Burocracia pública e classe dirigente no brasil

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9 RESUMO Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 28, p. 9-30, jun. 2007 Luiz Carlos Bresser-Pereira BUROCRACIA PÚBLICA E CLASSES DIRIGENTES NO BRASIL Recebido em 12 de dezembro de 2006. Aprovado em 1º de julho de 2007. O Brasil experimentou a industrialização e um grande desenvolvimento econômico entre 1930 e 1980. É o período da estratégia nacional-desenvolvimentista iniciada por Getúlio Vargas e retomada, depois de uma crise nos anos 1960, pelos militares no poder. Em todo esse período, a burocracia pública desempenhou papel-chave, sempre associada à burguesia industrial. Essas duas classes surgem para a vida política nos anos 1930 e, associadas aos trabalhadores que desempenham o papel de sócios menores, promovem a Revolução Industrial brasileira. Nos anos 1960, a radicalização de esquerda e o alarmismo de direita, provocados principalmente pela Revolução Cubana de 1959, levam a um golpe militar em que burguesia e militares associam-se aos Estados Unidos. Não obstante, burguesia e burocracia pública voltam a adotar uma política econômica nacionalista e desenvolvimentista nos anos seguintes. Nos anos 1980, porém, a grande crise da dívida externa leva ao rompimento desta aliança, e, a partir do início dos anos 1990, à rendição ao neoliberalismo vindo do Norte. Nesse momento, a burocracia pública, desorientada, tratou de defender seus próprios interesses corporativos. A partir dos anos 1990, porém, envolve-se na Reforma gerencial do Estado de 1995. O neoliberalismo, contudo, que tornara-se dominante, perde hegemonia nos anos 2000 devido a seu fracasso em promover o desenvolvimento econômico. Estes dois fatos, de um lado, restabelecem novas perspectivas republicanas para a burocracia pública; de outro, sugerem que uma aliança renovada entre a burocracia pública e a burguesia industrial pode ser novamente possível, de forma que o país retome o desenvolvimento econômico. PALAVRAS-CHAVE: Estado; burocracia; empresários; pacto político. I. INTRODUÇÃO Nas sociedades modernas, a classe empresa- rial e a alta burocracia pública são os dois grupos sociais estratégicos, do ponto de vista político. No processo de desenvolvimento capitalista, as classes sociais estiveram sempre em processo de transformação: a aristocracia perdeu poder e rele- vância durante o século XIX; o mesmo aconte- ceu com a classe camponesa; a burguesia deixou de ser apenas uma ‘classe média’ para incluir tam- bém uma camada alta; a classe trabalhadora di- versificou-se, e uma parte dela ganhou denomi- nação de camada ou estrato médio; a burocracia, que era um pequeno estamento situado principal- mente dentro da organização do Estado, transfor- mou-se em uma grande, senão imensa, classe pro- fissional ou em uma tecnoburocracia, tanto públi- ca quanto privada 1 . Em todo este processo, po- rém, a alta burguesia, formada por empresários e rentistas, e a alta burocracia política, constituída de burocratas profissionais e políticos eleitos, de- sempenharam sempre o papel político estratégi- co 2 . Ainda que a partir do século XX, quando a democracia tornou-se o regime político dominan- te e os trabalhadores e as camadas, tanto médias burguesas quanto profissionais, tenham aumen- tado sua influência graças ao poder do voto, os grandes empresários e a burocracia política – os primeiros como parte da classe capitalista e os segundos, da classe profissional – foram sempre os principais detentores do poder. Embora, com 1 Uso a palavra “classe” em seu sentido clássico, presente em Marx e também em Weber, como dependente das for- mas de propriedade. Neste caso, a classe profissional con- trola a “organização” (tem a propriedade coletiva da orga- nização, conforme discuti em Bresser-Pereira (1977b)), da mesma forma que a classe capitalista tem a propriedade individual do capital. Uso “camada” ou “estrato” no senti- do da sociologia da estratificação social que se baseia nos critérios de renda, educação e prestígio social; nesse caso, cada classe pode incluir mais de uma camada. 2 Entende-se aqui por rentistas os capitalistas inativos que vivem de dividendos, juros e aluguéis. DOSSIÊ “EMPRESARIADO, ECONOMIA E POLÍTICA”

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 28: 9-30 JUN. 2007

RESUMO

Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 28, p. 9-30, jun. 2007

Luiz Carlos Bresser-Pereira

BUROCRACIA PÚBLICA ECLASSES DIRIGENTES NO BRASIL

Recebido em 12 de dezembro de 2006.Aprovado em 1º de julho de 2007.

O Brasil experimentou a industrialização e um grande desenvolvimento econômico entre 1930 e 1980. É operíodo da estratégia nacional-desenvolvimentista iniciada por Getúlio Vargas e retomada, depois de umacrise nos anos 1960, pelos militares no poder. Em todo esse período, a burocracia pública desempenhoupapel-chave, sempre associada à burguesia industrial. Essas duas classes surgem para a vida política nosanos 1930 e, associadas aos trabalhadores que desempenham o papel de sócios menores, promovem aRevolução Industrial brasileira. Nos anos 1960, a radicalização de esquerda e o alarmismo de direita,provocados principalmente pela Revolução Cubana de 1959, levam a um golpe militar em que burguesia emilitares associam-se aos Estados Unidos. Não obstante, burguesia e burocracia pública voltam a adotaruma política econômica nacionalista e desenvolvimentista nos anos seguintes. Nos anos 1980, porém, agrande crise da dívida externa leva ao rompimento desta aliança, e, a partir do início dos anos 1990, àrendição ao neoliberalismo vindo do Norte. Nesse momento, a burocracia pública, desorientada, tratou dedefender seus próprios interesses corporativos. A partir dos anos 1990, porém, envolve-se na Reformagerencial do Estado de 1995. O neoliberalismo, contudo, que tornara-se dominante, perde hegemonia nosanos 2000 devido a seu fracasso em promover o desenvolvimento econômico. Estes dois fatos, de um lado,restabelecem novas perspectivas republicanas para a burocracia pública; de outro, sugerem que umaaliança renovada entre a burocracia pública e a burguesia industrial pode ser novamente possível, deforma que o país retome o desenvolvimento econômico.

PALAVRAS-CHAVE: Estado; burocracia; empresários; pacto político.

I. INTRODUÇÃO

Nas sociedades modernas, a classe empresa-rial e a alta burocracia pública são os dois grupossociais estratégicos, do ponto de vista político.No processo de desenvolvimento capitalista, asclasses sociais estiveram sempre em processo detransformação: a aristocracia perdeu poder e rele-vância durante o século XIX; o mesmo aconte-ceu com a classe camponesa; a burguesia deixoude ser apenas uma ‘classe média’ para incluir tam-bém uma camada alta; a classe trabalhadora di-versificou-se, e uma parte dela ganhou denomi-nação de camada ou estrato médio; a burocracia,que era um pequeno estamento situado principal-mente dentro da organização do Estado, transfor-mou-se em uma grande, senão imensa, classe pro-fissional ou em uma tecnoburocracia, tanto públi-ca quanto privada1. Em todo este processo, po-rém, a alta burguesia, formada por empresários e

rentistas, e a alta burocracia política, constituídade burocratas profissionais e políticos eleitos, de-sempenharam sempre o papel político estratégi-co2.

Ainda que a partir do século XX, quando ademocracia tornou-se o regime político dominan-te e os trabalhadores e as camadas, tanto médiasburguesas quanto profissionais, tenham aumen-tado sua influência graças ao poder do voto, osgrandes empresários e a burocracia política – osprimeiros como parte da classe capitalista e ossegundos, da classe profissional – foram sempreos principais detentores do poder. Embora, com

1 Uso a palavra “classe” em seu sentido clássico, presenteem Marx e também em Weber, como dependente das for-mas de propriedade. Neste caso, a classe profissional con-

trola a “organização” (tem a propriedade coletiva da orga-nização, conforme discuti em Bresser-Pereira (1977b)), damesma forma que a classe capitalista tem a propriedadeindividual do capital. Uso “camada” ou “estrato” no senti-do da sociologia da estratificação social que se baseia noscritérios de renda, educação e prestígio social; nesse caso,cada classe pode incluir mais de uma camada.2 Entende-se aqui por rentistas os capitalistas inativosque vivem de dividendos, juros e aluguéis.

DOSSIÊ “EMPRESARIADO, ECONOMIA E POLÍTICA”

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freqüência, estivessem em conflito, porque pos-suem interesses corporativos diferentes, associa-ram-se mais freqüentemente em torno da cons-trução e da consolidação das respectivas nações.Sempre souberam que seu poder e prestígio de-pendem essencialmente da autonomia e da forçado Estado-nação que dirigem, o que leva-os a te-rem interesses comuns que superam eventuaisdivergências ideológicas.

Neste trabalho, procura-se fazer uma análiseabrangente do papel desempenhado pela burocra-cia pública na sociedade brasileira – ou seja, pelosetor da classe profissional constituído pelos ser-vidores públicos, os administradores das empre-sas estatais, os consultores da administração pú-blica e os políticos profissionais. Como o interes-se deste estudo volta-se para as classes dirigen-tes, sua atenção será dirigida para as camadas al-tas desses grupos, que podem ser denominadas“alta burocracia pública” ou “burocracia política”.Incluem-se os consultores na burocracia pública,porque eles são, geralmente, ex-funcionários quedesempenham papel importante na definição dasestratégias organizacionais e administrativas doaparelho do Estado, constituindo parte da comu-nidade de gestores públicos.

Consideram-se ainda os políticos, porque, porum lado – embora eles tenham, com freqüência,origem burguesa e, mais recentemente, tambémorigem trabalhadora –, quando são bem-sucedi-dos, profissionalizam-se, e a maior parte dos seusrendimentos passa a derivar do Estado. Também,porque, por outro lado, os altos burocratas nãoeleitos desempenham papeis políticos. O fato deincluir os políticos profissionais no conceito deburocracia pública não significa, entretanto, ig-norar a ampla literatura existente sobre os confli-tos entre políticos e burocratas nem desconsiderara insistência de a alta burocracia não eleita brasi-leira distinguir-se dos políticos profissionais des-de os anos 1930.

Há uma longa história deste conflito que, atéhoje, persiste entre altos servidores públicos. En-tretanto, por um lado, o caráter político da ativi-dade dos altos servidores foi amplamente demons-trado na clássica pesquisa realizada nos EstadosUnidos por Aberbach, Putnam e Rockman (1981).Por outro, como salientaram Loureiro e Abrúcio,“o aumento da cobrança democrática por parteda população e com a necessidade de uma atua-ção cada vez mais eficiente por parte do Estado, o

limite entre o que é a tarefa do burocrata e o quecabe ao político vem-se tornando cada vez maistênue e, em alguns casos, há um total‘embaralhamento’ das duas funções” (LOUREI-RO & ABRÚCIO, 1999, p. 70). A distinção entreos burocratas ou “técnicos”, que seriam compe-tentes e identificariam-se com a racionalidade e aeficiência, e os “políticos”, que seriam clientelistase despreparados, é uma ideologiatecnoburocrática. No Brasil, ela justificava-se nasfases iniciais do desenvolvimento capitalista bra-sileiro, quando os políticos, na esfera federal, es-tavam ainda muito presos aos coronéis e aoclientelismo local. Era um modo de a burocraciapública lograr legitimidade, ao opor-se às formastradicionais de política. Estas formas, porém, fo-ram mudando a partir de 1930, ao mesmo tempoem que o sistema político democratizava-se, demaneira que foi ficando claro, de um lado, a pro-ximidade entre técnicos e políticos, de outro, anecessidade de controlar ambos democraticamen-te, não apenas os políticos. Ângela de CastroGomes (1994), que estudou as novas elites buro-cráticas brasileiras, formadas, principalmente, poreconomistas e engenheiros, salientou o carátermaniqueísta dessa divisão, seu caráter de “tradi-ção inventada”3.

Nas sociedades modernas, na medida em quea classe profissional avança, o processo deprofissionalização não ocorre apenas com os bu-rocratas públicos não-eleitos, ocorre também comos eleitos. Estes estão para os empresários assimcomo os não eleitos estão para os administrado-res privados – dispõem de mais recursos políti-cos e estão mais dispostos a arriscar ou a aceitaruma relativa insegurança –, mas, afinal, fazemparte de uma mesma classe profissional que tem,no conhecimento, seu ativo mais importante e, naeficiência ou na racionalidade, sua justificaçãomaior.

II. FORMAS DE ESTADO E PACTOS POLÍTI-COS

É dentro deste quadro amplo, no qual o Esta-do é a expressão da sociedade, é o instrumentopor excelência de ação coletiva da nação, que de-

3 A pesquisadora, entretanto, salientou que “embora nosúltimos anos tal representação sofreu duros golpes, não sedeve ter dúvidas sobre sua capacidade de sobrevivência”(GOMES, 1994, p. 2).

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vemos compreender a burocracia pública. Esta,conjuntamente à classe profissional privada, fazparte da classe profissional que reivindica o mo-nopólio do conhecimento técnico, organizacionale comunicativo, ao pretender ser a única classecom a capacidade de lograr eficiência nos pro-cessos de trabalho.

A atuação política da burocracia pública vairefletir esta condição básica. Como setor de umaclasse social, ela vai defender seus interesses; sen-do parte constitutiva do Estado, ela vai identifi-car-se com a organização do Estado, vai “vestir acamisa” do Estado, ao mesmo tempo em que vairesponder às pressões das demais classes soci-ais. Conforme Paulo Sérgio Pinheiro, em seu es-

tudo sobre as classes médias urbanas na PrimeiraRepública, a ação política da burocracia pública“vai depender do funcionamento concreto dosaparelhos de Estado e das relações do Estado comas diversas classes sociais” (PINHEIRO, 1978,p. 31). Na condição de parte da classe profissio-nal e de elemento constitutivo do aparelho do Es-tado, a burocracia pública tende a fazer parte daclasse dirigente. Já o fazia como burocraciapatrimonial, no Império e na Primeira República;o fará como burocracia moderna no momento daproclamação da República e depois de 1930; al-cançará a condição de classe dirigente principalentre 1964 e 1984; a partir de então, perde decisi-vamente poder juntamente à burguesia industrial,com a qual aliou-se desde os anos 1930.

QUADRO 1 – FORMAS HISTÓRICAS DE ESTADO E DE ADMINISTRAÇÃO

FONTE: o autor.

As formas históricas do Estado no Brasil es-tão naturalmente imbricadas na natureza de suasociedade e, portanto, expressam, de um lado, asmudanças por que vai passando a sociedade e, deoutro, a maneira pela qual o poder originário –derivado ou da riqueza, ou do conhecimento e dacapacidade de organização – é distribuído nestasociedade. As formas do Estado brasileiro, pen-sadas de acordo com este critério, estão resumi-das no Quadro 1. No século XIX, a sociedade éessencialmente “patriarcal” e “mercantil”, porqueé dominada pelo latifúndio agro-exportador e pe-los comerciantes locais, que não incorporam ain-da as idéias de progresso técnico e produtividade,enquanto o Estado conta com a participação im-portante de uma burocracia patrimonial.

A primeira forma histórica de Estado, o Esta-do patriarcal-oligárquico, é patriarcal no plano dasrelações sociais e econômicas internas e é mer-cantil no plano das relações econômicas externas.Caracteriza-se ainda pela participação na classedirigente oligárquica de uma burocracia

patrimonial. É um Estado dependente porque suaselites não têm suficiente autonomia nacional paraformularem uma estratégia nacional de desenvol-vimento: limitam-se a copiar idéias e instituiçõesalheias com pouca adaptação às condições locais.A partir dos anos 1930, quando começa a Revolu-ção Industrial brasileira, a sociedade passa a ser“industrial”, porque, agora, os empresários indus-triais tornam-se dominantes, enquanto o Estadotorna-se “nacional-desenvolvimentista”, porqueestá envolvido em uma bem-sucedida estratégianacional de desenvolvimento.

No Estado nacional-desenvolvimentista, do-minante entre 1930 e 1980, a classe dirigente écaracterizada por uma forte aliança entre a bur-guesia industrial e a burocracia pública, e o perío-do é marcado por um grande desenvolvimentoeconômico. Além de ser o momento da Revolu-ção Industrial, é também o da Revolução Nacio-nal: é o único em que a nação sobrepõe-se à con-dição de dependência. Seu sentido político maioré a transição do autoritarismo para a democracia,

CATEGORIA 1821-1930 1930-1985 1990-...

Estado/sociedade Patriarcal-dependente Nacional-desenvolvimentista Liberal-dependente

Regime político Oligárquico Autoritário Democrático

Classes dirigentes Latinfundiários e burocracia patrimonial

Empresários e burocracia pública

Agentes financeiros e rentistas

Administração Patrimonial Burocrática Gerencial

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mas será marcada por dois retrocessos: um em1937 e o outro em 1964. Os anos 1980 são decrise e de transição, são o momento em que opaís atravessará a pior crise econômica de suahistória – uma crise da dívida externa e da altainflação inercial – que merece o nome de Grandecrise dos Anos 1980. Esta crise facilitará a transi-ção democrática, mas, em compensação, debili-tará a nação e a tornará novamente dependente.Surge, então, a forma de Estado ainda hoje domi-nante no Brasil: o Estado liberal-dependente.

A partir de 1991, as políticas públicas, emboraconservando o caráter social acordado durante atransição democrática, tornam-se, no plano eco-nômico, novamente dependentes, passando a se-guir à risca as orientações vindas do Norte. Soci-edade e Estado perdem o rumo, o Estado enfra-quece-se e torna-se incapaz de fazer o que fizeraentre 1930 e 1980: coordenar uma estratégia na-cional de desenvolvimento. Com as aberturas co-mercial e financeira, deixa de ter capacidade deproteger-se contra a tendência à sobrevalorizaçãoda taxa de câmbio, que caracteriza os países emdesenvolvimento, e entra em fase dedesindustrialização e quase-estagnação. O retor-no à condição de dependência coincide, por pe-quena diferença, com a transição democrática,porque ocorre em um momento em que as forçaspolíticas que lideraram a transição não contavamcom um projeto alternativo para enfrentar a crisedo modelo nacional-desenvolvimentista. E tambémporque, nos anos 1990, logo após o colapso daUnião Soviética, a hegemonia ideológica do Nortesobre a América Latina tornara-se quase absoluta.

Apesar de ser comum identificar o períodonacional-desenvolvimentista com ocorporativismo, não usa-se este conceito, porqueele mais confunde do que esclarece. Nos anos1930, há, de fato, um elemento corporativista noEstado brasileiro que reflete-se na Constituição de1934, a qual prevê representação classista no Con-gresso. Entretanto, o que geralmente usa-se é oconceito de corporativismo de Schmitter (1974)e Cawson (1986), que buscaram, por meio dele,explicar sistemas políticos avançados como o daAlemanha, no qual o Estado tem como um de seuspapéis intermediar interesses das classes capita-lista e trabalhadora representadas por sindicatos.Nesse caso, o “corporativismo” brasileiro é com-preendido de maneira negativa, como autoritárioe excludente dos trabalhadores (SANTOS, 1990;

COSTA, 1999) – o que, de fato, foi –, mas é pre-ciso entender que o grau de desenvolvimento po-lítico do Brasil não possibilitava outra coisa.

Neste trabalho, serão examinadas também asreformas do aparelho do Estado. Do ponto de vistaadministrativo, o Estado será patrimonial até osanos 1930, prevalecendo, então, a confusão in-trínseca ou inerente ao patrimonialismo entre opatrimônio público e o privado. Nos anos 1930começa a Reforma Burocrática ou do serviço pú-blico. A administração passa a ser burocrática ouweberiana, preocupada principalmente com aefetividade da ação pública. A partir de 1995, quan-do começa a Reforma gerencial ou da GestãoPública, a administração assume carátercrescentemente, gerencial na medida em que ocritério da eficiência torna-se decisivo. A estasformas de Estado correspondem formas de buro-cracia: patrimonial, weberiana e gerencial, as duasúltimas podendo ser consideradas “modernas”,mas a weberiana está ainda preocupada com aracionalidade formal da organização e com aefetividade de suas normas e regulamentos, en-quanto que a gerencial já está voltada para a reali-zação eficiente das tarefas, ou seja, para a redu-ção dos custos e o aumento da qualidade dos ser-viços, independentemente das normas e rotinas,que continuam necessárias, mas são flexibilizadas.

No Quadro 1, temos ainda os regimes políti-cos dominantes nesses três períodos: ele foioligárquico, entre 1822 e 1930; autoritário, entre1930 e 1985; democrático, a partir de então. Tal-vez mais significativos, entretanto, sejam os pac-tos políticos que caracterizam a sociedade brasi-leira, desde 1930, e que aparecem no Quadro 2.O período 1930-1959 corresponde ao Pacto Po-pular-Nacional de Getúlio Vargas, do qual partici-pam a nova burguesia industrial, a nova burocra-cia pública moderna, setores da velha oligarquia eos trabalhadores; é também a primeira fase doEstado Nacional-Desenvolvimentista.

Ainda que a democracia seja estabelecida em1945, não houve mudança de pacto político por-que, embora nos 15 anos anteriores os trabalha-dores não tivessem voto, já participavam, de al-guma forma, do processo político por meio dopopulismo de Vargas. Adicionalmente, tanto o pre-sidente Dutra, que o antecedeu, quanto o presi-dente Kubitschek, que o sucederá depois de umbreve intervalo, serão eleitos nos quadros do Pac-

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to popular-nacional que Getúlio Vargas liderou. Há,em seguida, uma crise, entre 1960 e 1964, quenão muda o modelo econômico (que continuasubstituidor de importações e nacional-desenvolvimentista), mas muda o pacto político,que torna-se burocrático-autoritário, porque delesão excluídos os trabalhadores, e a burocraciapública militar ganha papel maior.

A partir de 1977, começa a crise desse pactoe do regime militar, surgindo outra coalizão políti-ca, o pacto popular-democrático de 1977. Essepacto é conseqüência do rompimento da aliançaque a burguesia havia feito com os militares e tor-na-se realidade a partir da adesão dos empresári-os – principalmente, industriais – às forças quelutavam pela redemocratização. O pacto popular-democrático chega ao poder em 1985, mas doisanos depois, com o fracasso do Plano Cruzado,colapsa na medida em que deixou claro que osnovos governantes não tinham um projeto para asnovas condições que o país enfrentava e princi-palmente para dar conta da grande crise da dívidaexterna e da alta inflação dos anos 1980. Temos,em seguida, um novo período intermediário decrise que transforma-se em hiperinflação, emmarço de 1990. No ano seguinte, depois do fra-casso de um novo plano de estabilização, o PlanoCollor, o país rende-se à ortodoxia convencionalvinda do Norte, e o novo pacto político dominan-te passa a ser o pacto liberal-dependente, que temcomo principais participantes os grandes rentistasque vivem de juros, os agentes do setor financei-ro que deles recebem comissões, as empresasmultinacionais e os interesses estrangeiros no paísinteressados em taxas de câmbio apreciadas. Fa-lamos de “agentes” em vez de empresários do setorfinanceiro, porque a maioria deles provém direta-mente da classe profissional privada e realiza seusganhos no mercado graças a seu conhecimento enão a seu capital.

Há, no entanto, no período, um grande avan-ço econômico, que é a estabilização da alta infla-ção pelo Plano Real – um plano de estabilizaçãocomandado por Fernando Henrique Cardoso nogoverno de transição de Itamar Franco. Esse pla-no, entretanto, nada tinha a ver com a ortodoxiaconvencional já então dominante, mas fora o re-sultado da aplicação da teoria da inflação inercialdesenvolvida por economistas brasileiros para re-solver um problema que afligia a sociedade brasi-leira desde 1980.

III. SURGE A BUROCRACIA MODERNA: 1930-1945

A burocracia de Estado moderna, que faz par-te da classe profissional, já estava surgindo nofinal do século XIX, mas ela só ganha força polí-tica nos agitados anos 1920, quando as camadasmédias urbanas da qual faz parte revelam de ma-neira intensa sua insatisfação com o domínio daoligarquia cafeeira que, aproveitando-se do votoaberto que permitia-lhe comandar o voto da po-pulação rural e da possibilidade de fraude eleito-ral, não lhe dava espaço político. Virginio SantaRosa acentua, com vigor, o sentido do tenentismoe da Revolução de 1930 como sendo resultado daprofunda insatisfação das camadas médias urba-nas, que incluíam a pequena burguesia, os profis-sionais liberais, os empregados privados e os ser-vidores públicos médios civis e militares. Em suaspalavras, “as classes médias urbanas, alijadas dasposições de mando e cargos eletivos pela açãodecisiva da plebe dos latifúndios, ficavam, absur-da e criminosamente, à margem dos políticos bra-sileiros, sem influência orientadora nos destinospátrios” (ROSA, 1976 [1933], p. 38). A partir,porém, da disputa ocorrida nos anos 1960 entre aEscola de Sociologia de São Paulo e o InstitutoSuperior de Estudos Brasileiros (ISEB) pelo mo-nopólio do conhecimento sociológico legítimo,formou-se uma espécie de “consenso” quanto aocaráter não-burguês, mas oligárquico, da Revolu-ção de 1930 e, portanto, da sua importância me-nor na história brasileira. Não é o caso, aqui, deresenhar esta visão equivocada que, ao rejeitar apossibilidade de uma burguesia industrial nacionalno país, renunciou também à idéia de nação. Hoje,esta questão está superada: sabemos que 1930 foium divisor de águas da história brasileira, que aRevolução Industrial brasileira começou então

QUADRO 2 – PACTOS POLÍTICOS

Fonte: o autor.

ANOS PACTOS POLÍTICOS

1930-1959 Popular-nacional

1960-1964 Crise

1964-1977 Burocrático-autoritário

1977-1986 Popular-democrático (crise)

1987-1990 Crise

1991-... Liberal-dependente

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marcando o fim do Estado Oligárquico e o iníciodo Estado Nacional-Desenvolvimentista. Estatransformação, entretanto, só foi possível porquea própria oligarquia dividira-se regionalmente, ossetores voltados para o mercado interno dessaoligarquia aliando-se às camadas médias urbanasna luta por uma participação política maior. Nostermos de Nelson Werneck Sodré, “desde o mo-mento em que a classe dominante se apresentavacindida, surgia a possibilidade de recompor a ali-ança entre os setores daquela classe e os gruposatuantes da classe média” (SODRÉ, 1962, p. 322).O comando coube a um político autoritário e na-cionalista, cujo liberalismo e positivismo da juven-tude, importados da Europa, cederam à realidadede um país que não havia ainda realizado a suarevolução capitalista, mas apenas sua revoluçãomercantil. Getúlio Vargas liderou uma coalizãopolítica heterogênea, a Aliança Liberal, para reali-zar a revolução e, depois, gradualmente, sem pla-no, mas com sentido de oportunidade, capacida-de de conciliação, espírito republicano e visão dofuturo, estabeleceu uma nova coalizão políticabaseada na aliança entre os setores substituidoresde importação da velha oligarquia, os empresáriosindustriais, os técnicos e os militares do governo,além dos trabalhadores urbanos4. Antes de 1930,não havia um Brasil feudal, como os intérpretesda primeira metade do século XX supuseram, mashouve um capitalismo patriarcal e mercantil, que,durante a Primeira República, esteve sob o domí-nio da burguesia cafeeira paulista. Nesse período,entretanto, ocorria em São Paulo a emergência deuma burguesia industrial de imigrantes e descen-dentes de imigrantes com pouca ou nenhuma ca-pacidade de formulação e de atuação política5.Graças, porém, à liderança de Getúlio Vargas – eàs condições favoráveis que abriram-se para oBrasil com a crise do sistema central nos anos1930 –, a burocracia pública moderna terá afinalum papel entre as classes dirigentes brasileiras,associado à nova burguesia industrialmanufatureira e aos velhos setores da oligarquiavoltados para o mercado interno. Entre 1930 e1964, estas três classes dirigirão o país em subs-tituição à oligarquia agro-exportadora, associada

aos interesses externos. Durante 15 anos sob re-gime autoritário ou semi-autoritário e, a partir de1945, sob regime democrático. O período autori-tário foi funcional para que a transição de poderrealizasse-se, para que a Revolução Nacional – ouseja a formação do Estado-nação – e a RevoluçãoIndustrial completassem a Revolução Capitalista.Antes, não existia democracia, mas o regime elei-toral viciado impedia qualquer mudança – mudan-ça que o sistema autoritário permitiu. O voto se-creto, alcançado logo após a Revolução de 1930,foi fundamental, a partir de 1945, para que o po-der não voltasse para a oligarquiaagrárioexportadora em um país que ainda perma-necia principalmente agrícola e pecuário. Confor-me observa Pedro Cezar Dutra Fonseca, em suaanálise dos governos Vargas, a Revolução de 1930foi originalmente burguesa e oligárquica; obvia-mente, não criou a burguesia industrial porque“hoje há vasta bibliografia mostrando a importân-cia da indústria brasileira na República Velha”(FONSECA, 1989, p. 144); mas, se sua origemfoi oligárquica e burguesa, seus resultados forameminentemente burgueses ou capitalistas; “a par-tir de 1930 começou no Brasil um novo tipo dedesenvolvimento capitalista. Em linhas gerais, esteconsistiu em superar o capitalismo agrário e co-mercial assentado nas atividades exportadoras deprodutos primários, rumando para outro cuja di-nâmica iria gradualmente depender da indústria edo mercado interno” (idem, p. 184). Conformeassinalou Octavio Ianni, “o que caracteriza os anosposteriores a 1930 é o fato de que ela cria condi-ções para o desenvolvimento do Estado burguês”(IANNI, 1971, p. 13).

No seio da burocracia pública, foram os mili-tares e, especificamente, os “tenentes” que de-sempenharam um papel político decisivo. Con-forme observa Maria Cecília Forjaz, “o compor-tamento político-ideológico dos tenentes só podeser explicado pela conjugação de duas dimensões:sua situação institucional como membros do apa-relho militar do Estado e sua composição socialcomo membro das camadas médias urbanas”(FORJAZ, 1978, p. 20). O movimento tenentista,que surge das revoltas de 1922, 1924 e 1926, éum fenômeno político e militar original. Emboraos tenentes tenham-se revoltado contra a hierar-quia do Exército – e não há maior afronta pa-ra uma organização militar burocrática do que is-so –, eles não foram expulsos do Exército, e aspunições que sofreram afinal foram menores, por-

4 A expressão “substituidor de importações” para caracte-rizar o setor da oligarquia agropecuária que participou deRevolução de 1930 é de Ignácio Rangel (1980).5 A grande exceção foi Roberto Simonsen.

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que eles revoltavam-se em nome do prestígio e damissão do Exército6. Embora tenham participadode revoltas ou de revoluções, partilhavam umaideologia essencialmente burguesa como a deVargas. Não era, entretanto, uma ideologia liberal,mas uma ideologia nacionalista e intervencionista.O liberalismo é, sem dúvida, a ideologia por exce-lência da burguesia: foi baseada nele que a bur-guesia logrou vencer o Estado Absolutista domi-nado pela aristocracia. Mas as burguesias euro-péia e a americana sempre foram, também, naci-onalistas: foi o nacionalismo que permitiu à bur-guesia, neste caso, associada primeiro ao rei ab-soluto e depois aos governos parlamentares, for-mar os Estados-nação, definir suas fronteiras –as fronteiras de seus mercados seguros – e lograrêxito econômico na competição com os demaisEstados nacionais. Nos anos 1920, quando sur-gem os “tenentes”, ou nos anos 1930, quandoVargas abandona os liberais e associa-se e eles, odesenvolvimento industrial brasileiro exigia que onacionalismo sobrepusesse-se ao liberalismo – efoi o que foi feito.

Os “tenentes” foram o lado militar da buro-cracia moderna do Estado que, a partir da Revo-lução de 1930, passa a fazer parte da nova coali-zão política ou bloco de poder que se forma en-tão. Houve, entretanto, uma burocracia civil doEstado que também começa a ganhar um papeldecisivo a partir de deste ponto. Para que isto acon-tecesse, entretanto, era necessário que o próprioaparelho de Estado desenvolvesse-se criando ospostos para a classe média que as escolas superi-ores estavam formando. E foi isto o que ocorreu.Os anos 1930 foram anos de abandono do libera-lismo e de aumento do intervencionismo em todoo mundo. No Brasil, isto também ocorreu, nãosimplesmente como um mecanismo de defesacontra a depressão, como ocorreu nos EstadosUnidos e na Europa, mas como uma forma delevar adiante uma estratégia nacional de desenvol-vimento. E, para isto, não havia lugar para o libe-ralismo econômico, para o laissez faire. A hora éde organizar o Estado, de dar-lhe o pessoal e osinstrumentos que lhe permitam desenvolver umapolítica nacional de desenvolvimento econômico.

Desde que chega ao poder, Getúlio Vargas en-tendeu que as deficiências administrativas eramcentrais na explicação do atraso econômico dopaís. Para explicar a revolução, afirma GetúlioVargas em discurso de 1931: “agravados essesmales com a anarquia administrativa, a desorga-nização financeira [do Estado], e a depressão eco-nômica [...] a reação impunha-se” (Vargas apudFONSECA, 1986, p. 160). A palavra de ordem,nesse período, é a da “racionalização”, um outronome para o planejamento da intervenção do Es-tado. Sem uma “boa administração”, nada seriapossível fazer. A partir desta ótica, a reforma bu-rocrática ou reforma do serviço público impunha-se. Em 1936, com a criação do Conselho Federaldo Serviço Público Civil, Vargas lança seu gover-no nessa empreitada. A reforma burocrática de1936, que tivera como precursor o embaixadorMaurício Nabuco, terá em Luiz Simões Lopes afigura política e administrativa principal7. Em se-guida, a Carta Constitucional de 1937 dá um pas-so adiante com a exigência de concurso públicopara os funcionários públicos e com a previsãode um departamento administrativo junto à presi-dência da República. No ano seguinte, este últimodispositivo efetiva-se com a criação do Departa-mento Administrativo do Serviço Público (DASP),que passou a ser o poderoso órgão executor dareforma8.

7 Maurício Nabuco foi o pioneiro da reforma burocráticano Brasil ao estabelecer os princípios do mérito no Itamaratyno final dos anos 1920. Entretanto, Luís Simões Lopes foio principal empresário público da reforma. “Lopes é oprincipal empresário de políticas públicas no período 1934-1937, embora Nabuco jogasse um papel importante eminiciar o processo de definição da reforma, e Vargas tenhasido o empresário político durante todo o tempo”(GAETANI, 2005, p. 99). Luiz Simões Lopes continuariaseu trabalho de racionalização do aparelho do Estado pormeio da criação, em 1944, da Fundação Getúlio Vargas,que, por meio da Escola Brasileira de Administração Públi-ca, tornar-se-ia o centro principal de estudos sobre a admi-nistração pública no país. Em 1954, cria em São Paulo aEscola de Administração de Empresas de São Paulo, e, nosanos 1960, seu Curso de Administração Pública. Sobre essareforma é também significativa a contribuição de LawrenceS. Graham (1968).8 O DASP foi criado pelo Decreto-Lei n. 579, de junho de1938. Era, essencialmente, um órgão central de pessoal,material, orçamento, organização e métodos. Absorveu oConselho Federal do Serviço Público Civil que havia sidocriado pela Lei n. 284, de outubro de 1936, que instituíatambém o primeiro plano geral de classificação de cargos eintroduzia um sistema de mérito.

6 Conforme observa José Augusto Drummond em seuestudo sobre o movimento tenentista, os tenentes “nãoperderam seu valorizado vínculo com as instituições mili-tares e nem a sua patente de oficiais” (DRUMMOND,1986, p. 51).

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Com o Estado Novo, o autoritarismo brasilei-ro ressurgia com força, mas agora revestido deum caráter modernizante. Para justificar a deci-são arbitrária, o governo apelou para a luta contrao comunismo e o integralismo, movimentos quehaviam recentemente tentado tomar o poder, masa sua verdadeira lógica estava na orientação deVargas e de uma parte importante das elites naci-onalistas brasileiras de levar a cabo a revoluçãonacional iniciada em 1930: de realizar a revoluçãomodernizadora do país, dotá-lo de um Estado ca-paz e promover a industrialização não obstante àinsistência da oligarquia agrário-mercantil no ca-ráter “essencialmente agrícola” do Brasil. Embo-ra a Revolução Nacional fosse uma revolução bur-guesa, o Estado Novo dará ênfase ao papel datécnica e dos técnicos ou profissionais cujo pa-pel, nas empresas e principalmente na organiza-ção do Estado, era estratégico para o desenvolvi-mento econômico buscado. Em certos momen-tos, o papel dos profissionais era o de meramentejustificar as decisões já tomadas, mas, em muitosoutros, Vargas realmente valia-se dos conselhos esugestões dos técnicos ou dos intelectuais públi-cos que reuniam-se em torno do DASP – e, maisamplamente, em torno do governo – para tomarsuas decisões. Não apenas por meio do DASP,mas dos Conselhos de Geografia e de Economia eFinanças e do Ministério da Educação, que tam-bém foi uma fonte de pensamento da época, e deoutros órgãos públicos que foram criados a partirde 1930, o Estado brasileiro reorganizou-se, ga-nhou consistência administrativa e um sentidonacional para sua ação, ao mesmo tempo em queuma rígida disciplina fiscal o mantinha sadio noplano financeiro. Com isso, estava sendoconstruído um Estado forte – capaz –; um Estadocuja alta burocracia pública passava, pela primei-ra vez, a ter um papel decisivo no desenvolvimen-to econômico brasileiro; um Estado que deixavade ser mero garantidor da ordem social, como ocor-rera até 1930, para assumir o papel de prestar ser-viços sociais e principalmente de ser agente do de-senvolvimento econômico; um Estado cujas buro-cracias técnica e política constituíam, ao lado daburguesia industrial, as classes dirigentes do país.

A burocracia pública teria ainda, no primeirogoverno Vargas, um papel importante ao partici-par da criação das primeiras empresas de Econo-mia mista que teriam um papel decisivo no desen-volvimento do país. Na II Guerra Mundial, Vargashesitou entre o apoio aos Estados Unidos e à In-

glaterra e o apoio à Alemanha e à Itália, mas per-cebeu que a vitória ficaria com os primeiros edecidiu, em um momento em que esta não estavaainda decidida, aliar-se aos primeiros. É bem co-nhecida a história de como Vargas usou esta deci-são para obter o financiamento e a tecnologia ne-cessários para a criação da primeira grande side-rúrgica nacional – a Companhia Siderúrgica Na-cional de Volta Redonda. Com a criação destaempresa, da Companhia de Álcalis e da Compa-nhia do Vale do Rio Doce, abriu-se um grandeespaço para o desenvolvimento da burocracia pú-blica. O país passava agora a contar com doistipos de burocracia pública moderna: a burocra-cia de Estado e a burocracia das empresas esta-tais – dois grupos que teriam entre si seus confli-tos, mas que seriam principalmente solidários nabusca, de um lado, de maior poder e prestígio, e,de outro, de êxito no projeto de desenvolvimentonacional em curso. Os dois grupos técnicos oumodernos da burocracia, por sua vez, ganhavammelhores condições para se associar aos empre-sários privados. Conforme observa Martins, “deum lado, a junção dos empresários como os ‘gru-pos técnicos’ da burocracia no interior do apare-lho do Estado; de outro lado, o fato de ser coloca-da em pé de igualdade com os empresários per-mite à tecnocracia adquirir a ‘liberdade’ necessá-ria para planejar o desenvolvimento capitalista apartir de critérios ‘universalistas’” (MARTINS,1985). Com esse acordo, estabeleciam-se, assim,as bases para que a Nação, por meio de tentativase erros, ganhasse densidade política, fizesse o di-agnóstico do seu atraso e formulasse uma estra-tégia nacional bem sucedida de industrialização.

IV. NACIONAL-DESENVOLVIMENTISMO VI-TORIOSO: 1945-1960

Ao aliar-se aos Estados Unidos na SegundaGuerra Mundial, Getúlio Vargas ganhava no curtoprazo, mas sabia que o destino do Estado Novoestava selado. Não foi surpreendente, portanto,que em 1945, com a queda pacífica de GetúlioVargas, o Brasil transformasse-se, pela primeiravez, em uma democracia digna desse nome – umademocracia ainda de elites, mas baseada em elei-ções livres e amplas9. O regime ditatorial violen-

9 Os analfabetos continuavam sem direito ao voto, e oscomunistas eleitos em 1946 foram logo cassados, mas es-tas restrições não são suficientes para que não se consideredemocrático o regime de 1945-1964.

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tara direitos, mas, no final dos 15 anos do primei-ro governo Vargas, o Brasil mudara: estava empleno processo de revolução industrial e nacional.Entretanto, com a democracia, e como se fosseparte integrante dela, veio do Norte o liberalismoeconômico que ameaçou interromper a transfor-mação em curso. Em dois anos, as grandes reser-vas internacionais que o país acumulara durante aguerra foram transformadas em consumo de bensde luxo importados pelos novos ricos e por umaclasse média deslumbrada. Como, porém, a tran-sição democrática não implicara em conflito soci-al maior, mas fora antes o resultado de um quase-consenso estabelecido entre as classes médias eas elites entusiasmadas com a vitória dos paísesdemocráticos na guerra; não implicara em umamudança substancial na coalizão política dominan-te no Brasil desde 1930. Por isso, não foi surpre-endente que, a partir de 1948, a política econômi-ca do governo voltasse a reproduzir o acordo na-cional entre a burguesia industrial, a burocraciapública e os trabalhadores em torno da estratégiade desenvolvimento econômico substitutiva deimportações. Faltava à nova política a legitimaçãoideológica necessária, já que a anterior, baseadaem grandes intelectuais como Oliveira Vianna eAzevedo Amaral, ficara prejudicada pelo apoio queprestara ao Estado Novo. Essa legitimação, entre-tanto, surgiria na virada da década de 1950, noBrasil, com as idéias do grupo que a partir de 1955seria conhecido como o grupo do ISEB, e naAmérica Latina, com as idéias da Comissão Eco-nômica para a América Latina e o Caribe (Cepal)10.

Com as idéias de Raúl Prebisch e Celso Furta-do, da Cepal, legitimava-se a estratégia econômi-ca de proteção à industria nacional. Estalegitimação baseava-se nas experiências bem-su-cedidas de intervenção do Estado na Economia naEuropa e no Japão, na nova teoria macroeconômicade base keynesiana e na crítica à lei das vantagenscomparativas do comércio internacional que foraa principal arma ideológica do imperialismo liberal

para dificultar a industrialização dos países peri-féricos e dependentes. A política econômica doBrasil desde 1930 constituíra-se em uma anteci-pação a essas críticas da mesma forma que aspolíticas fiscais expansionistas de Franklin DelanoRoosevelt haviam antecedido a Teoria geral deKeynes. Por outro lado, as idéias dos grandes in-telectuais do ISEB, Guerreiro Ramos, IgnácioRangel, Vieira Pinto e Hélio Jaguaribe serão fun-damentais para legitimar a industrializaçãosubstitutiva de importação no plano político. Se-rão eles que diagnosticarão e defenderão com maisvigor e coerência o pacto político formulado porGetúlio Vargas e a correspondente estratégia na-cional de desenvolvimento – o nacional-desenvolvimentismo. São eles que mostram queo Brasil fora uma semicolônia até 1930, dominadapor uma oligarquia agrário-mercantil aliada aoimperialismo, e que a partir de 1930 começa aRevolução Industrial e Nacional Brasileira, basea-da em uma coalizão política formada pela burgue-sia industrial, a burocracia pública, os trabalhado-res e a oligarquia substituidora de importações.

Essa análise ganha consistência e força quan-do, em 1950, Getúlio Vargas é eleito Presidente daRepública com uma grande maioria de votos. Nosquatro anos que seguem, até seu suicídio em 1954,o nacional-desenvolvimentismo de Vargas seráconduzido sempre por ele mesmo, e por uma as-sessoria econômica da Presidência da Repúblicaliderada por dois altos burocratas públicos –Rômulo de Almeida e Jesus Soares Pereira. Estaassessoria logra restabelecer as bases do desen-volvimento nacional a partir da criação de novasempresas estatais para se encarregar do desen-volvimento da infra-estrutura econômica do país;a Petrobrás e a Eletrobrás serão os principais re-sultados desse trabalho. Por outro lado, um outrogrupo de técnicos mais liberais e mais compro-metidos com a cooperação internacional, do qualfazem parte Ary Torres, Roberto Campos, LucasLopes e Glycon de Paiva, reúne-se em torno daComissão Mista Brasil-Estados Unidos, que, noentanto, sob o comando de Vargas, realiza um tra-balho que mais complementa do que neutraliza atarefa do primeiro grupo. Contribuía para isto ofato de que esses trabalhos e debates realizavam-se em um quadro intelectual em que o planeja-mento econômico do desenvolvimento estava le-gitimado: o quadro da teoria econômica do desen-volvimento (development economics) que nascedos estudos de Rosenstein-Rodan, Nurkse,

10 O ISEB, fundado em 1955 como setor do Ministério daEducação, decorreu da transformação de uma entidade dedireito privado, o Ibesp (Instituto Brasileiro de Economia,Sociologia e Política), o qual, por sua vez, reuniu o Grupode Itatiaia que se reunia desde o final dos anos 1950 emItatiaia para discutir os problemas brasileiros. A Cepal ini-cia suas atividades em 1948 e, em 1949, publica seu estudohistórico que funda a escola estruturalista latino-america-na.

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Myrdal, Lewis, Singer, Rostow, Celso Furtado eRaúl Prebisch – um grupo de economistas do de-senvolvimento originados no processo de criaçãodas Nações Unidas e, indiretamente, do BancoMundial. O liberalismo da época, portanto, eramuito relativo, nada tendo a ver com oneoliberalismo que surgiria nos Estados Unidosnos anos 1960 e tornar-se-ia dominante nos anos1980.

As novas empresas estatais e a decisão doEstado de investir na infra-estrutura econômicarepresentavam vitórias para a ala nacionalista daburocracia pública econômica que, assim, con-cretizava seus planos de desenvolvimento, e aomesmo tempo, criava postos de trabalho, prestí-gio e poder para si própria. Sua grande vitória,porém, será a criação do Banco Nacional de De-senvolvimento Econômico (BNDE), em 1952, porproposta do Ministro da Fazenda da época, oempresário industrial de São Paulo, Horácio Lafer.O Banco do Brasil encarregava-se, então, do fi-nanciamento da produção, e, com a criação daCarteira de Exportação e Importação (Cexim),passa a financiar o comércio exterior brasileiro.Continuava, entretanto, sem um órgão apropria-do o financiamento dos investimentos industriais.Isto só ocorrerá em 1952, depois da volta deVargas ao governo. Forma-se, então, a ComissãoMista Brasil-Estados Unidos, de 1951. Esta co-missão fora antecedida, durante o governo Dutra,em 1948, por uma missão americana, a MissãoAbink, que tivera como contraparte brasileira Otá-vio Gouvêa de Bulhões; não obstante seu corteliberal, aceitara o projeto de estabelecer-se no paísum “capitalismo industrial”. Esta proposta vai ga-nhar consistência no seio da Assessoria Econô-mica e da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos,criada para discutir e formular um plano de de-senvolvimento para o país e seu financiamentointernacional. Embora dominada pelo campo libe-ral, a Comissão Mista propõe que o Estado encar-regue-se da infra-estrutura (energia, transportes,comunicações), enquanto as iniciativas privada eestrangeira encarregar-se-iam da mineração (prin-cipal interesse estratégico dos Estados Unidosnaquela época em relação ao Brasil), e o Estadobrasileiro garantiria o acesso de empresas ameri-canas a seu mercado. Havia, naturalmente, umconflito entre os dois grupos de tecnoburocrataspúblicos, principalmente, porque o grupo nacio-nalista queria o monopólio estatal do petróleo, en-quanto que o segundo o rejeitava. Mas estavam

os dois grupos igualmente voltados para o plane-jamento econômico e a montagem de uma infra-estrutura de transportes e de energia de base esta-tal. Na política da Comissão Mista já estava deli-neado o que viria a ser o Plano de Metas de Jus-celino Kubitschek.

Além de contribuir para o desenvolvimentoeconômico, o Banco Nacional de DesenvolvimentoEconômico e Social (Bndes) passaria a ser, a par-tir de então, e até hoje – não obstante a todos osacidentes por que passou a burocracia públicabrasileira – uma das bases da autonomia e de po-der da burocracia pública brasileira. O Bndes, as-sim como o Banco Central, a Petrobrás e algunsoutros órgãos orientados para a coordenação eco-nômica, seria a materialização da estratégia deinsulamento burocrático que caracteriza o desen-volvimento econômico de países como o Brasilem que a burocracia pública joga um papel decisi-vo, mas a democracia nascente obriga os políti-cos ao exercício da prática do clientelismo. En-quanto os órgãos pertencentes principalmente aosministérios sociais são objeto de repartição políti-ca entre os partidos que apóiam o governo e osórgãos relacionados com a infra-estrutura são re-lativamente preservados, os órgãos de coordena-ção econômica são insulados do clientelismo. Essaé uma reivindicação da burocracia pública, mas éuma decisão dos próprios políticos que, assim,reconhecem o caráter estratégico dos órgãos decoordenação econômica e o perigo que represen-ta para eles mesmos submetê-los ao clientelismo.Na medida, porém, em que o desenvolvimentoeconômico é acompanhado pelo desenvolvimen-to político do país, esse tipo de insulamento vaiperdendo importância relativa porque, de um lado,o número de órgãos não submetidos ao clientelismodiminui, e, de outro, porque a sociedade passa aexercer um controle mais direto sobre as políti-cas que promovem.

Enquanto a burocracia pública em sentidoamplo desenvolvia-se a passos largos no âmbitodo Banco do Brasil, do Bndes e das empresas es-tatais, a burocracia pública estatutária, que a Re-forma Burocrática de 1936 procurara definir etornar meritocrática, retrocedera. Quando Getú-lio Vargas volta ao governo, procura restabelecera reforma, enviando ao Congresso, em 1953, umprojeto global de reforma administrativa, mas nãologra aprová-lo, como não o logrará JuscelinoKubitschek, que fará a mesma tentativa. Não

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obstante, conforme relata Celso Lafer (2002[1970]), a administração pública brasileira progre-dia: estimava-se que, em 1952, a porcentagem deservidores escolhidos segundo o mérito subia a9%, contra 4%, em 194311. O grande desenvol-vimento da burocracia pública brasileira, entre-tanto, estava realizando-se paralelamente, por meiodas empresas estatais, de organizações – na épo-ca, quase-estatais – como a Fundação GetúlioVargas, criada em 1944 por Vargas e por autarquiascomo o Bndes. Quando, em 1956, JuscelinoKubitschek decide por um ambicioso Programade Metas que, principalmente por meio da indús-tria automobilística, completará a Revolução In-dustrial brasileira iniciada por Vargas, o problemade qual setor da burocracia – se o estatutário ou o“paralelo” – deverá ser principalmente acionadose colocará novamente. Embora o Presidente ten-te a via estatutária, afinal a via paralela revela-semais flexível e mais rápida; o grande número deórgãos que então são criados, entre os quais sali-enta-se o Grupo Executivo da Indústria Automo-bilística (GEIA), liderado por Lúcio Meira, em-pregam uma burocracia pública não estatutária,mas competente, recrutada segundo critérios demérito; é a burocracia gerencial que está surgin-do, nem mal havia-se formalizado a weberiana.Conforme observa Celso Lafer, “os auxiliares di-retos de Kubitschek para a implementação do Pro-grama de Metas eram todos técnicos de alto ní-vel, experimentados não apenas nas tentativasanteriores de planejamento como também em car-gos políticos relevantes” (idem, p. 85). Destacam-se, entre eles, além de Lúcio Meira, Lucas Lopes,Roberto Campos, e, mais adiante, já para criar aSudene, Celso Furtado. Para o sucesso do plano,a escolha de uma burocracia paralela, que já pré-anunciava a lógica do Decreto-Lei n. 200 de 1967e da reforma gerencial de 1995, foi fundamental.

O nacional-desenvolvimentismo fora vitorio-so. O Brasil de 1960 era um outro país quandocomparado com o de 1930. Seu desenvolvimentoeconômico fora extraordinário, um parque indus-trial sofisticado e integrado fora montado, de for-ma que podia-se dizer que sua Revolução Indus-trial estava completa; a Nação havia ganho coe-

são, autonomia e identidade, seu Estado, comoorganização, estava mais estruturado eprofissionalizado e, como sistema constitucional-legal, estava mais legitimado por uma democracianascente, de maneira que também sua RevoluçãoNacional estava completa; quando estas duas re-voluções consumam-se, consuma-se também aRevolução Capitalista: o Brasil já não era mais umasociedade mercantil e patriarcal, mas uma socie-dade capitalista industrial na qual a acumulação decapital e a incorporação de progresso técnico pas-savam a fazer parte integrante do processo eco-nômico.

Esse já é um mundo diverso do mundopatrimonialista descrito por Faoro, que, conge-lando a sociedade e o Estado nessa formação, in-dica que o Governo Vargas foi ainda uma expres-são do Estado patrimonial. Faoro é claro a respei-to: “De D. João I a Getúlio Vargas, numa viagemde seis séculos, uma estrutura político-social re-sistiu a todas as transformações [...] a persistên-cia secular da estrutura patrimonial, resistindogalhardamente, inviolavelmente, à repetição, emfase progressiva, da experiência capitalista”(FAORO, 1975 [1957], p. 733-736). Ora, ao in-sistir nesta tese, Faoro ignora a diferença funda-mental entre o patrimonialismo e a burocracia ra-cional-legal, que Weber tanto salientou. Não con-sidera o caráter essencialmente tradicional do Es-tado patrimonial, em oposição ao caráter moder-no, racional-legal, do capitalismo industrial e daburocracia moderna. Erro que Sérgio Buarque deHollanda, por exemplo, embora escrevendo mui-to antes, não cometeu quando afirmou: “O funci-onalismo patrimonial pode, com a progressiva di-visão das funções e com a racionalização, adqui-rir traços burocráticos. Mas em sua essência ele étanto mais diferente do burocrático, quanto maiscaracterizados estejam os dois tipos”(HOLLANDA, 1969 [1936], p. 106). Entretanto,um acontecimento não previsto – a RevoluçãoCubana de 1959 que, em breve, transforma-se emum episódio-chave na Guerra Fria entre EstadosUnidos e União Soviética – mudará no plano polí-tico o quadro otimista que o governo Kubitschekdeixara, enquanto uma crise econômica internaaprofundará a crise política.

V. BUROCRACIA PÚBLICA NO PODER: 1964-1984

Durante o governo Collor, a burocracia públi-ca viverá em sobressalto devido à política radical

11 Em seu clássico trabalho sobre o Programa de Metas deJuscelino Kubitschek, Lafer (2002 [1970]) incluiu um ca-pítulo sobre a administração pública brasileira com o obje-tivo de avaliar sua capacidade de implementar um plano degoverno abrangente como foi aquele programa.

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que as autoridades econômicas adotam para re-duzir as despesas do Estado. Existe, entretanto,uma iniciativa importante que é a tentativa de trans-ferir para o setor público a “estratégia da qualida-de total” – uma forma de gestão bem-sucedida nosetor privado. Esta iniciativa apontava para o novo.O mesmo não pode-se dizer da criação das “câ-maras setoriais” – segundo Eli Diniz, “esse meca-nismo representou a retomada das experiências –utilizadas em vários graus de êxito no passado –voltadas para a construção de espaços de elabora-ção de metas e diretrizes acordadas entre elitesestatais e representantes da iniciativa privada”(DINIZ, 1997, p. 139). Esta iniciativa foi recebi-da calorosamente por vários setores que espera-vam ver restabelecida a antiga forma de associa-ção entre os empresários e a burocracia pública,mas era uma tentativa de se voltar ao passado emum quadro em que o Estado, totalmente afogadona crise fiscal e na alta inflação, não tinha maispoder para intervir no plano econômico de formaefetiva. O maior “sucesso” das câmaras foi o cha-mado Acordo das Montadoras que, significativa-mente, beneficiou um conjunto de empresasmultinacionais.

O Brasil, como conseqüência do pacto popu-lar-nacional e da estratégia nacional-desenvolvimentista que foi adotada entre 1930 e1960, era, no final desse período, um país empleno desenvolvimento econômico, que havia pra-ticamente completado sua Revolução Industrial eNacional. Em 1959, porém, ocorre a RevoluçãoCubana – uma revolução que inicialmente era ape-nas anti-oligárquica e antiimperialista, mas que,no quadro da Guerra Fria, e dada a incapacidadedos Estados Unidos de aceitarem a nacionalizaçãode empresas americanas que os revolucionárioscomeçavam a realizar, transforma-se em uma re-volução comunista apoiada pela União Soviética.Wright Mills viajou para Cuba logo após a revolu-ção, verificou que ela não era comunista e apeloua seus compatriotas americanos que a aceitassemem vez de lançar o país aos braços do comunis-mo. Seu Listen, Yankees (1960), entretanto, nãofoi ouvido e Fidel Castro caminhou em direção aocomunismo. Não cabe aqui discutir quais foramas conseqüências desta revolução para o povocubano; para a América Latina e particularmentepara o Brasil, porém, não há dúvida que foramdesastrosas. A revolução socialista em Cuba, emum momento em que a Economia da União Sovi-ética estava ainda crescendo aceleradamente e

Kruschev prometia alcançar em breve o nível dedesenvolvimento dos Estados Unidos, levou ime-diatamente a uma radicalização política de setoresimportantes da esquerda brasileira que imagina-ram poder repetir aqui a experiência cubana.

Esta radicalização aconteceu aqui em um mo-mento em que, à crise econômica provocada pe-los gastos excessivos e pela apreciação do câm-bio durante o governo Kubitschek, somava-se acrise política causada pela eleição e subseqüenterenúncia do Presidente Jânio Quadros, e pelaassunção à Presidência da República de JoãoGoulart. Goulart, por suas tendências de esquer-da, não contava com a confiança da burguesiaque agora unificava-se politicamente, depois dehaver permanecido dividida durante 30 anos nemcom a confiança dos militares que também rejei-tavam radicalmente o socialismo ou o comunis-mo. O resultado da radicalização da esquerda e doalarmismo da direita, em um quadro de crise eco-nômica e instabilidade política, foi o golpe militarde 1964, que ocorre com o apoio dos EstadosUnidos.

O pacto popular-nacional de Vargas, reunindoburguesia industrial, burocracia política e traba-lhadores, que estava em crise desde 1960, rom-pe-se definitivamente. O novo pacto que reunirátoda a burguesia e a burocracia política na qual osmilitares voltam a ser preeminentes é o pacto bu-rocrático-autoritário. O ciclo nação e desenvolvi-mento que caracterizara a sociedade durante todoa primeira metade do século estava encerrado namedida em que os dois setores mais nacionalistasda classe capitalista e da burocracia pública, res-pectivamente, os empresários industriais e os mi-litares, haviam aliado-se aos americanos. Um pou-co mais tarde, no final dos anos 1960, começaria,no âmbito da sociedade, outro ciclo que denomi-namos de “ciclo democracia e justiça social” –um ciclo no qual a sociedade esquecia a idéia denação, aceitando a dependência, e supunha o de-senvolvimento econômico assegurado (estávamosem pleno “milagre econômico”); mas, em com-pensação, definia como objetivos sociais básicosa correção das duas distorções que aquele desen-volvimento causava: o autoritarismo e a desigual-dade.

No âmbito do Estado, entretanto, a estratégianacional-desenvolvimentista teria prosseguimen-to no quadro de um pacto político no qual a buro-cracia política, principalmente militar, mas tam-

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bém civil, matinha sua aliança com a burguesia e,principalmente, com a burguesia industrial. Omodelo político, além de autoritário, era excludentedo ponto de vista político e social, afastando ostrabalhadores e as esquerdas do poder e promo-vendo uma forte concentração de renda da classemédia para cima, no quadro do que chamei de“modelo de subdesenvolvimento industrializa-do”12.

Entre 1964 e 1984, inverte-se a relação entre aburguesia industrial e a burocracia política no Bra-sil, porque esta, apoiada no seu setor militar, pas-sa a ter precedência sobre a primeira. Depois deum processo de ajustamento fiscal e externo quefaz a inflação retornar para níveis aceitáveis e equi-libra a conta corrente do país, conduzido porRoberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões, ede uma série de reformas que, significativamente,levam à nacionalização da telefonia e à criação daEletrobrás não obstante o credo liberal einternacionalista dos dois economistas, o BancoCentral é criado, substituindo a carteira do Bancodo Brasil, a Sumoc, que desde 1944 desempenha-va esse papel. E o modelo de industrialização porsubstituição de importações – ou, mais amplamen-te, a estratégia nacional-desenvolvimentista – éretomada com vigor por meio de dois Planos Na-cionais de Desenvolvimento. A Eletrobrás ganhaimpulso, e é definido um modelo tripartite envol-vendo o Estado, empresários nacionais e empre-sas multinacionais para instalar no país a indústriapetroquímica.

No plano da administração pública, dois fenô-menos aparentemente contraditórios irão ocorrer:a concentração e centralização do poder na União,e “a rápida e significativa ampliação da adminis-tração indireta ou descentralizada vis-à-vis a ad-ministração direta ou centralizada a nível federal”(WAHRLICH, 1979, p. 8). Desde o início dos anos1960, formara-se a convicção de que a utilizaçãodos princípios rígidos da administração públicaburocrática constituía-se em um empecilho aodesenvolvimento do país. Na verdade, esta insa-

tisfação datava da década anterior, mas o desen-volvimento econômico acelerado que ocorria en-tão permitia que as soluções encontradas paracontornar o problema tivessem caráter ad hoc,como foi o caso dos grupos executivos setoriaisdo governo Kubitschek. No momento, entretan-to, em que a crise desencadeia-se, no início dosanos 1960, a questão retorna. Guerreiro Ramosexpressa a insatisfação com o modelo burocráti-co vigente: “Modelo obsoleto de organização eburocracia configura a prática administrativa do-minante. Consciente ou inconscientemente sub-jugados por interesses radicados, muitos admi-nistradores estão tentando resolver problemas dehoje com soluções de ontem” (RAMOS, 1966, p.19). Os estudos para uma reforma que tornassemais eficiente a administração pública começarama ser realizados em 1963, quando o PresidenteJoão Goulart nomeou o Deputado Federal AmaralPeixoto como Ministro Extraordinário para a Re-forma Administrativa, com a incumbência de diri-gir diversos grupos de estudos, encarregados daformulação de projetos de reforma13.

No final desse ano, a Comissão apresentouquatro projetos importantes, tendo em vista umareorganização ampla e geral da estrutura e das ati-vidades do governo. Foi, entretanto, só depois dogolpe de Estado de 1964 que essa reforma viria aser realizada.

Em 1967, Roberto Campos comandou umareforma administrativa ampla – a reforma do De-creto-Lei n. 200 ou a reforma desenvolvimentista– que será pioneira, anunciando a reforma gerencialou da gestão pública de 1995. Para formular eimplementar a reforma uma comissão fora mon-tada, já em 1964, a Comissão Especial de Estudosda Reforma Administrativa (Comestra), tendoHélio Beltrão como seu presidente e principalinspirador das inovações14. A reforma tinha umcaráter nitidamente descentralizador.

Denominamos essa reforma de “reformadesenvolvimentista” porque ela era realizada noquadro do nacional-desenvolvimentismo, quandotodos os esforços do país voltavam a centrar-se

12 Analisei esse novo modelo originalmente em Bresser-Pereira (1970); incluí e ampliei análise em Desenvolvimen-to e crise no Brasil (BRESSER-PEREIRA, 2003 [1968], p.168-178) a partir de sua terceira edição, de 1972, e comple-tei-a no livro Estado e subdesenvolvimento industrializado(BRESSER-PEREIRA, 1977a). Neste livro faço ampla dis-cussão da classe média profissional e da sua burocraciapública.

13 Objetivando “a reforma dos serviços públicos fede-rais”, a Comissão Amaral Peixoto foi instituída pelo Decre-to n. 51 705, de 14 de fevereiro de 1963.14 José N. T. Dias foi seu Secretário-Executivo; seu papelna implementação da reforma foi fundamental.

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na industrialização depois da crise da primeirametade dos anos 1960, e porque vinha, de algumaforma, chancelar e dar mais coerência à experi-ência de descentralização e de montagem de umaadministração paralela que caracterizara esse de-senvolvimento no plano administrativo. Duas idéiassão centrais: a distinção entre a administração di-reta e indireta e, nesta, a criação de fundaçõespúblicas que passam a poder contratar emprega-dos regidos pela legislação aplicada às empresasprivadas. Há uma evidente correlação entre essainstituição e as organizações sociais que estariamno centro da Reforma gerencial de 1995.

A partir de 1979, Hélio Beltrão, que havia par-ticipara ativamente da Reforma Desenvolvimentistade 1967, volta à cena, agora na chefia do Ministé-rio da Desburocratização do governo Figueiredo.Entre 1979 e 1983, Beltrão transformou-se emum arauto das novas idéias; criticando, mais umavez, a centralização do poder, o formalismo doprocesso administrativo e a desconfiança que es-tava por trás do excesso de regulamentação buro-crática, propondo uma administração pública vol-tada para o cidadão. Seu Programa Nacional deDesburocratização foi por ele definido como umaproposta política visando, pela administração pú-blica, a “retirar o usuário da condição colonial desúdito para investi-lo na de cidadão, destinatáriode toda a atividade do Estado” (BELTRÃO, 1984,p. 11; cf. WAHRLICH, 1984).

Graças ao ajustamento macroeconômico, aofortalecimento das empresas estatais, à nacionali-zação da telefonia e ao grande desenvolvimentoque passa a conhecer a partir de então, sob o co-mando do Ministro das Comunicações, EuclidesQuandt de Oliveira e às reformas, principalmente,tributária e administrativa, o Estado fortalece-se,seu projeto de industrialização recupera substân-cia e o país volta ao desenvolvimento econômicode forma acelerada. Contribui para o “milagre eco-nômico” (1968-1974) que então ocorre uma novapolítica macroeconômica pragmática, comanda-da desde 1968 por Antônio Delfim Netto, que per-cebe que a inflação residual tinha mais caráteradministrado ou de custos do que de demanda.Seguindo, então, os ensinamentos de IgnácioRangel, aproveita a oportunidade e adota uma po-lítica expansiva que leva a uma queda da taxa dainflação. Enquanto isso, ocorria no planomacroeconômico, no seio da burocracia públicano qual os políticos haviam perdido poder, a nova

estrutura do aparelho do Estado e o fortalecimen-to do núcleo de empresas estatais, que facilitam oprocesso de desenvolvimento econômico do ladoda oferta agregada. A liderança do esforço de pla-nejamento da oferta que ocorre caberá, durantegrande parte dos anos 1970, ao Ministro do Pla-nejamento, João Paulo dos Reis Velloso.

O êxito econômico do empreendimento leva aum novo aumento do poder e influência datecnoburocracia pública. E leva, também, a umaprofundamento da sua aliança com a burguesiaindustrial pela execução dos dois Planos Nacio-nais de Desenvolvimento (PNDs). Não obstanteao êxito da burocracia pública em promover odesenvolvimento econômico e aos esforços dogoverno de implementar a ReformaDesenvolvimentista pelo Ministério do Planejamen-to, a crítica do sistema administrativo brasileiro,porque não adaptava-se ao modelo clássico deadministração pública, continuava viva. Ela vaiaparecer principalmente no estudo realizado porEdson Nunes (1997 [1984]), que vê nessas práti-cas um obstáculo central ao desenvolvimento eco-nômico do país e a estratégia de insulamento bu-rocrático como a forma de contornar o proble-ma. Embora esta crítica fosse compreensível, nãoera, entretanto, inteiramente justificada. Oclientelismo que havia ressurgido em 1946, coma primeira democratização, voltaria em 1985, coma redemocratização. Durante o regime militar, po-rém, ele permanece presente, sem, entretanto,impedir que o Estado realizasse seu papel de pro-moção do desenvolvimento econômico.

Isto foi possível porque, por meio do sistemaparalelo, havia surgido uma burocracia pública dealta qualidade, bem preparada, bem paga, que teveum papel fundamental na execução dos projetosde desenvolvimento industrial de então. Assim,forma-se, no país, dentro da burocracia pública,não obstante a mobilidade dos altos burocratas,uma nítida clivagem entre os altos funcionáriospúblicos e os dirigentes das empresas estatais. Napesquisa que Luciano Martins dirigiu, em 1976,“o problema central que se coloca é o das articu-lações entre o setor governo e o setor produtivodo Estado” (MARTINS, 1985, p. 72, 208): osexecutivos públicos do segundo setor ganhamgrande autonomia, seus salários descolam-se da-queles dos funcionários, e os controles sobre elespassam a ser relativamente reduzidos.

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A forma de seu recrutamento é mais porcooptação do que por concurso. Sua auto-identi-ficação é com a condição de “executivos” e nãode “funcionários”. Na pesquisa com 107 altosservidores, 77% dos servidores do governo ouaparelho do Estado e 95% dos executivos dasempresas estatais identificaram-se com a primei-ra em vez da segunda denominação. Na mesmaépoca, oriento tese de doutorado de VeraThorstensen (1980), na qual o tema central é o doconflito entre os dois setores da burocracia públi-ca na sua relação com as empresas privadas, osrepresentantes do governo procurando regulartanto as empresas privadas quanto as estatais,enquanto os executivos destas últimas buscavamuma associação mais direta com os empresáriosprivados.

Essa elite burocrática política, contratada prin-cipalmente por intermédio de empresas estatais,seguia uma carreira informal e muito flexível, queBen Ross Schneider (1994 [1991]) estudou demaneira inovadora15. Os novos administradorespúblicos eram principalmente engenheiros e eco-nomistas, que nada tinham a ver com o sistemaburocrático de carreiras rígidas previsto pela Re-forma Burocrática de 1938. Os resultados que al-cançaram em suas autarquias, fundações, empre-sas públicas e empresas de Economia mista fo-ram substanciais. A questão central que colocou-se foi: de que forma explicar como um Estado tãopouco institucionalizado como é o brasileiro te-nha tido um efeito tão positivo para a industriali-zação do país. Ao fazer essa pergunta, ele tinha,naturalmente, como modelo alternativo, o modeloweberiano de burocracia, no qual a organizaçãoburocrática é fortemente institucionalizada, e osburocratas são estritamente fiéis a ela.

No Brasil, não foi isso que Schneider obser-vou. Pelo contrário, o que viu foram organiza-ções estatais mal estruturadas e fragmentadas, ainexistência de carreiras claramente definidas eformalizadas, e uma intensa circulação dos buro-

cratas entre as agências. Viu também que os cri-térios de promoção não eram os critérios clássi-cos da burocracia: antiguidade e mérito aferidoprincipalmente por exames, mas a confiança queo burocrata era capaz de inspirar em seu chefe e acapacidade de alcançar resultados. O próprio con-ceito de burocrata teve de ser ampliado. Burocra-tas – ou, mais precisamente, altos burocratas –eram todos aqueles que trabalham nos principaiscargos do governo brasileiro. Mas esses burocra-tas não enquadravam-se no modelo ideal de fun-cionário burocrata. Schneider identificou e defi-niu quatro tipos de burocratas públicos: os políti-cos, os militares, os técnicos e os técnicos-políti-cos. Políticos são os burocratas que, embora par-ticipando do processo eleitoral, ocupam cargosimportantes na administração pública. Militares sãoos oficiais que ocupam cargos na administraçãopública fora das Forças Armadas. Técnicos sãoos que mais aproximam-se do modelo burocráti-co convencional e também os menos importan-tes. E técnicos-políticos, aqueles que intermedeiamentre a burocracia e a política, ou seja, que sãocapazes de sacrificar a pureza burocrática emnome de apoio político. Todos esses burocratas,que não chegavam a um milhar no Brasil, eramhomens e mulheres bem-sucedidos, ambiciosos,bem preparados tecnicamente, havendo estudadonas melhores universidades do país e do exterior.Eram todos, no momento da pesquisa, nacional-desenvolvimentistas e pró-capitalistas. Recebiamsalários elevados, circulavam entre agências cadaquatro a cinco anos. Eram burocratas, mas, mes-mo os técnicos, eram políticos também. Emboraestivessem em um regime autoritário, sabiam queo total isolamento burocrático em relação à políti-ca não é viável nem desejável. O argumento fun-damental de Schneider é o de que a eficiência dessesistema burocrático informal está relacionada comsua estruturação por meio de carreiras, as quaisrealizam-se por nomeações pessoais. Schneiderreivindica ter sido o primeiro a ter levado a suasúltimas conseqüências essa “abordagem das car-reiras” – eu diria “das carreiras e das nomeações”–, como uma alternativa à abordagem convencio-nal baseada nas organizações. Em um país no qual,quando assume um novo Presidente da Repúbli-ca, foram abertos 50 mil cargos para nomeação,estas tornam-se um fator estratégico fundamen-tal. E se forem usadas de uma forma razoavel-mente sistemática e competente, como aconte-ceu no Brasil, podem ser a forma, por excelência,

15 É curioso, entretanto, observar que Schneider, que emseu estudo adotava linha semelhante ao trabalho de PeterEvans (1979) sobre a indústria petroquímica, e da aliançaque então se estabelece entre a burocracia estatal, oempresariado nacional e as empresas multinacionais, nãoassinala, como Evans não havia assinalado, que essa buro-cracia desenvolvimentista e gerencial bem-sucedida poucotinha a ver com o “burocrata weberiano”.

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de definir carreiras de burocratas bem-sucedidose de estruturar o Estado. Desta forma, nomea-ções e carreiras, mais do que organizações,estruturam o Estado brasileiro. Conforme escla-rece Schneider, “a rápida circulação burocráticaenfraquece as lealdades organizacionais e aumen-ta a dependência nas relações pessoais, um fatoque por sua vez mina as organizações formais.Alta mobilidade permite aos funcionários formu-lar e coordenar políticas apesar da fragmentaçãoorganizacional, porque eles se importam poucopor suas agências e porque as personalidades for-tes fornecem os canais alternativos de comunica-ção. Personalismo pode, de fato, melhorar o de-sempenho burocrático” (SCHNEIDER, 1991, p.28-29). De acordo com essa abordagem, o es-sencial é compreender a carreira do burocrata ecomo ela realiza-se, com nomeações. Por meiodo estudo da forma de entrada na carreira, de cir-culação entre as agências, das promoções e dasformas de saída ou demissão, a abordagem dascarreiras permite a Schneider compreender deforma sistemática e inovadora a naturezapersonalista e desorganizada, mas flexível e efici-ente do Estado brasileiro. Embora por outras vias,Gilda Portugal Gouvêa (1994), ao analisar a re-forma financeira realizada no âmbito do Ministé-rio da Fazenda, entre 1983 e 1987, por um grandenúmero de técnicos, entre os quais João Bastistade Abreu, Osires de Oliveira Lopes Filho, Maílsonda Nóbrega e Yoshiaki Nakano, chega a conclu-sões semelhantes. O episódio que analisou, cujosúltimos atos eu assinei como Ministro da Fazen-da, foram o último grande momento da burocra-cia política brasileira – um grupo social que já es-tava em plena crise.

VI. PACTO DEMOCRÁTICO-POPULAR

Os tempos gloriosos desta alta burocracia po-lítica no poder, porém, estavam contados desde1974 e, principalmente, de 1977. A escolha doGeneral Ernesto Geisel para a Presidência da Re-pública (1974) e a definição do segundo PND ex-tremamente ambicioso levam a umaprofundamento da aliança entre a burocracia po-lítica e os empresários e ao auge do prestígio doprimeiro grupo, mas levam também às primeirasiniciativas do novo Presidente e do General Golberydo Couto e Silva de promover a abertura políticaque então é chamada de “distenção”. Dessa ma-neira, os militares reconheciam a inevitabilidadeda redemocratização, mas procuravam postergá-

la com um processo de redemocratização “lento egradual”. O fato de que a economia mundial jáentrara em retração desde 1973, entretanto, mos-trava que esse projeto não tinha grande probabili-dade de êxito e que o início da verdadeira transi-ção democrática – uma transição demandada pelasociedade – estava à espera de uma crise. Estachega em abril de 1977, quando o PresidenteGeisel, diante de dificuldades que enfrenta emaprovar no Congresso Nacional um projeto de re-forma do poder Judiciário, fecha temporariamen-te o Congresso e muda a Constituição por decre-to. O “pacote de abril”, como foi chamado, causauma reação forte em toda a sociedade, inclusivena burguesia. Pela primeira vez, desde 1964, osempresários passam a manifestar insatisfação como regime e a demandar o retorno da democracia.Compreendi naquela época que estava iniciando-se a transição democrática e publiquei, em 1978,sete anos antes que essa consumasse-se, o livroO colapso de uma aliança de classes, que previaessa transição a partir da ruptura do acordo fir-mado entre os empresários e os militares, quecomeçava a ocorrer.

A transição democrática – que começa em 1977e termina no início de 1985 – foi o resultado deum novo pacto político informal, o pacto popu-lar-democrático de 1977 – uma coalizão políticapopular, porque volta a contar com os trabalha-dores, mas que apresenta como grande novidadeo fato de a burguesia aliar-se a eles e, mais direta-mente, aos amplos setores da classe profissional,inclusive da burocracia pública, não diretamentecomprometidos com o regime militar. Esta coali-zão política correspondia, no plano do Estado, aociclo democracia e justiça social, iniciado na soci-edade como uma reação ao golpe militar de 1964,da mesma forma que o pacto popular-nacional e aestratégia nacional de desenvolvimento que ele deraorigem – a estratégia nacional-desenvolvimentista– correspondera, a partir de 1930, ao ciclo naçãoe desenvolvimento, que surgira a partir do iníciodo século XX. O interessante desta coalizão po-pular e democrática é que ela forma-se antes dechegar ao poder, já em 1977, alcança o poder em1985 e, dois anos depois, com o terrível fracassodo Plano Cruzado, entra em colapso, não obstanteà generosidade de seus propósitos democráticose sociais e o relativo êxito que obteve em lograr aredemocratização. Há muitas razões para isto, masa principal foi o fato de a democracia ter sidoalcançada em meio a uma crise econômica de gra-

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vidade sem precedentes – a grande crise da dívi-da externa dos anos 1980 – que trazia no seu bojoo colapso da estratégia nacional-desenvolvimentista que, desde 1930, tinha o pa-pel de instituição orientadora das decisões de in-vestimento e, portanto, do desenvolvimento eco-nômico do país. Esse colapso não constituiria pro-blema se o pacto democrático-popular tivesse outraestratégia para substituí-la. Não era isto, entre-tanto, o que ocorria. Os empresários e os buro-cratas políticos que chegam ao poder em 1985não haviam inteirado-se da gravidade da crise dadívida externa – uma crise que, além de não re-solver-se, dada a resistência dos credores em re-alizar os prejuízos, transformara-se em uma crisefiscal do Estado – de forma que pretenderamignorá-la e voltar às altas taxas de desenvolvimentoeconômico que, nos anos 1950, haviam sido pos-síveis com a democracia.

Os anos 1980, entretanto, eram outros, e exi-giam uma nova estratégia – um novodesenvolvimentismo – coisa que os governantesnão estavam preparados para adotar. Precisavamdar-se conta de que a crise da dívida externa ne-cessitava uma negociação soberana, mas que estasó poderia ser lograda se fosse combinada comuma nova e rígida disciplina que enfrentasse a crisefiscal e com uma política de taxa de câmbio quemantivesse a economia competitiva internacional-mente. O Plano Cruzado, que o governo demo-crático implementa em 1986, não revelava nenhu-ma dessas tomadas de consciência: foi realizadosem que paralelamente iniciasse-se um processode efetiva negociação da dívida externa, ignorou anecessidade do ajuste fiscal e deixou que a taxade câmbio apreciada mantivesse o país nas con-dições de insolvência externa, que existia desdeque a crise da dívida externa desencadeara-se, noinício da década. Não é surpreendente, portanto,que este plano tenha fracassado tão estrondosa-mente e que seu fracasso tenha, além deaprofundado a crise econômica, levado ao colap-so do pacto democrático-popular de 1977. Omesmo governo – o governo Sarney – continua-va no poder, mas já sem efetivo poder, porqueestava sem a legitimidade que o pacto político –agora ele próprio deslegitimado pelo fracasso –emprestara-lhe até então. O fracasso era funda-mentalmente dos empresários industriais que ti-veram um de seus principais líderes, DílsonFunaro, na chefia do Ministério da Fazenda, e daburocracia política ampliada, com origem nos es-

tados da federação e nas universidades. Os em-presários industriais, que haviam tido um papeldecisivo na abertura democrática, fracassaram emassumir a liderança política do país, porque falta-va também projeto e porque comprometeram-secom o Plano Cruzado. Após o seu fracasso, emvez de perceberem que estava na hora de abrir aeconomia para torná-la mais competitiva – e dereformar o Estado para reconstruí-lo, ao mesmotempo em que administrava-se o câmbio e impe-dia-se que a tendência à sobre-apreciaçãoinviabilizasse o desenvolvimento industrial –, in-sistiram, inclusive, por meio da nova organizaçãoque criam em 1988, o Instituto de Estudos para oDesenvolvimento Industrial (IEDI), em lutar con-tra a abertura comercial e em defender o estabele-cimento de uma política industrial indefinida, comisto, mantendo-se enfraquecida politicamente. Estaestratégia não fazia sentido, dada a crise fiscal doEstado e a dimensão da dívida externa em que opaís estava mergulhado. O discurso perdera co-meço, meio e fim. Em conseqüência, abriu-se es-paço para que as idéias neoliberais e “globalistas”entrassem de roldão no país a partir da quase-hiperinflação de 199016. Por outro lado, a buro-cracia política ampliada que ganhara poder com atransição democrática, agitava de forma populistae irresponsável a bandeira de um nacional-desenvolvimentismo que, mesmo na sua versãoresponsável, já estava superado pelo fato de que oestágio de desenvolvimento econômico do país jánão autorizava uma política protecionista e umaintervenção do Estado promovendo poupança for-çada e investindo por meio de empresas estatais.Nos dois primeiros anos do regime democrático,o novo grupo no poder ignorou a crise fiscal e anecessidade de rever a forma de intervenção doEstado na Economia. O retorno da democraciahavia transformado a retomada do desenvolvimen-to e a realização da justiça social em uma questãode vontade. Vargas nunca pensara desta forma.Era populista no plano político, não no da políticaeconômica. Foi só no final de seu período, nosgovernos Kubitschek e João Goulart, que opopulismo econômico caracterizara o nacional-desenvolvimentismo; agora voltara a caracterizaro pacto democrático-popular de 1977 e o levara

16 Entendo por “globalismo” a ideologia nascida daglobalização que afirma a perda de autonomia e relevânciado Estado no mundo moderno, em que prevaleceriam nãoapenas um mercado mas uma sociedade global.

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ao colapso com o Plano Cruzado. Estas ilusõespareceram confirmar-se quando o Plano Cruza-do, concebido com competência a partir da teoriainercial da inflação, foi deturpado de forma gros-seiramente populista, e durante um ano produziuuma falsa prosperidade. Após seu fracasso, hou-ve uma tentativa de ajuste fiscal, correção da apre-ciação cambial e renegociação da dívida externapela securitização desta dívida, com um descontodurante minha passagem pelo Ministério da Fa-zenda (1987). Esta tentativa, entretanto, não con-tou com o apoio necessário do restante do gover-no e da sociedade brasileira, que testemunhava,perplexa, a crise do regime pelo qual tanto almeja-ra. Em vez do ajuste e da reforma, o país, sob aégide de uma coalizão política populista no Con-gresso Nacional – o “Centrão” – mergulhou em1988 e 1989 no descontrole da política econômi-ca e, no início de 1990, na hiperinflação. O Presi-dente Collor, eleito no final do ano anterior,implementa imediatamente um plano de estabili-zação, mas este – o Plano Collor –, por não neu-tralizar a inércia inflacionária, fracassa, ainda queimplicasse em um enorme ajustamento fiscal emonetário. Em 1991, com o início do segundogoverno Collor, ou seja, com a mudança geral doministério que ocorre e, especialmente, com amudança da equipe econômica, a nova coalizãopolítica liberal, conservadora e cosmopolita queestava formando-se desde o fracasso do PlanoCruzado, chega ao poder. A partir de então, o paísestará sob o domínio do pacto liberal-dependente– um pacto político excludente constituído fun-damentalmente pelos grandes rentistas, o setorfinanceiro, as empresas multinacionais e os inte-resses estrangeiros em relação ao Brasil. Dele pas-sam também a ser excluídos os empresários in-dustriais e a burocracia pública que, entre 1930 e1986, haviam sido as duas principais classes diri-gentes. Tanto uma quanto a outra haviam ficadomarcadas pelo fracasso do Plano Cruzado, que ashavia identificado com o protecionismo e oestatismo, as duas bêtes noires17 da ideologianeoliberal que invadia o país naquele momento deforma triunfante. Com o acordo que o Brasil assi-na com o Fundo Monetário Internacional (FMI),em dezembro de 1991, o país subordina-se for-malmente à ortodoxia convencional. O territórioestava, naquele momento, com seu déficit públi-co zerado, devido ao grande ajuste fiscal realiza-

do pelo Plano Collor, mas a inflação inercial esta-va em torno de 20% ao mês. Para baixá-la, o novoMinistro da Fazenda eleva a taxa de juros brutal-mente, esperando que, com isso – nos termos dacarta de intenção assinada com o FMI –, a taxa deinflação caísse gradualmente para 2% no fim deum ano18. Dado, entretanto, o caráter inercial dainflação, a taxa de inflação permanece no mesmonível, não obstante ao desaquecimento econômi-co e ao déficit público que a elevação da taxa dejuros provoca. Dois anos depois, já no governoItamar Franco, o Plano Real logra, afinal, neutra-lizar de forma heterodoxa a alta inflação inercialque penalizava o país desde 1994. A aplicação deuma estratégia que fugia aos ditames de Washing-ton e Nova Iorque, entretanto, durou o períodoque foi necessário para implementar o Plano Real(primeiro semestre d 1994). Ainda no segundosemestre desse ano, a taxa de câmbio aprecia-sefortemente, e, logo em seguida, a taxa de juros éelevada a níveis estratosféricos. A macroeconomiada estagnação começava, assim, seu curso noBrasil (BRESSER-PEREIRA, 2007). A partir deentão, sob a égide da antiestratégia de desenvolvi-mento econômico, que é a ortodoxia convencio-nal, a economia brasileira cresceria lentamente,ficando sistematicamente para trás, não apenasdos demais países em desenvolvimento que ado-tam estratégias nacionais de desenvolvimento erealizam o catch up, mas também dos países ri-cos.

VII. CONCLUSÃO

A Reforma gerencial iniciada em 1995, alémde tornar o aparelho do Estado mais eficiente,devolve à burocracia pública brasileira parte doprestígio social que perdeu em conseqüência, deum lado, do próprio colapso do regime militar, deoutro, do esgotamento da estratégia nacional-desenvolvimentista. Em ambos os processos po-líticos, a burocracia pública teve um papel decisi-vo que, entretanto, foi substancialmente reduzi-do, a partir do momento em que o Brasil, depoisda grande crise dos anos 1980, não logra substi-tuir a estratégia nacional de desenvolvimento na-cional-desenvolvimentista por uma nova estraté-gia e volta a subordinar-se ao Norte. A burocraciapública exerce um papel importante quando a res-pectiva sociedade e, principalmente, a classe bur-

17 “Bestas negras”, em francês (nota do revisor).18 Em 1991, Marcílio Marques Moreira substituiu ZéliaCardoso no Ministério da Fazenda.

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guesa, que nela exerce papel dominante, tem umarazoável clareza sobre os objetivos a serem alcan-çados e os métodos a serem adotados. Entre 1930e 1980, isto aconteceu, entremeada por uma crisena primeira metade dos anos 1960; mas, desde agrande crise dos anos 1980, o Brasil não contamais com uma estratégia nacional de desenvolvi-mento, na medida em que aceitou uma anti-estra-tégia, que é a ortodoxia convencional exportadapelo Norte.

Há muitas causas que explicam esse desastrenacional, todas elas associadas ao fracasso dopacto popular-democrático de 1977 em conduziro país. Esse pacto foi capaz de promover a tran-sição democrática, deu origem a toda uma sériede políticas sociais que contribuíram para dimi-nuir um pouco a grande concentração de rendaexistente no país, mas não teve proposta em rela-ção ao desenvolvimento econômico e, quando viu-se brevemente no poder, em 1985, levou o paísao grande desastre que foi o Plano Cruzado. Ha-via necessidade, então, de uma mudança profun-da das políticas econômicas para as quais a soci-edade brasileira não estava preparada. As causasimediatas da Grande crise eram a dívida externacontraída nos anos 1970 e a alta inflação inercialque decorreu do uso da indexação de preços, masera preciso também mudar do velhodesenvolvimentismo baseado na substituição deimportações e nos investimentos do Estado paraum novo desenvolvimentismo que concentrasse-se em tornar a Economia brasileira mais competi-tiva externamente por políticas macroeconômicasque combinassem estabilidade com crescimentoe que garantissem aos empresários taxas de jurosmoderadas e, principalmente, taxas de câmbiocompetitivas. Esse é, essencialmente, o tema deMacroeconomia da estagnação (2007) cujas te-ses não serão repetidas neste texto.

Aqui, o que é importante assinalar é que osfatores que levaram o Brasil à demissão nacionalno segundo governo Collor e à chegada ao poderde uma coalizão política intrinsecamente adversáriado desenvolvimento econômico do país – o Pactoliberal-dependente – estão desaparecendo. Embo-ra as taxas de crescimento sejam muito baixasquando comparadas com a dos demais países, aeconomia brasileira não vive mais o quadro de crisedos anos 1980. Por outro lado, o pressuposto desuas elites intelectuais marcadas pela teoria dadependência e pelo ciclo democracia e justiça so-

cial de que o desenvolvimento econômico estavaassegurado não havendo por que se preocupar comele perdeu qualquer base na realidade: o desenvol-vimento que estava assegurado durou apenas osanos 1970. Em terceiro lugar, está ficando claropara toda a sociedade o fracasso da ortodoxiaconvencional aqui e em outros países como a Ar-gentina e o México em promover o desenvolvi-mento econômico; quando, neste quadro, a Ar-gentina rompe com a ortodoxia convencional epassa a adotar estratégias macroeconômicas se-melhantes às dos países asiáticos (câmbio com-petitivo, taxa de juros moderada e ajuste fiscal rí-gido), passa a crescer fortemente. Em quarto lu-gar, a hegemonia ideológica norte-americana, quetornara-se absoluta nos anos 1990, enfraqueceu-se de maneira extraordinária nos anos 2000 devi-do ao fracasso da ortodoxia convencional em pro-mover o desenvolvimento econômico e devido aodesastre que representou para os Estados Unidosa guerra do Iraque. Finalmente, nota-se entre osempresários industriais, que ficaram calados du-rante os anos 1990, uma nova consciência dosproblemas nacionais e uma nova competência emmatéria macroeconômica por parte de suas as-sessorias, que serão essenciais para a definiçãoem conjunto com a burocracia pública de um novodesenvolvimentismo.

É nesse quadro mais amplo que a idéia de umnovo desenvolvimentismo que oponha-se tanto aovelho desenvolvimentismo, porque este desempe-nhou seu papel mas foi superado, quanto à orto-doxia convencional que, sendo uma estratégia pro-posta por nossos concorrentes, mais neutralizado que promove o desenvolvimento econômico,que devemos pensar o papel da burocracia públi-ca. Por enquanto, ela continua essencialmentedesorientada. Sua área econômica limita-se àracionalidade de reduzir despesas – o que é ne-cessário, mas está longe de ser suficiente. Suaárea social logrou grandes êxitos, especialmentena Saúde Pública, graças ao êxito do SistemaÚnico de Saúde (SUS) em estabelecer um siste-ma de atendimento de saúde à população univer-sal, muito barato, e com qualidade razoável. Temlogrado também avanços na área da EducaçãoFundamental, em que já não existe mais um pro-blema de quantidade, e o problema central é agorao da qualidade do ensino. E poderá ter mais avan-ços, na medida em que esta qualidade dependenão apenas de mais treinamento dos professores,mas principalmente de novas formas de proprie-

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dade e de gestão da educação. Fracassa na áreado ensino universitário que, no Brasil, por ser es-tatal como na França e na Alemanha, ao invés depúblico não-estatal, como é nos Estados Unidos ena Grã-Bretanha, apresenta resultados altamenteinsatisfatórios. Na área da gestão, graças a con-cursos anuais para todas as carreiras do ciclo degestão e especialmente para a dos gestores públi-cos, o Estado brasileiro conta hoje, na esfera fe-deral, com uma burocracia muito melhor, maispreparada e eficiente do que geralmente imagina-se. Na esfera estadual, estão também multiplican-do-se as carreiras de gestores públicos. Na áreado poder Legislativo, a burocracia pública experi-mentou um grande avanço graças às carreiras deassessoramento criadas no Senado e na Câmarados Deputados.

Em apenas um dos três poderes, no Judiciá-rio, os burocratas stricto sensu possuem o poderfinal; nos demais, os políticos detêm esse poder.Desde a Constituição Federal de 1988, a autono-mia da alta burocracia judicial, que inclui, além daprópria magistratura, o Ministério Público e a Ad-vocacia do Estado e a Advocacia Pública, tornou-se muito mais forte – em certos momentos, fortedemais. Ocorreu um processo de gradualdesvinculação da magistratura pública de uma ide-ologia liberal e formalista que atende aos interes-ses da ordem constituída; ocorreu também suavinculação, de um lado, a seus próprios interes-ses corporativos, de outro, aos interesses da jus-tiça social que animaram a carta de 1988. Entre-tanto, conforme Vianna, embora “parte do Esta-do, encravado em suas estruturas, o Judiciáriocomo ator não está destinado a irromper comoportador de rupturas a partir de um construto ra-cional que denuncie o mundo como injusto”(VIANNA, 1997, p. 38). A lenta autonomizaçãodo Judiciário dos interesses econômicos é um fa-tor positivo que reflete o fato de que os magistra-dos percebem-se como parte da classe profissio-nal com deveres para com os pobres, em vez defazerem parte da capitalista.

Está claro, entretanto, que toda a burocraciapública e, principalmente, a burocracia públicajudicial precisa de mais controle ou

responsabilização social (accountability). A refor-ma gerencial de 1965 deu um papel decisivo aocontrole social, ou seja, à responsabilização daburocracia pública perante a sociedade, mas istovem ocorrendo de maneira lenta. É visível, po-rém, que a democracia implica não apenas em li-berdade de pensamento e eleições livres, não ape-nas em representação efetiva dos cidadãos pelospolíticos e mais amplamente pela burocracia pú-blica, mas significa também prestação de contaspermanente por parte da burocracia pública, parapermitir a participação dos cidadãos no processopolítico. Os quatro pilares da democracia são: li-berdade, representação, responsabilização e parti-cipação. Em outro trabalho (BRESSER-PEREI-RA, 2004), indicam-se três estágios históricos dademocracia: a democracia de elites ou liberal, daprimeira metade do século XX; a democracia deopinião pública ou social, da segunda metade doséculo XX, e a democracia participativa, que vaiaos poucos aparecendo. No Brasil, as três formasde democracia estão presentes e embaralhadas:temos muito de democracia de elites, já somosuma democracia social, e a Constituição de 1988abriu espaço para uma democracia participativa.Antes de chegar a ela, porém, além de melhorar-mos os nossos sistemas de participação, será ne-cessário tornar a burocracia pública mais respon-sabilizada perante a sociedade.

Não cremos, entretanto, que essa mudança sejapossível se a sociedade brasileira não voltar a seruma verdadeira Nação e a ter uma estratégia naci-onal de desenvolvimento em que este não sejaapenas econômico, mas também social e político.Entre o início do século XX e 1964, a sociedadebrasileira, no quadro do ciclo nação e desenvolvi-mento, enfatizou apenas esses dois objetivos edeixou em segundo plano a democracia e a justiçasocial. A partir do início dos anos 1970, um novociclo da sociedade começou – o ciclo democraciae justiça social, que realizou muito nessas duasdireções, mas deixou de lado a nação e o desen-volvimento econômico. O grande desafio que secoloca hoje para a sociedade brasileira é o de fa-zer uma síntese desses dois ciclos – algo que épossível e que dará orientação e sentido para suaburocracia pública.

Luiz Carlos Bresser-Pereira ([email protected]) é Doutor em Economia pela Universidade de SãoPaulo (USP) e Professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP); foi Ministro da Fazenda,Ministro da Administração e da Reforma do Estado e Ministro da Ciência e Tecnologia.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 28: 259-263 JUN. 2007ABSTRACTS

PUBLIC BUREAUCRACY AND RULING CLASSES IN BRAZIL

Luiz Carlos Bresser Pereira

Brazil underwent industrialization and major economic development during the period that spanned1930 to 1980 This is the period of strategic national development initiated by Getulio Vargas andtaken up again after the crisis of the 1960s by the military regime that was in power. Throughout theentire period, public bureaucracy played a key role, always in consort with the industrial bourgeoisie.These two classes emerged as actors in political life as of the 1930s and –together with the workerswho were minor partners – promoted the Brazilian industrial revolution. During the 1960s theradicalization of the Left and the right-wing alarmism which were both to a large extent stimulatedby the Cuban revolution led to a military coup in which the bourgeoisie and the military joined interestswith the United States. Nonetheless, both the bourgeoisie and public bureaucracy returned to anationalist and developmentalist policy during the years that followed. Yet the major foreign debtcrisis that took place during the 1980s led to the breaking apart of these alliances, and over thecourse of the decade, to the surrender to neo-liberalism coming from the North. At that moment, adisoriented public bureaucracy attempted to defend its own corporate interests. As of the 1990s,however, the sector involved itself in the State Administrative Reform of 1995; furthermore, neo-liberalism, which then became the dominant current, went on to lose its hegemony over the followingdecade due to failure in promoting economic development. These two facts work, on the one hand,to re-establish new republican perspectives for public bureaucracy and, on the other, suggest that therenewed alliance of public bureaucracy and industrial bourgeoisie may again be turning into thenation’s route to re-establishing economic development.

KEYWORDS: bureaucracy; ruling classes; entrepreneurs; economic development.

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 28: 267-271 JUN. 2007RÉSUMÉS

BUREAUCRATIE PUBLIQUE ET LES CLASSES DIRIGEANTES AU BRÉSIL

Luiz Carlos Bresser-Pereira

Entre 1930 et 1980, le Brésil a connu une industrialisation et un important développement économique.C’est la période de la stratégie nationale pour le développement que Getúlio Vargas a inaugurée etqui a été reprise, après la crise des années 1960, par les militaires au pouvoir. Tout au long de cettepériode, la bureaucratie publique, associée à la bourgeoisie industrielle, a joué un grand rôle. Cesdeux classes naissent pour la vie politique dans les années 1930, et, avec les travailleurs qui s’y sontassociés d’une façon moins importante, ont promu la Révolution Industrielle brésilienne. Dans lesannées 1960, les positions plus radicales de la gauche et l’alarmisme de droite, influencés surtout parla Révolution Cubaine de 1959, ont amené au coup d’état militaire pendant lequel la bourgeoisie etles militaires s’associent aux Etats-Unis. Cependant, la bourgeoisie et la bureaucratie publiquereprennent la politique économique nationaliste et de développement économique dans les annéesqui se suivent. Mais dans les années 1980, la crise de la dette extérieure provoque la rupture de cettealliance et, à partir du début des années 1990, la capitulation au néolibéralisme originaire du Nord. Labureaucratie publique, alors déboussolée, se met à défendre ses propres intérêts. A partir des années1990, pourtant, elle fait partie de la Réforme de Gestion de l’Etat de 1995. D’autre part, lenéolibéralisme qui triomphait, perd son hégémonie dans les années 2000 en raison de son échec àpromouvoir la croissance économique. Ces deux événements non seulement introduisent de nouvellesperspectives républicaines à l’égard de la bureaucratie publique, mais encore suggèrent qu’unenouvelle alliance entre la bureaucratie publique et la bourgeoisie industrielle puisse devenir encoreune fois possible si bien que le pays se redresse économiquement.

MOTS-CLÉS: bureaucratie; classe dirigeante; entrepreneurs; développement économique.

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