Burity - Teoria do Discurso e Educação.pdf

23
  Revista Teias v. 11 • n. 22 • p. 07-29 • maio/agosto 2010 7 TEORIA DO DISCURSO E EDUCAÇÃO: reconstruindo o vínculo entre cultura e política  Joanildo Burity 1  RESUMO Este trabalho interroga os vínculos entre educação e o político, ou seja, a dimensão instituinte da realidade, a partir de uma perspectiva discursiva. Focaliza sobre o processo no qual a educação tornou-se objeto de um consenso (hegemonia) quanto a seu papel constitutivo de uma nova sociabilidade assentada no vocabulário republicano da cidadania ou no vocabulário liberal da competência técnica e autonomia individual. No curso do argumento, exploram-se aspectos e passos analíticos da teoria do discurso associada ao trabalho de Ernesto Laclau, em busca de um outro vocabulário e gramática para a descrição e avaliação dos vínculos mencionados. Para tanto, a noção de cultura e a difundida sensibilidade para o caráter cultural das identidades contemporâneas, são enfatizadas. Buscando situar-se numa zona em que o campo da educação interage com a política, o problema acima apontado se coloca como pertencente à fronteira entre os dois campos, radicando-se neste locus  o cerne da reflexão. Palavras-chave: discurso, hegemonia, política. Um consenso em torno da educação como saída para os problemas não resolvidos da desigualdad e e da não cidadania foi paciente, insistente e estrategicamente construído desd e os anos de 1990. Tal consenso foi simultâneo a outros, como o que definiu o enfrentamento da pobreza como impostergável, sua massiva e duradoura evidência um indicador ácido da moralidade e legitimidade de um sistema econômico-social que proclama a compatibilidade e a superior eficácia do vínculo entre democracia e mercado. Juntamente com uma conjuntura de construção democrática assolada por incertezas econômicas e pelo efeito tão insidioso quanto avassalador da “globalização”, lançou -se à educação um formidável desafio, de ser fiadora de uma nova experiência do estar-junto. Na mesma conjuntura, e buscando sua visibilidade e legitimidade  pública por meio da pos tulação de uma exigência da democracia, múltiplas formas de articulação de demandas vieram à tona manejando a linguagem dos direitos, pedindo atendimento de carências ou reconhecimento de identidades. O efeito combinado desses processos foi o de intensificar a  percepção , de um lado, da instabilidade e incerteza da ordem de coisas vigente (sua crise ou sua transição para outra situação), e de outro, da maleabilidade e abertura do real a novas experiências do estar-junto, do vínculo social. Realidade em crise/transição é realidade de desfecho imprevisível, as certezas tendo mais a forma de desejos ou projetos do que de sedimentação de evidências dadas à razão e aos sentidos. 1  Professor da Escola de Governo e Assuntos Internacionais e do Departamento de Teologia e Religião da Universidade de Durham, Inglaterra. Diretor do Programa Religião e Globalização. E-mail: [email protected].

Transcript of Burity - Teoria do Discurso e Educação.pdf

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 7

    TEORIA DO DISCURSO E EDUCAO:

    reconstruindo o vnculo entre cultura e poltica

    Joanildo Burity1

    RESUMO

    Este trabalho interroga os vnculos entre educao e o poltico, ou seja, a dimenso instituinte da realidade, a

    partir de uma perspectiva discursiva. Focaliza sobre o processo no qual a educao tornou-se objeto de um

    consenso (hegemonia) quanto a seu papel constitutivo de uma nova sociabilidade assentada no vocabulrio

    republicano da cidadania ou no vocabulrio liberal da competncia tcnica e autonomia individual. No curso

    do argumento, exploram-se aspectos e passos analticos da teoria do discurso associada ao trabalho de

    Ernesto Laclau, em busca de um outro vocabulrio e gramtica para a descrio e avaliao dos vnculos

    mencionados. Para tanto, a noo de cultura e a difundida sensibilidade para o carter cultural das

    identidades contemporneas, so enfatizadas. Buscando situar-se numa zona em que o campo da educao

    interage com a poltica, o problema acima apontado se coloca como pertencente fronteira entre os dois

    campos, radicando-se neste locus o cerne da reflexo.

    Palavras-chave: discurso, hegemonia, poltica.

    Um consenso em torno da educao como sada para os problemas no resolvidos da

    desigualdade e da no cidadania foi paciente, insistente e estrategicamente construdo desde os anos

    de 1990. Tal consenso foi simultneo a outros, como o que definiu o enfrentamento da pobreza

    como impostergvel, sua massiva e duradoura evidncia um indicador cido da moralidade e

    legitimidade de um sistema econmico-social que proclama a compatibilidade e a superior eficcia

    do vnculo entre democracia e mercado. Juntamente com uma conjuntura de construo

    democrtica assolada por incertezas econmicas e pelo efeito to insidioso quanto avassalador da

    globalizao, lanou-se educao um formidvel desafio, de ser fiadora de uma nova

    experincia do estar-junto. Na mesma conjuntura, e buscando sua visibilidade e legitimidade

    pblica por meio da postulao de uma exigncia da democracia, mltiplas formas de articulao de

    demandas vieram tona manejando a linguagem dos direitos, pedindo atendimento de carncias ou

    reconhecimento de identidades. O efeito combinado desses processos foi o de intensificar a

    percepo, de um lado, da instabilidade e incerteza da ordem de coisas vigente (sua crise ou sua

    transio para outra situao), e de outro, da maleabilidade e abertura do real a novas experincias

    do estar-junto, do vnculo social. Realidade em crise/transio realidade de desfecho imprevisvel,

    as certezas tendo mais a forma de desejos ou projetos do que de sedimentao de evidncias dadas

    razo e aos sentidos.

    1 Professor da Escola de Governo e Assuntos Internacionais e do Departamento de Teologia e Religio da Universidade

    de Durham, Inglaterra. Diretor do Programa Religio e Globalizao. E-mail: [email protected].

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 8

    Este trabalho interroga este processo ao mesmo tempo em que se prope a explorar um

    outro vocabulrio e gramtica para sua descrio e avaliao. Buscando situar-se numa zona em que

    o campo da educao interage com a poltica, o problema acima apontado se coloca como

    pertencente fronteira entre os dois campos, mas o modo de articul-lo situa-se no plo da poltica.

    Do ponto de vista dos registros de fala e produo de sentido dos estudiosos da educao, uma

    linha de interrogao que talvez parea incua ou lateral a preocupaes mais centrais. Da

    perspectiva de uma interrogao sobre os lugares e formas da poltica na sociedade contempornea,

    sobre a construo das evidncias que regem a normalidade das coisas, o sentimento de as coisas

    estarem indo no seu devido curso, perguntar-se sobre o vnculo entre educao e poltica a

    propsito do problema de como se produz um consenso em torno da centralidade da educao para

    a conformao da nova ordem que pede passagem (ou a fora), faz todo sentido a estudiosos da

    poltica.

    Tal articulao do problema, propomos, pode ser mais rigorosamente captada se

    abandonamos alguns dos protocolos dominantes do saber moderno, notadamente o objetivismo e o

    cientificismo (como atitudes constativas, neutras e no posicionais). Pois para comear no ponto

    pacfico que este seja um problema, ou mesmo que tamanha aceitabilidade do lugar central da

    educao nos conecte questo do poltico. No podemos alegar estar falando do que todos j

    sabem e vem. Mas isto vale dos dois lados do argumento, e, portanto, torna-se um problema

    relativo objetividade do sensvel/sabido. Tambm se requer que problematizemos as formas de

    articular a observao do mundo e a interveno nele, de modo a reconectar o sensvel/material e o

    perceptvel/simblico em bases que no os oponham categoricamente, mas persigam sua

    imbricao. Requer-se que no apenas afirmemos esta conexo, mas que a especifiquemos, o que

    sempre demanda que se fale num contexto (cf. Dean, 2000, p. 3-5). A posio assumida neste texto

    encontra (e prope-na) na abordagem discursiva uma forma de nomear e narrar o real em nosso

    tempo que simultaneamente se assume descrevendo-o e intervindo sobre ele, reconfigurando-o ou

    buscando faz-lo, frente a outras formas de representar o real. De modo que h, sim, uma disputa

    pelo que h, pelo que est acontecendo, pelo para-onde-vo as coisas, em suma, mais do que uma

    guerra de interpretaes, uma disputa hegemnica pelo mundo em que vivemos.

    O percurso a ser seguido o seguinte: introduzirei uma perspectiva centrada na categoria

    discurso, para interrogar-me sobre a forma de articulao entre o material e o simblico que esta

    opera, e refletir, a partir dela, sobre alguns temas gerais relativos ao campo da educao, at chegar

    ao ponto em que vrias modalidades de vnculo entre educao e poltica se explicitam, como parte

    da tecedura (textualidade) da realidade, de nosso tempo, e no como algo fortuito ou meramente

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 9

    imaginado. Espero assim realizar um exerccio de construo de um objeto em relao constante

    com os meios de sua enunciao: falar de educao enquanto se delimita um vocabulrio e uma

    gramtica polticos de sua compreenso. Em procedendo desta maneira, minha fala estar

    sobredeterminada em cada um dos seus dois leitmotifs discurso e educao ao referir e

    pressupor um ao outro no mesmo processo.

    DO DISCURSO COMO OBJETO AO DISCURSO COMO ONTOLOGIA SOCIAL

    A partir de fins dos anos de 1960, no campo da lingustica, a anlise do discurso penetrou

    como um furaco, suscitando adeses entusisticas, mas tambm, recusas indignadas. Do

    iconoclasmo que trazia para o cerne da compreenso espontnea e expressiva do uso da

    linguagem as questes da ideologia e do inconsciente, consolidao como um campo de saber

    srio muita gua passou por baixo da ponte. Acusaes de idealismo, irracionalismo ou

    superpolitizao foram muitas vezes feitas e demandaram esforos de contra-argumentao ou

    especificao. No Brasil este um processo que se faz sentir em seus efeitos a partir de fins dos

    anos de 1970, com as primeiras publicaes resultantes da recepo dos debates europeus

    (notadamente franceses) dos anos anteriores. Tanto no caso europeu como brasileiro, a sombra do

    movimento estruturalista nas cincias humanas provia muitos dos recursos analticos e orientao

    geral dessa forma particular de articulao entre linguagem, subjetividade e realidade social.

    A anlise do discurso desmontava toda uma ideia de elevao associada ao cultivo das

    letras linguagem aqui solidamente ancorada nos dispositivos formais e pragmticos da

    comunicao e da lngua. O discurso atravessava a distino entre usos eruditos e usos populares da

    linguagem. Apontava no tanto para a quase obviedade do carter social da linguagem, mas para a

    topologia dos seus usurios, diretamente imbricados nas relaes sociais de produo, circulao

    e troca de bens materiais e simblicos, num determinado tempo e lugar. Relaes sabidamente

    assimtricas e definidoras de posies cujo adensamento (em termos de controle de recursos para

    originar, regular e modificar a configurao daquelas relaes) conferiria privilgios e vantagens

    aos seus ocupantes. Assim, de um lado, a linguagem no podia ser separada da vivncia social, de

    modo que seria necessrio dar conta de sua eficcia especfica na experincia da realidade seja do

    que aporta constitutivamente realidade, seja do que reflete como elemento constituinte da

    realidade. De outro lado, a linguagem possui uma dimenso de opacidade que opera efetivamente

    entre o querer-dizer, o dito e o compreendido, voltando-a a uma permanente propenso ou

    suscetibilidade errncia do sentido (disseminao do sentido para reas distantes de sua

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 10

    correspondncia a um referente prprio e distoro do sentido dada a inter-incompreenso

    constitutiva que se estabelece entre seus usurios).

    Desta forma, a anlise do discurso realava uma dupla dimenso do processo de

    construo da realidade social que as anlises convencionais de vrios campos cientficos

    ignoravam (por desateno ou por desconsiderao deliberada):

    1. A materialidade do real penetrada pelo simblico, de modo que a realidade social ,

    como no adgio popular, dita-e-feita, no h distncia nem sequncia entre um mundo duro dos

    objetos e um mundo etreo dos signos; o mundo dos objetos sempre-j significao, pois por

    meio da mesma que temos acesso materialidade do mundo (se restringirmos esta afirmao s

    coisas sociais, tal materialidade , em larga medida, simblica). A desateno para a imbricao

    entre a construo simblica da realidade e sua conformao material no indicaria apenas um lapso

    de interesse, mas implicaria num esquecimento produtor de efeitos de poder, legitimadores da

    ordem vigente.

    2. O sujeito da ao social no detentor de uma autonomia ou soberania que lhe confira

    plena liberdade de vontade, iniciativa e realizao. Tais caractersticas, quando explicitadas, tero

    sido sempre o resultado de processos sociais e histricos de construo de posicionalidades.

    Autonomia e soberania sero efeitos relacionais, produtos ex-post de construo de subjetividade;

    logo, por definio, relativas, quer refiram-se a pessoas ou a organizaes/sistemas. No somente o

    estar posicionado permite ao sujeito certas coisas e veta-lhe ou condiciona outras, mas tambm

    processos inconscientes de relao com o (desejo do) outro (humano, cultural, social, ambiental)

    fazem com que a agncia humana (individual e coletiva) se d num contexto em que elementos

    impulsionadores ou refreadores da ao lhe escapam. Originam-se em outro lugar, ainda quando

    tm lugar na subjetividade do agente. Tambm demandam negociao ou enfrentamento, uma vez

    que a ao nunca se constitui num vazio relacional: h sempre posies previamente constitudas,

    com as quais se conta, pelas quais se luta ou contra as quais se confronta. O sujeito est

    posicionado, delimitado: por instituies, pelos coletivos dos quais participa, pela temporalidade da

    sua formao social, pela incompletude de seu domnio sobre o mundo e pela intransparncia de sua

    prpria experincia de si. O discurso, como lugar de produo de sentido, um lugar no qual essas

    duas dimenses se articulam.

    Mais do que de linguagem, a anlise do discurso falava de discurso. E por isto queria

    significar, dentro do debate lingustico, que o sentido socialmente produzido produz-se e circula no

    interior de sequncias lingusticas articuladas por meio de duas operaes bsicas:

    substituio/deslocamento e associao/condensao. Portanto, mais do que das palavras e de seu

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 11

    encadeamento lgico, tratava-se do funcionamento do discurso, do modo como este constri uma

    situao na interao com outros. Cedo se percebeu que o discurso ia alm.2 Pode-se ter um

    discurso expresso por meio de cones, smbolos, ndices (como distinguia Charles Pierce), ou

    investindo diferentes matrias significantes, como o filme ou a moda (como insistia Roland

    Barthes): da lingustica semiologia/semitica3. O discurso pode, alm disso, ser objeto de lutas

    pelo poder, ou seja, pelo controle da enunciao, envolvendo a concepo e implementao de

    tticas, estratgias, repertrios de ao, gestualidade, ritualizao, etc., que so parte integrante das

    formaes discursivas como lugares de hegemonia. O discurso uma prtica na qual se constituem

    instituies, procedimentos, comportamentos; delimitam-se esferas de competncia ou jurisdio;

    disputam-se posies de enunciao que so tambm lugares de disciplinamento ou controle de

    feixes de prticas sociais (ou, visto de uma outra tica, lugares de capacitao para manter ou

    transformar a ordem vigente num dado campo social, numa dada formao social, num dado

    perodo histrico). Assim, nunca se est s com as palavras, falas, intenes manifestas ou veladas.

    Simplesmente, no h ao social sem significao, mas toda significao est inscrita ainda que

    nunca plena ou definitivamente num discurso.

    O contexto terico destes desenvolvimentos tambm ressaltava o carter analtico, no

    emprico, do discurso. Enquanto um construto analtico, um discurso pode ser sempre, e de fato o ,

    articulado a outros discursos quando aproximamos o foco em qualquer direo seja a do agente

    individual, seja a de grupos especficos de pessoas identificadas por atributos ou prticas, sincrnica

    ou diacronicamente. No possvel demarcar objetiva, rigorosa e estavelmente os limites do

    discurso, porque os discursos concretos no se mantm em relao de mera contiguidade uns aos

    outros. Atravessam-se, articulam-se, enfrentam-se, transformam-se, morrem.

    Discurso, enquanto categoria analtica, tambm pode ser tratado em termos de tipos,

    gneros, modalidades. Mas isto ainda tenderia a manter-nos presos a uma definio que, embora

    analtica, funda-se na dimenso lingustica da produo de sentido. A despeito das mltiplas

    2 ocioso discutir aqui se mesmo por trs de objetos semiticos que no recorrem s palavras, a linguagem no

    estaria implcita, como quase-infraestrutura de compreenso ou decodificao. De um lado, isto bvio: no h

    experincia humana sem linguagem. De outro, o termo em si ambguo, pois no certo que se restrinja aos

    mecanismos e contedos fnicos e escritos que reconhecemos como lingusticos. Se linguagem for pensada como um

    sistema de signos, como corrente encontrar em expresses cotidianas (linguagem verbal/no-verbal, linguagem

    spera, linguagem dos sentidos, linguagem do amor, linguagem didtica, etc.) e como j se construiu

    conceitualmente (cf. Wittgenstein, 2005; Barthes, 1974; Barker e Galasinski, 2003; Charaudeau, 2008), se

    compreender por que o discurso vai alm do lingustico.

    3 Esta passagem claramente no cronolgica: Pierce foi contemporneo de Saussure e, portanto, sua semitica

    antecede toda a problemtica da AD em dcadas. Mas refiro-me aqui a desenvolvimentos internos AD que levaram

    descoberta da semitica pierceana, inclusive ao abandono do termo saussureano semiologia.

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 12

    definies possveis e em parte aceitveis de discurso que assim se delimitam, o discurso, num

    entendimento amplamente difundido por e em torno de Foucault, remeteria antes a um conjunto de

    regras de produo e circulao de sentidos que a contedos indicativos, que teriam que ser

    encontrados nas distintas instncias qualificveis como exemplos ou casos de um determinado

    discurso. Obviamente, h contedos discursivos, no entanto, estes no provem a unidade mnima

    identificadora de uma prtica como pertencente a um discurso x. No preciso compartilhar

    sequer a maioria dos termos, proposies, nfases, formas de agir presentes num discurso para

    reconhecer-se nele ou reivindic-lo (essa sendo precisamente a questo de toda heterodoxia).

    Enfim, um amplo (e contencioso) territrio das prticas significantes, enquanto

    socialmente determinadas e constitutivas da realidade, foi descortinado por esse campo de saber.

    Em face desse entendimento, grande parte do uso corrente da palavra discurso como fala

    atribuda a algum, ou como conjunto de posicionamentos oriundos de pessoas, grupos,

    organizaes, governos reflete um entendimento empiricista, limitado e contraditrio das prticas

    discursivas.

    A sntese hiper-simplificada oferecida acima que abstrai de toda meno trajetria de

    desenvolvimento da AD (como chamaremos daqui por diante), s diferentes correntes tericas e aos

    debates que foram conformando um modo de pensar e de fazer, em contextos acadmicos nos

    prov uma base mnima para uma notvel transposio que teve lugar nos anos de 1980. Tal

    transposio levou emergncia de uma distinta problemtica do discurso especificamente

    ancorada nas cincias sociais, notadamente na cincia e filosofia polticas. A teoria do discurso

    (TD) veio a ser assim chamada a partir do trabalho seminal de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe,

    Hegemonia e estratgia socialista: por uma democracia radical e plural (1985). Ali, a centralidade

    da categoria discurso ainda no nomeava um campo novo, mas o invocava e ensaiava passos nessa

    direo: ps-marxismo, teoria da hegemonia, teoria do discurso so termos que aludem a distintas

    dimenses dessa interveno intelectual e poltica que suscitou intenso debate em vrias partes do

    mundo, embora permanea marginal nas cincias humanas e sociais brasileiras (cf. Torfing, 1993;

    Laclau e Zac, 1994; Howarth, Norval e Stavrakakis, 2000; Mouffe, 2005; Laclau, 2005; Critchley e

    Marchart, 2008; Mendona e Rodrigues, 2008).4

    A transposio a que me referi resultou na emergncia de uma problemtica do discurso

    nas cincias sociais. Ela foi operacionalizada pela repetio do gesto formalizante que j havia

    4 Por falta de espao e em vista das questes centrais deste trabalho, no me alongarei sobre esta caracterizao da

    teoria do discurso/da hegemonia. Remeto o(a) leitor(a) interessado(a) a outros textos nos quais procurei caracteriz-la

    em maior detalhe (cf. Burity, 1994; 1997; 2007; 2008).

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 13

    sido to produtivo no campo da lingustica (no caso das escolas de Praga e de Copenhague), e pela

    radicalizao de uma das caractersticas j encontradas na AD de linha francesa (ponto de partida de

    boa parte das questes at aqui indicadas): sua preocupao com o discurso poltico, ou com a

    dimenso poltica das prticas discursivas.

    preciso bem compreender a operao formalizante que retira o conceito de discurso do

    campo de referncia lingustico. Pois no se trata de um formalismo abstrato: para Laclau no h

    teoria da hegemonia possvel sem relao ao particular, ao contextual (cf. 2000, p. 188-189). O que

    a formalizao permite tirar consequncias da descontinuidade j estabelecida pelas correntes

    citadas entre as substncias fnicas e conceituais da linguagem e as categorias lingusticas. Em

    outras palavras: o que foi proposto como especfico da estrutura e funcionamento da lngua no lhe

    especfico ou intrnseco, mas distribui-se a outras regies ontolgicas da realidade, na exata

    proporo de seu carter social. Produz-se uma semiologia generalizada, de que Barthes foi um dos

    pioneiros, mas que vai muito alm do que ele pde elaborar (idem, p. 189-190). Transforma-se,

    alm disso, o contedo dessas categorias lingusticas por recontextualizao em um outro campo de

    saber. Mas afirma-se a utilidade da construo conceitual feita para os fenmenos lingusticos em

    terrenos efetivamente distintos do universo estrito dos mesmos, invertendo a compreenso da

    linguagem como fenmeno social para afirmar a operao, por exemplo, de mecanismos retricos

    ou de articulao do sentido enquanto lgicas sociais e polticas. Para usar uma derivao

    etimolgica pertinente: da linguagem do texto, tessitura/tecedura (natureza/processo) do real, a

    categoria textualidade vai alm da lingustica e sociologiza-se. Muito haveria que reconhecer da

    mediao da filosofia nessa passagem.

    Por outro lado, a teoria do discurso promove uma radicalizao dessa perspectiva, em direo

    postulao de uma ontologia poltica do social. Que conceito de discurso emerge da repetio

    formalizante e por que dizer que ele alude a uma concepo poltica da ontologia? Um trecho em que

    elabora o assunto luz da contribuio wittgenteiniana, Laclau articula uma srie de definies:

    Entendo por gramtica o conjunto de regras que governam um jogo de linguagem

    especfico (o conjunto de regras que definem o que o jogo de xadrez, no exemplo de

    Wittgenstein). Por lgica, ao contrrio, entendo o tipo de relaes entre entidades que

    possibilita o funcionamento de fato daquele sistema de regras. Enquanto a gramtica

    meramente enuncia quais so as regras de um jogo de linguagem particular, a lgica

    responde um outro tipo de questo: como tm que ser as entidades para que aquelas regras

    sejam possveis. () enquanto a gramtica sempre ntica, a lgica ontolgica.

    Que dizer do discurso? () O conjunto das regras mais as aes que as

    implementam/distorcem/subvertem o que chamamos de discurso (2000, p. 284).

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 14

    Em A razo populista encontramos mais uma especificao desta radicalizao do

    discurso:

    O discurso o terreno primrio de constituio da objetividade como tal. Por discurso,

    como j tentei esclarecer vrias vezes, no quero dizer algo que seja essencialmente

    restrito s reas da fala e da escrita, mas qualquer complexo de elementos no qual as

    relaes cumpram um papel constitutivo. Isto quer dizer que os elementos no pre-

    existem ao complexo relacional mas se constituem atravs dele. Assim, relao e

    objetividade so sinnimos (2005, p. 68).

    Na medida em que no h um contedo ltimo definidor da realidade, da sociedade, da

    comunidade, a construo de representaes que, em sua particularidade, preenchem parcial e

    temporariamente o lugar vazio do universal, implica no carter discursivo da realidade. O fato de

    que este processo s tem lugar na medida em que um significante, um discurso ou uma fora social

    (intercambiveis neste contexto) particulares so capazes de representar (num sentido poltico, que

    corresponde operao de uma prtica articulatria, produtora de equivalncias entre posies

    diferentes) um nmero indefinido de outras particularidades, ao mesmo tempo em que logra tal

    equivalncia ao construir uma diviso social em relao a um outro antagonistico, estamos diante

    do carter poltico dessa lgica discursiva.

    Por outro lado, se os objetos sociais se constroem no interior de sistemas de relaes (ou de

    diferenas) e tm suas identidades condicionadas pela forma especfica como se configuram e

    transformam estas relaes, na medida em que nenhum desses sistemas constitui-se de forma

    distinta ou seja, tambm fazem parte de outros sistemas o que temos em resultado uma lgica

    de constituio que corresponde ao conceito lingustico de discurso. Mais do que nos

    questionarmos sobre estarmos forando este conceito, uma outra linha de indagao seria: em que

    medida o discurso tal como definido na teoria da linguagem especfico do funcionamento da

    lngua? Em que medida no estamos apenas diante da manifestao lingustica de um fenmeno,

    ou antes uma forma, mais geral, cujo carter social e histrico a lngua, enquanto fenmeno social e

    histrico, herda e aciona? A TD assume o que est indicado nestas perguntas afirmativa e

    sistematicamente.

    Essa repetio formalizante e radicalizao da dimenso poltica do discurso foram

    possveis em vista de problematizaes e inflexes de fontes tericas (oriundas da filosofia, da

    lingustica, das cincias sociais e da psicanlise, principalmente) que poderiam ser talvez

    sintetizadas em duas filiaes: ps-marxismo e desconstruo. No vamos detalh-las aqui, pois

    nosso foco outro. O que se trata de delimitar aqui como o vnculo entre cultura e poltica, como

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 15

    proxies do simblico em inextricvel relao com o material, pode ser explorado em relao com o

    tema da educao5. Assim, voltamo-nos a seguir para ilustrar esse vnculo, construindo-o em termos

    analticos e ilustrando-o com dois casos contemporneos.

    PRTICAS CULTURAIS, PRTICAS EDUCATIVAS E O POLTICO

    A conjuntura terica e poltica de emergncia da TD (anos de 1970 e 1980) marcada por

    um nmero de intervenes crticas que visaram a problematizar as concepes e prticas herdadas

    como modernas e vistas em sua cumplicidade mutuamente reforadora. Intervenes que

    retomavam e reconstruam, aprofundavam ou desconstruam contribuies de pensamentos

    anteriores, at mesmo milenares (a para alm do Ocidente). Mltiplas formas de interrogao foram

    lanadas s manifestaes voluntrias ou no dessa cumplicidade, tematizando as instituies

    polticas e sociais modernas (Estado-nao, aparatos governamentais, parlamentos, judicirio,

    educao escolar, a sade pblica, etc.); as representaes histricas, filosficas e sociolgicas dos

    processos de implantao e expanso da modernidade (modernizao, mas tambm colonialismo,

    imperialismo e guerras); a constituio dos saberes modernos (as disciplinas, a epistemologia, a

    metodologia, os distintos gneros do terico e do aplicado, do analtico e do descritivo,

    etc.). Discursos crticos vrios foram articulados de modo tal que, entre outras dimenses,

    realaram-se as seguintes:

    O terror (jacobino, socialista, nazi-fascista, ditaduras militares) como experincia limite do

    moderno seja em termos da dissoluo dos marcadores de certeza (Lefort) que

    instaurariam a democracia como experincia do lugar vazio do poder como lugar do

    povo, deixando no entanto aberta a possibilidade de reativao da fantasia do Povo-Uno

    (totalitarismo, autoritarismo); seja em termos da derivao entre um certo saber

    cientfico da realidade e uma poltica exclusivista ou autoritria. A experincia de ou a

    sensibilidade para os excessos e traumas da poltica moderna foi em muitos casos o que

    desencadeou a resistncia intelectual e poltica que levou a essas novas formas de

    pensamento crtico da modernidade;

    Afirma-se cada vez mais amplamente a pluralidade irredutvel, a diferena, o mundo

    5 Esforos nessa direo, informados pela teoria do discurso, tm sido propostos. No caso brasileiro, eles esto,

    sobretudo, no campo dos estudos sobre currculo e de democratizao da/na educao. Ressalto, por exemplo, os

    trabalhos de Lopes (2005); Cavalieri (2008); Macedo (2009); Barreto (2009); e Marques (2008; 2009). Abordagens

    prximas, normalmente articuladas em linha foucaltiana, e no necessariamente equivalentes ou concordantes com a

    perspectiva da teoria do discurso, podem ser encontradas em Veiga-Neto (1995); Silva (2003); Tenrio (2004); Fischer

    (2001); Gallo (2007). Uma tentativa de mapeamento da penetrao (ou contgio) das perspectivas ps-crticas no

    debate educacional brasileiro pode ser encontrada em Paraso (2004).

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 16

    pensado como construo ex-post, resultante de embates entre projetos antagnicos, e

    no como um ponto de partida dado, ainda que aberto para a variao. Tal pluralidade

    tambm seria interna a cada um desses projetos; de fato, seria a diferena, no a unidade

    ou a identidade, que estaria no princpio; so estas duas ltimas que h que se explicar,

    no a diferena. Por outro lado, a partir de fins dos anos de 1960, a afirmao dessa

    pluralidade sob a forma de direito diferena permitiu a politizao de uma srie de

    demandas por reconhecimento e reparao, para alm das reivindicaes clssicas do

    movimento operrio, que trouxe de vez a questo da cultura para o cerne do debate

    poltico;

    A contingncia da ordem estabelecida e do sujeito que a ela se contrape: a ordem ,

    como o mundo, um efeito de simplificao da pluralidade, por fora de um

    fechamento que pretende restringir a mobilidade e variveis articulaes dos seus

    elementos e ocultar as decises contingentes que fundaram seu estabelecimento. Tal

    fechamento expresso de um projeto, de uma vontade de poder, que jamais consegue

    eludir inteiramente as decises, escolhas e excluses realizadas para que viesse a se

    constituir como ordem, mas busca insistentemente isso (a hegemonia expressa-se no

    sucesso em faz-lo: garantindo a aquiescncia, produzindo o apoio ativo, derrotando ou

    neutralizando a oposio). No somente no h uma objetividade subjacente que

    prescreva irresistivelmente o que ser, como os prprios sujeitos da ordem e de suas

    alternativas se constituem contingentemente, no processo de responder aos desafios,

    ameaas e oportunidades que se abrem em cada contexto6;

    As dimenses subjetiva e simblica da prtica poltica so constitutivas a poltica no

    pode ser fundada cientificamente, nem sua verdade est em outra parte (a economia).

    Onde quer que uma experincia antagonstica ou um deslocamento na estrutura (ordem

    das coisas, discurso hegemnico, status quo institucional, identidade grupal, etc.)

    produzam uma demanda articulada de tal forma que seu atendimento torna-se impossvel

    nos limites da ordem estabelecida sem alterar esta ltima, sem por em xeque sua

    6 Uma anlise oblqua sobre este ponto ressaltaria o aspecto da deciso e da responsabilidade que cerca uma situao

    cujas linhas de fora constitutivas no prescrevem direta, inequivoca e irresistivelmente o(s) curso(s) de ao a seguir.

    Assim, a hegemonia se constri a partir de decises tomadas num terreno indecidvel, entendendo-se por este ltimo

    termo no uma impossibilidade de agir (o que seria no apenas logicamente contraditrio, mas efetivamente falso como

    afirmao geral), mas a condio de agir, isto , decidir, escolher, incluir/excluir, fazer/omitir-se, sem que

    ontologicamente existam fatores irreprimveis guiando ou impondo tal ao. Fica patente como aes tomadas num

    terreno indecidvel trazem a marca indelvel da responsabilidade o que nos remete a toda uma tematizao da tica e

    de seu vnculo com a ao e a poltica, a que s podemos remeter o(a) leitor(a), sem poder desenvolver (cf. Connolly,

    1995; Derrida, 1996; Critchley, 1999; Laclau, 2008).

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 17

    conformao hegemnica, estaremos em presena do poltico. Na medida em que

    demandas particulares, sem deixar de s-lo, podem transformar-se em pontos nodais de

    articulao de vontades coletivas mais amplas, h um trabalho da articulao a ser

    realizado, que no dado pela situao nem vem de graa pela boa vontade de outras

    demandas. Articulao, portanto, termo chave: fala da construo de uma vontade

    coletiva pela transformao de uma demanda particular num objeto de investimento

    simblico universal ou representativo da comunidade em geral; e fala das operaes

    simblicas que precisam ser realizadas para tal7. Perguntando-se sobre onde e como se

    constitui o sujeito da mudana histrica, Laclau (2000, p. 49), amparando-se na leitura

    de Gramsci por Bobbio, afirma:

    Quais so os lugares e lgicas de sua constituio que tornam as aes que se espera

    que o sujeito realize compatveis com o carter contingente dessa interveno? Como

    Bobbio j indicou, esses movimentos pressupem: (a) a construo ativa da primazia

    do momento do partido (no no sentido sociolgico usual, mas como outro nome para

    a primazia da superestrutura sobre a estrutura); (b) a primazia do momento da

    hegemonia (que equivalente prevalncia do ideolgico sobre o institucional).

    Assim, no havendo um contedo previamente determinado que preencha a falha na

    estrutura (percebida como necessidade insatisfeita ou como desestruturao da plenitude

    comunitria demanda ou crise orgnica [Gramsci]), faz-se necessrio um investimento simblico,

    uma identificao com uma formulao particular que se apresente como capaz de preencher tal

    falha. este o sentido da sobreposio entre cultura e poltica aludida acima, que realiza a primazia

    da organizao e da hegemonia sobre a determinao estrutural (sem que devamos entender

    primazia como mera inverso polar no interior de um jogo dual; precisamente da desconstruo

    7 Neste contexto, nem tudo poltico. O poltico remete dimenso instituinte e universalizante de toda prtica, mas o

    que se poderia chamar de o dia-a-dia da formao hegemnica, seu momento de estabilizao, institucionalizao,

    no qual as posies esto relativamente definidas e articuladas, podemos falar de poltica, mas no do poltico. Segundo

    Laclau, s h hegemonia se a dicotomia universalidade/particularidade for superada; a universalidade s existe

    encarnada em e subvertendo alguma particularidade, mas, contrariamente, nenhuma particularidade pode ser

    politizada sem se tornar o locus de efeitos universalizantes (2000:56; v. tb. 2005:139, 142). Se demandas so

    apresentadas e atendidas nos limites da ordem, permanecendo assim isoladas, ainda que para tanto tenham sido objeto

    de mobilizao, presso, manifestao pblica de seus defensores, h apenas gesto da necessidade, do conflito ou do

    descontentamento (cf. Laclau, 2005:9, 97-99). Estaramos aqui no mbito do que desde Foucault (embora o conceito

    seja muito mais antigo, como este prprio analisou) se tem chamado de polcia cf. Foucault, 1990; Rancire, 1996

    e que em Laclau e Mouffe teorizado em termos da distino entre o poltico e a poltica cf. Laclau, 1990;

    Mouffe, 2005. No entanto, nada h de intrnseco a qualquer demanda, ou ao seu lugar de enunciao, que a impea de

    tornar-se um lugar de antagonismo, de articulao hegemnica, no curso do que pode comear como uma inocente

    reivindicao. Uma resposta negativa recebida dos poderes estabelecidos, pelo rechao, promessa de atendimento no-

    cumprida ou pelo atendimento apenas parcial, pode politizar uma demanda ao mant-la insatisfeita, levando-a a

    assumir uma funo hegemnica numa dada situao (cf Laclau, 2005, p. 153, 161).

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 18

    do terreno que funda tal oposio que se trata, mas esta significa primariamente que se h

    objetividade, e h, ela to espectral como material e no vem a existir seno por atos de

    construo que so materiais e simblicos);

    Por fim, as vrias intervenes crticas ao discurso cannico da modernidade (iluminista)

    apontam para um cenrio da transformao no qual as representaes da totalidade e da

    refundao social recuam incontrolavelmente para o horizonte. Aqui trs caminhos se

    separam (mantendo-se heterogneos entre si e internamente a cada um, como se ver nos

    exemplos que darei): um, que desespera de qualquer possvel articulao e aposta na

    proliferao das lutas e demandas, sem denominador comum possvel (Foucault, Negri,

    ps-modernos); outro, que busca precisamente gerir de forma negociada e resignada as

    mudanas possveis em nome da necessidade de vencer a tradio por uma nova

    articulao do moderno (Habermas, terceira via); e um terceiro, que assumindo a

    necessidade e a impossibilidade de uma transformao plena do social, aposta na

    hegemonizao parcial e temporria do(s) espao(s) social(is) por parte de

    particularidades articuladas por meio de relaes de equivalncia entre suas diferentes e

    irredutveis demandas (Laclau, Rancire).

    Sendo as prticas culturais indissociveis da poltica,8 como j foi dito acima isto , das

    mltiplas e contingentes formas de estabilizao de sentidos em disputa ou em fluxo no social, de

    modo a produzir efeitos de ordem , velhos e novos temas podem ser reinscritos nesses discursos

    dissidentes ou ps-crticos. Em realidade, qualquer matria significante, para usar uma expresso

    cara AD, pode ser investida politicamente. Alm disso, deslocamentos sofridos pelo discurso

    hegemnico numa dada situao9 podem repercutir ou disseminar-se sobre diferentes dimenses e

    8 O que no significa que tudo seja poltico ou que a poltica esteja a todo tempo em toda parte. Antes, a natureza deste

    vnculo aponta para a forma como os processos culturais se estruturam, e os atos de constituio poltica do social se

    delineiam por meio de contedos e processos culturais. Em outras palavras, cultura e poltica so indissociveis no

    porque sejam dois nomes para a mesma coisa ou estejam sempre contguas em todo fenmeno, mas porque se requerem

    numa definio do mundo como construo histrica e hegemnica de ordens: porque no h ato sem significao, e

    no h sentido sem formas de encarnao contextuais e performativas.

    9 Ao dizer situao, reduzo a um significante uma enorme discusso que no posso fazer aqui sobre o escopo da

    hegemonia. Seria ela coextensiva aos limites do Estado (como superestrutura juridico-poltica ou como circunscrio

    territorial da nao)? Seria ela relativa a cada esfera da vida social? A feixes de campos institucionais relacionados por

    afinidade de suas identidades e formas de ao? Ou abrangeria todo o horizonte de percepo e durao de uma

    poca, atravessando fronteiras identitrias e territoriais? Dependeria de modulaes analticas ou se definiria

    empiricamente? Abstenho-me de sequer ensaiar uma resposta aqui, no por no julg-la pertinente e estrategicamente

    importante, mas por ser impossvel articul-la de modo minimamente compreensvel e rigoroso nos limites que temos.

    Assim, contento-me em demarcar a precariedade da soluo e insistir em que situao, lida contextualmente e

    reconhecida em sua instabilidade e incompletude, possa nos apontar um caminho provisrio para a continuidade da

    conversa.

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 19

    espaos sociais, suscitando a verses da crise que reclamam sadas a partir do registro prprio

    daquelas dimenses e espaos, mas que podem vir a produzir efeitos de equivalncia produtores de

    uma nova hegemonia.

    O campo da educao um caso instrutivo dessas reinscries. Quer tomado como campo

    disciplinar da educao como discurso acadmico, quer como prtica pedaggica, quer como objeto

    de aes do poder pblico (as polticas educacionais), a educao tornou-se na histria da

    modernidade pela iterao globalizada da forma nacional gerada pelo efeito combinado do

    colonialismo, do imperialismo, das ideologias polticas (principalmente os liberalismos,

    republicanismos, e socialismos ps-Revolues Americana e Francesa), dos discursos religiosos e

    do ativismo anti-estatal um dos mais formidveis loci e meios de produo de identidades e de

    prticas hegemnicas.

    Em torno da educao, o ideal construtivista da modernidade, de produzir uma

    humanidade liberada das peias da tradio, da heteronomia, da sujeio (arbitrria ou voluntria),

    tomou corpo de inmeras maneiras. Como tambm fracassou, dando lugar a seu oposto em muitos

    momentos (e nem sempre por conta de adversrios desse projeto!). Reconhecido o fracasso de

    muitas propostas modernas em realizar tais ideais, a educao continuou animando a utopia de,

    enfim, humanizar ou emancipar, em permanente tenso e conflito com as anti-utopias de

    docilizao e eficientizao dos sujeitos em nome de objetivos ou ameaas maiores. Lugar por

    excelncia de cultivo do universalismo moderno, o campo da educao experimentou, na sua

    regionalizao/institucionalizao enquanto escola/universidade, ou na sua sublimizao enquanto

    fora/ideologia de transformao por meio das luzes do conhecimento, todas as mutaes das

    mltiplas modernidades constitudas ao longo do tortuoso e ambivalente descentramento do

    Ocidente moderno em escala global. Ponto de convergncia das grandes linhas de fora da cultura,

    seria perfeitamente possvel escrever-se uma histria da educao, quer local, quer transnacional,

    nos ltimos 150 anos, luz da dinmica poltica entre universalidade e particularidade, equivalncia

    e diferena, hegemonia e resistncia, que grosso modo traamos acima.

    Mas sejamos mais modestos, que o tempo e o espao nos faltam. A competncia para tal

    exerccio tambm nos escapa. Falando desde fora do discurso disciplinar da educao, parece-nos

    mais razovel e modesto refletir sobre a zona de fronteira entre uma problemtica poltica do

    discurso e algumas das questes da educao, zona que delineia um locus de antagonismo e disputa

    hegemnica. Ao modo de uma reflexo, antes que de uma aplicao, tratar-se-ia de compreender

    como, no contexto recente das disputas em torno da reconfigurao da ordem social (capitalismo

    global, derrocada do socialismo, crise ambiental, incremento das ideias de participao e cidadania

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 20

    democrticas, avanos do neoliberalismo e da terceira via, etc.), emergiram demandas que no

    cabiam no script da poltica de interesses. Que no se regiam pela lgica da representao desses

    interesses num espao distinto do de sua constituio, as instituies estatais (governo e

    parlamento). Resistindo ou respondendo afirmativamente quele contexto. Demandas que

    requeriam, para seu atendimento, reconfiguraes da ordem vigente donde seu carter poltico,

    mais do que meramente reivindicatrio. Demandas que, no entanto, no tinham como alvo ou

    motivao a captura do estado portanto, no-polticas, no sentido convencional deste termo

    mas diziam respeito a formas de construir culturalmente o vnculo social, o estar-junto,

    reconhecendo e reposicionando diferenas existentes/emergentes10

    .

    Enquanto clssico discurso sobre o estar-junto como compartilhamento de uma cultura

    (identidade nacional, regional, de classe, tnico-racial, de gnero, religiosa, etc.) para alm da

    diversidade ou da pluralidade que constituem os entes sociais modernos, a educao veio a ser parte

    importantssima dessas demandas, alm de locus de sua articulao. Nas ltimas dcadas, surgiram

    demandas por educao universalizao do acesso, ensino de qualidade, enfrentamento dos

    efeitos da desigualdade e da excluso por meio de novas prticas pedaggicas, novos contedos

    educativos e novos modelos de gesto da institucionalidade educacional existente. Surgiram ainda

    demandas no interior do campo da educao por novas formas de relao entre professores e

    alunos; pela inverso de modelos educativos baseados na transmisso de conhecimentos e

    correspondentes formas de aferio da aprendizagem por modelos baseados em diferentes formas

    de raciocnio crtico e complexo voltado ao desenvolvimento de uma capacidade de aprender; por

    reconhecimento de diferenas tradicionalmente invisibilizadas ou de identidades emergentes no

    currculo escolar. A lista meramente sugestiva. O ponto que, a tendncia a apresentar-se a

    educao como projeto supraideolgico, supraclassista, de produo de sujeitos livres e

    competentes ou crticos raramente conseguiu conter ou disfarar os embates polticos pelo controle

    da enunciao nas sociedades contemporneas. Mesmo que o escopo da disputa tenha variado

    basicamente entre diferentes e contraditrias concepes de liberdade surgidas com a modernidade,

    o campo da educao nas ltimas dcadas foi politizado tanto enquanto contedo de demandas

    como enquanto ambiente de sua articulao.

    Alm disso, o campo da educao enquanto discurso analtico e prtica pedaggica em

    contextos institucionalizados sustenta-se precisamente no cruzamento entre objetividade e

    10

    Desenvolvi em outros lugares anlises sociologico-polticas desse cenrio, s quais remeto aqui para poder avanar

    em direo a uma reflexo sobre o campo da educao enquanto espao-tempo discursivo, ou, o que d no mesmo,

    poltico (cf. Burity, 2005; 2006a; 2006b).

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 21

    subjetividade, entre o descritivo e o normativo. O aparente neutralismo da descrio cientfica

    (metodologias e tecnologias de ensino, aprendizagem e avaliao; pesquisa educacional acadmica;

    diagnsticos voltados interveno das polticas governamentais) encontra-se com a urgncia dos

    objetivos educativos regulados por inmeros modelos e tcnicas justificadas e prescritas em nome

    de sua eficincia intrnseca, de exigncias de poca ou de projetos polticos especficos, ou ainda

    dos meta-objetivos da educao-em-geral indicados acima. No difcil perceber como este

    precisamente o terreno da construo simblica de uma poltica da educao: entre o cientfico e

    sua aplicao delineia-se uma zona opaca do tico-poltico, da deciso tomada em terreno

    indecidvel, que a TD tematiza sem cessar. O que afirmado como concluso lgica de uma teoria,

    como recomendao inevitvel de uma descrio ou diagnstico empricos antes o efeito

    retroativo de um salto entre a constituio de um argumento (terico ou emprico) e as mltiplas

    possibilidades de interpretao e de aplicao do mesmo. Nessa zona opaca, discursos sobre a

    educao, seus objetivos, modalidades e lugar social constituem-se, circulam e debatem-se. A

    opacidade dada pelo hiato entre as prticas de produo de saber e sua fora performativa (seu

    dever-fazer e dever-crer), entre o discurso cientfico da educao e o raciocnio tcnico

    prescritivo da pedagogia, por exemplo, uma das formas especficas como se exprime a hegemonia

    no campo da educao.

    A poltica da educao, neste sentido, se faz pelo apagamento da distncia entre o

    cientfico e o pedaggico, quer pela pretenso de objetividade do discurso cientfico quer pela

    presso de projetos de sociedade que conclamam a educao a produzir os sujeitos necessrios

    constituio e reproduo da (nova) ordem, a mostrar a relevncia social do pensamento

    educacional, a apresentar modelos prticos de sistemas ou tecnologias educacionais. Em ambos os

    casos, a educao v-se cruzada por disputas nas quais o terico e o poltico, o prtico e a injuno

    normativa tornam-se ndices de politizao, parte integrante da conflitividade de nosso tempo, e no

    exatamente um espao ao abrigo dos rudos, asperezas e impureza dos discursos que se alam

    pretenso de estabilizar o social, dando-lhe direo, hegemonizando-o.

    Tal lgica pode ser aplicada tanto ao exterior do discurso acadmico da educao (ex. a

    realidade social das comunidades onde se implementam aes educativas, o circuito das polticas

    governamentais de educao, o campo dos discursos no-governamentais da educao) quanto ao

    seu interior (ex. as disputas tericas, as oscilantes nfases na educao como prtica da liberdade

    ou como profissionalizao e desenvolvimento de competncias para o mercado, as prticas de

    construo institucional do campo e os alinhamentos e composies de foras constitudas em

    torno de saberes e especialidades terico-temticas). No h, portanto, um fora da educao que a

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 22

    possa manter ao abrigo das disputas hegemnicas, com repercusses diretas e profundas tanto sobre

    seus contedos como sobre sua forma, tanto sobre sua autocompreenso como sobre a figurao de

    seu lugar e funo sociais.

    Por fim, o campo da educao torna-se uma espcie de fractal da estrutura formal do

    discurso como ontologia poltica do social. Num sistema de diferenas, o destino de cada

    elemento articulado pe em questo o conjunto da estrutura, no sentido de que replica seus

    princpios estruturantes e de que pode tornar-se o locus de recomposio da mesma ou de sua

    subverso (na medida em que traga para seu interior [fragmentos d]o que a ameaa ou junte-se

    ao inimigo, desertando-a e ou atacando-a de dentro). Mudanas na fora dos vnculos entre as

    diferenas que constituem o discurso, a incluso de novas diferenas ou a interveno antagonstica

    de outros discursos deslocam a hegemonia em vigor, desafiando-a ou derrotando-a.

    Dentre vrias maneiras de construir este ponto, gostaria de fixar-me numa: aquela que

    atribui educao o lugar universal de sutura das mltiplas falhas da ordem capitalista e/ou

    democrtica em assegurar igualdade de condies (Tocqueville) a todos, independentemente de sua

    posio na estrutura das relaes sociais: quer igualdade de oportunidades (fairness) quer igualdade

    substantiva em termos de mximos ou mnimos sociais (equality). Em outras palavras, refiro-me ao

    discurso absolutamente difundido, e neste sentido, amplamente hegemnico, de que a educao a

    sada em ltima anlise para a pobreza, a marginalidade, o emprego desqualificado ou o

    desemprego, a aquiescncia resignada diante do poder estabelecido, a existncia de discriminaes

    e preconceitos raciais e de gnero, a incivilidade e a violncia urbanas, a falta de assertividade

    cidad ou o desconhecimento dos direitos assegurados legalmente, a dificuldade de compreender e

    aprender a viver com a complexidade estrutural e a diferena cultural. Nos anos de 1990, em escala

    mundial, constituiu-se uma formao discursiva em torno dessa posio, que atravessou

    divergncias ideolgicas, por exemplo, sobre a reestruturao produtiva, a redefinio das relaes

    entre Estado e sociedade na proviso dos bens e servios pblicos, ou o impacto da globalizao nas

    realidades nacionais e locais. Da Unesco e do Banco Mundial a organizaes e governos nacionais

    e locais, nas instituies representativas, na mdia e na academia, diferentes discursos articularam

    um mesmo ponto, divergindo em vrias medidas sobre como melhor realiz-lo: a educao a

    soluo. Aparentemente todos davam por bvio e acima de discusso a necessidade de valorizar a

    educao como meio de ascenso social, enfrentamento da desigualdade e do preconceito, e

    preparao para a cidadania ativa. Neoliberais e republicanistas, capitalistas e socialistas engros-

    saram o coro, todos pela educao.

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 23

    No questiono aqui os indicadores lastimveis do acesso, qualidade do ensino e

    permanncia no sistema escolar para milhes de brasileiros. Nem minimizo a nobreza tica do

    compromisso com a universalizao deste recurso que em muitos sentidos uma das maiores

    invenes da modernidade. O que ressalto a operao da lgica poltica da hegemonia no que

    aparentemente se trataria de um programa acima das divises prevalecentes em outros domnios do

    social. Por sob este consenso, acirradas disputas se deram no equacionamento ou satisfao de

    demandas relativas diferena cultural (p.ex. adotar ou no cotas para afrodescendentes no sistema

    pblico de ensino? Inserir ou no o ensino religioso no currculo escolar?) ou na definio da

    macro-estrutura do campo educacional (ex. direcionar a experincia escolar no sentido da formao

    para o mercado ou formar cidados crticos e participativos? Estimular a ampliao da oferta

    privada da educao ou investir mais pesadamente na educao pblica? Desinstitucionalizar a

    educao como prtica de diferentes agncias ou reforar o sistema escolar como seu ncleo duro?).

    Mas tais embates, na medida em que se inseriam num campo hegemnico, afetavam apenas a

    dimenso do como fazer, no a concepo estratgica da educao como instrumento por

    excelncia de mudana social. Neste sentido, o consenso em torno da educao replicava processos

    de despolitizao em curso em outras esferas do social, que tendiam a tornar a poltica uma mega-

    prtica gerencial, de alocao de recursos regida pela lgica da eficincia (custo-benefcio) e do

    atendimento pontual de demandas esvaziando-as de suas conotaes potencialmente sistmicas e

    premiando o comportamento colaborativo (parcerias, redes).

    Nesse diapaso, a educao torna-se fundamental ao enfrentamento da crise percebida por

    tantos e to variados atores sociais desde crises tcnicas (relativas transio de novas formas de

    produo preparao de uma nova fora de trabalho e novas relaes de produo adequadas quelas)

    at crises civilizacionais (a questo ambiental, a percepo de conflitos entre civilizaes/culturas

    dispostas num mosaico geopoltico ps-Guerra Fria, reavaliao ou reforo do lugar social da cincia e

    da tecnologia na estruturao capilar da vida social). Mas no tal entendimento j uma expresso da

    primazia do partido e da hegemonia, como afirmou Laclau, ou seja, da culturalizao do fazer

    social e poltico que constitui e transforma a ordem social? Se a educao a sada a forma, o meio, o

    contedo para a crise de nosso tempo e a resposta para o que nos distancia ainda da soluo dos

    problemas herdados do passado, a senha para nossa entrada no novo mundo que j se estaria

    desenhando sob nossas vistas, para qualquer um ver, no h aqui um reconhecimento da primazia do

    cultural e do poltico sobre o dado, o determinado, o objetivo? Sob a prpria lgica da educao como

    soluo se estaria espraiando precisamente a operao do discurso como prtica constitutiva do real. A

    educao um fractal da estrutura discursiva da realidade social.

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 24

    Aparentemente, este processo estaria regido por uma lgica dual, polarizada, de novo para

    qualquer um ver, como se pode encontrar na formulao abaixo, tomada de um blog portugus a

    propsito de disputas entre professores portugueses, seus sindicatos e o Ministrio da Educao:

    De um lado, aquilo que apareceu referido nos cartazes como a Escola Pblica e a que

    os nossos colegas franceses chamam, talvez com mais propriedade, a Escola

    Republicana, que se define pelo acesso de todos ao melhor que a nossa civilizao

    oferece. Do outro lado, o inimigo: a escola tecno-burocrata, para a qual no h

    civilizaes, mas sim economias, e cujo projecto consiste em ensinar uma

    pequena elite econmica, ficando reservado a todos os outros aquilo a que Maria de

    Lurdes Rodrigues chama qualificao (Sarmento, 2008).

    Na verdade, as coisas no so to ntidas assim. Um texto recente de Macedo ilustra esta

    dinmica ao mesmo tempo em que mostra como o que parece ser um processo coordenado e

    controlado de modo inelutvel, desde uma agncia neoliberal-global-tecnocrtica, abriga disputas e

    responde ao avano de discursos alternativos (ainda que devamos evitar entender por este ltimo

    termo uma singularidade plenamente constituda em oposio a outra). Analisando o discurso da

    qualidade da educao, ela comenta:

    Em minhas anlises, tenho considerado que a noo de qualidade da educao vem

    funcionando como ponto nodal que organiza os discursos pedaggicos e justifica a

    necessidade das reformas curriculares. Essa noo, tal como acontece com qualquer

    ponto nodal, um significante vazio que lutas hegemnicas tentam preencher. Nesse

    processo, a presena de um exterior constitutivo, representada pela ineficincia do

    sistema educacional (pela ausncia de qualidade), articula discursos vrios e cria um

    hbrido de diferentes posies de sujeito. Argumento que cadeias de equivalncias so

    criadas, incluindo fragmentos de diferentes discursos, como soluo para a propalada

    crise educacional (Macedo, 2009, p. 92).

    E, mais adiante:

    O argumento que espero ter construdo at aqui que as demandas da diferena tm

    acirrado uma cadeia de equivalncias entre discursos universalistas que visam a

    preencher o significante vazio qualidade da educao. Em relao aos currculos, essa

    cadeia tem se alicerado sobre a defesa de contedos tradicionalmente neles presentes,

    frequentemente associados ideia de que os campos de conhecimento tm algo que

    lhes prprio. No entanto, esse discurso tem de negociar sua existncia com as

    demandas da diferena que tambm tm conquistado seu espao nos currculos. Para

    manter sua hegemonia nessa conjuntura, as cadeias universalistas tm lanado mo de

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 25

    uma srie de estratgias para se apresentar como soluo para a atual (e de sempre)

    crise do sistema educacional (idem, p. 95-96).11

    Se tomarmos o campo da educao como parte de uma configurao do social que inclui

    outras prticas e loci de agncia coletiva, possvel tirar pelo menos trs concluses deste quadroi

    a) para que a educao emerja como a demanda e o ambiente universal para enfrentamento

    dos problemas estruturais e conjunturais brasileiros num mundo globalizado (no mbito

    do qual mega-jogos hegemnicos esforam-se por fazer circular discursos que inscrevem

    a instrumentalidade da educao num horizonte ainda mais abrangente de

    funcionamento: o do mercado), obliteram-se outros recursos de mudana social, como os

    que classicamente apostam na cidadania ativa como critrio ltimo de ordenamento

    virtuoso do social, e aposta-se na aquisio de conhecimentos orientados tecnicamente

    como desencadeadores de melhoria; em que medida pode-se por outro lado tomar tal

    discurso como desprovido de uma hegemonizao poltica que lhe d contedo e

    direo, parece-me incompatvel com tudo o que foi dito at aqui. Resta ento a tarefa de

    pacientemente reconstituir o processo poltico de constituio desta hegemonia, o que

    revelar o que ela teve que excluir para adquirir tamanho senso de naturalidade;

    b) esse movimento no sem precedente nos discursos universalizantes da modernidade,

    possuindo uma slida tradio tanto no liberalismo como no republicanismo: da educao

    como projeto de produo de indivduos livres, autointeressados e autocentrados escola

    republicana da educao como formao tico-poltica de cidados ativos comprometidos com

    o bem da comunidade poltica, desde h muito espera-se deste domnio de prticas sociais

    modernas no mnimo uma mediao indispensvel na passagem da ordem tradicional ordem

    emancipada. Ocorre que em cada poca tal demanda por/ educao articulou-se a distintos

    elementos co-constitutivos, modulando e especificando seus limites e possibilidades. Hoje

    parece novamente ser o caso de um confronto entre o modelo de educao voltado ao

    indivduo e o modelo voltado coletividade, mas no apenas a fronteira entre ambos os plos

    foi borrada em vrios pontos, como vigora um sentimento de relativa recusa da comunidade

    indivisa, valorizador da pluralidade e mesmo do conflito produtivo, ainda que tendente a

    recompor mecanismos de autoimunidade frente expanso dessa pluralidade, especialmente

    em face da incerteza e insegurana trazidas pela experincia contempornea da globalizao;

    11

    Outras anlises, com distintas orientaes, sobre distintos atores e suas intervenes nessa disputa hegemnica pelo

    lugar e sentido da educao na construo de uma nova ordem (neoliberal, republicana, social-democrata, socialista, so

    nomes associados a ela no que se refere ao debate poltico) podem ser encontradas, por exemplo, em Lombardi (2003);

    Gros (2004); Marrach (2009).

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 26

    c) no obstante, a hegemonia do discurso da educao como prtica de reconfigurao do

    social abriga flutuaes de sentido que no esto definitivamente resolvidas: seja em

    decorrncia das numerosas contraevidncias dessa virtualidade transformadora

    (ineficincias, ausncia de impacto positivo e reversibilidade de tendncias, geralmente

    explicadas em termos de uma temporalidade ao final da qual o parcial e o ambivalente se

    resolvero no plenamente realizado), seja porque o que hoje se coloca como lutas

    isoladas por uma configurao mais crtica da educao pode dar lugar a radicalizaes

    que reposicionem a educao como diferena num novo bloco histrico no qual ela

    esteja hegemonizada por outro princpio articulador. O campo da educao tambm um

    dos cenrios das disputas por reconhecimento, por afirmao do carter tcnico da

    educao, por uma formao para a cidadania crtica e participativa, por novas formas de

    estruturao do vnculo social no contexto da globalizao. Neste sentido, tambm a

    no est predeterminado qual o contedo universal da educao a emergir dos processos

    em curso: haver, sim, sempre fixaes parciais deste sentido, com maior ou menor

    capacidade de extenso espao-temporal (maior ou menor poder), mas em todo caso se

    trataro de particularidades erigidas ao lugar do universal.

    Desde dentro do discurso hegemnico (ou seja, desde sua lgica do no h um fora da

    hegemonia que no seja uma ameaa) improvvel, irresponsvel ou mesmo quixotesco imaginar

    tais cenrios alternativos. Mas se a objetividade de fato, como quer a teoria do discurso, um

    resultado da poltica, surpresas nos aguardam. O prprio do evento poltico sub-sistir em sua

    emergncia quase imperceptvel, at que novas circunstncias por vezes lhe conferem a chance de

    interromper a ordem das coisas, em meio a deslocamentos e antagonismos. No caso da educao,

    coextensiva a nossa prpria experincia da modernidade, j abrigamos foras crticas que podem vir

    a cumprir esse papel. Algum duvida?

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 27

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    BARKER, C.; GALASINSKI, D. Language, culture, discourse. In: Cultural studies and discourse analysis: a dialogue

    on language and identity. London/Thousand Oaks/New Delhi: SAGE, 2003. p. 1-27.

    BARRETO, Edna A. Hibridismo e ambivalncia na anlise de poltica de currculo: lutas por significao, Teias, vol.

    10, n. 19, p. 17. 2009. Disponvel em http://www.periodicos.proped.pro.br/index.php? journal=revistateias

    &page=article&op=viewFile&path[]=355&path[]=344. Acesso em 30 jul. 2010.

    BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. So Paulo: Cultrix. 1974.

    BURITY, Joanildo A. Transbordamento do social e hegemonia: qual o jogo da democracia? In: SANTOS, R.; CUNHA,

    R.; COSTA, L.F.C. (Orgs.). Contemporaneidade e poltica. Rio de Janeiro: Sociedade do Livro/Instituto

    Astrojildo Pereira, 1994. p. 137-158.

    ______. Desconstruo, hegemonia e democracia: o ps-marxismo de Ernesto Laclau. In: OLIVEIRA, Marcos A.G.

    (Org.). Poltica e contemporaneidade no Brasil. Recife: Bagao, 1997. p. 29-74.

    ______. Identidades coletivas em transio e a ativao de uma esfera pblica no-estatal. In: LUBAMBO, C.;

    COELHO, D.B.; MELO, M.A. (Orgs.). Desenho institucional e participao poltica: experincias no Brasil

    contemporneo. Petrpolis: Vozes, 2005. p. 63-107.

    ______. Cultura e identidade nas polticas de incluso social. In: AMARAL JR., A.; BURITY, J.A. (Orgs.). Incluso

    social, identidade e diferena: perspectivas ps-estruturalistas de anlise social. So Paulo: Annablume, 2006a.

    p. 39-66.

    ______. Reform of the state and the discourse, Latin American Perspectives, vol. 33, n. 3, maio, p. 67-88. 2006b.

    ______. Teoria do discurso e anlise do discurso: sobre poltica e mtodo. In: WEBER, S.; LEITHUSER, T. (Orgs.).

    Mtodos qualitativos nas cincias sociais e na prtica social. Recife: UFPE, 2007. p. 72-83

    ______. Discurso, poltica e sujeito na teoria da hegemonia de Ernesto Laclau. In: MENDONA, D.; RODRIGUES,

    L.P. (Orgs.). Ps-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. Porto Alegre: Edipucrs,

    2008. p. 35-51.

    CARVALHO, Rosngela T. Interculturalidade: objeto de saber no campo curricular da educao de jovens e adultos.

    27a Reunio Anual da Anped. Caxambu-MG: Anped, 2004. Disponvel em http://www.\anped.org.br/

    reunioes/27/gt18/t189.pdf. Acesso em 20 jul. 2010.

    CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organizao. So Paulo: Contexto, 2008.

    CRITCHLEY, Simon. Ethics, politics, subjectivity. London/New York: Verso, 1999.

    ______; MARCHART, Oliver (Comps.). Laclau: aproximaciones crticas a su obra. Mxico/Buenos Aires: Fondo de

    Cultura Econmica, 2008.

    CONNOLLY, William E. The Ethos of Pluralization. Minneapolis, University of Minnesotta, 1995.

    CURRCULO: sujeitos, conhecimento e cultura. Blog: http://curriculoproped.wordpress.com. Acesso em 30 jul. 2010.

    DEAN, Jodi. Introduction: the interface of political theory and cultural studies. In: DEAN, Jodi (ed). Cultural Studies & political theory. Ithaca/London: Cornell University, 2000. p. 1-19.

    DERRIDA, Jacques. The gift of death. Chicago: University of Chicago, 1996.

    FISCHER, Rosa M.B. Foucault e a anlise do discurso em educao, Cadernos de Pesquisa, n. 114, p. 197-223, nov. 2001.

    FOUCAULT, Michel. Omnes et singulatim: por uma crtica da "razo poltica. Novos Estudos CEBRAP, So Paulo, n. 26, p. 77-99, mar. 1990.

    GALLO, Slvio. Filosofia da educao no Brasil do sculo XX: da crtica ao conceito. EccoS Revista Cientfica, So Paulo, v. 9, n. 2, p. 261-284, jul./dez. 2007.

    GROS, Denise. 2004. Institutos liberais, neoliberalismo e polticas pblicas na Nova Repblica, Revista Brasileira de

    Cincias Sociais, vol. 19, n. 54, fevereiro, p. 143-158

    HOWARTH, D.; NORVAL, A.J.; STAVRAKAKIS, Y. Discourse theory and political analysis: Identities, hegemonies

    and social change. Manchester/New York: Manchester University, 2000.

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 28

    LACLAU, Ernesto. Identity and hegemony: the role of universality in the constitution of political logics. In: BUTLER,

    J.; LACLAU, E.; ZIZEK, S. Contingency, hegemony, universality: Contemporary dialogues on the left. London:

    Verso, 2000. p. 44-89.

    ______. La razn populista. Mxico/Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 2005.

    ______. Una tica del compromiso militante. In: Debates y combates: Por un nuevo horizonte de la poltica.

    Mxico/Buenos Aires: Fondo de Cultura Econmica, 2008. p. 67-106.

    ______; MOUFFE, Chantal. Hegemony & socialist strategy. Towards a radical democratic politics. London: Verso, 1985.

    LACLAU, E.; ZAC, L. (Eds.). The making of political identities. London: Verso, 1994.

    LOMBARDI, Jos C. (Org.). Globalizao, ps-modernidade e educao: histria, filosofia e temas transversais. 2. ed.

    rev. ampl. Campinas/Caador, SC: Autores Associados/Universidade do Contestado, 2003.

    LOPES, Alice C. Poltica de currculo: recontextualizao e hibridismo. Currculo sem Fronteiras, vol. 5, n. 2, p. 50-

    64, jul./dez. 2005.

    MACEDO, Elizabeth. Como a diferena passa do centro margem nos currculos: o exemplo dos PCN, Educao &

    Sociedade, Campinas, vol. 30, n. 106, p. 87-109, jan./abr. 2009.

    MARQUES, Luciana R. Democracia radical e democracia participativa: contribuies tericas anlise da democracia

    na educao, Educao e Sociedade, Campinas, vol. 29, n. 102, p. 55-78, jan./abr. 2008.

    ______. Mudanas discursivas nas polticas de democratizao da educao. Revista Brasileira de Estudos

    Pedaggicos, Braslia, v. 90, n. 225, p. 468-488, maio/ago. 2009.

    MARRACH, Sonia. Neoliberalismo e educao na Nova Repblica: retrica democrtica, escola em runas e algumas

    excees. In: Outras histrias da educao: do Iluminismo Indstria Cultural (1823012005). So Paulo:

    Unesp, 2009. p. 231-159.

    MENDONA, D.; RODRIGUES, L.P. (Orgs.). Ps-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau.

    Porto Alegre: Edipucrs, 2008.

    CAVALIERI, Ana M. Uma escola para a modernidade em crise: consideraes sobre a ampliao das funes da escola

    fundamental. In: MOREIRA, Antonio F.B. (Org.). Currculo: polticas e prticas. 10. ed. Campinas: Papirus, 2008.

    MOUFFE, Chantal. On the political. Abingdon/New York: Routledge, 2005.

    PARASO, Marlucy A. Pesquisas ps-crticas em educao no Brasil: esboo de um mapa, Cadernos de Pesquisa, v.

    34, n. 122, p. 283-303, maio/ago. 2004.

    RANCIRE, Jacques. O desentendimento: poltica e filosofia. So Paulo: Editora 34, 1996.

    SARMENTO, Jos L. Escola pblica ou escola republicana?Disponvel em http://legoergosum.blogspot.

    com/search?q=ESCOLA+P%C3%9ABLICA+OU+ESCOLA+REPUBLICANA%3F. Acesso 01 ago. 2010.

    SILVA, Tomaz T. Documentos de identidade. Uma introduo s teorias do currculo. 2. ed. Belo Horizonte: Autntica, 2003.

    VEIGA-NETO, Alfredo. (Org.). Crtica ps-estruturalista e educao. Porto Alegre: Sulina, 1995.

    WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaes filosficas. 5. ed. Petrpolis: Vozes, 2005.

  • Revista Teias v. 11 n. 22 p. 07-29 maio/agosto 2010 29

    ABSTRACT

    This article interrogates the links between education and the political, that is, the instituting dimension of

    reality, from a discursive perspective. It focuses on the process whereby education has become a consensual

    (hegemonic) object as to its constitutive role in a new sociability rooted in the republican vocabulary of

    citizenship or the liberal vocabulary of technical expertise and individual self-reliance. In the course of the

    argument aspects and analytical steps are explored of the Laclauian theory of discourse, in search of another

    vocabulary and grammar for the description and evaluation of the above mentioned links. To this effect, the

    notion of culture is stressed, as well as the enhanced sensitivity towards the cultural character of

    contemporary identities. The problem highlighted is seen as situated in the buffer zone between the frontier

    line of the fields of education and politics, it dwell in that zone to ponder on the nature of such interaction.

    Key-words: discourse, hegemony, politics.

    Recebido e avaliado em outubro de 2010