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Ângela Ferreira: da nova civilização ao neocolonialismo. Na produção artística contemporânea acentuou-se um fenómeno que foi caracterizado e explorado intensamente pelo modernismo: a diluição das linhas de fronteira entre as disciplinas que se situam no campo teórico das ciências humanas e as práticas autónomas e acentuadamente tecnicizadas do campo artístico. 1 . Esta também é uma das parcelas consequentes da pós-vida, reificada ou não, do modernismo: o recorte teórico tornou-se, ao lado da produção de uma pluralidade de conceitos de realidade, um modo de existência do campo artístico, e, nos seus sectores avançados, um braço armado capaz de fazer sobreviver, no espaço e no tempo das forças superiores da História e da Economia, a ambiguidade semântica e comunicativa, o desempenho poético, configurador da obra artística. Num texto dedicado à obra de Jeff Wall, Profane Illuminations, Social History and the Art of Jeff Wall (1993), Thomas Crow salienta que um cruzamento entre o atelier e a sala de seminários tem sido, nos últimos quinze anos, uma característica conspícua da arte avançada 2 . T.Crow contrapõe aliás, à emergência de uma nova espécie de médium a que ele chama Teoria, e que define como sendo um conjunto restrito de conceitos derivados de textos traduzidos de uns poucos escritores franceses 3 , o desenvolvimento paralelo, no mesmo espectro temporal, de uma história social da arte. É neste inquérito histórico que, na sua perspectiva, alguns artistas, (o número é, segundo ele, escasso adiantando apenas o nome de Jeff Wall como o mais significativo e coerente), depositaram a sua atenção e encontraram uma base de trabalho inflexível em relação aos aspectos modais e irracionais do campo artístico. Hal Foster informa-nos do momento em que a teoria crítica serviu como continuação secreta da vanguarda por outros meios – como um substituto da arte erudita e um substituto da vanguarda artística 4 . Será, diz ele, após as crises políticas dos finais de 1960 (mas já é possível reconhecer essa presença no radicalismo teórico e pro-activo dos Situacionistas) e distinguir-se-á das disputas agonísticas ou das hipérboles futurologistas com que as vanguardas precedentes construíam os seus depoimentos e reflexões. A sua importância no campo

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Ângela Ferreira: da nova civilização ao neocolonialismo.

Na produção artística contemporânea acentuou-se um fenómeno que foi caracterizado e explorado intensamente pelo modernismo: a diluição das linhas de fronteira entre as disciplinas que se situam no campo teórico das ciências humanas e as práticas autónomas e acentuadamente tecnicizadas do campo artístico.1. Esta também é uma das parcelas consequentes da pós-vida, reificada ou não, do modernismo: o recorte teórico tornou-se, ao lado da produção de uma pluralidade de conceitos de realidade, um modo de existência do campo artístico, e, nos seus sectores avançados, um braço armado capaz de fazer sobreviver, no espaço e no tempo das forças superiores da História e da Economia, a ambiguidade semântica e comunicativa, o desempenho poético, configurador da obra artística.

Num texto dedicado à obra de Jeff Wall, Profane Illuminations, Social History and the Art of Jeff Wall (1993), Thomas Crow salienta que um cruzamento entre o atelier e a sala de seminários tem sido, nos últimos quinze anos, uma característica conspícua da arte avançada2. T.Crow contrapõe aliás, à emergência de uma nova espécie de médium a que ele chama Teoria, e que define como sendo um conjunto restrito de conceitos derivados de textos traduzidos de uns poucos escritores franceses3, o desenvolvimento paralelo, no mesmo espectro temporal, de uma história social da arte.

É neste inquérito histórico que, na sua perspectiva, alguns artistas, (o número é, segundo ele, escasso adiantando apenas o nome de Jeff Wall como o mais significativo e coerente), depositaram a sua atenção e encontraram uma base de trabalho inflexível em relação aos aspectos modais e irracionais do campo artístico.

Hal Foster informa-nos do momento em que a teoria crítica serviu como continuação secreta da vanguarda por outros meios – como um substituto da arte erudita e um substituto da vanguarda artística4. Será, diz ele, após as crises políticas dos finais de 1960 (mas já é possível reconhecer essa presença no radicalismo teórico e pro-activo dos Situacionistas) e distinguir-se-á das disputas agonísticas ou das hipérboles futurologistas com que as vanguardas precedentes construíam os seus depoimentos e reflexões. A sua importância no campo da arte avançada (o termo é de H.Foster) relaciona-se com o facto de opor valores de dificuldade e de distinção5 à sobredosagem de humor, cinismo estratégico, falta de profundidade a que chegara o objecto de arte por via do neo-dadaismo marketizado e da genealogia edulcorante da auto-expressividade (de que Jeff Koons por um lado e Julian Schnabel por outro constituem referências corporativas).

Sem querermos cair em generalizações e mantendo em aberto a narrativa ponderamos aqui que os conteúdos comunicantes do trabalho artístico de Ângela Ferreira (objecto de análise parcial no texto que aqui publicamos) se localizam nesse cruzamento entre o atelier e a sala de seminários.

Duas características básicas definem essa dinâmica associativa: um interesse acrescido de Ângela Ferreira pelo que Hal Foster designa como sendo um dos aspectos sobreviventes da escultura minimalista: a sua provocação conceptual, o reposicionamento da escultura no mundo dos objectos e a sua redefinição em termos de lugar6.

E um trabalho de inquirição com carácter auto-biográfico (muito raramente tenho tentado sair do âmbito da minha história autobiográfica) onde se combinam uma metáfora (sem conteúdos expressivos ou naturalistas) entre uma construção sintáctica e um complexo de ideias (retomando a definição que Robert Smithson nos dá de Non-site) e uma estética do mapa cognitivo, conceito elaborado por Frederic

Fig 1, Sites and Services, imagem de Kayelitsha, 1991-92.Embaixo, Sites and services, desenho a pastel, 1991-92

Fig.2, fotografias de Kayelitsha, 1991-92.

Jameson para caracterizar (representar como num diagrama) uma hipótese de abordagem e de interpretação do novo tipo de relações espaciais que são produzidas pela dinâmica do capitalismo multinacional e que são amplamente reflectidas na sua esfera cultural, isto é, no pós-modernismo.7.

As operações de Ângela Ferreira são um subtexto desse processo; um subtexto que passa a percepcionar o campo de acção da tridimensionalidade escultórica como um conjunto descentrado e por isso mais complexo de temáticas. Os mundos da paisagem fabricada pelo homem, reformulada pela civilização industrial, do espaço como objecto urbano (e objecto do urbanismo e também como enraizamento e destino político), do infra-urbano, do arquitectónico e do infra-arquitectónico, passam a essencializar a relação entre massa escultórica e espaço assim como o processo histórico de dissipação de um no outro.

As migrações ideológicas produzidas pela economia capitalista no campo da arquitectura e do urbanismo “enervam” muitas das instalações concebidas por Ângela Ferreira. Migrações exemplificadas na transição irreversível da ideia de cidade como projecto antropo-ético, como teleologia do Universal, para a do projecto como uma das partes da cidade, como um dos objectos ou possíveis declinações parcelares do que hoje designamos por cidade contemporânea (o situation-site Duas Casas (J.P. Oud), Roterdão, 2001, pode ser encarado parcialmente como uma reflexão sobre esse tema).

É aliás no espaço geográfico em expansão entrópica da cidade contemporânea, é na época histórica da cidade hiperrealizada como protoplasma, que podemos situar a base material da obra de A. Ferreira. Não é desprezível para a compreensão dessa base material o facto do seu trabalho se relacionar intrinsecamente com as cidades que o acolhem (Sites and services e a Cidade do Cabo, Marquises e as ilhas operárias do Porto, Kanimambo (obrigado) e a pseudo-cidade inventada para financiar a Exposição Universal de 1998 em Lisboa, Duas Casas (J.P.P.Oud) e Roterdão).

Desde cedo se assume no seu trabalho artístico que o espaço só pode ser apreendido como uma realidade produzida pelos homens, isto é, que a morfologia metabólica do espaço enraíza-se na cultura humana, nos seus processos económicos e nas suas aporias antropológicas.

Um exemplo conseguido dessa reflexão é o projecto de 1991-92 Sites and services (Fig.1-2) um readymade social, para usarmos um termo de Dan Graham, sobre a organização do isolamento e sobre o urbanismo como ideologia que define a sua abordagem pessoal, constituída por fotografias, desenhos, peças tridimensionais (Fig.3), da plataforma ortogonal que esperava o nascimento de mais uma township, Kayelitsha8, nos arredores da cidade do Cabo nos últimos anos do Apartheid. Um presságio que se denota nas fotografias que Ângela Ferreira realizou é que, assim que os processos

Fig.4 Ângela Ferreira , Duas casas-J.P.Oud , 2001.

Fig.3. Ângela Ferreira , Sites and services, esculturas, 1991-92

mobilizados para o materializar9 entrarem em jogo, este espaço sem pontos de fuga permanecerá em si inultrapassável (pelo menos até a clivagem campo/cidade não for resolvida e com isso se estancar o fluxo demográfico da periferia rural para periferia urbana- e o concomitante avanço territorial dessa periferia). Kayelitsha, processo histórico de ocupação do solo, acaba por controlar (e tornar derrisória) a Kayelitsha forma espacial (sites and services) que era suposto controlá-lo10.

Fechando o ciclo interpretativo deste processo de reificação do Outro, (do seu domicilio, das suas expectativas), podemos, mas apenas em termos de eficácia do seu carácter reclusivo, aproximar Kayelitsha da sua inversão classista as gated communities da classe média sul-africana, ambas são comunidades que se fecham sobre si próprias: uma por destituição e outra por acumulação.

A história do espaço ocupado pelo homem incorpora uma narrativa complexa de relações sociais (de antagonismos e de consensos, de mitos e antinomias) e de modos e condições de produção. É essa história que desmente a ideia do espaço como um recipiente pré-definido, dado, abstracto, como uma isotropia inerte e auto-contida, como uma folha de papel branca, pronta para ser substantivada pelas bondades do empreendedorismo humano.

O existente, a antiguidade fabricada, a mitologização da história, a promoção imobiliária, a reabilitação urbana incorporam-se numa complicada cartografia donde se conhece cada vez menos o que realmente existe e acontece na forma e na extensão desse representado (a nossa utopia, a nossa comunidade fechada, o nosso tempo feliz, inócuo pode bem ser a opressão violenta e distópica do Outro).

Parece-nos, portanto, que para esta artista o espaço converteu-se numa espécie de showcase portátil onde se exibem encarnações remissivas, analogias visuais de fenómenos fabricados pelo avanço da modernidade entre eles a experiência do que se tornou inóspito, irreconhecível, inacessível por obra do progresso.

Essa crescente transformação do espaço em signo e em visão ideológica é observável no seu projecto Amnesia-Moçambique do outro lado do tempo, 1997, ou em Duas casas, 2001, Fig.4. O espaço é percepcionado como objecto do controlo social, é hierarquizado em termos (de classe, de raça, de género) que afectam a comunidade que o utiliza; ele ressurge como veículo preferencial do mito histórico-turístico, como realidade androcêntrica e etnocêntrica (realização heróica e demoliberal de homens brancos), como entretenimento, como memória reprimida, como projecção e subjectivação de sentimentos patrióticos, de beleza, de regeneração social.

Outras vezes existe como um recipiente vulnerável, impotente aos determinismos do uso e do abandono (e às retóricas que o disfarçam), à fragmentação irreversível dos edifícios e dos quarteirões, ao carácter descontínuo, casuístico do quotidiano, ao baldio prestes incrustar-se no território da cidade, a desaparecer como fronteira física entre o rural e o urbano. E aqui o espaço não se revela apenas como representação (como texto visual, fotogenia) mas como espaço físico realmente vivido (considere-se a obra Marquises, 1994 ) como espaço social onde o ambiente construído é o reconhecimento da alienação do espaço pelo tempo.

Fig.5, Ângela Ferreira , Maison Tropicale(Niamey) , fotografia 2007.Na inércia da morte de um artefacto moderno redescobre-se um lugar no mundo.

Fig.6 Ângela Ferreira , Maison tropicale, Escultura-instalação, 2007.

A sua instalação Maison Tropicale (Niamey, Brazzavile, 2007) apresentada originalmente na secção portuguesa da Bienal de Veneza de 2007 parece-nos enunciar, a propósito desta questão, que se não é o arquitecto enquanto sujeito de uma comunidade comunicativa e organizador da inteligibilidade (aparente) do espaço, é a posteridade dos objectos criados por si que tomam consciência, admitem nas flutuações do seu valor de uso que há uma separação anti-humanista entre verdade e poder e entre qualidade e emancipação.

Novamente Ângela Ferreira toma como base material as desventuras de um objecto arquitectónico; neste caso o nomadismo fim de século de três réplicas de um protótipo unifamiliar desenvolvido em 1949 pelo talentoso mestre das construções pré-fabricadas Jean Prouvé (Maisons Portiques, Issoire, 1939-40; Casa Standard, Meudon, 1949-50) e pelo seu irmão Henri Prouvé para serem erguidas em territórios subtropicais e tropicais ainda sob administração colonial francesa, respectivamente em Niamey, capital do Niger e em Brazzaville, capital do Congo. Migração e resgate especulativo (Judith Rodenbeck chama-lhe repatriamento neocolonial11) realizado por um negociante francês que transformaria os decadentes edifícios em tesouros trouvés supervalorizados e expostos em Paris em Nova Iorque.

Maison Tropicale divide-se em duas partes: na documentação audiovisual e fotográfica da visita aos antigos locais topográficos em que Ângela Ferreira se fez acompanhar pelo cineasta Manthia Diawara, processo de descoberta de um quotidiano, isto é, do epílogo histórico das maisons de Prouvé (o que ficou- a plataforma de betão em Niamey, Fig.5, ocupada por desalojados tuaregues, as memórias de uma das antigas proprietárias congolesas, Mireille Ngatsé, uma senhoria de barracas como a descreve Diawara); na apreciação crítica da importância póstuma das coisas, dos objectos, das funções, que foram levitadas por mãos estranhas. E, finalmente num objecto de um maneirismo clean-drawn e good design de vibrações neocubistas- o corredor/contentor, Fig. 6, com que Ângela Ferreira, representa poeticamente a objectualização das maisons tropicales, desmontadas e dormentes, em repouso, em pausa para a sua nova vida; um objecto em que a provocação conceptual do minimalismo abre a sua janela monadológica, a sua fenomenologia do objecto auto-reflexivo, a questões sociológicas e (auto)biográficas). No projecto de Jean Prouvé essencializava-se uma experiência de mecânica construtiva (uma relação operativa entre construção estática e controlo de clima), de logística de transporte e uma oportunidade de negócio: rentabilizar a produção industrial francesa de alumínio. Mas ao contrário da confiança das palavras proferidas em 1931 por Albert Sarraut no primeiro congresso de urbanismo nas colónias (“de agora em diante o edifício europeu sustentar-se-á sobre pilotis coloniais!”) o funcionalismo adaptado aos trópicos nunca se solidificou, tornando-se a imagem da ruína de uma época ou desvanecendo-se no seu regresso às origens (ao hemisfério norte-ocidental) em ornamento e troféu comercial.

A desmontagem e acondicionamento imitando o dualismo construção/composição do abstraccionismo europeu, assim como a plataforma que surge cristalizada no illo tempore da fotografia de Niamey são, de um modo talvez não

Fig.7, O protótipo de Prouvé montado em Long Island City, Queens, 2008.

planeado, ruinments que murmuram a sinistra palavra Françafrique, a palavra guarda-chuva onde se acolita toda a política neocolonialista que o Quai d’Orsay inaugurou assim que as suas colónias se tornaram independentes.

O voo da maison tropicale, Fig.7, para as margens do Hudson é apenas um pormenor tragicómico (e uma forçada reflexão aos plenos direitos migratórios das mercadorias em relação à clandestinidade migratória dos seres humanos expatriados). A maison tropicale fala (mesmo que não o pretenda) dessa economia paralela onde os tesouros nacionais (como na Grécia e na Anatólia otomana, no Egipto britânico, na Indochina francesa, na Bagdad bushiana) são transferidos para mãos mais eruditas e para pastagens mais lucrativas. Ao mesmo tempo que os povos da África ocidental desembarcam cadáveres nas praias do Tenerife.

Resumindo, a técnica e vocação descontextualizadora da obra de Ângela Ferreira acabam por desocultar a falácia do discurso sobre a pouca realidade do real; ela diz-nos sem propulsões propagandísticas que os valores modernos abstractizados, reféns do nacionalismo, do conformismo e do salve-se quem puder, são tão penosos e palpáveis como um tiro mortífero que faz desfalecer ao nosso lado um ser humano, como uma frase estranha com que nos intimidam no local de trabalho, como um pedido de crédito.

1Os modernistas não foram apenas manufactores mas logofactores (a sua realidade produtiva não se extinguia na acção radical ou no culto exacerbado do empirismo; pensar o pensar, pensar a criatividade e a sua existência (ou raridade) no quotidiano, pensar a materialização do imaginado, pensar a aventura distópica da racionalidade, todas estas tarefas foram praticadas por aquilo que hoje aglomeramos sob o guarda-chuva do modernismo).2 Artforum International,vol.XXXI, nº6, New York:February 1993, p.63.3 Thomas Crow não é explícito mas refere-se certamente a autores ligados ao clima pré e pós Maio de 68, como Jacques Lacan, Michel Foucault, Jean Bamudrillard, Jean François Lyotard entre outros, que nos seu trabalho desdiferenciam os campos disciplinares das ciências humanas.4 Hal Foster, The Return of the Real, Cambridge, Massachusets:The MIT Press, 1993, p.xiv.5 Hal Foster, Op.cit, p.xiv.6 Hal Foster, The Return of the Real; Chapter 2: The Crux of Minimalism, Massachussets:The MIT Press, 1993, p.36.7 Frederic Jameson, Post Modernism or the Cultural Logic of Late Capitalism, Chapter 1, London: Verso, 1991. Frederic Jameson define esse mapa como o facilitador de uma representação situacional por parte do sujeito individual na totalidade irrepresentável que é o conjunto das estruturas da sociedade , (...), como uma cultura política pedagógica que tenta apetrechar o sujeito individual com uma nova e apurada percepção posicional do seu lugar no sistema global. É necessário esclarecer que o sentido da pedagogia é enriquecido metodologicamente por F.Jameson; ele entende-o como um esforço para ensinar o sujeito individual a preencher através de formas vivas e funcionais de ideologia o vazio entre conhecimento abstracto e experiência existencial, entre representar o mundo como totalidade e senti-lo e percepcioná-lo subjectivamente, isto é, conhecê-lo empiricamente. F.Jameson alerta aliás para que a longa história de relações complicadas entre a arte e a pedagogia não deve impedir, antes exige que a produção artística de esquerda se incline sobre as potencialidades dessa dimensão não sem antes livrá-la de obrigações morais (de um dever ser do homem) ou de visões demiúrgicas (de uma humanidade artificialmente melhorada). 8 Kayelitsha é um ovo da serpente do racismo sul-africano: a perpetuação física, concreta, imobiliária da Pass Law de 1923, primeira invenção jurídica do racismo africânder para o processo de desnacionalização de milhões de negros sul-africano; ali está a classificação racial da população, a burocracia dos passes, o controlo policial dos fluxos de mão-de-obra, a crise na estrutura familiar dos negros sul-africanos, as leis do estado de emergência, o recolher obrigatório, a entrada e saídas repressivas das forças de segurança.

9 David Harvey, Spaces of Hope, Edimburgh: Edimburgh University Press, 2002, p.173.10 David Harvey, Ibidem, p.173.11 Consulte-se a entrevista que esta realiza ao cineasta Manthia Diawara, Maison tropicale: A conversation with Manthia Diawara. In October, 133-summer 2010, Massachusets:The MIT Press,p.108.