo têm um conceito tal do

homem que tomam impossível a livre decisão de viver

em total obediência a Deus. Com efeito, o idealismo

identifica o homem com Deus e nessa identificação não

sobra nenhum lugar para a decisão humana; já o

romantismo, centrando tudo no homem, não deixa mais

espaço para uma intervenção extraordinária de Deus. O

existencialismo, ao contrário, fornece teólogo só um

esquema geral da autêntica existência, sem

predeterminar ia atuação concreta em cada instante

particular. Para provar que o existencialismo não

228 Mondin, op., cit., pp.158-159.

oferece um modelo de existência concreta, Bultmann

recorre ao exemplo da análise existencial do amor.

“Seria ‘ erro”, afirma ele, “crer que a análise existencial

do amor possa permitir-me compreender a maneira

como devo amar neste lugar e neste momento. Essa

Eiálise limita-se a explicar-me que não posso

compreender o amor a não ser amando. Nenhuma

análise pode substituir-se ao meu dever de compreender

o inu amor como um encontro que se realiza em minha

existência pessoal”.229 E o mesmo em relação à

existência: “A análise filosófica não tem a pretenção de

trar-me minha autocompreensão pessoal. A análise

puramente formal da istência não considera a relação

entre o homem e Deus, uma vez que não

a em conta os acontecimentos concretos da vida pessoal,

os encontros ncretos que formam a existência pessoal.

Se é verdade que a revelação de Ius não se cumpre

senão nos acontecimentos da vida, neste lugar e neste

IuInento, e que a análise da existência limita-se à vida

temporal do homem 1bida na sucessão de lugar e

tempo, então essa análise revela um domínio qii só a fé

está em condições de compreender, na medida em que

constitui o ânínio da relação entre o homem e Deus... A

filosofia da existência não leva consideração a relação

entre o homem e Deus: esse fato comporta o

flzihecimento de que eu não posso falar de Deus como

do meu Deus até que i olhe para dentro de mim mesmo.

A minha relação pessoal com Deus só

ser estabelecida por Deus, do Deus que opera e que me

encontra em sua palavra”. 230Noutro trecho, Bultmann

precisa que a diversidade entre filosofia da siência e

Escritura não deve ser colocada no plano do

229 Mondin, op., cit., p.159. 230 Idem.

conhecimento, mas sim no plano da ação. Com efeito,

assegura o teólogo de Marburg, no plano do

conhecimento a filosofia não tem nada a apreender do

Novo Testamento, porque já sabe aquilo que significa

“existência histórica”. Já no plano da ação a Escritura

afasta-se da filosofia. Esta considera que o homem é

capaz de libertar-se sozinho da escravidão do homem

velho e da morte, ao passo que a Escritura ensina

exatamente o contrário. Ela faz ver que o homem,

mesmo sabendo aquilo que deve fazer, é incapaz de

fazê-lo. Para ser libertado, o homem tem necessidade de

uma intervenção especial, de um “ato” de Deus. Por

isso, a boa nova do Novo Testamento não é uma

doutrina sobre o autêntico ser do homem, mas “o

anúncio de um ato de redenção realizado por Cristo”.231

Para compreender corretamente o pensamento de

Bultmann sobre essa questão, é preciso notar que ele

considera que a filosofia não está em condições de

descobrir o pecado. Por isso afirma que a filosofia pode

considerar como transponível o abismo que separa a

vida inautêntica da vida autêntica. “A auto- afirmação

do homem cega-o para o fato do pecado e essa é a prova

mais clara de que ele é um ser decaído. Portanto, de

nada serve dizer-lhe que é um pecador. Responderá que

se trata de uma mitologia. Mas isso não quer dizer que

está com a razão. O pecado deixa de ser mitologia

quando o amor de Deus encontra o homem, como uma

força que o abraça e sustenta também em sua condição

de pecado e soberba. O amor de Deus trata o homem

como se fosse diferente daquilo que é. Assim fazendo,

liberta-o da condição em que se encontra”. 232

Segundo Bultmann, o existencialismo presta-se

231 Idem, ibid., p.160. 232 Mondin., op., cit., p.160.

admiravelmente à interpretação da Escritura, não só por

sua pré-compreensão da existência humana em geral,

mas também por sua concepção do homem em suas

características específicas. Segundo o existencialismo, o

homem distingue-se das outras criaturas porque,

diversamente delas, não é algo finito, verificável,

“tangível”, mas sim uma mina de possibilidades, as

quais fazem de sua vida uma vida de “decisões”. E ele

se perde quando, ao invés de manter-se continuamente

alerta, vigilante em relação às suas escolhas, deixa-se

arrastar pelo hábito e se aprisionar pelo passado, pelo

homem velho, por aquilo que já é, ao invés de tender

para aquilo que pode e deve ser. Contudo, ao contrário,

salva-se quando vive em contínua tensão para as suas

possibilidades. A existência humana é uma luta perene

entre vida inautêntica e vida autêntica. A plenitude e a

completeza da vida só podem ser alcançadas quando se

aceita e se vive para a extrema possibilidade, a morte.

Ora, segundo Bultmann, partindo dessa concepção do

homem, o kerygma Cristão é plenamente iteliíveL

Numa palavra, o esquema do kerygma enquadra-se

perfeitamente com o esquema do existencialismo.

Também o cristianismo fala de homem velho e de

homem novo, de queda e redenção, de possb}k1ades e

decisões. Por essa razão, deve-se considerar o

existencialismo a filosofia “justa”, que “oferece as

representações apropriadas para a interpretação da

Bíblia”.233

10. Existencialismo e demitização: Há ainda uma última

razão pela qual ele vê no existencialismo um

instrumento indispensável para a teologia

233 Mondin, op., cit., p.161.

contemporânea: só o existencialismo oferece categorias

adequadas para operar a demitização da mensagem

cristã que ele considera ser hoje a tarefa máxima da

teologia. Mais adiante, retomaremos esse tema. Em

virtude de todos esses motivos, Bultmann conclui:

“Pretendo ater-me ao existencialismo até que alguém

me faça conhecer um método exegético melhor”.234

Hoje, Bultmann é para todos o símbolo da demitização.

Desde 1941, ano em que publicou o célebre ensaio

Neues Testament und Mythologie, até hoje, os teólogos,

exegetas e filósofos nunca mais falaram de mito e

demitização sem referir-se necessariamente a ele. Essa

parte do seu pensamento é bastante conhecida e, além

disso, é bastante acessível: para tomar conhecimento

dela, basta ler as breves e estimulantes páginas de Neues

Testament und Mythologie. Por isso, limitamos-emos

aqui a uma rápida síntese dos pontos principais. Seu

ponto de partida é a distinção, na mensagem cristã, entre

conteúdo essencial e forma estrutural; o primeiro

permanece necessariamente imutável; já a segunda pode

variar de geração para geração.

A forma estrutural pode ser tríplice: mítica, metafisica

e científica. Entretanto, para ser compreensível, deve

corresponder à mentalidade da geração à qual a

mensagem é endereçada. Se a geração tem uma

mentalidade mítica, a mensagem deve assumir uma

forma mítica; se tem uma mentalidade metafisica, deve

assumir uma forma metafisica; se tem uma mentalidade

científica, deve assumir uma forma científica.

Colocadas a distinção entre conteúdo e forma e a

divisão da mentalidade em mítica, metafisica e

científica, Bultmann estabelece que os cristãos dos

234 Mondin, op., cit., p.161.

primeiros séculos tinham uma mentalidade mítico-

metafisica e, portanto, conclui que eles deram à

mensagem de Cristo uma expressão mítica e metafisica.

Entende por mito “a descrição do transcendente sob

vestes mundanas, das coisas divinas como se se

tratassem de coisas humanas”.

São três os elementos típicos da descrição mítica: 1)

poderes sobrenaturais; 2) que operam neste mundo; 3)

assumindo formas antropomórficas. Todos os três se

encontram nos escritos neotestamentários. Neles, por

conseguinte, o mundo é concebido como um edificio de

três andares, com o andar superior ocupado pelo céu, o

andar central pela terra e o andar inferior pelo inferno:

“O céu seria a morada de Deus e dos seres celestes; o

mundo subterrâneo é o inferno, o lugar da pena. A terra

é, por sua vez, não só o teatro dos acontecimentos

naturais e cotidianos, da previdência e do trabalho, do

cálculo ordenado e regulado, mas também o teatro da

ação de poderes sobrenaturais, isto é, de Deus e dos

seus anjos, de Satanás e “dos seus demônios”.

Segundo Bultmann, a principal característica da

mentalidade metafisica é a de objetivar – isto é,

exteriorizar – os nossos estados mentais, reconhecendo-

lhes um estado objetivo fora de nós. Uma vez

objetivados, tais estados tomam o nome de anjos ou

espíritos benéficos, quando se trata de bons impulsos,

ou então tomam o nome de demônios, quando se trata

de maus impulsos. Reconhecendo-lhes uma existência

autônoma, se obtém, acima de nós, um céu povoado de

uma hierarquia de anjos e seres sobrenaturais, sob o

domínio onipotente de Deus, e sob nós um infemo

repleto de espíritos malignos. “Tais poderes se inserem

nos acontecimentos naturais não menos do que no

pensamento, na vontade e na ação do homem; por isso,

o milagre não é uma coisa rara.235

O homem não é dono de si mesmo; os demônios podem

possuí-lo: Satanás pode sugerir-lhe maus pensamentos;

assim, Deus também pode infundir- lhe o seu próprio

pensamento e a sua vontade, fazê-lo descobrir figuras

celestes e ouvir a sua palavra de comando e conforto,

dar-lhe o poder sobrenatural do seu espírito. A história,

portanto, não segue um curso constante e regular,

mas recebe movimento e direção das forças

sobrenaturais”.236

Depois, Bultmann procede à aplicação da distinção

entre forma míticometafisica e conteúdo salvífico aos

Evangelhos, concluindo que o conteúdo “Neves

Testamen! una Mythologie. O mito sempre esteve no

centro das preocupações bultniana. A referência ao mito

é constante, ainda que nem sempre necessariamente

explícita, em toda a sua obra. Mas em poucas ocasiões

ele tenta elaborar uma definição clara do conceito de

mito. Além da definição citada acima, também é digna a

nota aquela que Bultmann dá em Jesus Christ and

Mythology: “A mitologia exprime uma certa

compreensão da existência humana. Para ela, o mundo e

a vida humana encontram o seu fundamento e os seus

limites num poder situado al& daquilo que nós podemos

prever e dominar. A mitologia fala desse poder de

maneira inadequada e insuficiente. medida em que fala

235 Mondin, op., cit., p.162. 236 Idem.

dele como se se tratasse de um poder mundano”237

salvífico consiste “num juízo (de Deus) que nos declara

livres dos poderes do mundo sob cujo domínio nós

caímos”. Deus deu expressão visível a esse juízo na

morte de Cristo, que, conseqüentemente, é o sinal

visível da redenção da humanidade das potestades de

que era escrava. Toda a essência do kerygma está aqui,

segundo o teólogo de Marburg: no juízo de Deus que se

renova a cada instante no simples fiel, que se salva

submetendo-se humildemente a ele.238 Ao contrário,

todo o embasamento histórico do Novo Testamento faz

parte da forma mítico-metafisica: isto é, o relato de que

na plenitude dos tempos foi enviado ao mundo o Filho

de Deus, ou seja, uma essência divina preexistente ao

seu fenômeno, a qual, dando início à escatologia com

sua morte e ressurreição, cancelou o pecado e triunfou

sobre os poderes demoníacos que dominaram o mundo

até a sua vinda. Portanto, a maior parte dos

acontecimentos relacionados com a vida de Cnsto,

segundo Bultmann, são fruto do colorido niítico-

metafisico, especialmente os milagres, a morte vicária e

a ressurreição. Uma vez estabelecido que a mensagem

cristã foi expressa mediante categorias mítico-

metafisicas, Bultmann se pergunta: “A pregação cristã

pode pretender que o homem moderno reconheça como

verdadeira uma imagem mítica do mundo?” A resposta

é obviamente negativa: “Isso não tem sentido e é

impossível. Não tem sentido: com efeito, a imagem

mítica do mundo, enquanto tal, não é de modo algum

uma realidade especificamente cristã, mas sim a

imagem do mundo formulada no passado e ainda não

elaborada pelo pensamento científico. Impossível:

237 Idem. 238 Mondin, op., cit., p.163.

porque não se pode fazer própria uma imagem do

mundo simplesmente através de uma decisão da

vontade, mas ela é dada ao homem juntamente com a

situação. histórica”. Ora, “para o homem moderno, a

concepção mitológica do mundo, as representações da

escatologia, do redentor e da redenção são ultrapassadas

e superadas”. Por isso, é preciso demitizar. Demitizar

significa “procurar descobrir o significado mais

profundo que está oculto sob as concepções

mitológicas. O seu objetivo não é eliminar os

enunciados mitológicos, mas sim interpretá-los”,

servindo-se da autocompreensão que o homem moderno

tem de si mesmo. O resultado da demitização

bultmanniana do Novo Testamento é bastante

conhecido Consiste na descoberta, feita já no Jesus e

confirmada depois em todas as suas obras posteriores,

de que “o significado mais profundo da pregação

mitológica de Jesus é o seguinte: devemos estar abertos

para o futuro de Deus, futuro que, para cada um de nós,

é iminente; estar preparados para receber esse futuro,

que pode sobrevir como um ladrão na noite, no

momento em que menos o esperamos; estar prontos,

porque esse futuro será o juízo de todos os homens

agarrados ao mundo, que não são livres nem abertos

para o futuro de Deus”.239 Esse processo de demitização

que pode nos parecer tão surpreendente – segundo

Bultmann – não é novo nem recente, masjá se

encontrava nas Epístolas de São Paulo e no Evangelho

de são João, que foram seus iniciadores. Assim,

enquanto a pregação de Jesus “era conservada e

continuada pela comunidade primitiva sob forma mítica,

já começava em boa hora o processo de demitização,

parcialmente com Paulo e radicalmente com João. O

239 Mondin, op., cit., p.163,164.

passo decisivo foi dado quando Paulo declarou que a

virada do mundo antigo para o mundo novo não estava

situada no futuro, mas se produzira com a vinda de

Jesus Cristo: ‘Quando, porém, chegou a plenitude do

tempo, enviou Deus o seu Filho’ (Gl 4,4). E verdade

que Paulo ainda esperava o fim do mundo sob a forma

de um drama cósmico, aparusia de Cristo sobre as

nuvens do céu, a ressurreição dos mortos, o juízo final;

porém, com a ressurreição de Cristo, o evento decisivo

já teve lugar... Depois de Paulo, João demitizou a

escatologia de maneira radical. Para João, a vinda e a

partida de Jesus constituem o acontecimento

escatológico... Esses exemplos - parece-me - mostram

que a demitização teve início no Novo Testamento

mesmo e que, conseqüentemente, hoje a nossa tarefa de

dcmitizar é justificada”.240

Concluindo, “demitizar quer dizer repelir a idéia deque

a mensagem bíblica e eclesial esteja ligada a uma visão

antiga e ultrapassada do mundo. A tentativa de

demitização parte desta idéia essencial: a pregação

cristã, enquanto Palavra de Deus pregada em sua ordem

e sob o seu nome, não apresenta uma doutrina que seria

necessário aceitar seja com um ato de razão, seja às

custas de um sacrficium inteilectus.241

A pregação cristã é um kerygma, ou seja, uma

proclamação que não se dirige à razão especulativa, mas

ao ouvinte tomado na sua ipseidade. E assim que Paulo

se recomenda à consciência de cada homem diante de

Deus (2Cor 4,2). A demitização quer evidenciar essa

240 Mondin, op., cit., 164. 241 Idem.

função da pregação como mensagem pessoal: fazendo

isso, eliminará um falso escândalo e colocará à luz do

dia o verdadeiro escândalo, a palavra da Cruz”. A

teologia genial e revolucionária de Rudolf Bultmann é

atormentado pelas exigências da fé e da razão que em

seu pensamento se apresentam como irremediavelmente

contrastantes.242

A fé quer o reconhecimento de algo que a razão não

pode compreender; a razão, ao contrário, recusa-se a

acolher tudo aquilo que não está em conformidade com

suas leis. Na dialética entre as exigências da fé e as

exigências da razão, a primeira sai sistematicamente

derrotada. Nós o vimos em todos os momentos mais

significativos do seu pensamento, na demitização, na

história e na hermenêutica.243

A demitização corresponde inegavelmente a uma das

necessidades permanentes da fé, a de conservar pura

a mensagem revelada e manter intacta a sua

inteligibilidade. Bultmann teve o mérito singular de ter

revelado sua urgência num momento em que, por

múltiplas razões, a mensagem original parece poluída

por muitos elementos estranhos e parece ter perdido

toda eficácia.244

O teólogo de Marburg realiza a demitização com

critérios tais que, no fim de sua operação, muito pouca

coisa resta da fé cristã: o evento salvífico resolve-se no

apelo à decisão e a Revelação se reduz a uma pura onda

sonora proveniente de uma estação transmissora

242 Mondin, op., cit., pp.164,165. 243 Mondin, p.165. 244 Idem.

totalmente desconhecida, ao passo que são eliminados

do núcleo da mensagem tanto o embasamento histórico

como o componente sobrenatural. Mas será admissível

uma demitização tão radical assim? Parece-me que ela é

incompatível com os testemunhos daqueles que foram

os primeiros depositários, imediatos e diretos, do

kerygma, os quais afirmam terem sido restemunhas

oculares de realidades e acontecimentos extraordinários

e repelem uergicamente a acusação de tê-los imaginado

com a própria fantasia; que, aliás, dão mais importância

aos acontecimentos extraordinários do que à sua cisão

de fé, pois sem tais acontecimentos esta última seria

completamente absurda: “Se Cristo não tivesse

ressuscitado, vã seria a nossa fé”. São os ontecimentos

extraordinários que dão origem ao apelo e conduzem à

decisão e a uma nova concepção da existência, e não o

contrário. Por isso, não se pode rnitizar o keiygma ao

ponto de eliminar dele tudo aquilo que pertence ao

nbasamento histórico e sobrenatural. Pois também esse

embasamento, como demonstrou Oscar Cullmann,

pertence à essência do cristianismo. A operação de

demitização bultmanniana baseia-se na tese de que todo

o basamento histórico e sobrenatural faça parte da

forma e não do conteúdo Revelação, na medida em que

seria fruto da visão científica e filosófica dos primeiros

cristãos. Tal tese, porém, como já dissemos, está em

aberto conflito com o claro testemunho dos autores

sacros.245

A distinção entre Historie e Geschichte também

corresponde a uma eugência da fé, porque a história da

salvação não é constituída por fatos históricos

imediatamente observáveis e sujeitos às técnicas da

245 Mondin, op., cit., p.165.

investigação histórica. Se assim fosse, a fé não seria

mais fé, mas simples constatação empírica. A distinção,

contudo, é aproveitada por Bultmann para escavar um

tal abismo entre as duas que a razão não tem mais

nenhum motivo para acolher a Geschichte mas encontra

muitas razões para negar sua existência, de maneira que

a Geschichte torna-se um evento absurdo para a razão.

Mas também aí Bultmann encontra-se em contradição

com a Escritura. Esta, com efeito, não concebe a

história sagrada como negação da história profana, mas

como redenção e sublimação dela. Bultmann prestou

um imenso serviço à exegese bíblica com a introdução

do método da Formgeschichte. Mas também esse

método é utilizado por ele de modo arbitrário: serve

para que ele erga uma barreira intransponível entre o

Cristo da fé e o Cristo da história, deixando-nos

unicamente a possibilidade de tomar contato somente

com o primeiro. Bultmann reconhece que o kerygma

pressupõe o fato de que Jesus viveu e foi crucificado,

mas nega que nós possamos conhecer o que quer que

seja a respeito daquilo que ele efetivamente ensinou e

realizou. O que (das) radica o kerygma na história e

impede-lhe que se resolva em simples mito. Mas o

aquilo (was) não tem importância e, portanto, não há

motivo de preocupação se não pode ser recuperado.246

O Novo Testamento, entretanto, não opera e não

justifica essa separação. Ao contrário, em seu chamado

à fé, ele pretende comunicar um conteúdo que deriva

daquilo que aconteceu na história. A pregação cristã

primitiva identifica o Cristo que proclama como Senhor

e Salvador com Jesus de Nazaré, o qual, como

verdadeiro homem, viveu, ensinou, sofreu e morreu em

246 Mondin, op., cit., p.166.

completa obediência a Deus e entrega de si mesmo. Em

sua vida, viu a manifestação do amor salvífico do

próprio Deus. Quando Paulo prega o perdão dos

pecados através da fé em Cristo, pressupõe claramente

que Deus realmente agiu no Jesus histórico para fazer

conhecer o seu amor reconciliador. Portanto, a

personalidade histórica de Jesus é a base indispensável

da fé cristã. Sem essa referência histórica e ontológica,

o apelo do kerygma toma-se totalmente subjetivo.

Bultmann, por conseguinte, tem razão quando insiste

em que o kerygma expressa o significado que Jesus

tinha para a comunidade primitiva. Mas está errado

quando sustenta que tal significado é inteiramente

independente do Cristo histórico. A doutrina

bultmanniana sobre a pré-compreensão existencial

mereceria longos comentários. Limitar-nos-emos,

porém, a poucas observações de caráter geral.

Afirmando, contra Barth e Cullmann, a necessidade de

uma précompreensão, Bultmann reconheceu justamente,

junto com Brunner, Niebuhr, RUDOLF BULTMÁV 167

Tillich e os teólogos católicos, a exigência de parte da fé

de encontrar no homem um ponto de junção para que

este possa verdadeiramente considerar-se crente.

Ademais, ele viu muito bem quando observou que a

pré-compreensão varia de época para época, de geração

para geração e, portanto, sustentou legitimamente que,

para preservar intacta a inteligibilidade do kerygma,

deve-se expressá-lo através das categorias daquela pré-

compreensão que é própria da geração à qual a

mensagem é destinada. Por fim, pode-se estar de acordo

com Bultmann também sobre a oportunidade de utilizar

o existencialismo para a pré- compreensão do kerygma

no século XX.247

247 Mondin, op., cit., pp. 166,167

Com efeito, a fé é um evento existencial. O Evangelho

diz respeito ao homem, à existência humana. Do início

ao fim, as Escrituras proclamam aquilo que Deus fez e

faz pelos homens. O Deus da Bíblia é o Deus de

Abraão, Isaac e Jacó, isto é, do simples indivíduo e não

da espécie humana. Ademais, o Evangelho dirige-se a

toda a pessoa e não apenas à parte racional, às

faculdades intelectivas, e a resposta que ele exige de

nossa parte é o confiante abandono de todo o nosso ser

nas mãos de Deus e não apenas a aceitação intelectual

de uma série de dogmas. Deus deve ser encontrado

como pessoa e não como objeto. O verdadeiro crente

não é um simples espectador, mas um ator que toma

parte no evento salvífico. Tudo isso é expresso

apropriadamente pelas categorias do existencialismo,

dentre as quais Bultmann deu justo relevo à categoria da

decisão, que é aquela na qual o conteúdo da Revelação

melhor se estampa. Ela abarca efetivamente uma parte

essencial do keiygma, que propõe ao homem um novo

modo de existir contrário ao modo de ser mundano e

pede-lhe que se decida entre os dois. A categoria da

decisão ressalta bem o papel reservado ao homem na

obra da salvação. Fazendo- a sua, o teólogo de Marburg

afasta-se de Barth e, aliás, da teologia protestante, para

a qual Cristo só redimiu então, de uma vez por todas,

sem ulteriores ações; para nós, só restaria a memória do

evento. Vinculando a realização da redenção à minha

decisão presente, Bultmann está mais próximo da

posição católica e da posição paulina do adimpleo ea

quae desunt Christ passionum (Cl 1,24).248

Dito isso a favor da pré-compreensão existencial,

devemos ressaltar prontamente que ela, por si só, não

248 Mondin, op., cit. p.167.

basta para servir de forma a toda a riqueza da

mensagem cristã; porque, transcurando completamente

o aspecto objetivo tudo aquilo que pertence a Deus e a

Jesus Cristo em si mesmos; tudo aquilo que pertence ao

passado e ao futuro e não diz respeito imediatamente ao

presente), ela o mutila gravemente. Tem razão Wingren

ao afirmar que Bultmann, comprimindo o kerygma

dentro da pré-compreensão existencial, “faz

deliberadamente do homem moderno a norma. A norma

da compreensão que o homem modemo tem de si

mesmo decide aquilo que pode ser apreendido do Novo

Testamento”. Ainda uma vez, no conflito entre as

exigências da fé e da razão, quem leva a melhor é a

razão.

Para Bultmann, a vitória da fé sobre a razão é apenas

aparente; ela serve para libertar a fé de todas as

superestruturas com que foi circundada para tomá-la

mais aceitável para a própria razão.

Assim sendo, não se deve atribuir a demitização radical

da fé a uma tendência racionalista que Bultmann teria

herdado da escola liberal, mas muito mais a uma nova

interpretação do princípio protestante da sola fides. Essa

lides, para ser verdadeiramente sola, não deve de modo

algum se apoiar em expedientes que possam

impressionar e influenciar a razão. Por isso, para

salvaguardar a “solitude” da fé, o teólogo tem o dever

de utilizar a razão para demolir todos os artificios com

os quais se procurou adoçar o escândalo da fé.

Como se vê, Bultmann estabelece para a teologia tarefas

totalmente diversas e opostas àquelas que sempre lhe

estabeleceram a teologia católica e, bastante

freqüentemente, também a protestante. Para todos os

teólogos católicos e para a maior parte dos protestantes,

a função da ciência sacra é lançar pontes entre a fé e a

razão. Já para Bultmann a sua função é cortar todas as

pontes entre uma e outra. Assim, ainda que por caminho

diferente, Bultmann chega às mesmas conclusões de

Barth: ambos levam às últimas conseqüências o

princípio fundamental do protestantismo, a sola fides.