Bumba meu boi do Maranhão

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Bumba-meu-boi de Guimares na Festa de So Pedro - So Lus/MA

Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do MaranhoDossi do registro

So Lus - MA Janeiro/2011

Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do MaranhoDossi do registro

So Lus - MA Novembro/2010

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PRESIDENTE DA REPBLICA Dilma Rouseff MINISTRA DA CULTURA Ana de Hollanda PRESIDENTE DO IPHAN Luiz Fernando de Almeida DIRETORA DO PATRIMNIO IMATERIAL Ana Gita de Oliveira (substituta) COORDENADORA-GERAL DE IDENTIFICAO E REGISTRO Ana Gita de Oliveira COORDENADORA DE REGISTRO Claudia Vasques SUPERINTENDENTE DO IPHAN NO MARANHO Ktia Santos Boga PESQUISA E TEXTO Izaurina Maria de Azevedo Nunes Paloma S Cornlio Eloy Abreu Barbosa Elisene Castro Matos Flvia Andresa Oliveira de Menezes

REVISO E EDIO Izaurina Maria de Azevedo Nunes

FOTOGRAFIAS Nael Lima Reis Edgar Rocha Izaurina Maria de Azevedo Nunes Jos Raimundo Arajo Jnior Carla Arouca Belas Helciane de Ftima Abreu Arajo Paulo Caru

ELABORAO DO DOSSI DE REGISTRO AGRADECIMENTOS COORDENAO GERAL Izaurina Maria de Azevedo Nunes Jandir Silva Gonalves Carla Arouca Belas Helciane de Ftima Abreu Arajo Tcito Freire Borralho Simone Ferro Meredith Watson Surama Almeida Freitas Cynthia Martins Carvalho Joo Paulo Soares Iana Arajo

CONSULTORIA Luciana Gonalves de Carvalho Raul Giovanni da Motta Lody Jandir Silva Gonalves PESQUISA HISTRICA Abmalena Santos Sanches Izaurina Maria de Azevedo Nunes

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Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranho. Dossi do registro como Patrimnio Cultural do Brasil / Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. So Lus: Iphan/MA, 2011. 20p.: il. Dossi do registro do Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranho, 2011. Referncias bibliogrficas: f. 49-51 1. Bumba-meu-boi 2. Histria 3. Cultura Popular. Maranho.

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SUMRIOIntroduo Parte I - O Bumba-meu-boi no contexto histrico-cultural maranhense Captulo 1 - Aspectos gerais da celebrao do boi no Maranho, no Brasil e no mundo O culto ao boi na Histria das civilizaes Origem e recriao O Bumba-meu-boi do Maranho e os Bois no Brasil O Bumba-meu-boi maranhense articula significados Uma referncia cultural marcada pela diversidade As representaes simblicas no Bumba-meu-boi do Maranho Arte-festa e religio O Bumba-meu-boi como elemento da identidade maranhense Captulo 2 Panorama histrico do Bumba-meu-boi no Maranho Revisitando o Bumba-meu-boi do Sculo XIX Sculo XX: de brincadeira de negros a cone da cultura maranhense Captulo 3 Bases para o registro do Bumba-meu-boi do Maranho 11 11 11 11 14 15 22 24 25 26 29 34 34 44 66

Primeiros passos: o INRC do Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranho 66 Mobilizao para o registro Elementos estruturantes do Bumba-meu-boi Parte II Estrutura central da celebrao Captulo 4 O Bumba-meu-boi como celebrao Captulo 5 O universo mstico-religioso do Bumba-meu-boi Catolicismo popular: Salve Santo Antnio, So Joo, So Pedro e So Maral O Tambor de Mina e Bois de Terreiro: a relao sincrtica no Bumba-meu-boi Os Bois de Promessa A mitologia associada ao Boi O Bumba-meu-boi sada os mortos 67 72 76 76 77 78 82 85 88 89

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Captulo 6 Configurao sociolgica do Bumba-meu-boi Hierarquia e organizao Territrio: os espaos casa do grupo Captulo 7 A variedade de Bois no Maranho A regularidade de alguns estilos e a classificao em sotaques Vantagens e desvantagens do uso da categoria sotaque Os cinco sotaques convencionados A disputa entre grupos do mesmo sotaque Parte III Os mltiplos planos da brincadeira Captulo 8 O Boi no plano ritual As celebraes do grupo As grandes celebraes do Bumba-meu-boi Captulo 9 O Boi no plano expressivo Plano dramtico Plano musical: os diferentes conjuntos musicais Plano coreogrfico Captulo 10 O Boi no plano material O artesanato do Bumba-meu-boi Captulo 11 Questes contemporneas no Bumba-meu-boi Captulo 12 Recomendaes para salvaguarda Glossrio Bibliografia

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Introduo

L vem meu boi urrando, subindo vaquejador Deu um urro na porteira, meu vaqueiro se espantou E o gado da fazenda com isto se levantou Urrou, urrou, urrou, urrou Meu novilho brasileiro que a natureza criou Boa noite meu povo que vieram aqui me ver Com esta brincadeira, trazendo grande prazer Saldo grandes e pequeno, este o meu dever Sai pra cantar boi bonito pro povo ver So Joo mandou, pra mim fazer de minha obrigao eu amostar meu saber Viva Jesus de Nazar e a virgem da Conceio Viva Boi de Pindar com todo seu batalho So Pedro e So Maral e o meu Senhor So Joo Viva as armadas de guerra, viva o chefe da nao Viva a estrela do guia, So Cosme e So Damio Viva meu Maranho com toda a sua fidalguia Um dos estado brasileiro que o povo tem alegria Existe educao, respeito e harmonia Quem visita o Maranho vem cheio de alegria Sempre a h de ser abenoada a terra de Gonalves Dias Joo Cncio tem um boi que no conhece vaqueiro caiado de preto e branco, turino verdadeiro Saiu pra passear no nosso pas brasileiro Vem conhecer nosso Estado que tem nada de estrangeiro E desta viagem que veio chegou at no Rio de Janeiro Meu povo presta ateno os poetas do Maranho Que canta sem ler no livro, j tem em decorao Todo ano ms de junho temos por obrigao De cantar toada nova em louvor de So Joo Viva a bandeira brasileira cobrindo a nossa nao Por aqui vou saindo so hora de eu viajar Adeus at para o ano, quando eu aqui voltar Vou ficar o seu dispor o tempos que precisar A turma de Pindar pesada no boiar O conjunto brasileiro e a fora Deus quem d Toada Urrou do Boi Coxinho - Bumba-meu-boi de Pindar So Lus/MA

O Bumba-meu-boi do Maranho , antes de tudo, uma grande celebrao na qual se confundem f, festa e arte, numa mistura de devoo, crenas, mitos, alegria, cores, dana, msica, teatro e artesanato, entre outros elementos. Considerado a mais importante manifestao da cultura popular do Estado, tem seu ciclo festivo dividido em quatro etapas: os ensaios, o batismo, as apresentaes pblicas ou brincadas1 e a morte. O Sbado de Aleluia marca o incio da temporada dos grupos com os primeiros ensaios, que se estendem at a primeira quinzena do ms de junho, quando ocorrem os ensaios redondos2. No dia 23 de junho, vspera do Dia de So Joo, tradicionalmente acontecem os batismos dos Bois, quando os grupos obtm a licena do santo protetor dos Bumbas para as brincadas.

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Ver glossrio. O ensaio geral, o ltimo ensaio dos grupos de Bumba-meu-boi.

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A partir desse ritual catlico, adaptado para permitir que os grupos possam brincar, iniciamse as apresentaes, que se prolongam at o final do ms. De julho a dezembro acontecem os rituais de morte dos Bois, programados conforme o calendrio de cada grupo, marcando o encerramento do ciclo festivo do Bumba-meu-boi. Em So Lus, as apresentaes acontecem em arraiais distribudos pelo Centro e bairros da cidade, em sua grande maioria coordenados pelo Governo do Estado e Prefeitura Municipal; em casas de particulares ou em arraiais de instituies ou de entidades. O perodo das apresentaes coroado por dois grandes encontros de grupos de Bumba-meu-boi: a alvorada na Capela de So Pedro, na Madre Deus3, no dia 29; e o desfile da Avenida So Maral, no Joo Paulo4, no dia 30. Recentemente so realizadas apresentaes pblicas durante o ms de julho, de quinta-feira a domingo, como parte de um projeto de uma entidade privada com patrocnio de empresas sediadas em So Lus. A apresentao do grupo segue, freqentemente, uma seqncia orientada pelas toadas com as seguintes etapas: o guarnic, preparao do grupo para dar incio brincadeira; a reunida, quando os brincantes se agrupam para a etapa seguinte; o l vai, aviso de que o grupo j est saindo para brincar; o boa noite; o chegou ou licena, quando o Boi pede permisso para danar; a saudao, uma espcie de louvao ao Boi ao dono do espao de apresentao e assistncia; a encenao do auto; o urrou, momento em que o Boi ressuscita; e a despedida, marcando o final da apresentao. Atualmente, algumas dessas etapas so suprimidas, inclusive a apresentao do auto. Na saudao, so cantadas toadas de tema livre que podem abordar sentimentos, elogios a pessoas consideradas pelo grupo, ecologia, questes sociais e assuntos da atualidade, como crise na economia ou na poltica. Esse aspecto caracteriza o Bumba-meu-boi como uma revista, na qual so tratados, muitas vezes de forma jocosa, fatos atuais.

Arraial do Ceprama - So Lus/MA3 4

Bairro prximo ao Centro da Cidade. Bairro de So Lus.

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So atores desse grande espetculo, estivadores, pescadores, trabalhadores rurais e pequenos comerciantes e, mais recentemente, dependendo do estilo de Bumba-meu-boi, pode-se encontrar, ainda, fazendo parte do conjunto, estudantes e funcionrios pblicos entre outras categoriais profissionais. Deve-se destacar a grande participao de negros nos grupos dos sotaques de Guimares, Cururupu, Ilha e Baixada5. Usualmente, costuma-se dividir os grupos de Bumba-meu-boi em cinco estilos, conhecidos como sotaques: da Ilha ou de matraca, de Guimares ou de zabumba, de Cururupu ou de costa-de-mo, da Baixada e de orquestra, originrios de So Lus, dos municpios Guimares, Cururupu e Viana e da regio do Rio Munim, respectivamente. Mas a classificao dos grupos de Bumba-meu-boi em sotaques apresenta problemas quando se trata de grupos de outras localidades do Estado que mostram variedade de instrumentos, indumentria e formas de elaborao, no encontrados nos estilos j consolidados. o caso dos Bois de Reis, da regio de Caxias; dos Bois-bumbs, da regio do Gurupi e Alto Mearim e Graja; e dos Bois de municpios como Alto Alegre do Maranho e Bacabal e das regies do Baixo Parnaba e Lenis Maranhenses, que tm estilos distintos dos cinco sotaques consagrados. Ressalte-se, ainda, a ocorrncia dos grupos parafolclricos, dos Bois de promessa, dos Bois de vero, dos Bois de carnaval, dos grupos formados a partir da releitura dos grupos tradicionais e dos Bois de Encantado ou Bois de Terreiro, esses ltimos intrinsecamente associados religiosidade afro-maranhense. Como parte desse rico patrimnio cultural que o Bumba-meu-boi, encontra-se uma diversidade de elementos que do visibilidade cultura popular maranhense, relacionados religiosidade popular catlica, com os batismos dos Bois; aos cultos afro-maranhenses, com os Bois de Terreiro; e s formas de expresso artstica, com os bailados dos brincantes, com a encenao de autos e comdias e com a musicalidade dos Bumbas em seus vrios estilos, valorizadas pelo talento de seus amos-cantadores e pela variedade de sons tirados de instrumentos

artesanais. O artesanato do Bumbameu-boi, com a confeco da carcaa do Boi e dos instrumentos musicais e do bordado do couro do Boi e da indumentria dos brincantes

comprovam o poder criativo dos protagonistas desse espetculo da cultura popular maranhense alimentado pela f e devoo a So Joo, So Pedro e So Maral.5

Discute-se sobre a pertinncia dessa denominao para os grupos convencionados como desse sotaque, visto que os Bois da regio geogrfica Baixada Ocidental Maranhense apresentam caractersticas rtmicas distintas daquelas apresentadas pelos grupos de So Lus categorizados como da Baixada. Talvez o termo mais apropriado para esses grupos seja sotaque de Pindar, em referncia ao Boi que celebrizou esse estilo de brincar Boi.

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A multiplicidade de personagens tambm uma caracterstica marcante dos grupos. Em torno da figura central - o Boi, animado pelo miolo, tambm denominado de tripa, alma ou fato, gravitam personagens como o amo (cantador, conhecido por cabeceira, comandante, patro ou mandador, de acordo com a regio), vaqueiros de cordo, vaqueiros campeadores, rajados, rapazes, caboclos-depena, cazumbas, toureiros, tapuios, tapuias, panduchas, caipora, manguda, bichos, ndias, ndios, burrinha, Dona Maria, Pai Francisco (ou Nego Chico6) e Catirina. A ocorrncia das personagens varia conforme o estilo adotado pelo grupo. Alm das personagens de dentro do grupo, pessoas que podem ser chamadas de apoiadores ajudam a manter a brincadeira como as conserveiras, as mutucas, as torcedoras, as doceiras, as cozinheiras, o gerente, o regente, o fogueireiro, o fogueteiro e o ajudante de amo. Um grupo de Bumba-meu-boi de costa-de-mo, zabumba, Baixada e orquestra pode ter de 50 a 200 pessoas, em mdia. Nesse aspecto os Bois de matraca tm uma especificidade: o nmero de integrantes pode chegar at cerca de mil pessoas. Isso ocorre pela facilidade de acesso ao instrumento que d nome ao sotaque, visto que qualquer pessoa pode adquirir um par de matracas e entrar no Boi de sua predileo, aumentando o contingente de tocadores do Boi. Esse fator, agregado paixo pelo grupo similar de uma torcida de futebol, atrai um grande nmero de brincantes, favorecendo uma espcie de competio saudvel entre os chamados batalhes 7 de Bois de matraca. A musicalidade dos grupos resulta do talento dos compositores, da beleza das letras e da riqueza de ritmos das toadas nos mais diferentes estilos de Bumba-meu-boi. Essa pluralidade de ritmos pode ser explicada pela grande variedade de instrumentos do Bumba-meu-boi como bombos, maracs, ganzs, pandeires, V8 (pandeiros quadrados grandes), tambor-ona, chocalhos, palmas, cujubas, bzio (bor), marcaes, retintas, matracas, zabumbas, pandeirinhos, banjos, clarinetes, saxofones, pistons, trombones e trompetes, entre outros. Assim, de uma forma descontrada, os brincantes de Bumba-meu-boi associam diverso, f e devoo num ritual alegre, homenageando So Joo, o seu santo padroeiro. No Bumba-meu-boi do Maranho festa e religio so indissociveis e com seriedade que se brinca para So Joo.

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Na regio do Baixo Parnaba tambm conhecido como Chico Chiquim. Ver glossrio.

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Parte I - O Bumba-meu-boi no contexto histrico-cultural maranhense

Captulo 1 - Aspectos gerais da celebrao do boi no Maranho, no Brasil e no mundo

O culto ao boi na Histria das civilizaes

boi um tema universal mito, divindade, animal No Egito e na ndia e todos os povos O boi festa tradicional Boi pis, Minotauro, fora vital Touro negro, que Zeus Deus grego, touro negro de couro bordado Que vive no areal o Rei, Dom Sebastio Touro negro encantado no Maranho festa e tradio Quem ainda no conhece Venha conhecer O Boi Universal com o seu lindo guarnicer Toada Boi Universal Cecel

Os registros mais antigos retratando a estreita relao do homem com a famlia dos bovdeos remontam Pr-histria. Do Paleoltico, no interior da gruta de Lascaux, na Frana, foram encontrados desenhos de bizontes e cavalos, entre outros animais desse perodo, que sugerem a proximidade do homem com essas espcies. Do mesmo modo, em perodo posterior, na Idade do Bronze, gravuras rupestres mostram os bovinos como animais de tiro. (Souza, 1958). Seguindo uma perspectiva histrica, na Antigidade Oriental e Clssica h referncias relao da espcie Bos Taurus com os egpcios, assrios, hindus, gregos e romanos. Nesses casos, uma avaliao mais cuidadosa da relao homem/animal aponta para um universo no qual as representaes simblicas ganham grande importncia. O culto ao Boi pis, no Egito, bastante exemplar. Tido como animal sagrado para aquele povo, o boi cultuado guardava uma relao totmica com os egpcios como demonstra Arthur Ramos (1988:253), amparado nas teorias freudianas sobre a imago paterna, ao afirmar que a palavra pis, deriva de ap, apis, que significa alto, elevado, com o sentido de pae [sic], chefe e mestre nas lnguas orientais. A civilizao oriental indiana e as civilizaes ocidentais da Grcia e de Roma atestam a importncia simblica do boi. Na ndia o boi considerado, entre os rias, o primeiro animal criado pelos deuses (Souza, 1958:49) e os antigos povos gregos e romanos vinculavam a espcie Bos Taurus s divindades, seja como parte de sua mitologia; seja como animal de sacrifcio. A espcie aparece nas histrias dos deuses Zeus/Jpiter, que se transforma em touro para raptar Europa; de Hera/Juno, transmutada em vaca durante a guerra dos deuses contra os gigantes; e da princesa argiva Io, tambm mudada em vaca, por Zeus/Jpiter, para proteg-la da fria de Hera/Juno. Para alm dos disfarces dos deuses, o Bos Taurus est associado a dois dos dez trabalhos do heri tebano Hrcules, a quem foram dadas as tarefas de apoderar-se dos bois de Gerion e domar o touro da Ilha de Creta enviado por Posseidon/Netuno contra o rei Minos. O vnculo do rei com o deus

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Posseidon/Netuno registrado em mais duas passagens da mitologia. Na primeira, Minos pede aos deuses um sinal de sua aprovao na disputa da coroa com seus irmos, tendo, por obra de Posseidon/Netuno, sado do mar um touro branco. A segunda narra que o rei tinha por costume sacrificar anualmente ao deus do mar, das ilhas e das ribeiras o seu touro mais belo e, tendo, certa vez, imolado um menos valioso para poupar o mais bonito que j encontrara, fora castigado por Posseidon/Netuno, que provocou na rainha Parsifae uma grande paixo pelo touro preservado8. Da relao da rainha com o touro surgiu a lenda do Minotauro. (Commelin, s/d:238-239). A acentuada presena do touro/boi na mitologia greco-romana justifica os rituais em que esses povos sacrificavam touros aos deuses Zeus/Jpiter e Ares/Marte; e bois s deusas Atena/Minerva e Artemis/Diana. O animal sacrificado a Zeus/Jpiter tinha a peculiaridade de ser branco com os cornos dourados. Em Atenas, durante as Panatenias, as tribos da tica imolavam um boi cuja carne era em seguida distribuda ao povo pelos sacrificadores. (Commelin, s/d:39) Na arte associada mitologia, tem-se a dimenso da importncia simblica que o touro tinha para as civilizaes clssicas com a representao dos deuses vinculada a esse animal. Bois e touros foram esculpidos com a esttua de Artemis/Diana em Efeso; em outros lugares a deusa era representada com trs cabeas, podendo ser a terceira de um touro. Dionsio/Baco geralmente era representado com cornos, smbolo de fora e poder, ou com um chifre em forma de taa em uma das mos. Nos monumentos mais antigos tem cabea de touro. Posseidon/Netuno tambm representado como um touro nos seus amores com a filha de Eolo. (Commelin, s/d:113) Mas no campo simblico a presena da espcie Bos Taurus no est registrada apenas nos mitos dos povos gregos e romanos. O sacrifico de um novilho citado na Bblia sagrada, fundamento das religies judaica e crists, no livro xodo, captulo 29, versculos 10 a 14, do Antigo Testamento, sob o ttulo O sacrifcio e as cerimnias da consagrao. Essa passagem bblica traz detalhes do ritual de imolao do animal para que Aro e seus filhos fossem consagrados. O ritual envolvia o sacrifcio do novilho, a utilizao de seu sangue para a uno do altar e a queima da gordura, fgado e rins sobre o altar e da carne, pele e excrementos fora desse espao sagrado. O mesmo Aro protagoniza, ainda no xodo, outra histria envolvendo a imagem de um bezerro feito de ouro para ser adorado pelos filhos de Israel. Os exemplos do valor atribudo espcie se multiplicam pelo mundo. Nas naes modernas, a relao com o boi, antes totmica, mstica, sagrada, ganha nova configurao por agregar aos elementos da religiosidade um sentido festivo. Esse movimento de afastamento da motivao primeira dos rituais ligados ao Bos Taurus no os destituiu totalmente de seu significado, mas apenas tornou mais complexa essa relao. Deve-se destacar a presena do boi em rituais cristos com o boi-de-So Marcos (25 de abril), levado a templos, assistindo a missas perto do altar-mor, acompanhado pelos fiis numa devoo indiscutvel. (Cascudo, s/d:193). Aqui no se tratava de um culto catlico ao boi, mas de uma estratgia para atrair a populao laica s igrejas num claro reconhecimento do papel que o boi desempenhava no

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Uma segunda verso atribui a Afrodite/Vnus, por ato de vingana, a paixo de Parsifae pelo touro que Posseidon/Netuno fizera sair do mar.

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imaginrio daquela gente e que nos remete s formas ritualsticas de celebrar o boi em templos religiosos, ainda que sem o sentido original. Nos estados modernos europeus, de algum modo as celebraes ao boi sobreviveram, sobretudo entre os povos de origem latina, com as festividades do Boeuf Gras, na Frana; e os touros fingidos, na Espanha e em Portugal. Fora da Europa, h registros, no continente africano, de um culto agrrio de negros angolanos em Mossmedes, no litoral do Atlntico Sul, que tem o boi como elemento principal, o On-dye Lwa, ritual de saimento do Boi Sagrado, conforme informa Cascudo (s/d:193). Carneiro tambm se refere cultura bantu de Angola associada ao boi citando relato de Nogueira acerca de homenagens prestadas ao boi Geroa, boi malhado (preto e branco) que significa a paz e a abundncia da terra e que passeia em triunfo pelas ruas da aldeia, nos meses de julho e agosto, que so para eles o fim do ano por ser o fim das colheitas. O mesmo autor ressalta a grande afeio que o povo Ba-Nhaneca nutre pelo boi. Cada Mu-Nhaneca, ao longo de sua vida cria um boi cuja pele lhe servir de mortalha. (Nogueira, apud Carneiro, 1981:225). Ainda na frica, mais ao Norte do litoral atlntico ocidental, o culto ao boi citado por Cascudo (1984:423-424) ao mencionar a experincia de Geoffrey Gorer, em Hevioss, que testemunhou o sacrifcio de um touro em cerimnia constituda de procisses, cantos e danas. O culto ao boi pode ser identificado de duas formas com dissemelhanas muito sutis: culto ao animal vivo, objeto de adorao, considerado a prpria divindade, ainda que por meio de incorporao; e culto ao animal metaforicamente associado s divindades, que, simbolizando o deus, sacrificado numa espcie de teofagia ritual - comunho sagrada com o deus que transfere sua fora e poder queles que participam do ritual. As diversificadas maneiras de celebrar o boi, identificadas em vrias partes do mundo, atestam ter esse animal papel preponderante nas representaes socioculturais de povos do Mundo Antigo. possvel que, a partir de seu carter utilitrio - boi trabalho/boi alimento/boi fertilizante/boi reprodutor, esse animal tenha sido elevado, por um processo de atribuio de valores simblicos, ao status de cone sagrado - boi totem/boi mito/boi divindade. Num terceiro momento, enriquecido com elementos profanos, o boi ganhou um carter festivo, sem renncia de seu carter religioso, tornando-se o boi celebrao.

Origem e recriao: notas sobre a origem do Bumba-meu-boi no Brasil

Localizar no tempo a gnese das manifestaes culturais ligadas s brincadeiras que tm o boi como centro gravitacional no Brasil no tarefa fcil. Muitos autores se lanaram nessa to complexa aventura sem que se tenha chegado a um consenso sobre a origem, o perodo e os atores responsveis pela chegada das festas do boi em terras brasileiras. Detiveram-se sobre o assunto folcloristas, etnlogos e antroplogos como Celso de Magalhes, Silvio Romero, Nina Rodrigues, Mrio de Andrade, Renato Almeida, Cmara Cascudo, Arthur Ramos, Edison Carneiro e Amadeu Amaral.

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Na segunda metade do Sculo XIX surgiram as primeiras preocupaes em identificar a origem das expresses culturais populares com Celso de Magalhes e Silvio Romero, que afirmavam ser de procedncia portuguesa o repertrio narrativo brasileiro. Essas reflexes tangem diretamente o Bumba-meu-boi, considerado como uma dessas formas narrativas. Na contramo desses autores, Nina Rodrigues, precursor dos estudos de negros no Brasil, sustenta serem povos totmicos os africanos trazidos para c e, apoiado nessa tese, afirma serem as festas populares e o folclore sobrevivncias totmicas do velho continente, destacando os povos bantus e sudaneses como representantes dessa prtica. Do Sculo XIX tambm datam os primeiros registros sobre o folguedo no Brasil, publicados em peridicos do Maranho, Pernambuco e Par. No Sculo XX, a busca das razes do Bumba-meu-boi ganha destaque no meio intelectual com o amadurecimento das discusses no bojo da tentativa de criao e consolidao de um campo terico sobre os estudos de folclore no Brasil. No perodo compreendido entre as dcadas de 30 e 50, proliferaram as verses acerca da forma como o Bumba-meu-boi surgiu no Brasil, considerando as origens ibrica, africana e autctone. Os autores que crem ser o Bumba-meu-boi proveniente da Pennsula Ibrica admitem a fuso de elementos nativos que enriqueceram o folguedo de origem lusitana. Da primeira hiptese, o principal defensor foi Mrio de Andrade para quem o Bumba-meuboi procedente de Portugal e que, assim como a poesia popular e os demais autos e danas dramticas, da forma como se apresentam no Brasil, foram constitudos integralmente aqui (...), ordenados semi-eruditamente nos fins do XVIII, ou princpios do sculo seguinte. (Andrade apud Cascudo, 1984:41). Sobre o Bumba-meu-boi, especificamente, o representante do movimento modernista Pau-Brasil reitera a origem ibrica e europia do folguedo que, segundo ele, coincide com festas mgicas afro-negras, tendo se transformado na mais complexa, estranha, original de todas as nossas danas dramticas. Mrio de Andrade destaca, ainda, o carter de revista do Bumba-meu-boi com a constante dramatizao da morte e ressurreio do boi em episdios recriados a cada ciclo. (Andrade apud Leite, 2003:130-131) Os pensadores Renato de Almeida e Cmara Cascudo entendem que o Bumba-meu-boi uma fuso de elementos de origem portuguesa e nativos e/ou indgenas. Renato de Almeida defende que as danas dramticas brasileiras tm razes lusitanas e foram reinventadas no Brasil com a combinao de aspectos das culturas dos indgenas e dos negros e Cmara Cascudo sugere que tudo comeou com o boi de canastra portugus: (...) A movimentao ginstica do boi-de-canastra trouxe o vaqueiro e o auto se criou pela aglutinao incessante de outros bailados de menor densidade na apreciao coletiva. (Cascudo, s/d:195). O folclorista informa, ainda, que nesse processo de reinveno no Brasil, convergiram para o auto, personagens do cotidiano do meio pastoril - gente comum do mundo rural, figuras fantasmagricas que habitam o imaginrio popular e animais. No perodo compreendido entre 1920 e 1940 o negro passou a ser objeto de investigao cientfica como expresso de cultura. Nesse contexto, Arthur Ramos surge como o mais legtimo autor identificado com essa fase de estudos sobre o negro, que reconhece a contribuio desse povo para a cultura brasileira como um elemento construtor de nossa nacionalidade. (Pereira, 1981:196-198).

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Alinhado a essa tendncia de explicao da realidade cultural brasileira, o antroplogo culturalista transpe para os estudos do folclore essa linha de pensamento, considerando a frica como o bero do Bumba-meu-boi. Arthur Ramos, seguindo os passos de Nina Rodrigues, explica o surgimento do Bumbameu-boi a partir do totemismo bantu. Busca legitimar sua teoria apresentando o costume bantu de realizar festas totmicas e relaciona essa tradio cultural com as festas para o boi no Brasil, para ele, inventadas por escravos dessa etnia traficados para a colnia portuguesa na Amrica e que j praticavam o totemismo no continente africano. Para o antroplogo, o totemismo africano de sobrevivencia [sic] no Brasil essencialmente de origem bantu, entre cujos povos se achava mais disseminado que entre os sudanezes [sic]. (...) (Ramos, 1988:256). O totemismo bantu teve, segundo ele, grande relevncia entre os afro-brasileiros,... principalmente o totem do boi que sobreviveu de maneira decisiva no Brasil, reforado por themas [sic] analogos [sic] do folk-lore caboclo dos vaqueiros, de influencia [sic] amerindia [sic], em certos pontos do nordeste e centro brasileiros. O totemismo do boi largamente disseminado entre varios [sic] povos bantus onde, em algumas tribus [sic], toma um aspecto francamente religioso. (Ramos, 1988:259)

Arthur Ramos enfatiza que entre os bantus, por ele categorizados como povo primitivo, o boi o animal totmico por excelncia, sendo o auto popular do bumba-meu-boi a mais representativa sobrevivncia totmica no Brasil, mesclada com elementos indgenas, porm de indiscutvel origem afrobantu. Da mesma escola de Arthur Ramos, Edison Carneiro retoma a discusso do totemismo do boi, levantando a suposio de que o testamento boi, por ele descrito em Religies Negras. Notas de etnografia religiosa. Negros Bantos. Notas de etnografia religiosa e de folclore, corresponda a um repasto totmico e justifica que a divinizao do boi comumente encontrada entre os povos que desenvolvem a atividade do pastoreio. Para Amadeu Amaral, est no Brasil as razes do Bumba-meu-boi, que, sendo essencialmente popular e masculino, foi criado por escravos e pessoas pobres, agregados dos engenhos e fazendas, trabalhadores rurais e de rudes ofcios nas cidades, sem participao feminina (...). (Amaral apud Cascudo, s/d:195). Ainda que os pensadores do folclore e da cultura popular no tenham localizado a gnese das danas do boi no Brasil, as variadas tentativas de explicar o seu surgimento so fonte inesgotvel de hipteses que enriquecem consideravelmente as discusses acerca dessa to complexa quanto fascinante expresso da cultura popular brasileira. A busca das origens do Bumba-meu-boi e de outras manifestaes culturais teve destaque na construo do pensamento social brasileiro, entretanto, a noo de consenso jamais esteve presente nessas interpretaes. A origem, contemporaneamente, passou a ser recriada e, mesmo que no seja remontada historicamente atualizada em prticas seculares.

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O Bumba-meu-boi do Maranho e os Bois no Brasil

Viva o folclore do Brasil E viva a cultura popular brasileira , meu So Joo o tempo da sua brincadeira Pindar e o Maranho inteiro tm orgulho De ter o melhor folclore e levantou sua bandeira Toada Cultura Brasileira Luiz Carlos - Bumba-meu-boi Engenho de Pindar Pindar-Mirim/MA

Bumba-meu-boi o termo genrico pelo qual conhecida a manifestao cultural popular brasileira que tem o boi como principal componente cnico e coreogrfico. H registros de brincadeiras de boi em todas as regies do Brasil, com as especificidades que do conformidade diferente a uma mesma expresso cultural cuja denominao pode variar de acordo com o lugar de ocorrncia. Bumbameu-boi, Boi-bumb, Boi Surubi, Boi Calemba, Boi-de-mamo, Boi Pintadinho, Boi Maiadinho, Boizinho, Boi Barroso, Boi Canrio, Boi Jaragu, Boi de Canastra, Boi de Fita, Boi Humait, Boi de Reis, Reis de Boi, Boi Ara, Boi Pitanga, Boi Espao e Boi de Jac so algumas das terminologias que a brincadeira do boi, com suas diferenas e similitudes, recebe nos mais diferentes estados do Brasil. Embora haja grande heterogeneidade na nomenclatura e na forma como so conhecidas as manifestaes do Bumba-meu-boi no Brasil, existem aspectos anlogos que sugerem terem a mesma origem, tendo as distines sido estabelecidas por um processo de adaptao histrico-geogrfica e social, quando determinados elementos foram mais valorizados em detrimento de outros. Na regio Norte, nos estados do Amap, Amazonas, Par, Rondnia e Roraima, boibumb, festejado no ciclo junino, como no Maranho, onde recebe os nomes de Bumba-meu-boi, Bumba-boi, Bumba ou simplesmente Boi. A diversidade de denominaes verificada, ainda, nos demais estados nordestinos. Em geral, nessas unidades da federao, a brincadeira , tambm, conhecida por bumba-meu-boi, porm festa do ciclo natalino. Contudo, os estudos realizados sobre o folguedo no Brasil identificam outras referncias de nomes e ciclos da brincadeira no Nordeste. Alceu Maynard, em Folclore Nacional I - Festas. Bailados. Mitos e Lendas, informa que na Paraba e em Pernambuco o folguedo conhecido como Boi Calemba e no Cear como Boi-de-reis, no Natal, e boi-de-So Joo no ciclo junino. Leite (2003:127) acrescenta o Rio Grande do Norte como rea de ocorrncia do Boi Calemba e menciona Cavalo Marinho como a dana equivalente ao bumba-meuboi no Estado da Paraba. Jos Ribeiro tambm se refere ao Boi-de-reis cearense, mas destaca que, nas cidades de Fortaleza, Quixeramobim, Crato, Acara e Sobral conhecido por Boi-Surubi. (s/d:341). No Piau, aparece nos ciclos junino e natalino, neste ltimo, como no Cear, Boi-de-reis. No Sudeste brasileiro aparece em menor escala, se comprado ao Nordeste. O folguedo est mais presente nos estados de So Paulo e Rio de Janeiro durante o carnaval com o nome de Boizinho. Em So Paulo chama-se, ainda, Boi de Jac e, no Rio de Janeiro, Boi Pintadinho. De acordo com Cscia Frade, o Boi Pintadinho ou Boizinho fluminense uma variao do bumba-meu-boi em seu estgio mais simples (...) antes presente na quase totalidade, mas que se restringiu regio Norte do Estado. (Frade, 1979:50). Nessa regio, o boi tambm figura no ciclo natalino em forma de reisado, com a mesma

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denominao nordestina: Boi-de-reis. novamente Cscia Frade quem d notcias dessa ocorrncia no Rio de Janeiro, nos municpios de So Joo da Barra e Cabo Frio. Boizinho tambm o termo pelo qual conhecido o folguedo natalino no Rio Grande do Sul. Nos estados do Paran e Santa Catarina o Boi-de-mamo a brincadeira que d vida ao artefato danante que imita a figura do boi, ambos do ciclo natalino. Assim como Cscia Frade, Doralcio Soares associa o folguedo catarinense ao bumba-meu-boi, apoiando-se na existncia da personagem Catarina. Na regio Centro-oeste, a nica referncia encontrada data do incio do Sculo XX, em Mato Grosso, nos relatos de Max Schmidt em Estudos de Etnologia Brasileira, sobre uma apresentao natalina em que um boi dana, sente-se mal e restabelecido por um mdico. (Ribeiro s/d:347) As brincadeiras de boi das regies Norte, Nordeste e Sul tm em comum relatos histricos do Sculo XIX que vo de 1829, no Maranho, a 1871, em Santa Catarina. No Estado nordestino citado em jornais e ocorrncias policiais datadas da dcada de 20 dcada de 90 daquele sculo. Em seqncia cronolgica, o Bumba-meu-boi tem seu primeiro registro publicado em pequena nota no jornal Farol Maranhense, no Maranho, em 1829; seguido do jornal O Carapuceiro, em Pernambuco, no ano de 1840; dos peridicos A Voz Paraense e O Velho Brado do Amazonas, no Par, em 1850; e dos livros Reise durch Nord-Brasilien im jahre 18599, do alemo Robert Av-Lallemant, e guas passadas, de Jos Boiteaux, com relatos de bumba-meu-boi em Manaus, em 1859, e Santa Catarina, em 1871, respectivamente. A estrutura de apresentao das manifestaes culturais relacionadas ao boi em todo o Brasil inclui um boi-artefato feito de algum tipo de madeira, conforme a regio, com chifres e cobertura de pano, animado por um miolo10 que lhe empresta movimentos, enquanto o folguedo executado com msica, dana e dramatizao. H diversidade de enredos de acordo com o local, sendo uns mais simplrios e outros assumindo maior complexidade na composio de personagens e no desenrolar da trama que gira em torno da morte e ressurreio do boi. Em alguns estados como Bahia, Cear e Maranho, feito o repartimento, a que Edison Carneiro se refere como testamento do boi. Alceu Maynard tambm faz aluso ao repartimento do boi, realizado aps o ritual de sacrifcio simblico do animal, pelo cantador, conhecido como cabeceira, que tira versos, destinando os pedaos da carne do boi aos presentes. O repartimento recebe ainda o nome de matana. Independentemente da diferena de nomenclatura dos Bois dos estados da regio Norte e do Maranho e da forma de apresentao - no Norte em festivais folclricos e no Maranho em arraiais ao ar livre, h aspectos coincidentes entre as brincadeiras de boi dessas regies. Sued Nascimento, em Boi-bumb em Porto Velho (1993:14), revela analogias entre o Bumba-meu-boi maranhense e o boibumb daquela capital amaznica, reconhecendo forte influncia dos Bois do Amazonas e do Maranho em funo dos organizadores serem imigrantes desses estados. Com o Bumba-meu-boi do Maranho o boi-bumb rondoniense se assemelha pela realizao do batismo que tem a presena dos padrinhos do Boi, com o sentido de obter a permisso

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Viagem pelo Norte Brasileiro - 1859. Ver glossrio.

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para que possa se apresentar fora de seu curral; pela ntima relao com o ciclo da vida (nascimento e morte); pelo significado religioso expresso nos rituais; pela realizao de matanas ou comdias; e pelo sistema musical centrado na batucada, com ritmo mais compassado e nas toadas, que delimitam as etapas da apresentao e do enredo. A presena dos mascarados Pai Francisco, Catirina e cazumba digna de nota no tocante similaridade do boi-bumb e do Bumba-meu-boi.

Pai Francisco do Bumba-meu-boi do Maranho

No campo musical, h diferenas marcantes nas diversificadas brincadeiras de Boi no Brasil. Alceu Maynard (s/d:407) acentua que os instrumentos membranofnicos predominam no Boibumb do Norte e no Bumba-meu-boi do Nordeste, enquanto no Sul do Pas prevalecem a sanfona, harmnica ou gaita de fole.(...) No Piau antigamente, usava-se a matraca e o apito, hoje h pandeiros, tambor, maracs e putas. O apito continuou, a matraca desapareceu. No Cear, alm da harmnica, h caixas, cavaquinhos tamborins, pandeiros e pratos. No Recife, Goina e Paulista, zabumba, canz, viola, violo, rebeca e pandeiros. Em Santa Catarina, pandeiros, gaita de fole, caixa clara, violo. No Rio Grande do Sul, unicamente sanfona. (Araujo, Alceu Maynard, s/d:407)

Mas no apenas os membranofones so largamente utilizados nos bois-bumbs e bumbas nordestinos. Os idiofones como os maracs, matracas e palmas contribuem sobremaneira para a marcao das toadas. Norte e Sul posicionam-se em extremos opostos com relao estrutura bsica do folguedo. Doralcio Soares explicita que No Nordeste, o Bumba-meu-boi tem apresentao mais dramtica. No Sul, o brasileiro, sendo menos mstico, apresenta uma brincadeira de Boi mais graciosa, com coreografia mais alegre (...). (1978:05). A citao do autor nos remete realizao de ritos de purificao e renovao na brincadeira da regio Norte e do Estado do Maranho que aproxima o boibumb amaznico do Bumba-meu-boi maranhense.

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Zabumba do Bumba-meu-boi Brilho da Unio - Central do Maranho/MA

Em Rondnia h referncias ao batismo do grupo e, no Par, so batizados os caboclos guerreiros antes que partam para prender o Pai Francisco, como relata Francisco Manoel Brando, no livro Terra Pauxi, citando um grupo de bidos, no Par. (Ribeiro, s/d:338). Da mesma forma no Maranho so batizados grupos de bumba-meu-boi e os caboclos-de-pena, responsveis pela priso do Pai Francisco. Os ritos de renovao natural ligados ao sacrifcio do boi tambm so comuns nos estados do Norte e Nordeste, onde acontece, ainda, o repartimento do boi aps sua imolao, com a distribuio da carne e do sangue, celebrando a comunho dos presentes ao ritual. Um elenco de cerca de cento e cinqenta personagens foram identificados nas mltiplas manifestaes da cultura popular brasileira que tm o Boi como elemento principal. A partir de um levantamento bibliogrfico, com dados do perodo de 1940 a 2010, foram relacionados cento e cinqenta personagens encontrados nos Bois de Rondnia, Par, Amazonas, Maranho, Piau, Cear, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Alagoas, Esprito Santo, Rio de Janeiro, So Paulo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Essas informaes retratam os folguedos em pocas diferentes e lugares distintos e sua utilidade se resume a dar um panorama geral das brincadeiras no tempo e no espao, visto que o processo natural de mudanas na cultura popular resulta, muitas vezes, em nova configurao das brincadeiras ou mesmo em seu desaparecimento. Dentre as brincadeiras de Boi identificadas, o Bumba-meu-boi pernambucano foi o que apresentou maior nmero de personagens, cerca de 44; seguido do Boi-de-mamo de Santa Catarina, com 43; Boi Calemba do Rio Grande do Norte, com 38; Bumba-meu-boi do Maranho, com 34; Boi Surubi cearense, com 29; Boizinho do Rio de Janeiro, com 19 e Boi-bumb paraense e amazonense, com 18. Figuram com o menor elenco os Boizinhos de So Paulo e Rio Grande do Sul, com 5 e 8, respectivamente; o Bumba-meu-boi da Bahia, com 9, o do Esprito Santo, com 11; o alagoano, com 14; e os de Rondnia e do Piau, com 16.

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Existem personagens exclusivas de um nico folguedo que no se repetem nos demais e outras recorrentes em vrios estados. Dessas, muitas aparecem com nomes diferentes de uma regio para outra, porm com a mesma funo. o caso da burrinha, s vezes izabelinha ou zabelinha. Em maior nmero de ocorrncia pelo Brasil h o Pai Francisco, correspondente ao Mateus em alguns estados; a Catirina que pode aparecer como Catarina; os vaqueiros; o doutor, curador ou paj, cujas atividades tm alguma correlao no auto; e o amo, que pode ser tambm o dono da fazenda e do boi.

Me Catirina Bumba-meu-boi Trono de Ouro Pao do Lumiar/MA

Conforme Leite (2003:132), as personagens ou figuras so numerosas e variadas: negros, ndios, brancos, animais, bonecos, figuras fantsticas e sobrenaturais. Enquadram-se nessa classificao como personagens humanas: amo, caboclo, Pai Francisco, Catirina, Dona Maria ou Me Maria, Pai Joo, Man Gostoso e Rapaz, entre outros. Dessa categoria pode-se destacar a subcategoria das profisses ou ocupaes: vaqueiro, boiadeiro, toureiro, padre, sacristo, sapateiro, boticrio, caador, dentista, doutor, feiticeiro, soldado, sargento, fiscal, engenheiro, marinheiro e palhao. So seres sobrenaturais o lobisomem, o fantasma, a curaganga, o curupira, a caipora e o cabea-de-fogo. Mas a inventividade no se restringe aos personagens fantsticos. A criatividade na composio das dramatizaes leva incluso de uma infinidade de bichos nos folguedos, no importa a regio. Leo, lobo, urso, ona, macaco, girafa, tigre, cobra, zebra, rinoceronte, jacar, sapo, cavalo, bode, cachorro, tartaruga, gavio, mucura, urubu, galinha, pica-pau e marimbondo so alguns exemplos da grande variedade de animais presentes no bumba-meu-boi. No Maranho, h certa liberdade na introduo de animais nas comdias do Bumba-meuboi, conhecidas como matanas, doidices ou palhaadas, em virtude da necessidade de criar diferentes histrias a cada ano. Assim, torna-se imperiosa a insero de novas personagens para dinamizar o enredo e possibilitar maior interesse do pblico.

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Bichos da comdia Bumba-meu-boi Brilho da Unio Central do Maranho/MA

Alm das personagens mais freqentes nas regies de ocorrncia das brincadeiras de boi, o Bumba-meu-boi maranhense compartilha vrios tipos com os bois-bumbs do Norte e os bumbas do Nordeste: amo, Pai Francisco ou Mateus, Catirina, cazumba, burrinha, doutor ou curador, ndios, Dona Maria ou Me Maria, caboclo-de-pena, rapaz e vaqueiros. Outros personagens presentes no folguedo natalino do Nordeste aparecem nos reisados do Maranho em municpios localizados prximos s margens do Rio Parnaba e circunvizinhanas. So os Bois-de-reis e os Caretas que saem durante o ciclo do Natal com personagens tpicos das manifestaes de bumba-meu-boi nordestinas: caretas, babau ou bate-queixo, ema, cabea-de-fogo, Jaragu e o boi. A presena do Bumba-meu-boi em terras maranhenses to intensa que h variaes da brincadeira fora do perodo junino - no carnaval e no vero, nos municpios do Litoral Ocidental Maranhense. Os Bois de carnaval utilizam instrumentos de percusso e podem reproduzir toadas intercaladas com marchas carnavalescas. Saem pelas ruas da cidade nos trs dias de Momo, com indumentria caracterstica dessa festa, sem qualquer relao com os santos juninos. Tem-se notcia de Bois de So Lus que ensaiavam ou se apresentavam durante os dias de Carnaval no final do Sculo XIX. Dois documentos atestam a presena dos Bumbas no perodo momesco. Um requerimento, datado de 1 de fevereiro de 1893, solicitava ao Chefe de Polcia licena para um Bumba-meu-boi da Rua do Gavio realizar ensaios at o ltimo dia do carnaval. Uma segunda solicitao encaminhada ao Chefe de Polcia do Maranho no final do ms de janeiro de 1890 tratava da concesso de licena para fazer dansar pelas ruas desta cidade durante os dias de carnaval a brincadeira Bumba-meu-boi e promettendo, como nos annos anteriores, guardar a melhor ordem possvel, de maneira a evitar qualquer barulho por menos que seja... Os Bois de vero so uma forma encontrada pelos brincantes de prolongar um pouco mais a brincadeira. Acontecem nos meses de setembro, outubro e novembro, de forma similar aos Bois juninos, considerando a sonoridade, os instrumentos, as personagens e a indumentria. As apresentaes so precedidas de ensaios e so realizadas em espaos destinados para esse fim. Como nos Bois feitos no perodo junino, h batismo e morte do boi. uma brincadeira espontnea na qual

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predomina o improviso e no h compromisso de realizao anual. So, em sua maioria, organizados para pagamento de promessa.

O Bumba-meu-boi maranhense articula significadosMorena corre e vem olhar de perto A brincadeira mais bonita da cidade Temos jovens e crianas, idosos na atividade Todos com seu pandeirinho, sua zabumba e seu rajado S pra fazer dessa festa a mais bonita do Estado Corre e vem ver morena, corre e vem ver A cultura maranhense que eu trouxe pra voc Toada Cultura Maranhense Diego - Bumba-meu-boi Unidos Venceremos So Lus/MA

Os estudos clssicos sobre folclore no Brasil desenvolvidos at a primeira metade do sculo XX por Mrio de Andrade, Silvio Romero, Luiz da Cmara Cascudo e Arthur Ramos j destacavam o Bumba-meu-boi como manifestao expressiva da cultura brasileira, ressaltando a renovao temtica responsvel pelo seu vigor e permanncia, seu carter de revista, sua consagrao como um poderoso elemento unanimizador dos indivduos como metfora da nacionalidade e sua definio como teatro popular nacional. No sem motivo que esses autores ressaltam a importncia do Bumba-meu-boi para a cultura nacional. As manifestaes culturais populares que tm o boi como figura principal esto presentes em vrios estados brasileiros, mas no Maranho que a brincadeira do Bumba-meu-boi ganha evidncia pela sua fora simblica, sua resistncia ao tempo e sua capacidade de reinventar-se a cada ano sem perder sua essncia. cone da cultura popular maranhense, o Bumba-meu-boi tem suas origens, provavelmente, anteriores ao sculo XIX. Ao longo de, pelo menos, dois sculos, o Bumba passou por vrias fases. De vtima de preconceito no sculo XIX, por ser considerado brincadeira de arruaceiros, essa expresso cultural desfruta, atualmente, de grande prestgio junto sociedade maranhense. A trajetria do Bumbameu-boi, a despeito da obrigao de solicitar autorizao policial para sair s ruas at os anos 60 e da ameaa de seu desaparecimento, na dcada de 70 do sculo passado, exemplar, se considerarmos que a brincadeira se manteve viva graas ao seu poder de reelaborao a partir dos elementos dados pelo contexto em que est inserida. Pode-se avaliar essa mudana de status considerando mltiplos aspectos, com destaque para a aptido que o Bumba-meu-boi sempre demonstrou para adaptar-se aos diversos contextos histricos, sociais e econmicos e para a sua constante renovao, sem perder a essncia dinmica do interesse folclrico, como bem analisou Cmara Cascudo (s/d: 195). Nesse sentido, o Bumba desenvolveu uma estratgia de sobrevivncia peculiar, resistindo s crticas e ataques da imprensa do sculo XIX, satirizando seus opressores e ridicularizando seus adversrios em seus autos e nas letras de suas toadas e, mais recentemente, utilizando-se das polticas pblicas para a cultura popular maranhense e desfrutando da estrutura econmica do poder pblico para auferir renda para sua

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manuteno como manifestao cultural sintonizada com o seu tempo, ou seja, inserida numa conjuntura em que a indstria do turismo e o mercado de bens culturais induzem os grupos a uma plasticidade cada vez mais elaborada. Por outro lado, pode-se afirmar que o carter de revista de que fala Mrio de Andrade , no Bumba-meu-boi, a transformao de elementos da realidade em alimento para a brincadeira, reatualizando-a anualmente e mantendo-a viva. As toadas, autos, comdias e performances so modos do Bumba-meu-boi comunicar sua verso dos acontecimentos da atualidade. Dessa forma, so temas recorrentes nas toadas fatos polticos em evidncia, medidas da poltica econmica, ecologia e questes sociais. Essa comunicao fator fundamental para a preservao do Bumba. Na dcada de 80, no auge da crise econmica brasileira, a inflao despertou ateno dos compositores de toadas de Bumba-meu-boi e, mais recentemente, a Copa do Mundo foi, tambm, tema de toada.A inflao em nosso pas Cada dia que passa est nos sufocando Este problema dos mais srios E isto no sabemos at quando Mas vamos todos cuidar, em nossa agricultura o ponto bsico de toda nao Vamos deixar automvel de lado E vamos fabricar mais caminho Isto sim que nos interessa Para escoar a nossa produo. Toada Inflao Francisco Naiva e Jos Rabelo - Bumba-meu-boi de Axix Axix/MA Brasil vai pra Copa do Mundo Vai mostrar pra os estrangeiros Que o futebol melhor dos nossos brasileiros Seleo de ouro Dunga o treinador Vai trazer muita alegria Pra milhes de torcedor Toada Copa do Mundo Raimundo Mendes (Dico) - Bumba-meu-boi de Panaquatira So Jos de Ribamar/MA

Trata-se, nesse caso, de um recurso que promove a interlocuo com a sociedade, seja atravs das cenas dos autos e comdias; seja nas letras das toadas cantadas em versos rimados. A constante recriao do Bumba-meu-boi tem como principal elemento o fato de se constituir numa revista de seu tempo na qual os temas so abordados em letras de rara beleza, rimadas com elegncia e apresentadas nos arraiais e outros espaos pblicos como parte de um produto: o complexo cultural do Bumba-meu-boi do Maranho.

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Uma referncia cultural marcada pela diversidade

No Maranho, o Bumba-meu-boi uma referncia cultural presente em todo o Estado, com variaes regionais. Um levantamento realizado pela Superintendncia do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional o Maranho identificou 450 grupos de Bumba-meu-boi em 70 dos 217 municpios maranhenses. Apesar de no refletir a realidade global do Estado, os dados obtidos demonstram a importncia dessa expresso cultural e a intensidade com que vivida pelos maranhenses. Assim, variedade de estilos foge categorizao feita por pesquisadores do Bumba-meuboi do Maranho que convencionou uma diviso dos grupos em cinco sotaques: Ilha, Guimares, Baixada, Cururupu e orquestra. Embora a classificao em sotaques seja til para o direcionamento de estudos e pesquisas e para a execuo de aes dos poderes pbicos estadual e municipal no campo da cultura popular relativas ao Bumba-meu-boi, uma incurso pelos municpios do Maranho demonstra que ela no abarca a diversidade dessa manifestao cultural popular maranhense. Nas diversas regies do Estado encontram-se formas distintas de expresso do Bumba-meu-boi, respondendo s necessidades inerentes a cada local com a utilizao de recursos disponveis nos seus respectivos municpios, dando diferentes configuraes a uma mesma brincadeira. Na Baixada Ocidental Maranhense, ao ritmo de grandes tambores denominados de marcaes, o Bumba-meu-boi ganha uma sonoridade distinta daquela que caracteriza os grupos do sotaque da Baixada sediados na Capital. Na regio dos Cocais, no Leste do Estado, os grupos utilizam bombos octavados; no Baixo Parnaba, usam palmas de madeira e bzios; no Mdio Mearim h grupos que se auto-classificam como do sotaque de zabumba, mas que em nada lembram os grupos desse sotaque radicados em So Lus. Ali os maracs so substitudos por cujubas e as zabumbas, feitas de tonis cobertos de couro, so tocadas com uma baqueta.

Cujubas e zabumbas do Bumba-meu-boi Reis da Luta - Alto Alegre do Maranho/MA

Os exemplos so mltiplos e servem para reafirmar a capacidade de reinveno do Bumbameu-boi no s no tempo como uma estratgia de sobrevivncia, mas tambm no espao sociocultural onde se insere valendo-se dos recursos que lhes so dados.

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As representaes simblicas no Bumba-meu-boi do Maranho

Eu brinco Boi por promessa. Enquanto eu puder... Uma promessa que eu fiz. Em 75... Eu tenho um problema nesse p. A eu vi um mdico dizer pra minha irm que eu no ia ficar bom. E eu disse pra So Joo: se eu ficasse bom, brincava Boi enquanto eu pudesse. Isso que me leva... At falei que no gosto de falar essa coisa, fico meio... Mas tem que falar, n? O mdico: eu ia morrer. Ih! rapaz eu vou morrer mesmo, rapaz. Digo: rapaz, no. So Joo no deixa eu morrer. Ento com isso eu tenho essa f. So Joo pra mim tudo. Se eu no tiver dinheiro, ele me d amanh, se eu tiver meio doente eu no vou quase em mdico, So Joo me cura... (Depoimento de Felipe Fonseca, amo da Turma de So Joo Batista)

No Bumba-meu-boi do Maranho o ldico e o religioso esto profundamente associados. Como uma grande celebrao do ciclo da vida, o Bumba-meu-boi sintetiza, em seus rituais, um universo mstico-religioso possuidor de uma multiplicidade de significados, sendo a crena e a devoo a So Joo o centro desse universo para o qual convergem outras prticas mgico-religiosas portadoras de um amplo repertrio simblico.

Imagem de So Joo ao p do mouro no ritual de morte do Bumba-meu-boi do Bairro de Ftima - So Lus/MA

O boi dado ao santo como pagamento de promessa, mas pode tambm ser devotado a entidades espirituais cultuadas em terreiros de Tambor de Mina11 na Capital e no interior do Estado, obedecendo a determinaes e desejos de encantados12, em cumprimento a obrigaes devidas pelos pais e filhos de santo a essas entidades espirituais. (INRC do Complexo Cultural do Bumba-meu-boi do Maranho, 2004:08-09) H regies do Maranho onde o Bumba-meu-boi est inserido no que Jos de Sousa Martins denominou de uma cultura funerria. Nesses locais, os grupos realizam visitas de cova em cemitrios, fazendo saudao e homenagens aos mortos, resgatando uma relao com a morte h muito tempo perdida pelo homem dos centros urbanos.11

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Culto de origem africana praticado no Maranho em cujos rituais so recebidas divindades africanas (terreiros de Mina Jeje) e/ou entidades espirituais encantadas. Entidades espirituais encantadas recebidas em terreiros de Tambor de Mina no Maranho, tambm denominadas invisveis. Podem ser classificadas como gentis, gentilheiros, caboclos, ndios e selvagens e meninas. (FERRETTI, 2000:74)

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Esse complexo arranjo que vincula sentimentos religiosos enraizados a gozos e excessos mundanos apresenta o Bumba-meu-boi como uma prtica onde o ldico pode ser vivenciado, tambm, a partir da formao de grupos modestos, cujo elemento gerador - o boi-brinquedo, pode ser feito de cofo13, de pano, de paneiro ou de palha, ou seja, improvisado com a exclusiva inteno de proporcionar ocasies de entretenimento e diverso, uma oportunidade de promover a confraternizao e o lazer, encontrar parentes, amigos e vizinhos, danar, cantar, comer, beber e se divertir.

Arte-festa e religio

Brincante demonstra devoo diante da imagem de So Joo no ritual de morte do Bumba-meu-boi do Bairro de Ftima - So Lus/MA

O batismo do boi o nascimento, quando o boi-artefato ganha vida e sai da casa para animar os boieiros14 e simpatizantes da brincadeira durante o perodo junino. Os padrinhos, diante do altar e com a imagem de So Joo, um copo de gua benta, um ramo de vassourinha15 e vela acesa nas mos, sacralizam o animal. A partir desse momento, sob as bnos de So Joo, o grupo est imune a toda sorte de infortnios. A sada do altar do santo para a rua, aps o batismo, corresponde ao despertar de um longo perodo de encantamento em que o boi-artefato se encontrava, sob proteo do santo.

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Cf. Cofo, tramas e segredos. So Lus: Comisso Maranhense de Folclore, 2009. uma espcie de cesto feito de fibra vegetal tranada, confeccionado artesanalmente para usos diversificados, muito utilizado na zona rural do Maranho para armazenar alimentos, como pescado, frutas e farinha, dentre outros, e como embalagem para o transporte da criao mida (aves criadas em galinheiros e quintais: galinhas, patos, perus, etc.). O cofo recebe variadas denominaes, conforme o tipo e a utilizao: balaio, urupi, de linha, paracafu, de segredo, ladro, quatro olhos, de alqueire. Pode ser feito de palha da palmeira de babau, anaj, caran, ariri, pupunha, carnaba e tucum. 14 Ver glossrio. 15 Tipo de erva nativa ramificada.

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Para se apresentar em pblico, o boi luxuosamente preparado. Se nas demais manifestaes da brincadeira do boi no Brasil o boi-boneco se apresenta de forma simples, coberto de pano pintado ou estampado, no Maranho coberto de veludo bordado com dedicao - o couro do boi. Com miangas, canutilhos e lantejoulas, o couro apresenta e representa o universo simblico do Bumba. Lindos desenhos multicoloridos, de uma riqueza que s pode ser mensurada pela devoo ao santo protetor da brincadeira, retratam temas diversos como a religiosidade catlica e de matriz africana dos maranhenses e homenagens a personalidades da vida poltica e cultural locais, dentre outros temas. Aps o perodo das brincadas em que So Joo permite aos seus fiis desfrutarem das alegrias que o boi pode lhes proporcionar nas noites juninas, uma grande festa celebra o ritual da morte do boi, encerrando o ciclo festivo para a tristeza dos boieiros, brincantes e simpatizantes da brincadeira. Esse rito marca a volta do boi para a casa por ordem de So Joo, que, pedindo o sacrifcio do animal, resgata-o para junto de si, conforme evidenciam as toadas do ritual de morte do boi.Te despede boi Que tu vai morrer So Joo determinou Nada eu posso fazer Chega no p do altar Pe o joelho no cho Se despede de So Pedro So Maral e So Joo Te despede do terreiro Que no ano tu brincou Te despede do vaqueiro E tambm do cantador Humberto Mendes - Bumba-meu-boi de Maracan So Lus/MA

Posicionado em frente ao altar do santo, o boi retorna para um perodo de hibernao/encantamento at que chegue o tempo da boiada, no ano seguinte, e seu santo protetor permita que volte para a rua. No Bumba-meu-boi do Maranho, o sacrifcio do boi e a distribuio da carne e do sangue, no ritual da morte, ganham significado especial. O sacrifcio oferecido a So Joo, que pede seu boi de volta. carne16 e ao sangue so atribudos valores pelos participantes do ritual. Quando h o repartimento, a carne do boi sacralizado pelo batismo e consagrado pela imolao , muitas vezes, utilizada no preparo de chs com poderes teraputicos. O ritual de morte do Bumba-meu-boi maranhense remete s idias de Arthur Ramos sobre o totemismo do boi, o repasto totmico e a identificao daqueles que participam do ritual com o animaltotem pela sua absoro.

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A carne pode ser os pedaos da madeira da qual a carcaa do boi feita ou a palha que serve de recheio da carcaa do boi.

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O comer e beber em commum [sic] exprimia um symbolo [sic] do dever da communidade [sic] com relao ao seu deus. Tambm o que acontece no repasto totemico [sic] em que o animal-totem morto e chorado em meio a uma grande festa. Estas lamentaes so ditadas por um temor de castigo e para subtrahir [sic] o clan a toda responsabilidade do crime commetido, [sic] o que foi observado por Robertson Smith, independente da psychanalyse [sic]. O luto seguido de uma grande alegria festiva, em que todos os excessos so permitidos: que os membros do clan, depois de comerem o animal-totem, reforam a sua identidade com o mesmo. (RAMOS, 1988:254)

O sangue oferecido a todos aqueles que participam da cerimnia, numa comunho com o grupo e com o santo, celebrando o ciclo vital.

simbolizado pelo vinho tinto, como na eucaristia catlica, mas no o sangue de Cristo e sim do boi de So Joo. Para alm da comunho, representa a aliana com o grupo e com todo o sistema mstico-religioso que o envolve,

constitudo de crenas, f, devoo, promessas, sacrifcios, rituais, santos, voduns17 e encantados. Como parte desse sistema, uma complexa associao de santo/vodum/encantado, configurada numa espcie de sincretismo catlico-jeje-nag, explica o oferecimento de Bois a essas divindades e entidades espirituais. No dia 29 de junho, os grupos de Bumba-meu-boi sadam So Pedro em sua Capela, em So Lus, tocando, cantando e danando em frente ao andor do santo. Nessa ocasio, muitos brincantes recebem encantados no interior daquele templo religioso. Miolos de boi pagam promessa/obrigao diante do altar do santo com oraes e dana. H aqueles que, penitencialmente, sobem, de joelhos, os 47 degraus que do acesso Capela, debaixo da carcaa do boi que, ao ser retirada diante do andor, deixa mostra as guias18 atravessadas no peito, revelando o vnculo do brincante com as divindades africanas e com o mundo da encantaria. A relao simbitica entre o Bumba-meu-boi e o mundo da encantaria atestada pela presena de entidades espirituais, sobretudo os caboclos, danando, incorporados em brincantes, nos grupos de Bumba-meu-boi; pelos Bois de terreiro, feitos no mbito das casas de culto de matriz africana, a pedido dos encantados; e nas toadas compostas pelos amos/cantadores.Estrela que me guia Eu sou tambm do Rosrio de Maria Saldo os ndios guerreiros, saldo os ndio flechador Bad e Verequete19, Ogum e Xang Rapaziada que canto com toda firmeza Parabns pro Pai Airton de Seu Folha Seca20 Ronaldinho - Bumba-meu-boi do Bairro de Ftima So Lus/MA17 18 19 20

Divindades africanas de origem Jeje cultuadas em terreiros de Tambor de Mina em So Lus. Cordo, tambm conhecido por rosrio, feito de contas cujas cores identificam a entidade protetora do pai ou filho-de-santo. Voduns do Tambor de Mina Jeje. Encantado da famlia do vodum cambinda Lgua Bogi Bu da Trindade.

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Mas a relao do Bumba com o sistema religioso afro-brasileiro no se restringe participao de encantados nos grupos durante o perodo de brincada. Tambm no ritual de morte de alguns grupos explcita a ligao da brincadeira com as divindades africanas conforme atesta a toada abaixo:O meu boi est laado So Joo foi quem mandou Porque esse touro negro Tambm filho de Xang Toada do ritual de morte do Boi Ronaldinho - Bumba-meu-boi do Bairro de Ftima So Lus/MA

A toada do Bumba-meu-boi do Bairro de Ftima traz tona um complexo processo de associao que estabelece ligaes entre os santos catlicos e as divindades africanas. Nos terreiros de Tambor de Mina So Joo corresponde a Xang menino. O boi de So Joo. Contudo, , tambm, oferecido para Xang, orix Nag que equivale a Bad Quevioss, vodum que abre todos os terreiros de Tambor de Mina no Maranho, cuja festa de obrigao, na Casa das Minas Jeje, realizada no dia de So Pedro, santo de adorao daquele vodum. (Ferretti, 1996:123). Talvez esse dado explique o transe dos brincantes de Bumba-meu-boi em frente ao andor do santo, no dia 29 de junho. Fundado no trip arte-festa-religio, o Bumba-meu-boi, pelo seu carter plural, , paradoxalmente, a sntese de elementos da identidade maranhense, de seu ethos, de sua viso de mundo. Todo esse conjunto resulta num produto que revela a alma desse povo. O sentido da obrigao para com as entidades espirituais do Tambor de Mina vivenciado com respeito e a f e a devoo a So Joo, santo a quem dedicada a brincadeira, professada de forma descontrada, numa alegre associao de festa e religio.

O Bumba-meu-boi como elemento da identidade maranhense

O Bumba-meu-boi se faz presente no meio social maranhense como um componente estrutural de coeso, reafirmando constantemente os elementos da identidade cultural desse povo. Laos de solidariedade so estabelecidos entre aqueles que fazem o Bumba-meu-boi acontecer: pela f nos santos juninos; pelo compartilhamento de um mesmo espao sociocultural; pelo tempo que ficam juntos e pela cumplicidade no desempenho das tarefas de preparao do boi; pela dedicao ao grupo; e pelo compromisso assumido na produo da brincadeira, criando um sentimento de pertena intragrupal. Internamente, grande nmero de pessoas est envolvido na produo do Bumba-meu-boi, da realizao dos treinos que precedem os primeiros ensaios e confeco e reparos de indumentrias e instrumentos, at a morte do boi. Em contrapartida, aqueles que no participam diretamente da brincadeira tambm experimentam um pertencimento aos grupos por um sentimento coletivo de ligao com os estilos de Bumba-meu-boi e, dentro destes, com grupos especficos, como se pertencessem a um mesmo cl. Dessa forma, externamente, os batalhes so reforados pelo apoio dos simpatizantes, que assumem

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suas preferncias tecidas por motivaes e argumentos construdos a partir da identificao com suas razes tnicas ou, em geral, pelo maior ou menor compromisso do grupo com o tradicional no Bumbameu-boi.

Pandeireiro de Bumba-meu-boi da Ilha

Nesse aspecto, os bois do sotaque da Ilha se destacam pelo antagonismo entre os batalhes, evidenciado pelos seus brincantes e simpatizantes, cuja devoo quase religiosa ao grupo de predileo se reflete no nmero de boieiros, sempre varivel, que cada boi de matraca pode levar para os arraiais e demais locais onde brinca. Assim, o nmero de matraqueiros de um Boi da Ilha ser sempre proporcional ao nmero de simpatizantes com ou sem ligao formal com o grupo, motivados pela identidade que cria vnculos recprocos estabelecidos com o Bumba. Deve-se ressaltar que a brincadeira registra, desde o Sculo XIX, manifestaes de violncia que, freqentemente, resultavam em contendas generalizadas. Atualmente, percebe-se uma agressividade latente externada nos versos das chamadas toadas de pique, tpicas dos Bois de matraca, trocadas por brincantes de grupos rivais, nas quais so transmitidas mensagens subliminares ou explcitas de provocao e desafio num campo em que a arena de luta simblica entre os contrrios21 a msica e a literatura e as armas so o poder criativo e a capacidade de formular belas toadas, como uma forma de extravasar mpetos violentos, ainda que sublimados. Pelo conflito, os grupos fortalecem o seu esprito de corpo e reforam sua identidade.

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Ver glossrio.

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Quando eu olhei pro cu Lembrei do meu santo protetor L em cima eu vi so Jorge guerreiro Com sua espada em p de guerra Eu tambm formei meu batalho Com meus ndios guerreiros aqui na terra Minha arma o meu marac Que faz contrrio esmorecer O meu canto meu grito de alerta Pra meu povo guarnicer Toada Guarnic Neto - Bumba-meu-boi Stio do Apicum (1998) So Jos de Ribamar/MA

A identidade entre os que fazem o Bumba-meu-boi e aqueles que se sentem parte dele, ainda que na condio de meros espectadores, cria um universo singular no qual o Bumba se configura como uma manifestao cultural popular de uma fora expressiva presente no s no cotidiano de quem vive no Maranho, mas que ultrapassa os limites do Estado, inspirando a criao de grupos por maranhenses radicados em So Paulo, Rio de Janeiro e Braslia, que reinventaram o Bumba-meu-boi a partir das referncias culturais levadas de sua terra natal. Atravs da brincadeira, os grupos criam laos de solidariedade numa terra estranha e revivem, a cada brincada, sua cultura, sntese de sua viso de mundo, expressa numa mistura de lazer, compromisso, festas, ritos, performances, crenas e devoo. Essa integrao de dentro do grupo e deste para fora de si , muitas vezes, explicitada pelos prprios grupos, reforando interna e externamente os vnculos do Boi com os micro e macro universos que lhes do sustentao.Quando olho o meu batalho formado E a emoo contagiando o meu povo Na avenida principal do Ribamar22 Pai da Malhada23 vai comandar de novo Embalado pela linda trupiada Que s ribramarense sabe fazer A multido tomando conta de lado a lado No deixa espao pra contrrio aparecer Sou da terra santa Pai da Malhada minha maior paixo Eu fico todo arrepiado, bato no peito e canto Sou Ribamar de corao Toada Pai da Malhada Galvo - Bumba-meu-boi de Ribamar So Jos de Ribamar/MA

Integrados nesse patrimnio cultural que o Bumba-meu-boi, diversos componentes colocam em evidncia a cultura popular maranhense no que se refere religiosidade popular catlica; religiosidade afro-maranhense; dana, com os passos cadenciados e ritmados dos brincantes; ao teatro popular, com os autos e comdias; inventividade dos brincantes, com os grupos que promovem uma releitura do Bumba-meu-boi tradicional; e msica, na voz melodiosa dos amos ou cantadores e no dom dos compositores populares, cujo talento se traduz em belas toadas.

22 23

Municpio de So Jos de Ribamar, localizado na Ilha de So Lus. Ver glossrio.

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O

artesanato

do

Bumba-meu-boi,

com

a

fabricao da carcaa do Boi e de instrumentos musicais e com a confeco do bordado do couro do Boi e da indumentria dos brincantes com canutilhos e miangas - que preenchem criativos desenhos transformados em obras de arte de rara beleza - expe um mosaico de significados compartilhados por quem participa da brincadeira, seja como brincante, seja como espectador. O decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, que instituiu o registro de bens culturais de natureza imaterial, estabelece que a inscrio num dos livros de registro ter sempre como referncia a continuidade histrica do bem e sua relevncia nacional para a memria, a identidade e a formao da sociedade brasileira. O Bumba-meu-boi do Maranho tem demonstrado, ao longo de dois sculos, sua capacidade para permanecer vivo, atravs de um processo contnuo de reelaborao, cuja matria-prima tem sido um saber prprio, alicerado num conjunto de elementos que envolve um sistema de crenas, onde se associam mitos, lendas, universo mstico-religioso catlico e onrico e religiosidade afromaranhense. Assim, o Bumba-meu-boi, identificado pelos maranhenses como a mais rica manifestao da cultura popular do Estado, apresenta uma diversidade que rene vrias formas de expresso artstica e se mostra como um bem cultural portador de um conhecimento tradicional constantemente reelaborado que reflete, em suas mais variadas formas de acontecer, no s a alma dos maranhenses, mas tambm dos brasileiros, pela alegria e devoo com que vivenciado durante todo o ciclo da brincadeira. De manifestao cultural de negros e mulatos oprimidos pelas elites do sculo XIX a manifestao emblemtica da cultura popular maranhense, o Bumba-meu-boi traz em seu percurso o retrato da histria social, poltica e econmica brasileira. Foi marcado pelo preconceito dos anos oitocentos, que restringia o espao onde poderia brincar; pela obrigao de pedir licena polcia para sair s ruas at os anos 60; e pela mudana de papel consolidada na dcada de 80, quando comea a se inserir num mercado de bens culturais que tenta transformar o Bumba em mercadoria para ser consumida, preferencialmente, por turistas, o que j motivou crtica do Bumba-meu-boi a ele prprio conforme toada abaixo.

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Sistema capitalista Entrou de vez na boiada Boieiro que boieiro Tem que pagar na entrada No adianta ter pandeiro e matraca Quem tem dinheiro entra Liso no est com nada Fica na porta At alta madrugada Quando eles vm liberam a rapaziada Devagar com o andor Que santo de barro Respeita a tradio Deixa de ver cifro por isso que a zabumba faz tremer at o cho Vou reunir A turma de ouro Estou reunindo a turma de ouro O sotaque de zabumba sempre foi um tesouro Toada Eu vou reunir Nlio - Bumba-meu-boi Unidos Venceremos (2007) So Lus/MA

A crtica do amo do Boi Unidos Venceremos insero do Bumba no mercado de bens culturais deixa explcito que a afirmao identitria atravs da identificao com a brincadeira do Bumbameu-boi marcada por contestaes simblicas, de modo que essa incluso no deve ser vista como absoluta, no sentido de uma aderncia. Mesmo sem questionamento formal do ponto de vista poltico, h resistncia aos elementos tpicos do mercado que opem tradio a dinheiro. O Brasil um pas multicultural caracterizado por um conjunto de identidades resultantes de sua formao scio-cultural e o Bumba-meu-boi maranhense, pelo seu carter plural, um retrato da identidade brasileira. A riqueza e a dimenso dessa manifestao evidenciadora da forma de ver e viver a cultura popular pelos maranhenses avaliza a valorizao do que pode ser considerado o Complexo Cultural Bumba-meu-boi do Maranho, cujo valor simblico reside no seu conjunto: dana, msica, poesia, teatro, cenrios, instrumentos, indumentria e papis a serem desempenhados, atravs de um processo de trocas interculturais de traos de origens africana e indgena com elementos trazidos pelos europeus, sem desconsiderar a influncia de outros povos. No caso do Bumba-meu-boi, a nfase recai no poder de mobilizao social dessa brincadeira que, ao reforar laos de solidariedade entre os seus representantes, refora, tambm, uma visibilidade pblica desses brincantes e, conseqentemente, sua identidade, seu modo diferente de ser e crer. Considerando que o valor simblico de um bem cultural construdo socialmente, justificase o reconhecimento do Bumba-meu-boi como Patrimnio Cultural do Brasil, cuja multiplicidade de significados, expressa em seus mais diversos aspectos e variaes, merece ser compartilhada pela sociedade brasileira.

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Captulo 2 - Panorama histrico do Bumba-meu-boi no Maranho

Revisitando o Bumba-meu-boi do Sculo XIXEm 1850 Veja s o que aconteceu Em junho do mesmo ano O Boi do Iguaba nasceu Registraram a brincadeira Na vila, hoje Pao do Lumiar Antigamente Iguaba pertencia a Ribamar J fez bodas de prata De ouro e brilhante tambm Bem diferente daqueles que festejam o que no tem Todo ano vem mantendo a tradio Alegrado o povo nas festas de So Joo A sua bandeira permanece erguida 160 anos completou o Boi do Iguaba Toada 160 anos Z Alberto - Bumba-meu-boi de Iguaba (2010) Pao do Lumiar/MA

As notcias mais antigas sobre o Bumba-meu-boi do Maranho encontradas em documentos histricos e peridicos nos levam a uma viagem ao Sculo XIX. Uma anlise desses escritos revela um contexto sociocultural permeado de preconceito e interdies s manifestaes culturais populares. No caso especfico do Bumba-meu-boi, as notcias publicadas em jornais invariavelmente se referem brincadeira como dana de negros e, no raro, so utilizados termos que sugerem serem os brincantes promotores de brigas e confuses. Nas pesquisas realizadas sobre essa expresso cultural maranhense recorrente a afirmao de ser do ano de 1861 a primeira referncia local ao Bumba, publicada em nota do jornal O Imparcial, de circulao em So Lus. Entretanto, o historiador Matthias Rhrig Assuno faz aluso a uma referncia de 1823 publicada no romance histrico A Setembrada, do escritor maranhense Clvis Dunshee de Abranches. Segundo Assuno, o romancista destaca que os ataques populares contra os portugueses e seus estabelecimentos comerciais durante a guerra de Independncia podiam, inclusive, tomar a forma de um violento bumba-meu-boi (...) (Assuno, 203:46). Ao revelar a forma como o Bumba-meu-boi se manifestava naquela ocasio, danando e cantando versos ofensivos aos portugueses numa conjuntura de confronto entre brasileiros e lusitanos, a obra reafirma uma caracterstica j presente na brincadeira no Sculo XIX: a capacidade do Bumba-meu-boi em se apropriar de fatos atuais como temas geradores de elementos para alimentar a brincadeira, inserindo-se no contexto de sua poca.O Governo prohibira os fgos e destacra foras para que os bandos tradicionaes do Bumba-meu-boi no passassem do areal do Joo Paulo. Apezar dessas ordens rigorosas, na noite de 23 de Junho [de1823], armados de perigosos busca-ps de folhas de Flandres e de carretilhas esfusiantes, grupos de rapazes, inimigos ferozes dos puas, affrontaram a soldadesca at o Largo do Carmo, onde danaram e cantaram versalhadas insultuosas contra os portuguezes, atravez de um verdadeiro combate de pedras, pranchadas e tiros de toda a especie. A casa de Francisco Coelho de Rezende, recm-construda, ficou muito damnificada e com as portas arrombadas, sendo atiradas rua numerosa e finas mercadorias. (Abranches apud Assuno, 2003:46)

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Mas se a referncia literria pode lanar dvida acerca da veracidade dos dados pela liberdade que o romancista experimenta, peculiar do processo criativo, a segunda referncia merece maior credibilidade por estar fundamentada em episdios do cotidiano relatados em publicao jornalstica. Vale ressaltar que a imprensa maranhense s foi inaugurada em 1821, com a criao do primeiro jornal da provncia - Conciliador do Maranho, como informa Frias (2001:15-16), o que justifica, portanto, a ausncia de notcias sobre o Bumba-meu-boi anteriores aos anos 20 do sculo XIX. Tambm merece destaque o trecho publicado pelo cronista Joo Domingos Pereira do Sacramento, no Semanrio Maranhense, em 1868, no qual afirma a existncia do Bumba-meu-boi h, pelo menos, duas geraes anteriores sua: (...) Que importa que nas melhores horas do somno [sic] e do socego [sic] as paredes dos aposentos estrondeassem com os gritos do boi, se todos ns tivemos a incommensuravel [sic] fortuna de ver renascido o folguedo com que tanto se divertiram nossos pais e nossos avs? (...). Maria Laura Cavalcanti assinala ser o registro mais antigo encontrado em sua pesquisa uma carta endereada ao jornal Farol Maranhense, divulgada na edio de 7 de julho de 1829, na qual feita uma pequena descrio do folguedo permeada pela indignao do leitor com o Bumba-meu-boi. A mesma carta citada por Assuno, que endossa ser essa a referncia mais antiga, em comparao s costumeiramente citadas pelos estudiosos do Bumba-meu-boi maranhense, e salienta tanto o carter marcial quanto o carter festivo e alegre da brincadeira.Sr. Redactor - Moro no Bacanga e poucas vezes venho cidade. Mas tenho um compadre que me fica visinho, que no passa festa que no venha assistir a ella. Pela de S. Joo veio elle, s para ver as correrias do Bumba-meu-boi, e na volta contou-me as seguintes novidades que por duvidar um pouco dllas, tencionei contar-lhas para me fazer o favor de dizer si so ou no verdadeiras. Disse-me o tal meu compadre, que na noite de So Joo houve muitos fogos: que andavo malocas de 40 e 50 pessoas pelas ruas armados de buscaps, todos mui alegres que a Polcia no prendeo a ninguem por quanto nenhuma desordem acontecera. Ora Sr. redator, que diro a isto os meus senhores das revolues? (....) que j no se do passaportes para o interior da provncia: que j no se prende a ningum por ler o Farol: que o cidado anda alegre, toca, dansa, tudo sombra das ballas que vem da Fortaleza". (Farol Maranhense apud Cavalcanti, 2006:18)

Do perodo compreendido entre 1829 a 1860, no foram encontradas referncias em jornais, mas, em pesquisa no exaustiva realizada em documentos do acervo do Arquivo Pblico do Estado do Maranho, foram localizadas ocorrncias policiais concernentes ao Bumba-meu-boi, sendo uma datada de 28 de junho de 1828, portanto, o documento mais antigo sobre a brincadeira, relatando a priso de um soldado acusado de agresso a brincantes do Bumba.

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Manoel Maximino Mendes, soldado Particular do Regimento da 2 Linha desta Cidade, preso as 11 / hs da noite pelos soldados da 2 Ca Manoel Goz, e Romoaldo da Costa da 1, por dar pancadas nos rapazes que estavo no divertimento do Bumba com licena da Polcia acompanhados por huma patrulha composta dos ditos soldados estando sob divertimento sossego e no querer obedecer a ordem de Priso deste Comando de Polcia que lhe foi dado pelos ditos soldados, cujo o preso hevadio e se acha nas serconstancias do Recrutamento de 1 linha. Maranho Q tel do Com. do do Corpo da Polcia no Largo do Carmo 29 de junho de 1828. Jos Demtrio de Abreu Tenente Coronel Comandante (Documento do Corpo de Polcia - Partes do Dia - em 28 de junho de 1828)

Alm de ser o registro escrito mais antigo sobre o Bumba-meu-boi maranhense, a ocorrncia policial lana outro olhar sobre os atos da polcia da poca. Apoiado em Assuno (1999a, p. 54), Barros informa que at final do Sculo XVII, os batuques - termo genrico dado, sobretudo durante o sculo XIX, s danas e cerimnias religiosas de escravos africanos e segmentos negros do campesinato no Maranho - eram tolerados. Aps a proclamao da Independncia do Brasil, em 1822, iniciaram-se as proibies dos batuques no permetro urbano das cidades aps o toque de recolher. (Barros, 2007:117) A ocorrncia policial mostra que a mesma polcia que reprimia a manifestao do Bumba assegura o direito dos brincantes. Mas o procedimento policial, ao punir o agente que tentou impedir os rapazes de brincarem o Bumba, no isenta a instituio de seu papel repressor, pois, a garantia para brincar e a proteo dada aos brincantes legitima e refora o poder coercitivo do aparato policial. Em 1839, uma segunda ocorrncia policial encontrada, tambm, no Arquivo Pblico do Estado do Maranho, expe o outro lado da ao policial e mostra os agentes da ordem cumprindo o papel a eles designado pela sociedade maranhense da poca. Uma patrulha prendera um negro acusado de dar motivo para motins pela rua. A fluidez da acusao, nesse caso, comprova o preconceito da polcia com quem participava do Bumba-meu-boi:

A stima patrulha composta dos guardas nacionais do segundo batalho prendeu s seis horas da tarde na rua de Santana o preto Fernando, escravo de Jos Maria Barreto por andar com uma armao coberta vulgarmente conhecida por bumba-meu-boi, dando assim motivo a que se reunissem grupos de pretos fazendo motim pela rua. (Documento do Corpo de Polcia - Partes do Dia - em 11 de maro de 1839)

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Do ano de 1861 tm-se, curiosamente, pr e contra, dois registros publicados em jornais sobre o Bumba-meu-boi. O primeiro, do jornal O Imparcial de 15 de junho, uma carta de um leitor que assina com o codinome Um Amigo da Civilizao, em que o Bumba rechaado e a polcia criticada pela concesso da licena para a brincadeira:Quando uma grande parte da populao se empenha por fazer desaparecer os busca-ps, por serem fatais, concede-se licena para estpido e imoral folguedo de escravos denominado bumba-meu-boi, incentivo para os busca-ps, e admira-se mais que isto acontea, quando h anos a presidncia ordenou polcia que no consentisse esse folguedo, por ser oposto boa ordem, civilizao e moral. Quando por causa do bumba-meu-boi no aparecem cacetadas e mesmo facadas, causa de uma enorme algazarra que prejudica o silencia perturbando o sossego que deve haver para o sono, sossego que cumpre polcia manter. Ns esperamos que a polcia reconsidere no passo irrefletido que cometeu, para no ser ela responsvel perante a opinio pblica, do mal que houver por causa do bumba-meu-boi. (Prado, 2007:155)

Na carta do amigo da civilizao e inimigo do Bumba-meu-boi so reiteradas as informaes fornecidas pelos registros anteriores: folguedo de escravos, ocorrncia de brigas, utilizao de busca-ps e obrigatoriedade de anuncia da polcia para que o Bumba sasse na rua. O segundo texto, uma crnica do jornal A Verdadeira Marmota, na qual o autor, que se assina Os Ss, demonstra uma paixo pelo brinquedo de negros e refora ser o Bumba-meu-boi uma brincadeira de escravos. Nele, o amante do Bumba advoga em defesa do admirvel brinquedo que ns no podemos banir e fornece muitos dados acerca do Bumba-meu-boi, citando os personagens Catharina, vaqueiros, padre, o Doutor Pisamacio, Pai Francisco e o Caboclo Real, dos quais apenas o padre e o doutor desapareceram da brincadeira nos dias atuais.Eis o bumba! Vede-o escavando o cho ao som da ria - Eh bumba: vede-o requebrando-se ante os olhares requebrados da pudibenda Catharina, que ouve as finezas dos vaqueiros que entoo o hymno - Catita! Vede-o ajoelhado ante o padre que ouve a confisso, e o prepara para bem morrer! Vede-o ante o Dr. Pisamacio que com o Pai Francisco e o Caboclo Real disputam a glria de possuir este a lingon e aquelle os mocots pertencentes ao boi do vaqueiro real! Oh! Admirvel brinquedo, luzida civilizao esta nossa! Vede os personagens do bumba, escravos arredados dos servios seos Senhores, perturbadores da tranqilidade pblica s dez horas!... Grande o santo progresso!, pasma, e admirate da marcha que levas aqui. Os antigos gregos acabaro com as suas saturnaes; os romanos com as festas a Bacho; os passados Francos com as procisses dos ms; e com a festa dos jumentos, mas ns no podemos banir o bumba. (Reis, 2001:26)

O artigo digno de cuidadosa ateno pela riqueza das informaes nele contidas. Antes que os estudiosos do folclore se ocupassem em assegurar que o Bumba-meu-boi veio da frica, o cronista j chegara a essa concluso, explicitada nesse artigo de 1861: - A frica civilizou o Brasil disse h tempos o venerando Bernardo de Vasconcelos; no sei at que ponto isto verdade; sei que esta civilizao de bumbas e mais trapalhadas veio-nos da frica, e que aqui estabeleceo-se [sic] at officialmente [sic]! (Reis, 2001:27)

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Referindo-se ao Bumba-meu-boi como inocente divertimento de escravos, o autor informa que era praticado noite at de madrugada, ao som de palmas ou palmadas24. Em seguida, narra a encenao com todos os elementos do que se conhece como o auto do Bumba-meu-boi: roteiro, personagens e as cenas clssicas da morte e ressurreio do boi, alm da confisso do caboclo real antes da diligncia para prender o Pai Francisco.Existia um valento vaqueiro, no sei de que nao, mas devia ser de Guin, que tinha um boi, que era conhecido pelo Boi Estrela: e havendo outro vaqueiro de nome Pai Francisco, que casado com me Catharina, que achando-se no estado interessante desejou comer a lngua do boi Estrela, e o Pai Francisco no querendo ver sua cara-metade ter um transtorno no estado em que se achava, sem mais cerimnias corta a lngua desejada; dessa operao o boi morreu. O dono do boi deu o grito de alarme e tratou de descobrir quem tinha matado o seu querido Estrela! E chamado o lecenceado [sic] e este requer junta, para a qual foi ouvido o Dr. dos Poetas e o Dr. Pisamacio, que examinando perfeitamente o boi reconhecero [sic] que tinha sido morto por Pai Francisco! (...) Reconhecido Pai Francisco como assassino, chamado o caboclo-real pra hir [sic] prender, como se fosse autoridade policial, e o caboclo antes de hir [sic] correr o risco de morrer na luta, que temia ter para prender ao Pai Francisco, confessou-se e partiu cantando terna e docemente esta sublime poesia: Cantando e chorando Atrs do curr Caando Pai Francisco No pode o ach [sic] Desgraadamente descobre ao vaqueiro esposo de me Catharina e dirige-se a ele com a fria de um leo: - Pai Francisco pleto vio, baba de bassoura, batiga de matta veia, meu amo te manda te dizer de tres [sic] cousa [sic] uma, ou corpo, ou cabea ou a vida. (...) Resiste, dando berros ao caboclo, mas afinal pobre do tio Chico preso e o caboclo, orgulhoso por ter prendido to valente contendor, canta: Eu sou caboclo re Caboclo de Canind Tenho arco, tenho frecha Tenho candeia no p E o povo, comparsas, cotistas e figurantes respondem: Ch, ch, ch. Geremano Ch, ch, ch. Geremano Trazido barra do tribunal, o assassino do boi Estrela tornou-se ru confesso, declarando que tinha morto o boi Estrela por causa da me Catharina. A pobre da mulher ali vem presa tambm e trmula canta e chora at na presena dos juzes. Perguntando-se ao pai o que tinha me Catharina, para matar o boi... (...) Depois o pobre vaqueiro acoitado, pulando por cima do boi at que o castigo pra e o Pai Francisco obriga-se a curar o boi! (...) A receita foi menor que homeopathica [sic]; o boi no bebeu mezinha alguma e s com tres [sic] assopros... o bixo [sic] berra, pula, dana, e certamente tinha lngua de novo! Batem palmas todos e canto [sic]: J hurrh, j hurr J huhrr fama ria Boi de fama como este No serto no haver Tareques tir

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Essa referncia pode indicar que no eram utilizados instrumentos musicais, com o ritmo marcado pela batida com as mos, ou pode informar que j naquela poca eram utilizados instrumentos denominados palmas, que fazem o acompanhamento musical em grupos de Bumba-meu-boi da regio do Baixo Parnaba. Acredita-se que a primeira hiptese seja a mais provvel com base na citao do cronista Domingos Sacramento, de 1868, que, estranhando a introduo de matracas no Bumba, sugere que at aquele ano no havia acompanhamento de instrumentos na brincadeira.

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O mundica canrio Ora tanques tir Despedem-se da casa que paga para ver danar tal tal babuzeira e eil-os procurado outro cenrio, e vo cantando: Adeus vou me embora Vou pro serto E na copa do meu chapu chuvia [sic] Quando vinha da cidade chuvia [sic] Chuvia [sic] busca-ps Cachorrinho quando late No buraco do tatu Nosso r, nosso r, nosso r baxad Viva a mulata que tem seu Arno (Reis, 2001:27-29)

Dentre as informaes fornecidas pela crnica, o pagamento pela apresentao do Bumbameu-boi denuncia certa ambivalncia no seio da sociedade maranhense do Sculo XIX. Observa-se que, embora o Bumba estivesse inserido num contexto de preconceito e discriminao, em algum nvel havia valorizao da brincadeira por determinado segmento social. As referncias publicadas em 1861 demarcam o incio de um perodo de sete anos sem notcias da brincadeira. Nesse intervalo, entrou em vigor o Cdigo de Posturas de So Lus, pela Lei Provincial de 4 de julho de 1866, que, em seu artigo 124, proibia a realizao de batuques fora dos lugares permitidos pelas autoridades competentes. O mesmo artigo estabelecia que os infratores estavam sujeitos ao pagamento de multa ou priso por um perodo de seis dias. Pesquisadores do Bumba-meu-boi tm justificado esse silncio como resultado de um longo perodo em que o Bumba fora proibido de sair nas ruas. Essa suposio encontra eco em afirmaes localizadas nos registros de 1861 do jornal O Imparcial e de 1868, publicado no jornal Semanrio Maranhense e corroborada pelo dispositivo legal de 1866, pelo menos nos dois anos que antecedem a volta do folguedo. Na carta enviada a O Imparcial, o amigo da civilizao refere-se a uma antiga determinao da presidncia [da provncia] polcia para que no permitisse o Bumba-meu-boi por ser oposto boa ordem, civilizao e moral e que no estaria sendo cumprida. possvel que a partir dali essa ordem tenha sido obedecida.

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Na crnica de Joo Domingos Pereira do Sacramento, publicada em 5 de julho de 1868, no Semanrio Maranhense, o autor d pistas sobre o motivo do desaparecimento do Bumba-meu-boi por extenso perodo ao se referir ao renascimento do folguedo e saudar a polcia pela iniciativa que

resultou na volta do Bumba. Nesta ltima quinzena, que contada de 12 de junho at o dia do corrente mez [sic], o chronista [