BURACOS NO ESPELHO: ANÁLISE SEMIÓTICA DA LETRA “O BURACO DO ESPELHO” DE ARNALDO ANTUNES

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UNIVERSIDADE DE SOROCABA PRÓ-REITORIA ACADÊMICA CURSO DE LETRAS: HABILITAÇÃO EM PORTUGUÊS E INGLÊS Ricardo Mendonça Cardoso BURACOS NO ESPELHO: ANÁLISE SEMIÓTICA DA LETRA “O BURACO DO ESPELHO” DE ARNALDO ANTUNES

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Trabalho de Conclusão de Curso apresentadocomo exigência para obtenção do Diploma deGraduação em Letras: Habilitação emPortugpadding: 0px; margin: 0px 0px 0px -9px; border: none; height: 1px; line-height: 1; display: inline

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UNIVERSIDADE DE SOROCABAPRÓ-REITORIA ACADÊMICA

CURSO DE LETRAS: HABILITAÇÃO EM PORTUGUÊS E INGLÊS

Ricardo Mendonça Cardoso

BURACOS NO ESPELHO: ANÁLISE SEMIÓTICA DA LETRA “O BURACO DO ESPELHO” DE ARNALDO ANTUNES

Sorocaba/SP2012

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Ricardo Mendonça Cardoso

BURACOS NO ESPELHO: ANÁLISE SEMIÓTICA DA LETRA “O BURACO DO ESPELHO” DE ARNALDO ANTUNES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência para obtenção do Diploma de Graduação em Letras: Habilitação em Português e Inglês, da Universidade de Sorocaba.

Orientador: Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes

Sorocaba/SP2012

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Ricardo Mendonça Cardoso

BURACOS NO ESPELHO: ANÁLISE SEMIÓTICA DA LETRA “O BURACO DO ESPELHO” DE ARNALDO ANTUNES

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência para obtenção do Diploma de Graduação em Letras: Habilitação em Português e Inglês, da Universidade de Sorocaba.

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA:

Ass. _________________________________Pres.: ________________________________ Ass. _________________________________ 1.º examinador _________________________

Ass. _________________________________ 2.º examinador _________________________

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Dedico este trabalho, primeiramente, ao grande poeta que inspirou essa pesquisa Arnaldo Antunes. Também dedico ao meu orientador e grande mestre Luiz Fernando Gomes e a todos os professores com quem pude conviver no curso de Letras e que me ajudaram a crescer como pessoa e como intelectual. Por último, dedico aos meus familiares e aos amigos que me acompanharam nessa jornada de três anos, sempre unidos e formando uma bela família.

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A verdade é objeto de comunicação.(Greimas)

Se podes olhar vê. Se podes ver repara. (José Saramago)

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RESUMO

Este trabalho faz uma análise semiótica da música “O buraco do espelho” do cantor e poeta

Arnaldo Antunes baseada nas teorias de percurso gerativo do sentido de Greimas e das

Funções da Linguagem de Roman Jakobson. Visto que a música está muito presente na

sociedade atual e é uma influência de extremo apelo cultural, é indiscutivelmente importante

saber interpretar, “ler” a mensagem que a letra de uma música pode passar. Em nossa análise

pudemos observar que o ser humano vive em constante conflito interno e que, se esse conflito

atinge um nível maior do que o considerado normal, o sujeito já é considerado excluído da

sociedade. As metáforas constantes na letra demonstram o estado de loucura em que o eu –

lírico se encontra e a tentativa de escapar do próprio espelho, ou seja, sair desse estado de

loucura em que está envolvido, mas ele não consegue. A questão da loucura deve ser vista de

maneira diferente, não como simples doença, mas um outro lado da vida, do ser humano, do

mundo.

Palavras-chave: Análise semiótica, Funções da Linguagem, Música Contemporânea, Poesia

Contemporânea, Arnaldo Antunes.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.........................................................................................................................8

OBJETIVO................................................................................................................................9

1. DESENVOLVIMENTO

1.1. O QUE É POESIA.............................................................................................................10

1.2. PANORAMA SOBRE A MÚSICA..................................................................................13

1.3. O QUE É SEMIÓTICA.....................................................................................................14

1.4. FUNÇÕES DA LINGUAGEM.........................................................................................15

1.5. TEORIA SEMIÓTICA DE GREIMAS............................................................................17

1.6. A MÚSICA E SEU AUTOR.............................................................................................19

2. METODOLOGIA.................................................................................................................21

3. ANÁLISE

3.1. ANÁLISE SEMIÓTICA...................................................................................................22

3.2. ANÁLISE DAS FUNÇÕES DA LINGUAGEM..............................................................24

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................27

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................28

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INTRODUÇÃO

Há a tese de que a poesia é uma forma de arte tão antiga que seria anterior a própria

escrita, e sempre foi uma importante expressão do sentimento humano. A poesia faz parte da

vida de qualquer ser humano, pois ela está em cada momento da vida, em cada pequeno

detalhe há poesia. Claro que a que pretendo abordar é a forma mais conhecida: a escrita.

As pessoas lêem poesia e muitas vezes não entendem a mensagem passada por aquelas

palavras, e, claro, a arte não precisa ser sempre compreendida, principalmente a poesia, que

tem como objetivo principal tocar os sentimentos do leitor e não é algo lógico (na maioria das

vezes).

Além da poesia, uma arte antiga e que faz parte do cotidiano de todas as pessoas é a

música. É uma arte variada e cheia de categorias e estilos. O material musical é vasto e como

tudo na arte, tem a parte de qualidade e a parte descartável. Quando poesia e música juntam-

se, é difícil fazer uma arte mais bela e mais tocante.

Muitas pessoas ouvem música sem saber o que estão ouvindo (principalmente em

outras línguas) ou não prestam atenção ao conteúdo da letra. É claro que cada pessoa tem

direito de ouvir o que quiser, mas é importante saber interpretar algo que faz parte do

cotidiano e está tão enraizado em nossas vidas.

Os profissionais da área de Letras buscam se aprofundar nas camadas dos textos, para

buscar diferentes significados e não apenas a beleza das palavras. E é isso que irá acontecer

neste trabalho.

Essa pesquisa consiste em fazer uma análise semiótica da música O buraco do espelho

de Arnaldo Antunes, grande músico e poeta contemporâneo brasileiro. A análise será feita

com o embasamento teórico da semiótica greimasiana e das funções de linguagem de

Jakobson.

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OBJETIVO

O objetivo desta pesquisa é fazer uma análise semiótica da letra ‘O buraco do espelho’

de Arnaldo Antunes, abordando o percurso gerativo de sentido da teoria semiótica de Julien

Greimas e os sentidos e noções de signos linguísticos e funções da Linguagem elaboradas por

Roman Jacobson. Com essa análise pretendemos explorar algumas das possíveis mensagens e

significados que a letra possui e mostrar que é importante saber “ler” e interpretar o conteúdo

de um trabalho musical, sendo possível utilizar esse tipo de análise em salas de aula (tanto em

escolas como em universidades) para estimular o senso crítico analítico dos alunos.

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1. QUADRO GERAL DAS LEITURAS E TEORIAS

1.1. O que é poesia

A poesia é uma das artes mais antigas e sobre ela Aristóteles afirma:

Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o gosto da harmonia e do ritmo (pois é evidente que os metros são parte do ritmo), nas primeiras idades os homens mais aptos por natureza para estes exercícios foram aos poucos criando a poesia, por meio de ensaios improvisados.O gênero poético se dividiu em diferentes espécies, consoante o caráter moral de cada sujeito imitador. Os espíritos mais propensos à gravidade reproduziram as belas ações e seus realizadores; os espíritos de menor valor voltaram-se para as pessoas ordinárias a fim de as censurar, do mesmo modo que os primeiros compunham hinos de elogio em louvor de seus heróis. (ARISTÓTELES, 2001, p. 5)

A palavra poesia significa “criação” e tem origem grega. Ela é definida como a arte de

criar imagens, de sugerir emoções por meio de uma linguagem em que se combinam sons,

ritmos e significados. Essa arte aparece entre os primeiros registros da maioria das culturas

letradas e muitos especialistas consideram a poesia uma forma de arte anterior à escrita. O

poema épico mais antigo registrado é a Epopeia de Gilgamesh escrito na Suméria (atual

Iraque), no terceiro milênio a.C. em tabletes de argila.

Sobre a origem da poesia Arnaldo Antunes escreve:

A origem da poesia se confunde com a origem da própria linguagem.Talvez fizesse mais sentido perguntar quando a linguagem verbal deixou de ser poesia. Ou: qual a origem do discurso não-poético, já que, restituindo laços mais íntimos entre os signos e as coisas por eles designadas, a poesia aponta para um uso muito primário da linguagem, que parece anterior ao perfil de sua ocorrência nas conversas, nos jornais, nas aulas, conferências, discussões, discursos, ensaios ou telefonemas.Como se ela restituísse, através de um uso específico da língua, a integridade entre nome e coisa — que o tempo e as culturas do homem civilizado trataram de separar no decorrer da história. (ANTUNES, 2000)

Nesse trecho Arnaldo enfatiza a ideia de que a poesia é anterior a linguagem e a escrita

e propõe a discussão de quando a linguagem verbal deixa de ser poesia, ou seja, quando as

palavras ditas e escritas pelos seres humanos deixaram de ser poéticas em seu conteúdo. A

poesia é primária e totalmente avulsa da linguagem verbal utilizada em atividades corriqueiras

como conversas, jornais, aulas, conferências, discussões, discursos, ensaios ou telefonemas.

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A manifestação do que chamamos de poesia hoje nos sugere mínimos flashbacks de uma possível infância da linguagem, antes que a representação rompesse seu cordão umbilical, gerando essas duas metades — significante e significado. (ANTUNES, 2000)

Aqui a semiótica (que será apresentada mais tarde) com os termos representação,

significante e significado é proposta como algo gerado da “infância poética” da linguagem.

Os signos cortaram o “cordão umbilical” da linguagem, pois vão proporcionar um

“crescimento” dela através do significante e significado, deixando essa “infância” e passando

para uma fase “adulta”, ou seja, mais complexa.

Houve esse tempo? Quando não havia poesia porque a poesia estava em tudo o que se dizia? Quando o nome da coisa era algo que fazia parte dela, assim como sua cor, seu tamanho, seu peso? Quando os laços entre os sentidos ainda não se haviam desfeito, então música, poesia, pensamento, dança, imagem, cheiro, sabor, consistência se conjugavam em experiências integrais, associadas a utilidades práticas, mágicas, curativas, religiosas, sexuais, guerreiras?Pode ser que essas suposições tenham algo de utópico, projetado sobre um passado pré-babélico, tribal, primitivo. Ao mesmo tempo, cada novo poema do futuro que o presente alcança cria, com sua ocorrência, um pouco desse passado. (ANTUNES, 2000)

Os questionamentos aqui se misturam em relação a essa anterioridade da poesia e da

infância da linguagem e as crenças da época ligadas a utilidades práticas, mágicas, curativas,

religiosas, sexuais e guerreiras. Esses questionamentos são respondidos com a teoria de que

seriam utópicos e advindos de um passado anterior ao surgimento das línguas e da sociedade,

um passado em que o ser humano ainda vivia organizado em tribos, numa convivência

primitiva.

No seu estado de língua, no dicionário, as palavras intermediam nossa relação com as coisas, impedindo nosso contato direto com elas. A linguagem poética inverte essa relação pois vindo a se tornar, ela em si, coisa, oferece uma via de acesso sensível mais direto entre nós e o mundo. (ANTUNES, 2000)

A palavra poética se materializa e materializa os sentimentos do poeta e dos leitores. É

um elo que liga o ser humano ao mundo a sua volta, sendo uma “ponte concreta” que facilita

o trânsito da sensibilidade e das percepções da realidade pelo ser humano. É diferente,

portanto, das palavras “dicionarizadas” simplesmente, pois elas apenas representam as coisas

reais e impedem um contato direto entre elas e o ser humano.

Segundo Mikhail Bakhtin, (em "Marxismo e Filosofia da Linguagem"), “o estudo das línguas dos povos primitivos e a paleontologia contemporânea das significações levam-nos a uma conclusão acerca da chamada 'complexidade' do pensamento

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primitivo. O homem pré-histórico usava uma mesma e única palavra para designar manifestações muito diversas, que, do nosso ponto de vista, não apresentam nenhum elo entre si. Além disso, uma mesma e única palavra podia designar conceitos diametralmente opostos: o alto e o baixo, a terra e o céu, o bem e o mal, etc.” Tais usos são inteiramente estranhos à linguagem referencial, mas bastante comuns à poesia, que elabora seus paradoxos, duplos sentidos, analogias e ambiguidades para gerar novas significações nos signos de sempre. (ANTUNES, 2000)

Voltando a comparar a palavra poética a uma forma primitiva de linguagem, Arnaldo

Antunes utiliza o exemplo dos povos primitivos que possuíam uma palavra para designar

diferentes manifestações e representações, até mesmo chegando a representar conceitos

totalmente contrários. A poesia tem essa mesma essência, ela é muito complexa porque tem

muitos significados em uma única representação, ou seja, um poema, por exemplo, tem

inúmeras leituras possíveis e varia de acordo com o grau de conhecimento e cultura do leitor.

Lembro-me de ter lido, certa vez, um comentário de Décio Pignatari, em que ele chamava a atenção para o fato de, tanto em chinês como em tupi, não existir o verbo ser, enquanto verbo de ligação. Assim, o ser das coisas ditas se manifestaria nelas próprias (substantivos), não numa partícula verbal externa a elas, o que faria delas línguas poéticas por natureza, mais propensas à composição analógica. (ANTUNES, 2000)

Aqui Arnaldo cita duas línguas e como a composição dessas duas línguas as tornam

poéticas por natureza, já sugerindo que a poesia está intrinsecamente ligada a formação

linguística.

Mais perto do senso comum, podemos atentar para como colocam os índios americanos falando, na maioria dos filmes de cowboy — Eles dizem "maçã vermelha", "água boa", "cavalo veloz"; em vez de "a maçã é vermelha", "essa água é boa", "aquele cavalo é veloz". Essa forma mais sintética, telegráfica, aproxima os nomes da própria existência — como se a fala não estivesse se referindo àquelas coisas, e sim apresentando-as (ao mesmo tempo em que se apresenta). (ANTUNES, 2000)

Neste outro trecho o autor exemplifica a ideia exposta anteriormente da língua poética,

da forma de linguagem que aproxima um nome de sua própria existência, acabando assim,

com a ideia de significante e significado porque os dois tornam-se algo único e é isso que a

poesia permite com total liberdade e beleza.

Já perdemos a inocência de uma linguagem plena assim. As palavras se desapegaram das coisas, assim como os olhos se desapegaram dos ouvidos, ou como a criação se desapegou da vida. Mas temos esses pequenos oásis — os poemas — contaminando o deserto da referencialidade. (ANTUNES, 2000)

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No último parágrafo Arnaldo conclui que o ser humano perdeu essa capacidade de

uma linguagem plena, ou seja, poética em si mesma, mas que nos poemas ainda podemos

sentir essa essência não totalmente perdida.

A poesia sempre revela uma percepção subjetiva da realidade, e não serve para função

didática ou doutrinária, mas a palavra é uma arma que o poeta usa para passar uma visão

diferente do mundo que nos cerca. Como todas as artes, vem se modificando e se renovando

ao longo dos anos e hoje ela chega a “trasbordar” do papel chegando a explorar os horizontes

da internet. O professor Jorge Luís Antonio afirma sobre os artistas contemporâneos que:

Alguns fazem apresentações em público, na mesma linha dos dadaístas do Cabaret Voltaire, no começo do século 20. Outros fazem poesia ‘cíbrida’ [contração de ‘híbrido’ e ‘cibernético’], com uso de arte, design e tecnologia. O importante é que todos focam nos aspectos poéticos. (ANTONIO, 2010)

É por esses motivos que podemos perceber a importância de se estudar a poesia, de saber

como analisá-la e interpretá-la.

1.2. Panorama sobre a Música

A palavra música tem sua origem grega, vem de musiké téchne, a arte das musas. A

música é uma combinação de elementos sonoros percebidos pela audição e constitui “uma

sucessão de sons, entremeados por curtos períodos de silêncio, organizada ao longo de um

determinado tempo”. (ALENCAR, 2008)

A origem da produção musical é ligada a pré-história, conclusão feita pelos estudiosos

que acreditam que as produções eram feitas através da observação dos sons da natureza. Os

instrumentos mais antigos são datados de 60.000 a.C. (o vestígio de uma flauta de osso) e de

3.000 a.C. (a presença de liras e harpas na Mesopotâmia).

Sobre a origem da música, de acordo com as lendas brasileiras, a historiadora Valéria

Peixoto de Alencar (2008) afirma:

No Brasil, alguns mitos narram que a música teria sido um presente dos deuses, entristecidos com o silêncio no mundo dos humanos. Em outras lendas, a criação do mundo se mistura à criação da música. Assim, a música serve para ter contato com os deuses e os ancestrais. Num ritual, um discurso pode acabar em canto - ou vice-versa. Além da voz (canto), temos instrumentos como: chocalhos, guizos, bastões, tambores (percussão), apitos e flautas (sopro) - e zunidores. (ALENCAR, 2008)

Hoje a música está totalmente inserida no cotidiano da maioria das pessoas em todo o

mundo e é algo corriqueiro, está em todas as partes e pode ser feita por qualquer um.

Culturalmente a música tem um forte apelo e é exatamente por esse motivo que se deve tomar

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cuidado no que diz respeito aos conteúdos, as letras e as mensagens que são passadas pelas

músicas. Claro que não se deve ter preconceitos e impor o que deve ou não ser escutado, mas

deve-se ter a consciência do conhecimento para cada tipo de música, aquelas feitas para a

“mente” e as feitas para o “corpo”, ou seja, as músicas com mensagens poéticas, sociais,

políticas, etc. e aquelas que servem apenas para dançar e extravasar.

No âmbito escolar há a promulgação da Lei nº 11.769/2008, que altera a LDB de 1996

tornando a música conteúdo obrigatório nas escolas brasileiras, fato que torna a questão

envolvendo a análise de músicas mais importante e delicada. As discussões e debates sobre o

tema são inúmeros, com artigos, estudos e pesquisas para comprovar a importância da música

no processo de ensino e aprendizagem. Há pesquisas na área da neurociência comprovando

que a imaginação, a memória e a comunicação verbal e corporal se aguçam mais nas pessoas

que escutam, estudam e praticam a música.

O estudo das músicas em sua estrutura geral, e, no caso desse trabalho especificamente

sobre o estudo de suas letras, auxilia na formação cultural, intelectual e social do indivíduo,

no desenvolvimento das múltiplas inteligências do aluno e na preservação de suas raízes

culturais. Por isso a importância de saber “ler” e interpretar o conteúdo de um trabalho

musical.

1.3. O que é semiótica

A semiótica é a ciência que estuda o funcionamento da mente humana e o processo de

atribuição de sentido em relação à natureza e a cultura e é uma teoria que pode ser inserida no

quadro das que se preocupam com o texto. Ela tenta descrever e explicar o que o texto diz e

como ele faz para dizer o que diz.

A ideia sobre a semiótica começou com John Locke que em 1690 em sua obra Essay on

human understanding na qual propôs uma doutrina dos signos com o nome de Semeiotoké.

Depois passou por Platão, Aristóteles, John Locke até chegar ao considerado “pai” da

semiótica, o cientista, matemático, historiador, filósofo e lógico norte-americano Charles

Sanders Peirce e "foi o enunciador da tese anticartesiana de que todo pensamento se dá em

signos, na continuidade dos signos". (SANTAELLA, 2001, p. 32)

De acordo com Lúcia Santaella "O signo é uma coisa que representa uma outra coisa:

seu objeto. Só é signo se carregar essa capacidade de representar outra coisa. O signo não é o

objeto – não pode se confundir com o objeto." (SANTAELLA, 1983, p.58), ou seja, é algo

que está no lugar de outra coisa referente a ideia que o objeto real dessa coisa produz na

mente dessa pessoa.

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Os elementos do signo são definidos como:

Objeto: aquilo que é referido pelo signo e que não precisa ser um objeto material ou

abstrato, mas também qualquer coisa que possa originar uma ideia na mente do intérprete.

Signo: aquilo que substitui o objeto numa representação do mesmo.

Interpretante: o efeito do signo naquele que o interpreta, é um mediador na relação

entre o signo e seu objeto.

A representação dessas relações se dá através do triângulo semiótico proposto por

Pierce:

1.4. Funções da Linguagem

Roman Osipovic Jakobson foi um linguista que contribuiu para a semiótica com a

noção e o estudo das funções da linguagem. Elas são parte do elemento da comunicação e são

divididas em seis:

Referencial:

Embora distingamos seis aspectos básicos da linguagem, dificilmente lograríamos, contudo, encontrar mensagens verbais que preenchessem uma única função. A diversidade reside não no monopólio de alguma dessas diversas funções, mas numa diferente ordem hierárquica de funções. A estrutura verbal de uma mensagem depende basicamente da função predominante. Mas conquanto um pendor (Einstellung) para o referente, uma orientação para o CONTEXTO — em suma, a chamada função REFERENCIAL, "denotativa", "cognitiva" — seja a tarefa dominante de numerosas mensagens, a participação adicional de outras funções em tais mensagens deve ser levada em conta pelo linguista atento. (JAKOBSON, 2001, p. 123)

Emotiva:

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A chamada função EMOTIVA ou "expressiva", centrada no REMETENTE, visa a uma expressão direta da atitude de quem fala em relação àquilo de que está falando. Tende a suscitar a impressão de uma certa emoção, verdadeira ou simulada; por isso, o termo "função emotiva", proposto e defendido por Marty, demonstrou ser preferível a "emocional". O estrato puramente emotivo da linguagem é apresentado pelas interjeições. Estas diferem dos procedimentos da linguagem referencial tanto pela sua configuração sonora (sequências sonoras peculiares ou mesmo sons alhures incomuns). (JAKOBSON, 2001, p. 123-124)

Conativa:

A orientação para o DESTINATÁRIO, a função CONATIVA, encontra sua expressão gramatical mais pura no vocativo e no imperativo, que sintática, morfológica e amiúde até fonologicamente, se afastam das outras categorias nominais e verbais. As sentenças imperativas diferem fundamentalmente das sentenças declarativas: estas podem e aquelas não podem ser submetidas à prova de verdade. (JAKOBSON, 2001, p. 125)

Fática:

Há mensagens que servem fundamentalmente para prolongar ou interromper a comunicação, para verificar se o canal funciona ("Alô, está me ouvindo?"), para atrair a atenção do interlocutor ou confirmar sua atenção continuada ("Está ouvindo?" ou, na dicção shakespereana, "Prestai-me ouvidos!" — e, no outro extremo do fio, "Hm-hm!") Este pendor para o CONTATO ou, na designação de Mali-nowski, para a função FÁTICA, pode ser evidenciada por uma troca profusa de fórmulas ritualizadas, por diálogos inteiros cujo único propósito é prolongar a comunicação. (JAKOBSON, 2001, p. 126)

Metalinguística:

Uma distinção foi feita, na Lógica moderna, entre dois níveis de linguagem, a "linguagem-objeto", que fala de objetos, e a "metalinguagem", que fala da linguagem. Mas a metalinguagem não é apenas um instrumento científico necessário, utilizado pelos lógicos e pelos linguistas; desempenha também papel importante em nossa linguagem cotidiana. Como o Jourdain de Molière, que usava a prosa sem o saber, praticamos a metalinguagem sem nos dar conta do caráter metalinguístico de nossas operações. Sempre que o remetente e/ou o destinatário têm necessidade de verificar se estão usando o mesmo código, o discurso focaliza o CÓDIGO; desempenha uma função METALINGUÍSTICA (isto é, de glosa). (JAKOBSON, 2001, p. 127)

Poética:

Destacamos todos os seis fatores envolvidos na comunicação verbal, exceto a própria mensagem. O pendor (Einstellung) para a MENSAGEM como tal, o enfoque da mensagem por ela própria, eis a função poética da linguagem Essa função não pode ser estudada de maneira proveitosa desvinculada dos problemas gerais da linguagem, e por outro lado, o escrutínio da linguagem exige consideração minuciosa da sua função poética. Qualquer tentativa de reduzir a esfera da função

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poética à poesia ou de confinar a poesia à função poética seria uma simplificação excessiva e enganadora. A função poética não é a única função da arte verbal, mas tão-somente a função dominante, determinante, ao passo que, em todas as outras atividades verbais ela funciona como um constituinte acessório, subsidiário. (JAKOBSON, 2001, p. 127-128)

1.5. Teoria semiótica de Greimas

Barros (1988) fez uma descrição da semiótica greimasiana e para ela essa teoria tem

como características:

1 - a elaboração de métodos e técnicas adequados de análise interna, fazendo o percurso que vai do texto ao sujeito; 2 - a proposição de uma análise imanente: buscar as leis que regem o discurso por sob a máscara que é o objeto textual; 3 - enfocar o trabalho de construção do sentido, da imanência à aparência, como um percurso gerativo “que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, e em que cada nível de profundidade é passível de descrições autônomas” [ponto vinculado com a questão dos níveis de pertinência] (Barros, 1988, p. 13); 4 - entender o percurso gerativo como percurso do conteúdo, “independentemente da manifestação, linguística ou não, e anterior a ela”, ecos da importante descrição da percepção como “o lugar não linguístico onde se situa a apreensão da significação” (Greimas, 1973, p. 15).

Portanto a semiótica greimasiana busca a compreensão e análise de um texto através

da teoria semântica e de uma interpretação inserida no contexto do enunciado. O caminho que

deve ser seguido parte do texto e chega ao sujeito e começa pela determinação da natureza de

que se deve dotar a descrição. O percurso tem início numa camada mais simples de

compreensão e análise até chegar a níveis complexos e profundos.

Greimas diz que

afirmar que as significações do mundo humano se situam no nível da percepção consiste em definir a exploração do mundo do senso comum, ou, como se diz, do mundo sensível. A semântica é reconhecida assim abertamente como uma tentativa de descrição do mundo das qualidades sensíveis. (GREIMAS, 1973, p.15)

Nesta passagem podemos perceber que Greimas articula o nível do “sensível” (da

percepção do objeto) com o nível do “inteligível” (da descrição dessa percepção), mas para

ele a percepção não tem a ver com o contato direto com o mundo natural, mas com a

construção de objetos a partir de fenômenos com base num dado ponto de vista vinculado

com as conotações socialmente aceitas.

“Que se situe o sentido justo atrás das palavras, antes ou depois das palavras, a questão

do sentido permanece inteira” (GREIMAS,1970, p. 8)

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De acordo com Greimas as dificuldades do fazer semiótico remetem também à prática

de análise dos mecanismos de produção de sentido e à determinação da natureza do objeto

que se pretende descrever.

“A narrativa, para ter um sentido, deve ser um todo de significação; ela apresenta-se,

por isso, como uma estrutura semântica simples.” (GREIMAS, 1976, p. 63)

Para se extrair os níveis de sentido da narrativa, é preciso compreender e levar em

consideração seu sentido total, sua carga completa de significação, ou seja, é preciso analisar

o contexto e suas conotações e interpretações. O que Greimas busca é uma “base do sentido”,

a estrutura elementar para traçar o percurso até a produção do sentido.

A articulação do sentido começa a vir à existência, a partir do material gerado em um

nível fundamental, a partir da intervenção das estruturas narrativas. Completando o percurso

gerativo, o sentido cumpre então a dupla vocação que Greimas nele identifica: ser tomado

como sentido articulado (significação) e como discurso sobre o sentido.

É importante ressaltar que o sentido propriamente dito não é o objeto de estudo da

semiótica, pois não estaríamos diferenciando essa disciplina da antropologia, sociologia,

filosofia, entre outras. A semiótica se preocupa com o “parecer do sentido” presentes nas

formas de linguagem e nos discursos que o manifestam. Para Bertrand (2003, p. 21) é uma

“abordagem relativista de um sentido, se não sempre incompleto, pelo menos sempre

pendente nas tramas do discurso”.

De acordo com a autora Diana Barros (2008) a noção de percurso gerativo do sentido,

presente na teoria de Greimas, é fundamental para a teoria semiótica e pode ser resumida

como segue:

a) o percurso gerativo do sentido vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto; b) são estabelecidas três etapas no percurso, podendo cada uma delas ser descrita e explicada por uma gramática autônoma, muito embora o sentido do texto dependa da relação entre os níveis; c) a primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata, recebe o nome de nível fundamental ou das estruturas fundamentais e nele surge a significação como uma oposição semântica mínima; d) no segundo patamar, denominado nível narrativo ou das estruturas narrativas, organiza-se a narrativa, do ponto de vista de um sujeito; e) o terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas em que a narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação. (BARROS, 2008, pág. 9)

Basicamente a teoria greimasiana é uma teoria da significação ao enfocar a construção

de sentido nos diversos textos. Todo texto irá seguir um percurso gerativo, através do qual o

sentido vai sendo composto.

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Para resumir e simplificar a ideia há um esquema de aplicação da teoria analisando o

enredo de uma novela feito pelo professor Sérsi Bardari (2012):

Estrutura semio-narrativa — é o alicerce, esqueleto. Subdivide-se em:(1) Nível profundo: é onde surge a contradição que construirá uma história. Ex.: bondade X maldade.(2) Nível de superfície: é onde serão criadas as personagens. Ex.: Em uma dada novela, um casal se conhece e se apaixonam, porém, tem uma vilã que quer acabar com a relação e consegue. O rapaz fica com a vilã, ficamos com pena da mocinha e no final ele descobre a armação, volta para a mocinha e a vilã paga pelo que fez.Essa é a estrutura básica que será revestida da maneira que eu quiser.Estrutura discursiva — é o revestimento, acabamento. Subdivide-se em:(1)Actorialização – (personagens) – quem são as pessoas que estão atuando. Ex.: se a mocinha é pobre ou rica.(2)Temporalização – Em que época ocorre a história.(3)Espacialização – Em que local se passa.(4)Figurativização – Pessoas, animais.(5)Tematização – (tema da história) - inveja, ambição. (BARDARI, 2012)

1.6. A música e seu autor

Essa é a letra escolhida como objeto desta pesquisa:

O buraco do espelhoo buraco do espelho está fechadoagora eu tenho que ficar aquicom um olho aberto, outro acordadono lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acessomesmo que me chamem pelo nomemesmo que admitam meu regressotoda vez que eu vou a porta some

a janela some na paredea palavra de água se dissolvena palavra sede, a boca cedeantes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteiraquatro, cinco, seis da madrugadavou ficar ali nessa cadeirauma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechadoagora eu tenho que ficar agorafui pelo abandono abandonadoaqui dentro do lado de fora (ANTUNES, 1997)

Essa música aparece pela primeira vez no cd “O silêncio” de Arnaldo Antunes de 1995

e depois é publicada no livro “2 ou + corpos no mesmo espaço” em 1997. Mais tarde, em

2001, “O buraco do espelho” entra para a trilha sonora do filme “Bicho de sete cabeças”.

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Arnaldo Antunes nasceu em São Paulo em 1960. Foi vocalista da banda Titãs, antes de

iniciar sua carreira solo. É cantor, poeta e compositor. Alguns de seus discos são: O Silêncio,

Um Som, Paradeiro, Saiba, Qualquer, Iê Iê Iê e alguns de seus livros: Psia, Tudos, As Coisas,

2 ou + Corpos no Mesmo Espaço, 40 Escritos, Como É Que Chama o Nome Disso e N. D. A.

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3. METODOLOGIA

Por Meio de pesquisas bibliográficas, análise de livros e artigos da internet utilizarei o

método do percurso gerativo de Greimas para a análise semiótica da letra “O buraco do

espelho” de Arnaldo Antunes e a teoria das Funções da Linguagem elaboradas por Roman

Jakobson. Essa análise será importante para ajudar a preencher uma lacuna existente nas salas

de aula (tanto nas escolas como nas universidades) e no próprio cotidiano das pessoas em

relação a compreensão de um poema, de uma letra de música e a mensagem que essas

composições exprimem.

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3. ANÁLISE

3.1. Análise semiótica da Letra

Para iniciar a análise semiótica vamos abordar a etapa simples do percurso, que é a das

estruturas fundamentais. No nível das estruturas fundamentais determinamos a oposição

semântica que será a base de construção de sentido do texto. Na letra de “O buraco do

espelho” a categoria semântica fundamental é o homem x ele mesmo (ou até mesmo a

sociedade, como consequência desse conflito).

O conteúdo mínimo fundamental dessa letra é um conflito do homem consigo mesmo

(a imagem do espelho pode ilustrar essa ideia) e, por conseguinte, um conflito também com a

sociedade, com o mundo em que vive.

Para ilustrar essa ideia, podemos observar a última estrofe, a qual mostra essa noção

do conflito, o espelho sendo a imagem do próprio homem que não consegue sair desse buraco

fechado do espelho, não consegue se libertar de si mesmo, de seus conflitos internos e se

sente em extremo abandono, abandonado pelos outros e por ele próprio:

o buraco do espelho está fechado

agora eu tenho que ficar agora

fui pelo abandono abandonado

aqui dentro do lado de fora

O provável conflito com a sociedade pode ser visto nesta estrofe, que não permitiria o

“regresso” do sujeito, fechando as portas para ele:

pro lado de cá não tem acesso

mesmo que me chamem pelo nome

mesmo que admitam meu regresso

toda vez que eu vou a porta some

No nível narrativo temos um sujeito, o eu lírico, que tenta escapar do estado de

conflito, de loucura que está passando, lembrando que a própria sociedade considera como

“louca” uma pessoa que tenha conflitos internos maiores que os considerados “normais”:

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agora eu tenho que ficar aqui

com um olho aberto, outro acordado

no lado de lá onde eu caí

O sujeito é obrigado a ficar do “lado de lá onde caiu”, não deixa transparecer uma

esperança de escapar dessa situação, ele a aceita, a vê como algo imutável.

já tentei dormir a noite inteira

quatro, cinco, seis da madrugada

vou ficar ali nessa cadeira

uma orelha alerta, outra ligada

Esta estrofe demonstra a inquietação do sujeito em relação a sua situação de conflito,

não há descanso para ele, não há tranquilidade.

Esse sujeito narra todas as situações de conflito durante o poema e as impossibilidades

de escapar delas, terminando a letra com a confirmação de que este problema não tem solução

e que sua situação é crítica (“fui pelo abandono abandonado”) e incerta, confusa, dúbia (“aqui

dentro do lado de fora”).

No terceiro nível temos as estruturas discursivas:

As estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas quando assumidas pelo sujeito da enunciação. O sujeito da enunciação faz uma série de “escolhas”, de pessoa, de tempo, de espaço, de figuras, e “conta” ou passa a narrativa, transformando-a em discurso. O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa “enriquecida” por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia. . O discurso define-se, ao mesmo tempo, como objeto produzido pelo sujeito da enunciação e como objeto de comunicação entre um destinador e um destinatário. (BARROS, 2008, pág. 53-54).

Na questão discursiva temos a figura emblemática do espelho, que é repetida e a mais

importante na letra, por se tratar da representação da dualidade do sujeito, da desordem e da

confusão internas dele. Logo no início temos a informação de que “o buraco do espelho está

fechado” e a letra termina com essa mesma informação, completando um ciclo, um caminho

em que o sujeito busca escapar da perturbação, mas que não vai surtir efeito e como

consequência a inevitável prisão no buraco, sem acesso ao lado de cá, à comunicação com o

mundo.

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A letra é toda construída a partir de metaforizações de temas ligados a loucura e

extrema inquietação (o buraco do espelho, as portas e janelas que somem, a boca que não

consegue falar e ser ouvida, a impossibilidade de acesso ao lado de cá) e nos passa a

informação de que o sujeito chegou a um nível de conflito interno máximo que uma pessoa

pode alcançar, ou seja, a própria loucura.

Outra figura que aparece é a da água e da sede nos versos:

a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve

Sobre uma simbologia da água, João Cabral de Melo Neto escreve no poema “Rios sem

discurso”:

Em situação de poço, a água equivalea uma palavra em situação dicionária:isolada, estanque no poço dela mesma,e porque assim estanque, estancada;e mais: porque assim estancada, muda,e muda porque com nenhuma comunica,porque cortou-se a sintaxe desse rio,o fio de água por que ele discorria. (NETO, 1979, p.26.)

Essa definição se encaixa muito bem no contexto da letra de Arnaldo, a palavra água

estancada, isolada, se dissolvendo na boca, deixando o sujeito num estado de mudez e a sede

remete à seca, que metaforicamente, é a impossibilidade da comunicação, a falta das palavras,

pois se dissolvem e a boca não consegue falar, o sujeito não pode ser escutado.

O discurso de “O buraco do espelho” é uma interpretação da condição humana. O ser

humano é passível de conflitos internos, de “guerras interiores”, mas a sociedade sempre

enxerga essas situações como anormais, como problemas a serem resolvidos e fecha as

“portas” e “janelas” para isso. A questão da loucura deve ser vista como um outro lado das

coisas, um outro lado do ser humano, e pode-se dizer que sempre há uma linha tênue entre a

loucura e a sanidade e que é sempre relativa para se ter a certeza de como a estabelecer.

3.2. Análise das funções da linguagem

Analisar as funções da linguagem nos textos também ajuda a compreender melhor o

discurso e sua estrutura.

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Lembrando que as funções da linguagem são: função emotiva / expressiva; função

referencial / denotativa; função conativa / apelativa; função fática; função poética; função

metalinguística.

Temos a função emotiva em toda a letra, pois todo discurso do eu lírico suscita

impressões de emoção e apelo passadas por ele, vistas mais nitidamente nos versos:

pro lado de cá não tem acesso

mesmo que me chamem pelo nome

mesmo que admitam meu regresso

toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede

a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve

O eu lírico “apela” para as imagens da porta e da janela com o intuito de ilustrar

metaforicamente a situação sem saída em que se encontra. Além da inquietação por não estar

conseguindo dormir (já tentei dormir a noite inteira), pois tem de ficar sentado em uma

cadeira com “uma orelha alerta, outra ligada”.

A função conativa não se encontra propriamente dita no texto por um propósito: o

texto não tem um destinatário certo, ou seja, esse discurso não consegue alcançar algum

destinatário porque “a boca cede antes de falar, e não se ouve”, e é exatamente esse o objetivo

do autor, é como se o eu lírico estivesse falando sozinho, divagando sobre sua condição e o

principal destinatário é ele mesmo, através do buraco do espelho em que está preso.

Na função metalinguística temos os versos:

a palavra de água se dissolve

na palavra sede, a boca cede

antes de falar, e não se ouve

A letra remete ao próprio ato da fala e da impossibilidade de falar e de ser escutado,

formando até um paradoxo, já que o poema comunica que é impossível se comunicar nessa

situação em que se encontra o sujeito.

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A função poética não se reduz ao simples fato dessa letra ser um poema, mas na

verdade é o “enfoque da mensagem por ela própria”, ou seja, toda a intenção do autor com

essa letra, que é abordar os conflitos interiores pelos quais o ser humano passa e como esses

conflitos podem isolar o sujeito, fazê-lo sentir fora do mundo e exilado de si mesmo.

A função fática na música é o papel (ou a tela do computador ou outro meio eletrônico

utilizado para a leitura), pois é por onde transita a mensagem do destinador (poeta) ao

destinatário (leitor).

A última é a função referencial, referente ao "denotativo", "cognitivo". Basicamente é

uma orientação para o contexto, que no caso dessa letra é a oposição entre o sujeito e ele

mesmo, a desordem interior que o está impossibilitando de escapar do buraco do espelho, já

que está fechado e não permite a volta para o lado de cá, ou seja, o mundo considerado

“normal” pela sociedade.

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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com essa análise chegamos à conclusão de que saber fazer uma leitura construtiva e

mais aprofundada de um poema e de letras de músicas ajuda a melhorar o senso crítico e a

capacidade intelectual de quem está realizando essa leitura, assim como melhora sua visão de

mundo.

Luiz Tatit (2001) diz que:

Na realidade, uma parcela considerável dos estudantes de Letras diploma-se sem saber elaborar uma análise de texto e, dentre as razões técnicas dessa falha, destaca-se a carência de bibliografia específica, principalmente na linha da semiótica.

Pouco podemos esperar das pesquisas de ponta quando a atividade aplicativa da disciplina está suspensa ou, pelo menos, consideravelmente reduzida no âmbito daqueles que, em princípio, seriam os principais herdeiros da técnica e, por conseguinte, os responsáveis por sua evolução e transmissão futura. (TATI, Análise semiótica através das letras, p. 12)

É importante que os alunos e profissionais na área de Letras tenham conhecimento e

técnica para conseguir ler e interpretar textos destrinchando seus significados, sua linguagem

e qual mensagem aquele texto pretende transmitir. Também é importante que esse processo

tenha início nas escolas, que os alunos desde o ensino fundamental e médio tenham contato

com a noção de leitura aprofundada de textos, e possam ir desenvolvendo essa capacidade

crítica ao longo dos anos.

Essa pesquisa alcançou o objetivo proposto de realizar uma análise aprofundada da

letra “O buraco do espelho”. Através dela é possível identificar detalhes que não são

perceptíveis numa leitura simples. A semiótica auxilia na busca pelo significado da letra, nas

escolhas semânticas do poeta e até valoriza a capacidade criativa do autor.

Apesar das dificuldades nessa área, como Tatit afirma, é preciso que haja mais

pesquisas e análises nessa área, já que a semiótica é uma ciência nova e com muitos

horizontes a serem descobertos, além de ser de extrema importância para a compreensão da

linguagem e da comunicação humanas.

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REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Arte Poética. Disponível em:

<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000005.pdf>. Acesso em: 22 de julho

de 2011.

ALENCAR, Valéria Peixoto de. Música - origem: Sons e instrumentos. Disponível em:

http://educacao.uol.com.br/disciplinas/artes/musica---origem-sons-e-instrumentos.htm.

Acesso em 20 de outubro de 2012.

ANTUNES, Arnaldo. Dois ou mais corpos no mesmo espaço. São Paulo: Perspectiva, 1997.

ANTUNES, Arnaldo. Sobre a origem da poesia. Disponível em:

<http://www.arnaldoantunes.com.br/sec_textos_list.php?page=1&id=27>. Acesso em: 22 de

julho de 2011.

BARDARI, Sérsi. Semiótica greimasiana. Disponível em:

<http://umc-linguagens.blogspot.com.br/2008/03/semitica-parte-i_29.html>. Acesso em: 20

de outubro de 2012

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 4. ed. São Paulo: Ática, 2008. 96

p.

JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 22. ed. São Paulo: Cultrix, 2001. 162 p.

MATTE, Ana Cristina Fricke. LARA, Glaucia Muniz Porença. Um panorama da semiótica

Greimasiana. Disponível em:

<http://www.letras.ufmg.br/arquivos/matte/artigos/artigoAlfa_Matte_Lara2009[3].pdf>.

Acesso em: 02 de novembro de 2012.

TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. 3. ed. São Paulo: Ateliê, 2001. 207 p.