C5 - Medindo Cabeças - A Falsa Medida Do Homem - SJ Gould

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  • Ttulo original: THE M/SMEASURE OF MAN.publicado por W. W. Norton, Nova York.

    COP)'rMhf 19M/ h)' Stcphen lav Goul dCopvrigtu 199/, Livraria Martns fumes Editora Lula"

    So Paulo, para a presente edio. Se a misria de nossos pobres no causada pelas leis da natureza, maspor nossas instituies, grande a nossa culpa.

    I' ediodezembro de /99/

    21edioagosto de 19992'1iragem

    abril de Z003

    CHARLES DARWIN, A Viagem do Beagle

    TraduoVALTER LEU/S S/QUEIRA

    Reviso da IraduoLus Carlos BorgesReviso tcnica

    Cartos Camargo AlbertsReviso grfica

    Maria de Ftima CavallaroFlora Maria de Campos Femandes

    Produo grficaGeraldo AtvesComposio

    Artet-: Artes GrficasArle-final

    Moacir Katsum MalSusaki

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (l'IP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Gould, Stephen lay, 1941-A falsa medida do homem I Stephen Jay Gould ; (traduo Valter

    Lellis Siqueira ; reviso da traduo Luis Carlos Borges : revisotcnica CarJos Camargo Albens). - 2t ed. - So Paulo: Martins

    Fontes, 1999.

    Ttulo original: The mismeasure of manoBibliografia.ISBN 85-336-1108-0

    l . Capacidade - Testes - Histria 2. Craniometria - Histria3. Inteligncia - Testes - Histria 4. Personalidade - Testes -Histria I. Ttulo.

    99-3411 CDD-153.9309ndices para catlogo sistemtico:

    l. Inteligncia: Testes: Histria: Psicologia 153.9309

    Todos os direitos desta edio para o Brasil reservados Livraria Marfins Fontes Editora Lida,

    Rua Conselheiro Ramalho, 33U1340 0J325-000 So Paulo SP BrasilTe/. (11)3241.3677 Fax (ll) 3J05.6867

    e-mail: [email protected] hup://www.martins[ontes.com.lJr,

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    potenciais que os cientistas, normalmente detentores de poucos dotesliterrios, podem oferecer a outros campos do saber escrito.

    Uma observao quanto ao ttulo: espero que se entenda o sen-tido aparentemente machista do ttulo, que no apenas se vale dofamoso aforismo de Pitgoras, mas tambm implica um comentriosobre os procedimentos dos deterministas biol6gicos discutidos nolivro. Eles, com efeito, estudaram o "homem" (ou seja, o europeubranco de sexo masculino), considerando esse grupo como padrode medida que consagrava a inferioridade de qualquer outro grupohumano. O fato de haverem medido o "homem" incorretamenteevidencia a dupla falcia em que incorreram.

    XIV

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    Introduo

  • Os cidados da Repblica, aconselhava Scrates, deveriam sereducados e depois classificados, de acordo com o seu mrito, emtrs classes: governantes, auxiliares e artesos. Uma sociedade est-vel exige que essa diviso seja respeitada e que os cidados aceitema condio social que lhes conferida. Mas como possvel asseguraressa aceitao? Scrates, incapaz de elaborar um argumento lgico,forja um mito. Com um certo constrangimento, ele diz a Glauco:

    Falarei, embora realmente no saiba como te olhar diretamente nosolhos, ou com que palavras expressar a audaz fico ... Deve-se dizera eles [os cidados] que a sua juventude foi um sonho, e que a educaoe o treinamento que de ns receberam foi apenas uma aparncia; narealidade, durante todo aquele tempo, eles estavam se formando enutrindo no seio da terra ...

    Glauco, surpreso, exclama: "Tinhas boa razo para te envergonharesda mentira que ias contar." " verdade", respondeScrates, "masainda h mais; s te contei a metade."

    Cidados, dir-lhes-ernos em nossa histria, sais todos irmos, mas Deusvos deu formas diferentes. Alguns de vs possus a capacidade de co-mando e em vossa composio entrou o ouro, e por isso sais os merece-dores das maiores honras; outros foram feitos de prata para seremauxiliares; outros, finalmente, Deus os fez de lato e ferro para quefossem lavradores e artesos; e as espcies em geral sero perpetuadasatravs de seus filhos ... Um orculo diz que, quando um homem delato ou ferro recebe a custdia do Estado, este ser destrudo. Esta a minha fbula; haver alguma possibilidade de fazer com que nossoscidados acreditem nela?

    Glauco responde: "No na atual gerao; no existe maneira de seconsegui-lo; mas possvel fazer com que seus filhos creiam nela,e os filhos de seus filhos, e, depois deles, a sua descendncia."

    Glauco formulou uma profecia. A mesma histria, com diferen-tes verses, foi propagada e recebeu crdito desde ento. As justifica-tivas para se estabelecer uma hierarquia entre os grupos sociais deacordo com seus valores inatos tm variado segundo os fluxos e reflu-xos da histria do Ocidente. Plato apoiou-se na dialtica; a igreja

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM INTRODUO

    valeu-se do dogma. Nos dois ltimos sculos, as afirmativas cient-ficas converteram-se na principal justificativa do mito platnico.

    Este livro discute a verso cientfica da fbula de Plato. O argu-mento geral em que ela se apia pode ser denominado determinismobiolgico. Este sustenta que as normas comportamentais comparti-lhadas, bem como as diferenas sociais e econmicas existentes entreos grupos humanos - principalmente de raa, classe e sexo - deri-vamde distines herdadas e inatas, e que, nesse sentido, a sociedade um reflexo fiel da biologia. Este livro discute, numa perspectivahistrica, um dos principais aspectos do determinismo biolgico: atese de que o valor dos indivduos e dos grupos sociais pode serdeterminado atravs da medida da inteligncia como quantidade isola-da. Esta tese se apia em dados provenientes de duas fontes princi-pais: a craniometria (ou medida do crnio) e certos tipos de testespsicolgicos.

    Os metais cederam lugar aos genes (embora ainda conservemosum vestgio etimolgico da fbula de Plato ao nos referirmos digni-dade de uma pessoa como a sua "tmpera"). Mas a argumentaobsica no sofreu alterao: os papis sociais e econmicos refletemfielmente a constituio inata das pessoas. Entretanto, um aspectoda estratgia intelectual sofreu alteraes. Scrates sabia que estavacontando uma mentira.

    Os deterministas muitas vezes invocam o tradicional prestgioda cincia como conhecimento objetivo, livre de qualquer tipo decorrupo social e poltica. Eles pintam a si mesmos como os deten-tores da verdade nua e crua e a seus oponentes como sentimentais,idelogos e sonhadores. Louis Agassiz (1850, p. 111), ao defendersua tese de que os negros pertenciam a uma espcie parte, escreveu:"Os naturalistas tm o direito de tratar as questes suscitadas pelasrelaes fsicas dos homens como questes meramente cientficas,e de investig-Ias sem levar em considerao a poltica ou a religio."Carl C. Brigham (1923), ao defender a excluso dos imigrantes oriun-dos do sul e do leste da Europa que haviam se sado mal em supostasavaliaes de inteligncia inata, declarou: "As medidas a serem to-madas para preservar ou incrementar a nossa atual capacidade inte-lectual precisam evidentemente ser ditadas pela cincia, e no pelaconvenincia poltica." E Cyril Burt, ao invocar dados falsos compi-lados pela inexistente Srta. Conway, queixou-se de que as dvidasquanto base gentica do QI "parecem basear-se mais nos ideaissociais ou nas preferncias subjetivas dos crticos que em qualquerexame direto dos dados que comprovam a viso oposta" (in Conway,1959, p. 15).

    Como o determinismo biolgico de evidente utilidade paraos grupos detentores do poder, seria lcito suspeitar que, apesar dasnegativas citadas acima, ele tambm se origina de um contexto polti-co. Porque, se o status quo uma extenso da natureza, ento qual-quer mudana importante - supondo que ela seja possvel - desti-nada a impor s pessoas uma organizao antinatural implicaria umelevado custo psicolgico para os indivduos e econmico para a so-ciedade. Em seu memorvel livro An American Dilema (1944), osocilogo sueco Gunnar Myrdal discutiu a movimentao das argu-mentaes biolgicas e mdicas acerca da natureza humana: "Tantonos Estados Unidos quanto no resto do mundo, elas se tm associadoa ideologias conservadoras e at mesmo reacionrias. Durante sualonga hegemonia, a tendncia tem sido aceitar a inquestionvel cau-salidade biolgica e admitir as explicaes sociais somente nos casosem que as provas eram to fortes que no havia outra sada. Emquestes polticas, esta tendncia favoreceu uma atitude imobilista."Ou, como h muito disse Condorcet de maneira mais sucinta: elas"fazem da prpria natureza um cmplice do crime da desigualdadepoltica" .

    Este livro procura demonstrar a debilidade cientfica e os contex-tos polticos dos argumentos deterministas. Contudo, no pretendoestabelecer um contraste entre deterministas perversos, que se afas-tam do caminho da objetividade cientfica, e antideterministas escla-recidos, que abordam os dados com mente aberta e, portanto, enxer-gam a verdade. Em vez disso, critico o mito que diz ser a cinciauma empresa objetiva, que se realiza adequadamente apenas quandoos cientistas conseguem libertar-se dos condicionamentos da sua cul-tura e encarar o mundo como ele realmente .

    Entre os cientistas, foram poucos os idelogos conscientes quetomaram partido nessa disputa. Os cientistas no tm necessidadede se tornar apologistas explcitos de sua classe ou cultura para refletiresses insidiosos aspectos da vida. No minha inteno afirmar queos deterministas biolgicos eram maus cientistas ou que estavam sem-pre errados, mas, antes, a crena de que a cincia deve ser entendidacomo um fenmeno social, como uma empresa corajosa, humana,e no como o trabalho de robs programados para recolher a infor-mao pura. Alm disso, apresento esta concepo como uma notade advertncia para a cincia, no como um lgubre epitfio para umanobre esperana sacrificada sobre o altar das limitaes humanas.

    A cincia, uma vez que deve ser executada por seres humanos, uma atividade de cunho social. Seu progresso se faz por meio dopressentimento, da viso e da intuio. Boa parte das transformaes

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  • 1A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    que sofre ao longo do tempo no corresponde a uma aproximaoda verdade absoluta, mas antes a uma alterao das circunstnciasculturais, que tanta influncia exercem sobre ela. Os fatos no sofragmentos de informao puros e imaculados; a cultura tambminfluencia o que vemos e o modo como vemos. Alm disso, as teoriasno so indues inexorveis obtidas a partir dos fatos. As teoriasmais criativas com freqncia so vises imaginativas aplicadas aosfatos, e a imaginao tambm deriva de uma fonte marcadamentecultural.

    Acho que este argumento, embora ainda constitua um antemapara muitas pessoas dedicadas atividade cientfica, seria aceito debom grado pela maior parte dos historiadores da cincia. Ao prop-10, contudo, no me coloco ao lado de uma extrapolao hoje bas-tante difundida em determinados crculos de historiadores: a tesepuramente relativista de que a modificao cientfica apenas refletea modificao dos contextos sociais, de que a verdade uma noovazia de significado quando considerada fora de uma dada premissacultural, e de que a cincia, portanto, no capaz de fornecer respos-tas duradouras. Na condio de cientista praticante, compartilho ocredo de meus colegas: acredito que existe uma realidade concretae que a cincia pode nos fornecer informaes sobre essa realidade,embora o faa muitas vezes de maneira obtusa e irregular. No foidurante um debate abstrato sobre o movimento lunar que mostrarama Galileu os instrumentos de tortura. As suas idias ameaaram oargumento convencional invocado pela Igreja para justificar a estabi-lidade social e doutrinria: a ordem esttica do mundo, com os plane-tas girando em torno da Terra, os sacerdotes subordinados ao Papae os servos ao seu senhor. Mas a Igreja no tardou em fazer as pazescom a cosmologia de Galileu. No havia outra escolha; a Terra real-mente gira em torno do Sol.

    Entretanto, graas a dois importantes fatores, a histria de mui-tos temas cientficos est virtualmente livre desse tipo de restriosimposta pela realidade concreta. Isso ocorre, em primeiro lugar, por-que alguns tpicos so investidos de uma enorme importncia social,mas dispem de pouqussimos dados confiveis. Quando a razo en-tre dados e impacto social to baixa, o histrico das atitudes cient-ficas pode vir a ser pouco mais que um registro indireto da transfor-mao social. A histria das concepes cientficas a respeito da raa,por exemplo, serve como espelho dos movimentos sociais (Provine,1973), um espelho que reflete tanto os bons quanto os maus tempos,tanto os perodos de crena na igualdade racial quanto os de racismodesenfreado. O toque de finados da eugenia norte-americana foi pro-

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    INTRODUO

    vocado mais pelo uso particular que Hitler fez dos argumentos ento'empregados para justificar a esterilizao e a purificao racial, quepor avanos no conhecimento gentico.

    Em segundo lugar, muitas questes so formuladas pelos cien-tistas de maneira to restrita que qualquer resposta legtima s podeconfirmar uma preferncia social. Boa parte do debate sobre as dife-renas raciais no que diz respeito capacidade mental, por exemplo,baseava-se na premissa de que a inteligncia uma coisa que existena cabea. Enquanto essa crena no foi eliminada, nenhuma acumu-lao de dados foi capaz de abalar a firme tradio ocidental deordenar elementos relacionados na forma de uma cadeia do ser decarter hierrquico.

    A cincia no consegue escapar sua curiosa dialtica. Apesarde estar inserida numa cultura, ela pode se tomar um agente pode-roso no questionamento e at mesmo na subverso das premissasque a sustentam. A cincia pode oferecer informaes para reduziro desequilbrio entre dados e importncia social. Os cientistas podemesforar-se por identificar os pressupostos culturais do seu ofcio eindagar como as respostas seriam formuladas a partir de premissasdiferentes. Os cientistas podem propor teorias criativas capazes deforar seus atnitos colegas a rever procedimentos at ento inques-tionveis. Mas o potencial da cincia como instrumento para a identi-ficao dos condicionamentos culturais que a determinam s poderser completamente desenvolvido quando os cientistas abrirem modo duplo mito da objetividade e do avano inexorvel rumo verdade.Na realidade, preciso que conheamos bem nossos prprios defeitosantes de apontarmos os de outrem. Uma vez reconhecidos, esses defei-tos deixam de ser impedimentos e tomam-se instrumentos do saber.

    Gunnar Myrdal (1944) expressou muito bem os dois aspectosdessa dialtica ao escrever:

    Durante os ltimos cinqenta anos, um punhado de cientistas dedicados investigao social e biolgica conseguiu fazer com que o pblicoculto abrisse mo de alguns dos nossos erros biolgicos mais flagrantes.Mas ainda devem existir inmeros erros desse tipo que ningum conse-guiu at agora deter, devido ao vu com que a cultura ocidental nosenvolve. As influncias culturais estabeleceram nossas idias bsicasa respeito da mente, do corpo e do universo; elas determinam as per-guntas que fazemos, os fatos que buscamos, a interpretao que damosa fatos, e a nossa reao a essas interpretaes e concluses.

    O determinismo biolgico um tema por demais amplo paraser abordado por um nico homem e um nico livro, pois incide

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM INTRODUO

    virtualmente em todos os aspectos da interao entre a biologia ea sociedade desde a aurora da cincia moderna. Portanto, limitei-mea um argumento central e flexvel dentro da estrutura do determi-nismo biolgico - um argumento desdobrado em dois captulos his-tricos, a pretexto de dois graves equvocos e, em ambos os casos,desenvolvidos num mesmo estilo.

    O argumento parte de um desses dois equvocos: a reificao ,ou seja, a nossa tendncia a converter conceitos abstratos em entida-des (do latim res, "coisa"). Reconhecemos a importncia da atividademental em nossas vidas e desejamos caracteriz-Ia, em parte parapoder estabelecer as divises e distines entre as pessoas ditadaspelos nossos sistemas cultural e poltico. Portanto, designamos pelapalavra "inteligncia" esse maravilhoso conjunto de capacidades hu-manas prodigiosamente complexo e multifacetado. Esse smbolo ta-quigrfico logo reificado e, assim, a inteligncia adquire a sua duvi-dosa condio de coisa unitria.

    To logo a inteligncia transformada numa entidade, procedi-mentos padronizados da cincia virtualmente exigem que se lhe atri-bua uma localizao e um substrato fsico. Como o crebro a fonteda atividade mental, a inteligncia deve residir l.

    Agora, o segundo equvoco: a graduao, ou nossa tendnciaa ordenarmos a variao complexa em uma escala ascendente gra-dual. As metforas do progresso e do desenvolvimento gradualfiguram entre as mais recorrentes do pensamento ocidental: veja-se o clssico ensaio de Lovejoy (1936) sobre a grande cadeia doser, ou o famoso estudo de Bury (1920) sobre a idia de progresso.A utilidade social dessas metforas fica evidente no seguinte conse-lho do Booker T. Washington (1904, p. 245) aos negros dos Esta-dos Unidos:

    foi o da quantificao, ou medio da inteligncia como nmero nicopara cada pessoa 1

    Assim, este livro analisa a abstrao da inteligncia como entida-de nica, localizada no crebro, quantificada na forma de um nmeronico para cada indivduo, e o uso desses nmeros na hierarquizaodas pessoas numa escala nica de mritos, que indica invariavelmenteque os grupos oprimidos e em desvantagem - raas, classes ou sexos- so inatamente inferiores e merecem ocupar essa posio. Emsuma, este um livro sobre a Falsa Medida do Homem",

    Os dois ltimos sculos caracterizaram-se por uma variedadede argumentos que procuraram justificar a graduao. A craniome-tria, no sculo XIX, foi a cincia numrica em que se apoiou o deter-minismo biolgico. No captulo 2, analiso os dados mais amplos com-pilados antes de Darwin com o propsito de hierarquizar as raaspelo tamanho do crebro, ou seja, a coleo de crnios de SamuelGeorge Morton, mdico da Filadlfia. O captulo 3 trata do f1oresci-mento da craniometria como cincia rigorosa e respeitvel no finaldo sculo XIX na Europa, ou seja, a escola de Paul Broca. Emseguida, o captulo 4 destaca a repercusso das abordagens quantifi-cadas da anatomia humana empregadas pelo determinismo biol-gico. Este captulo apresenta o estudo de dois casos tpicos: a teoriada recapitulao como critrio evolutivo fundamental para a gradua-o unilinear dos grupos humanos, e a tentativa de explicar o compor-tamento dos criminosos como um atavismo biolgico que se refletena morfologia simiesca dos assassinos e outros delinqentes.

    Os testes de inteligncia, no sculo XX, tm a mesma funoque a craniometria desempenhou no sculo XIX, ao pressupor quea inteligncia (ou, pelo menos, uma parte dominante dela) uma

    Um dos perigos que corre minha raa o de poder impacientar-see achar que pode reerguer-se atravs de esforos artificiais e superficiaisem vez de seguir o processo mais lento, porm mais seguro, que levapasso a passo atravs de todos os graus do desenvolvimento industrial,mental, moral e social que todas as raas tiveram de empreender parase tornarem independentes e fortes.

    1. Peter Medawar (1977, p. 13) apresentou outros exemplos interes-santes da "iluso corporificada na pretenso de associar valores numricossimples a quantidades complexas" - por exemplo, as tentativas dos dem-grafos de localizar as causas das tendncias demogrficas em uma medidasimples da "habilidade reprodutiva", ou o desejo dos que se dedicam edafologia de abstrair a "qualidade" de um solomediante umnmero nico.

    2. Como me atenho estritamente anlise do argumento que acabode apresentar, no levo em considerao todas as teorias da craniometria(por exemplo, omito a frenologia, pois esta no reificoua inteligncia comoentidade nica, mas procurou localizar uma srie de rgos no crebro).Da mesma forma, excluotodas as referncias a certos tiposde determinismo,importantes e com freqncia quantificados, que no tentam medir a inteli-gncia como uma propriedade do crebro - a maior parte da eugenia,por exemplo.

    Mas a graduao requer um critrio que permita indicar a cadaindivduo a sua respectiva posio dentro da escala nica. E quemelhor critrio que um nmero objetivo? Assim, o estilo comumatravs do qual se expressam esses dois equvocos de pensamento

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    coisa nica, inata, hereditria e mensurvel. Discuto os dois compo-nentes dessa abordagem errnea dos testes de capacidade mentalno captulo 5 (a verso hereditria da escala do QI como um produtonorte-americano) e no captulo 6 (a argumentao em favor da reifi-cao da inteligncia como entidade nica pela tcnica matemticada anlise fatorial). A anlise fatorial um tema matemtico bastanterduo, invariavelmente omitido dos escritos destinados ao pblicoleigo. Entretanto, acredito que ela pode se tornar acessvel e clarase for explicada atravs de grficos e no de nmeros. Ainda assim,o contedo do captulo 6 no de "leitura fcil", mas no pudeelimin-Io, pois a histria dos testes de inteligncia no pode serentendida sem a compreenso do raciocnio baseado na anlise fato-rial e o profundo equvoco conceitual que ele representa. O grandedebate a respeito do QI no faz qualquer sentido quando no seleva em conta este tema tradicionalmente omitido.

    Tentei tratar esses temas de maneira original, utilizando um m-todo que se afasta totalmente daqueles tradicionalmente empregadospelo historiador ou cientista que trabalha sozinho. Os historiadoresraramente analisam os detalhes quantitativos contidos nos conjuntosde dados primrios. Seus trabalhos versam sobre o contexto social,a biografia, ou a histria geral do intelecto, elementos que sou inca-paz de abordar de maneira satisfatria. Os cientistas esto acostu-mados a analisar os dados obtidos pelos colegas, mas poucos dentreeles interessam-se o bastante por histria para aplicar os mtodosde seus predecessores. Assim, muitos estudiosos tm escrito sobrea repercusso de Broca, mas nenhum deles reviu seus clculos.

    Concentrei-me na reviso dos conjuntos de dados clssicos dacraniometria e dos testes de inteligncia por duas razes, pois sinto-me incapaz de adotar qualquer outro enfoque de maneira frutfera,e desejo fazer algo um pouco diferente. Em primeiro lugar, creioque Sat tambm est com Deus no que se refere aos detalhes. Seas influncias culturais sobre a cincia pudessem ser detectadas nasmincias mais insignificantes de uma quantificao supostamente ob-jetiva e quase automtica, ento ficaria demonstrado que o determi-nismo biolgico um preconceito social refletido pelos cientistas emsua esfera especfica de ao.

    A segunda razo para analisar os dados quantitativos advmda posio privilegiada de que gozam os nmeros. A mstica da cin-cia afirma que os nmeros constituem a prova mxima da objetivi-dade. E claro que podemos pesar um crebro ou registrar os dadosfornecidos por um teste de inteligncia, sem termos de indicar nossaspreferncias sociais. Se as diferenas de nvel se expressam atravs

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    INTRODUO

    de nmeros inquestionveis, obtidos atravs de procedimentos rigo-rosos e normalizados, ento eles devem refletir a realidade, mesmoquando confirmam aquilo em que desejvamos acreditar desde oincio. Os antideterministas conscientizaram-se do prestgio especialdos nmeros e das dificuldades inerentes sua refutao. LonceManouvrier (1903, p. 406), a ovelha negra no determinista do reba-nho de Broca, alm de excelente estatstico, escreveu a respeito dosdados de Broca referentes pequenez dos crebros femininos:

    Elas exibiram seus talentos e seus diplomas. Tambm invocaram autori-dades filosficas. Mas tiveram de se defrontar com certos nmeros des-conhecidos por Condorcet ou por John Stuart MiII. Esses nmeroscaram corno um malho sobre as pobres mulheres, acompanhados porcomentrios e sarcasmos mais ferozes que as mais misginas impreca-es de certos representantes da Igreja. Os telogos haviam-se pergun-tado se as mulheres tinham alma. Vrios sculos mais tarde, algunscientistas estavam dispostos a negar-Ihes uma inteligncia humana.

    Se, como acredito ter demonstrado, os dados quantitativos en-contram-se to sujeitos ao condicionamento cultural quanto qualqueroutro aspecto da cincia, ento eles no ostentam nenhum ttuloespecial que garanta a sua veracidade absoluta.

    Ao voltar a analisar esses dados utilizados nos estudos clssicossobre o tema, pude detectar continuamente a incidncia de certospreconceitos a priori que levaram os cientistas a extrair concluseserrneas de dados adequados, ou que distorceram o prprio levanta-mento dos dados. Em uns poucos casos - o de Cyril Burt, que,como foi comprovado, forjou dados sobre o QI de gmeos idnticos,e o de Goddard, que, como eu prprio descobri, alterou fotografiaspara fazer com que os membros da famlia Kallikak parecessem retar-dados mentais -, podemos afirmar que a incidncia dos preconceitossociais foi produto de uma fraude deliberada. Mas a fraude no interessante do ponto de vista histrico, a no ser como anedota,pois seus autores sabem o que esto fazendo e, portanto, ela noconstitui um exemplo adequado dos preconceitos inconscientes querefletem os sutis e inevitveis condicionamentos de origem cultural.Na maior parte dos casos discutidos neste livro, podemos estar bas-tante seguros de que os preconceitos - embora muitas vezes expres-sados de forma to acintosa, como nos casos de fraude deliberada- exerceram uma influncia inconsciente, e de que os Cientistasacre-ditaram estar buscando a verdade pura.

    Uma vez que, segundo os critrios atuais, muitos dos casos aquiapresentados so to patentes, e at risveis, quero enfatizar queno selecionei figuras marginais e alvos fceis (com as possveis exce-

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    es de Bean, no captulo 3, que usei como preldio para ilustrarum tema geral, e Cartwright, no captulo 2, cujas afirmaes sopreciosas demais para no as citarmos). O catlogo dos alvos fceis muito mais extenso: de um eugenista chamado W. D. McKim,Ph.D. (1900), segundo o qual o dixidode carbono era a arma idealpara liquidar os ladres noturnos, at um certo professor ingls quepercorreu os Estados Unidos no final do sculo XIX, oferecendo,sem que lhe pedissem, a soluo para os nossos problemas raciais:cada irlands mataria um negro e depois seria enforcado pelo crime '.Os alvos fceis tm valor anedtico, no histrico; apesar de diverti-dos, so efmeros e de mnima influncia. Neste livro, concentrei-menos cientistas mais importantes e influentes de cada poca, e analiseisuas obras mais importantes.

    Gostei de bancar o detetive na maioria dos estudos de casosque integram este livro: descobrindo trechos que foram expurgadossem justificao de cartas publicadas, refazendo clculos para loca-lizar os erros que permitiram a obteno de concluses esperadas,descobrindo como os dados adequados podem ser distorcidos pelospreconceitos e fornecer resultados predeterminados, e at mesmoaplicando o Teste de Inteligncia utilizado pelo Exrcito em meusprprios estudantes, com resultados bastante interessantes. Mas te-nho a confiana de que o empenho dedicado investigao dos deta-lhes no fez com que se perdesse de vista a tese fundamental: osargumentos deterministas para classificar as pessoas segundo umanica escala de inteligncia, por mais refinados que fossem numerica-mente, limitaram-se praticamente a reproduzir um preconceito so-cial; tambm espero que dessa anlise possamos apreender algumresultado esperanoso acerca da natureza do trabalho cientfico.

    Se este tema fosse meramente um interesse abstrato do erudito,eu poderia abord-Io num tom mais comedido. Mas poucos temasbiolgicos exerceram uma influncia mais direta sobre milhes de

    3. Entre as afirmaespor demais preciosas para deixarem de sermencionadas, est a de Bill Lee, o autodenominado filsofo do beisebol,justificando o lanamento dirigido cabea do batedor (New York Times,24 de julho de 1976):"Na universidade, li um livro chamado 'O ImperativoTerritorial'. Numa rua, o que um cara tem mais que defender sua prpriacasa. Meu territrio se estende at onde os batedores podem chegar. Seno quero que eles saiam para pegar a bola, tenho que lan-Ia o maisprximo possvel do batedor." Este o meu exemplo favorito do empregodo determinismo biolgicopara justificar um comportamento de honesti-dade duvidosa.

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    INTRODUO

    vidas. O determinismo biolgico , na essncia, uma teoria dos limi-tes. Segundo ela, a posio que cada grupo ocupa na sociedade cons-titui uma medida do que esse grupo poderia e deveria ser (se bemque permita que alguns raros indivduos ascendam devido sua cons-tituio biolgica privilegiada).

    Fiz poucas referncias ao atual ressurgimento do determinismobiolgico porque suas teses geralmente so to efmeras que podemser refutadas nas pginas de uma revista ou de um peridico. Quemainda se lembra dos inflamados tpicos de dez anos atrs, como aspropostas de Shockley no sentido de indenizar os indivduos comQI abaixo de 100dispostos a se submeterem voluntariamente esteri-lizao, o grande debate sobre a combinao cromossmica XYY,ou a tentativa de explicar os distrbios urbanos como sendo a conse-qncia de distrbios neurolgicos de seus participantes? Achei queseria mais til e interessante examinar as fontes originais dos argu-mentos que ainda pululam em nosso redor. Elas, pelo menos, podemrevelar erros esclarecedores. Mas o que me inspirou a escrever estelivro foi o fato de o determinismo biolgico estar crescendo em popu-laridade, como sempre acontece em tempos de retrocesso poltico.Com a habitual profundidade, comeam a circular de festa em festaos comentrios sobre a agressividade inata, as funes especficasde cada sexo, e o macaco nu. Milhes de pessoas esto comeandoa suspeitar que seus preconceitos sociais so, afinal de contas, fatoscientficos. Entretanto, esse ressurgimento do interesse pelo temano deriva da existncia de novos dados, mas da sobrevivncia dessespreconceitos latentes.

    Passamos por este mundo apenas uma vez. Poucas tragdiaspodem ser maiores que a atrofia da vida; poucas injustias podemser mais profundas do que ser privado da oportunidade de competir,ou mesmo de ter esperana, por causa da imposio de um limiteexterno, mas que se tenta fazer passar por interno. Ccero contaa histria de Zpiro*, que afirmou possuir Scrates alguns vciosinatos, evidenciados por seus traos fisionmicos. Os discpulos re-chaaram essa afirmativa, mas Scrates defendeu Zpiro e afirmouque realmente possua seus vcios, mas que havia anulado seus efeitosatravs do exerccio da razo. Vivemos num mundo de diferenase predilees humanas, mas extrapolar esses fatos para transform-los em teorias de limites rgidos constitui ideologia.

    Clebre fisionomista (especialistana arte de conhecero carter daspessoaspelos traos fisionmicos)do tempo de Scrates (Cc. Tusc. 4.80).(N. T.)

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  • !i':i~,~ A FALSA MEDIDA DO HOMEMi~l~ George Eliot soube apreciar a singular tragdia decorrente da

    imposio de um rtulo biolgico aos membros de grupos menosfavorecidos socialmente. Ela expressou o que essa tragdia repre-sentava para pessoas como ela: mulheres de extraordinrio talento.Eu, de minha parte, gostaria de express-Ia de forma mais ampla:no s o que ela representa para os que so privados de seus sonhos,mas tambm para os que jamais percebem que podem sonhar. Masno sou capaz de igualar sua prosa (da introduo a Middlemarch):

    Alguns acharam que essas vidas cheias de desatinos so resultado daconveniente indefinio que o Poder supremo conferiu natureza dasmulheres: se o nvel de incompetncia feminina pudesse ser determi-nado por um critrio to ntido como saber contar at trs, o destinosocial das mulheres poderia ser definido com uma certeza cientfica.Na verdade, os limites das variaes so muito mais amplos do quese pode supor a partir da uniformidade do penteado feminino e dassuas histrias de amor favoritas em prosa e em verso. Aqui e ali, umpequeno cisne cresce, perdido entre os patos na lagoa barrenta, incapazde encontrar a corrente viva na fraternidade de seus pares. Aqui eali, nasce uma Santa Teresa, fundadora do nada, cujas palpitaes amo-rosas e soluos, clamando por uma bondade no aJcanada, deixampor fim de vibrar e se extinguem em meio a uma multido de obstculos,em vez de se concentrarem em uma obra duradoura.

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    A poligenia americana e acraniometria antes de Darwin

  • A FALSA MEDfDA DO HOMEM

    mesmo haver uma total perda da sensibilidade." E eis o que Cart-wright props como cura:

    preciso estimular a atividade do fgado, da pele e dos rins ...para ajudar a descarbonizao do sangue. O melhor meio de estimulara pele , em primeiro lugar, lavar bem o paciente com gua quentee sabo; em seguida, unt-lo completamente com leo, friccionandoa pele com uma larga faixa de couro; depois, deve-se mandar que opaciente execute algum tipo de trabalho pesado ao ar livre e embaixodo sol, como cortar rvores, rachar lenha ou cort-Ia com serra trans-versal ou com serra braal. Esse tipo e trabalho far com que seuspulmes se expandam.

    A disestesia no era a nica doena a figurar no catlogo deCartwright. Ele se perguntou por que os escravos freqentementetentavam fugir, e identificou a causa desse comportamento comosendo uma doena mental chamada drapetomania, ou desejo insanode fugir. "Como as crianas, eles so impulsionados por leis fisiol-gicas inalterveis a amar aos que exercem autoridade sobre eles.Assim, segundo uma lei da natureza, o negro no consegue deixarde amar um senhor bondoso, da mesma forma que uma criana nopode deixar de amar quem a amamenta." Aos escravos atingidospela drapetomania, Cartwright prope uma cura comporta mental :" preciso apenas mant-Ios nesse estado, e trat-los como crianasa fim de evitar que fujam e cur-los dessa enfermidade."

    Os defensores da escravatura no precisavam da poligenia. Areligio ainda era uma fonte de legitimao da ordem social maispoderosa que a cincia. Mas a polmica americana a respeito dapoligenia talvez tenha sido a ltima ocasio em que os argumentosde estilo cientfico no constituram uma primeira linha de defesado status quo e do carter inaltervel das diferenas entre os homens.A Guerra Civil estava s a alguns passos de distncia, mas damesma forma estava o ano de 1859 com A Origem das Espcies deDarwin. Subseqentes argumentos em favor da escravido, do colo-nialismo, das diferenas raciais, das estruturas de classes e da discri-minao sexual ainda iriam empunhar o estandarte da cincia.

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    Medindo cabeas

  • Paul Broca e o apogeu da craniologia

    Nenhum homem racional, bem informado, acredita que o negro mdioseja igual, e muito menos superior, ao branco mdio. E, se isto forverdade, simplesmente inadmissvel que, uma vez eliminadas todas asincapacidades de nosso parente prgnato, este possa competir emcondies justas, sem ser favorecido nem oprimido, e esteja habilitadoa competir com xito com seu rival de crebro maior e mandbula menorem um confronto em que as armas j no so as dentadas, mas as idias.

    T. H. HUXLEY

    A fascinao pelos nmeros

    Introduo

    A teoria evolucionista eliminou a base criacionista que susten-tava o intenso debate entre os monogenistas e os poligenistas, massatisfez ambas as partes proporcionando-lhes uma justificao aindamelhor para o racismo de que ambascompartilhavam. Os monoge-nistas continuaram a estabelecer hierarquias lineares das raas segun-do seus respectivos valores mentais e morais; os poligenistas tiveramento de admitir a existncia de um ancestral comum perdido nasbrumas da pr-histria, mas afirmavam que as raas haviam estadoseparadas durante um tempo suficientemente prolongado para de-senvolver diferenas hereditrias significativas quanto ao talento e inteligncia. O historiador da antropologia George Stocking escre-ve (1973, p. 1XX) que "as tenses intelectuais resultantes foramresolvidas depois de 1859 por um evolucionismo amplo que era, aomesmo tempo, monogenista e racista, e que confirmava a unidadehumana mesmo quando relegava o selvagem de pele escura a umaposio muito prxima do macaco".

    A segunda metade do sculo XIX no foi apenas a era da evolu-o na antropologia. Outra corrente, igualmente irresistvel, conta-minou o campo das cincias humanas: a fascinao pelos nmeros,a f em que as medies rigorosas poderiam garantir uma precisoirrefutvel e seriam capazes de marcar a transio entre a especulaosubjetiva e uma verdadeira cincia, to digna quanto a fsica newto-niana. A evoluo e a quantificao formaram uma temvel aliana;em certo sentido, sua unio forjou a primeira teoria racista "cient-fica" de peso, se definirmos "cincia" erroneamente, como muitos

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    A FALSA MEDIDA DO HOMEM MEDINDO CABEAS

    o fazem, como sendo toda afirmao aparentemente respaldada porcifras abundantes. Os antroplogos haviam apresentado dados num-ricos antes de Darwin, mas a rusticidade da anlise de Morton (Cap-tulo 2) invalida qualquer pretenso de rigor. Por volta do final dosculo de Darwin, tcnicas generalizadas e um crescente corpo deconhecimentos estatsticos produziram um dilvio de dados num-ricos mais fidedignos.

    Este captulo a histria de nmeros que j foram consideradosmais importantes que quaisquer outros - os dados referentes era-niologia, ou seja, a medida do crnio e de seu contedo. Os lderesda craniometria no eram idelogos polticos conscientes. Conside-ravam-se escravos dos nmeros, apstolos da objetividade. E confir-mavam todos os preconceitos habituais do homem branco acomo-dado: os negros, as mulheres e os pobres ocupam posies inferioresgraas aos rigorosos ditames da natureza.

    A cincia tem razes na interpretao criativa. Os nmeros suge-rem, limitam e refutam mas, por si ss, no especificam o contedodas teorias cientficas. Estas so construdas sobre a base da interpre-tao desses nmeros, e os que os interpretam so com freqnciaaprisionados pela sua prpria retrica. Esto convencidos de suaprpria objetividade, e so incapazes de discernir o preconceito queos leva a escolher apenas uma das muitas interpretaes que seusnmeros admitem. Paul Broca est agora muito distante do presentepara que possamos lanar um olhar retrospectivo sobre sua obrae mostrar que ele no empregou dados numricos para criar novasteorias, mas para ilustrar concluses a priori. Devemos acreditar quena atualidade a cincia diferente apenas porque compartilhamosdo contexto cultural da maioria dos cientistas, assim confundindoa influncia desse contexto com a verdade objetiva? Broca foi umcientista exemplar; ningum ainda suplantou sua meticulosidade ea preciso com que realizou suas medies. Com que direito, almdaquele derivado de nossas prprias inclinaes, podemos apontara incidncia dos seus preconceitos e afirmar que a cincia hoje opera margem de qualquer influncia cultural ou de classe?

    gncia ao cultivo de seu tema favorito: a medio. GaIton, pioneiroda moderna estatstica, acreditava que, com suficiente empenho eengenhosidade, qualquer coisa podia ser medida, e que essa medidaconstitui o critrio bsico de um estudo cientfico. Chegou mesmoa propor, e comeou a desenvolver, um estudo estatstico sobre aeficcia da prece! Foi ele quem inventou o termo "eugenia", em1883, e defendeu a regulamentao do matrimnio e do tamanhodas famlias de acordo com o patrimnio hereditrio dos pais.

    Sua f na medio apoiava-se nas idiossincrasias e na engenho-sidade de seus mtodos. Ele se propunha, por exemplo, a construirum "mapa da beleza" das Ilhas Britnicas da seguinte maneira (1909,pp. 315-316):

    Sempre que tenho a oportunidade de classificaras pessoasque encontroem trs classes distintas, "boa, regular e ruim", utilizo uma agulhamontada como se fosse uma pua, com que perfuro, sem ser visto, umpedao de papel cortado toscamente em forma de cruz alongada. Noextremo superior, marco os valores "bons", nos braos os valores "re-gulares" , e na extremidade inferior os valores "ruins". As perfuraesso bastante distanciadas para permitir uma leitura fcil no momentodesejado. Escrevo em cada papel o nome do sujeito, o lugar e a data.Com este mtodo, registrei minhas observaes sobre a beleza, classifi-cando asmoas que encontrei pelas ruas e emoutros locaiscomo atraen-tes, indiferentes ou repelentes. claro que esta foi uma avaliao pura-mente individual mas, a julgar pela coincidnciados diferentes intentosrealizados com a mesma populao, posso afirmar que os resultadosso consistentes. Assim, comprovei que Londres ocupa a posio maiselevada na escala da beleza, e Aberdeen a mais baixa.

    Com bom humor, sugeriu o seguinte mtodo para quantificar o abor-recimento (1909, p. 278):

    Muitos processosmentais admitem uma medio aproximada. Porexemplo, o grau em que as pessoas se aborrecem pode ser medidopelo nmero de movimentos de inquietaes que realizam. Em maisde uma ocasio apliquei este mtodo durante as reunies da RoyalGeographical Society , pois mesmo l dissertaesbastante tediosas soocasionalmente lidas. . .. Como o uso de um relgio pode chamar aateno, calculo o tempo pelo nmero de minhas respiraes, que de 15por minuto. No conto mentalmente, mas atravs de 15 pressescom o dedo sucessivas. Reservo a contagem mental para registrar osmovimentos de inquietao. Este tipo de observao deve limitar-ses pessoas de meia-idade. As crianas raramente ficam quietas, en-quanto que os velhos filsofos por vezes permanecem rgidos porvrios minutos.

    Francis Galton - apstolo da quantificao

    Nenhum outro homem expressou o fascnio de sua era pelosnmeros to bem quanto o famoso primo de Darwin, Francis Galton(1822-1911). Rico e independente, Galton pde gozar de uma liber-dade pouco comum para consagrar suas notveis energias e sua inteli-

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    A FALSA MEDIDA DO HOMEM MEDINDO CABEAS

    A quantificao era o deus de Galton, e sua direita estavaa firme convico de que quase tudo que podia medir tinha um carterhereditrio. Acreditava que at mesmo os comportamentos mais in-seridos no contexto social possuam fortes componentes inatos:"Como muitos membros de nossa Cmara dos Lordes desposam filhasde milionrios", escreveu ele (1909, pp. 314-315), " bastante prov-vel que, com o passar do tempo, o nosso Senado venha a ser caracte-rizado por uma capacidade para os negcios mais acentuada quea de uso corrente, assim como possvel que o seu nvel de probidadecomercial chegue a ser mais baixo que o atual." Em sua constantebusca de novos e engenhosos mtodos para medir o valor relativodas pessoas, props que os negros e os brancos fossem classificadosestudando-se a histria dos encontros entre chefes negros e viajantesbrancos (1884, pp. 338-339):

    Para que no se pense que se trata de inofensivas reflexes deum vitoriano excntrico e demente, direi que Sir Francis era conside-rado com toda a seriedade como um dos intelectos mais importantesde seu tempo. Posteriormente, Lewis Terman, campeo da teoriasobre o carter hereditrio da inteligncia e introdutor dos testesde Ol nos Estados Unidos, calculou o QI de Galton em 200, enquantoque a Darwin s atribuiu um QI de 135 e a Coprnico um que oscilavaentre os 100 e os 110 (sobre este ridculo incidente na histria dasmedies da capacidade intelectual, ver pp. 190-195). Darwin, queabordava com grandes suspeitas os argumentos em favor do carterhereditrio da inteligncia, depois de ler Hereditary Genius , escreveuo seguinte: "em certo sentido, o senhor transformou um oponenteem convertido, porque sempre sustentei que, com exceo dos lou-cos, os homens pouco diferem entre si quanto ao intelecto, e sse distinguem pelo grau de zelo e constncia que exibem em seutrabalho" (in Galton, 1909, p. 290). Esta foi a resposta de Galton:"A rplica que poderia ser feita sua observao quanto constnciano trabalho que o carter, nele se incluindo a capacidade de traba-lho, to hereditrio quanto qualquer outra faculdade."

    Sem dvida, estes ltimos trazem consigoo conhecimento existenteem pases civilizados; mas essa uma vantagem muito menor do quepoderamos imaginar. Um chefe nativo foi educado na arte de governaros homens to bem quanto se possa desejar; ele se exercita permanen-temente na prtica do governo pessoal, e geralmente conserva seu cargoatravsda demonstrao da ascendnciade seu carter sobre seus sditose rivais.De uma certa forma, aquele que viaja por pases selvagens tam-bm assume a posio de govemante, tendo que se confrontar com oschefesindgenas em todos os locaishabitados. O resultado desses encon-tros bastante conhecido: o viajante branco quase que invariavelmenteacaba por impor-se aos nativos. Raramente ouvimos contar que um via-jante branco, ao encontrar um chefe negro, sinta-se inferior a ele.

    Preldio moralista: os nmeros no garantem a verdade

    Em 1906, um mdico da Virgnia, Robert Bennett Bean, publi-cou um longo artigo tcnico comparando os crebros de um conjuntode negros e brancos norte-americanos. Com uma espcie de domneurolgico privilegiado, encontrou diferenas significativas por to-das as partes - significativas no sentido de que confirmavam comcifras contundentes os seus preconceitos com relao inferioridadedos negros.

    Bean estava particularmente orgulhoso de seus dados relativosao corpo caloso, uma estrutura interior do crebro que contm umconjunto de fibras atravs das quais so conectados os hemisfriosdireito e esquerdo. Atendo-se a um dogma fundamental da cranio-metria, o de que as funes mentais superiores localizam-se na parteanterior do crebro e as capacidades sensorimotoras na posterior,Bean concluiu que podia estabelecer uma hierarquia entre as diferen-tes raas baseando-se nos tamanhos relativos das partes que formamo corpo caloso. Assim, mediu a longitude do joelho, a parte anteriordo corpo caloso, e comparou-a com a longitude do esplnio, a parteposterior do mesmo. Representou em um grfico os dados relativoss diferenas entre joelhos e esplnios (Fig. 3.1) e obteve, para uma

    A principal obra de Galton sobre o carter hereditrio da inteli-gncia (Hereditary Genius, 1869) inclui a antropometria entre seuscritrios, mas seu interesse pela medio dos crnios e dos corposatingiu o nvel mximo quando instalou um laboratrio na ExposioInternacional de 1884. Ali, por poucas moedas, as pessoas passavampela linha de montagem de seus testes e medies, e recebiam suaavaliao no final. Depois da exposio, manteve o laboratrio porseis anos em um museu de Londres. O laboratrio tornou-se famosoe atraiu muitas pessoas notveis, inclusive Gladstone:

    O sr. Gladstone fez muitas pilhrias a respeito do tamanho desua cabea, afirmando, que os chapeleiros com freqncia lhe diziamque a sua era uma cabea do condado de Aberdeen: " ... 0 senhor podeestar seguro de que no deixo de mencionar esse fato aos meus eleitoresescoceses". Tinha uma bela cabea, ainda que um pouco estreita, esua circunferncia no era muito grande (1909, pp. 249-250).

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    A concluso geral de Bean, expressada em um pargrafo desntese antes do infeliz apndice que j mencionamos, expe umpreconceito comum como se fosse uma concluso cientfica:

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    o negro basicamente afetuoso, imensamente emocional; portan-to, sensual e, quando recebe estmulos suficientes, apaixonado em suasrespostas. Ama a ostentao, e sua maneira de falar pode ser melo-diosa; sua capacidade e seu gosto artstico ainda esto por se desen-volver - os negros so bons artesos e habilidosos trabalhadores ma-nuais -, e seu carter apresenta uma tendncia instabilidade ligadaa uma falta de domnio de si mesmo, principalmente no que se referes relaes sexuais; tambm carece de capacidade de orientao oude aptido para reconhecer a posio tanto de si mesmo quanto doque o cerca, como se pode observar na peculiar presuno que exibem.Este tipo de carter perfeitamente previsvel no caso do negro, umavez que a parte posterior de seu crebro grande enquanto a poroanterior pequena.

    Bean no confinou suas opinies s publicaes tcnicas. Publi-cou dois artigos em revistas populares durante o ano de 1906, e atraiusuficiente ateno para que a American Medicine lhe dedicasse umeditorial em seu nmero de abril de 1907 (citado in Chase, 1977,p. 179). Segundo esse editorial, Bean teria oferecido a explicao"anatmica do fracasso total das escolas negras que oferecem ensinoem nvel superior, j que o crebro do negro to incapaz de com-preend-lo quanto o de um cavalo que procurasse entender a regrade trs ... Os lderes de todos os partidos agora reconhecem que aigualdade humana um erro ... possvel corrigir esse erro e eliminaruma ameaa nossa prosperidade: uma larga fatia do eleitoradocarente de crebro".

    Mas Franklin P. MaU, mentor de Bean na Johns Hopkins Uni-versity, levantou certas suspeitas: os dados de Bean eram bons de-mais. Assim, voltou a realizar o estudo de Bean, se bem que comuma importante diferena de procedimento: assegurou-se de ignorarquais crebros pertenciam a indivduos negros e quais pertenciama indivduos brancos at depois de hav-los medido (MaU, 1909).Em uma amostragem de 106crebros, e utilizando o mtodo de medi-da de Bean, no detectou diferenas entre brancos e negros quantoaos tamanhos relativos do joelho e do esplnio (Fig. 3.2). Nessaamostragem figuravam 18crebros da amostragem original de Bean,10 dos quais pertenciam a indivduos brancos e 8 a indivduos negros.No caso de 7 brancos, as medidas que Bean havia atribudo ao joelhoeram maiores que as registradas por MaU, enquanto que apenas no

    Fig. 3.2. Representao da relao joelho/esplnio, segundo Mall. MalI mediu oscrebros sem saber se procediam de negros ou de brancos. No encontrou qualquerdiferena entre as raas. A linha representa a separao introduzida por Bean entrebrancos e negros.

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    A FALSA MEDIDA DO HOMEM MEDINDO CABEAS

    caso de 1 negro se observava a mesma discrepncia. Em 7 dos 8negros, Bean havia atribudo valores superiores aos esplnios.

    Acredito que este pequeno episdio de fanatismo possa ilustrar, guisa de preldio, as teses mais importantes que defendo nestecaptulo e neste livro em geral:

    1. Os racistas e sexistas cientficos restringem seu rtulo de infe-rioridade a um nico grupo socialmente relegado; mas a raa, o sexoe a classe andam juntos e so permutveis. Embora os diferentesestudos tenham alcance limitado, a filosofia geral do determinismobiolgico sempre a mesma: as hierarquias existentes entre os gruposmais ou menos favorecidos obedeceriam aos ditames da natureza;a estratificao social constituiria um reflexo da biologia. Bean estu-dou as raas, mas estendeu sua concluso mais importante s mulhe-res, e tambm invocou as diferenas de classe social para justificara tese de que a igualdade dos tamanhos cerebrais de negros e brancosrefletiria realmente a inferioridade dos primeiros.

    2. As concluses no so ditadas pelo exame de uma documen-tao numrica copiosa, mas por preconceitos anteriores investigao.E praticamente indubitvel que a afirmao de Bean a respeito dapresuno dos negros no constitui uma induo a partir do estudodos dados sobre as partes anterior e posterior do crebro, mas o reflexode uma crena a priori que ele tentou apresentar como uma conclusoobjetiva. Quanto alegao especial no sentido de que a inferioridadedos negros podia ser deduzida da igualdade dos tamanhos dos crebros,ela nos parece particularmente ridcula quando formulada fora dos limi-tes de uma crena apriorstica na inferioridade desse grupo humano.

    3. A autoridade dos nmeros e dos grficos no aumenta como grau de exatido da medio, com o tamanho da amostragem oucom a complexidade de elaborao dos dados. Projetos experimen-tais bsicos podem ser defeituosos desde o incio e a repetio reite-rada do experimento no implica a sua ratificao. O compromissoprvio em favor de uma das muitas concluses possveis com freqn-cia acarreta graves defeitos na concepo das experincias.

    4. A craniometria no foi apenas uma distrao de acadmicos,um tema confinado s publicaes tcnicas. Suas concluses inunda-ram a imprensa popular. Quando ganhavam aceitao, muitas vezesadquiriam vida prpria e eram copiadas de fontes cada vez maisdistanciadas das originais, tornando-se refratrias a qualquer tipode refutao, j que nenhuma examinava a fragilidade da documen-tao primitiva. Neste caso, MaU eliminou um dogma potencial, masno antes que uma publicao importante recomendasse a supressodo direito de voto dos negros por causa da sua estupidez inata.

    Mas tambm observo uma importante diferena entre Bean eos grandes estudiosos europeus da craniometria. Bean cometeu umafraude deliberada ou ento iludiu-se num grau inusitado. Ele eraum cientista medocre que seguiu um projeto experimental absurdo.Os grandes estudiosos da craniometria, por outro lado, foram cien-tistas excelentes de acordo com os critrios da poca. Seus dadosnumricos, ao contrrio dos de Bean, eram geralmente slidos. Suasinterpretaes, bem como a afirmao da prioridade dos dados nu-mricos eram influenciadas pelos seus preconceitos de maneira maissutil. Sua obra foi mais refratria a qualquer tentativa de desmascara-mento, mas sua invalidade deve-se a motivos idnticos: nela, os pre-conceitos passam pelos dados para chegar, depois de um itinerriocircular, aos preconceitos iniciais - um sistema imbatvel que adqui-riu fora de autoridade devido sua aparente fundamentao emum conjunto de medies meticulosamente realizadas.

    Se bem que no em todos seus detalhes, a histria de Beantem sido freqentemente contada (Myrdal, 1944; Haller, 1971;Cha-se, 1977). Mas Bean foi uma figura marginal num palco provincianoe efmero. No consegui localizar nenhum estudo moderno sobreo drama principal, ou seja, os dados recolhidos por Paul Broca esua escola.

    Mestres da craniometria: Paul Broca e sua escola

    o grande itinerrio circular

    Em 1861, um violento debate estendeu-se por diversas reuniesde uma jovem associao que ainda padecia das dores do parto.Paul Broca (1824-1880), professor de cirurgia clnica na Faculdadede Medicina, havia fundado a Sociedade Antropolgica de Paris em1859. Dois anos mais tarde, em uma reunio da sociedade, LouisPierre Gratiolet leu um trabalho que punha em xeque a mais preciosadas crenas de Broca: Gratiolet ousou sustentar que o tamanho docrebro nada tinha a ver com o grau de inteligncia.

    Broca tratou de fazer sua defesa, argumentando que "o estudodos crebros das raas humanas perderia a maior parte de seu inte-resse e validade" se a variao de tamanho no tivesse nenhum valor(1861, p. 141). Por que os antroplogos teriam passado tanto tempomedindo crnios seno para poder delinear os grupos humanos eestimar seus valores relativos?

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    A FALSA MEDIDA DO HOMEM MEDINDO CABEAS

    Entre as questes at agora debatidas na Sociedade Antropol-gica, nenhuma se equipara em interesse e importncia que se apre-senta a ns neste momento ... A grande importncia da craniologiacausou uma impresso to forte nos antroplogos que muitos de nsacabamos por negligenciar as outras partes de nossa cincia para nosdevotarmos quase que exclusivamente ao estudo dos crnios ... Esper-vamos que esses dados pudessem fornecer-nos alguma informao rele-vante quanto ao valor das diversas raas humanas (1861, p. 139).

    et surtout des systmes a priori" (Tenho horror aos sistemas, principal-mente aos sistemas a priori).

    Broca reservou aos poucos cientistas igualitrios de seu sculoos ataques mais veementes, acusando-os de terem deixado que aesperana tica ou o sonho poltico obscurecessem seu julgamentoe distorcessem a verdade objetiva. "A interveno de consideraespolticas e sociais tem sido to daninha para a antropologia quantoo fator religioso" (1855, in Count, 1950, p. 73). O grande anatomistaalemo Friedrich Tiedemann, por exemplo, havia afirmado que osnegros e os brancos no diferiam quanto capacidade craniana. Bro-ca crucificou Tiedemann pelo mesmo tipo de erro que descobri naobra de Morton (ver pp. 39-59). As medidas que este ltimo registrouatravs de um mtodo subjetivo e impreciso no caso dos crniospertencentes a negros foram sistematicamente inferiores s que con-seguiu obter atravs de uma tcnica precisa. Tiedmann, utilizandoum mtodo ainda mais impreciso, calculou uma mdia negra superiorem 45 cm ' mdia registrada por outros cientistas. Contudo, suasmedies de crnios pertencentes a brancos no eram superiores aosobtidos por seus colegas. (Apesar do prazer com que exps Tiede-mann, Broca aparentemente nunca verificou as cifras de Morton,embora este fosse seu heri e modelo. Certa vez, Broca publicouum trabalho de cem pginas analisando as tcnicas de Morton nosmais nfimos detalhes - Broca, 1873b).

    Por que teria Tiedemann se equivocado? "Infelizmente", escre-veu Broca (1873b, p. 12), "ele se deixou dominar por uma idiapreconcebida. Props-se a provar que a capacidade craniana de todasas raas a mesma." Mas "para todas as cincias de observaovale o axioma de que os fatos devem preceder as teorias" (1868,p. 4). Broca acreditava, presumo que com sinceridade, que s obede-cia aos fatos, e que seu xito na confirmao das hierarquias tradicio-nalmente aceitas era o resultado da preciso de suas medies e docuidado com que estabelecera procedimentos passveis de repetio.

    Na verdade, impossvel ler Broca sem sentir um enorme respei-to pelo seu cuidado na obteno de dados. Acredito em suas cifrase duvido que j se tenham obtido melhores. Broca fez um estudoexaustivo de todos os mtodos anteriores aos seus para determinara capacidade craniana. Decidiu que as balas de chumbo, como afir-mava "le celebre Morton" (1861, p. 183), produziam os melhoresresultados, mas passou meses aprimorando essa tcnica, levando emconsiderao fatores como a forma e a altura do cilindro usado pararecolher as balas de chumbo com que enchia os crnios, a velocidadede vazo das balas para dentro do crnio, e o modo de sacudir e

    Em seguida, Broca apresentou seus dados e o pobre Gratiolet foiderrotado. Sua ltima interveno no debate deve ser includa entreos discursos mais oblquos e mais carregados de abjetas concessesjamais pronunciados por qualquer cientista. No abjurou seus erros;em vez disso, argumentou que ningum havia apreciado a sutilezade sua posio. (A propsito, Gratiolet era monarquista e no acei-tava a tese igualitria. Ele simplesmente buscou outros tipos de medi-o para confirmar a inferioridade dos negros e das mulheres, taiscomo a unio mais precoce das suturas do crnio.)

    Esta foi a concluso triunfal de Broca:

    Em geral, o crebro maior nos adultos que nos ancies, no ho-mem que na mulher, nos homens eminentes que nos homens medocres,nas raas superiores que nas inferiores (1861, p. 304) ... Em igualdadede condies, existe uma notvel relao entre o desenvolvimento dainteligncia e o volume do crebro (p. 188).

    Cinco anos mais tarde, num artigo sobre antropologia escrito parauma enciclopdia, Broca expressou-se de forma mais contundente:

    o rosto progntico [projetado para a frente], a cor de pele maisou menos negra, o cabelo crespo e a inferioridade intelectual e socialesto freqentemente associados, enquanto a pele mais ou menos bran-ca, o cabelo liso e o rosto ortogntico [reto] constituem os atributosnormais dos grupos mais elevados na escala humana (1866, p. 280) ...Um grupo de pele negra, cabelo crespo e rosto progntico jamais foicapaz de ascender civilizao (pp. 295-296).

    So palavras duras, e o prprio Broca lamentava que a naturezaassim tivesse estabelecido as coisas (1866, p. 296). Mas o que elepodia fazer? Fatos so fatos. "No existe nenhuma f, por mais res-peitvel que seja, que no consiga se adaptar ao progresso do conhe-cimento humano e inclinar-se ante a verdade" (in Count, 1950, p.72). Paul Topinard, o principal discpulo de Broca e seu sucessor,adotou a seguinte divisa (1882, p. 748): "J'ai horreur des systmes

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    golpear o crnio para compacta r as balas e verificar se eram ou nosuficientes (Broca, 1873b). Broca finalmente desenvolveu um mto-do objetivo para medir a capacidade craniana. Na maior parte desua obra, contudo, preferiu pesar o crebro imediatamente aps aautpsia, por ele mesmo realizada.

    Dediquei um ms leitura das principais obras de Broca, con-centrando-me em seus procedimentos estatsticos. Assim, comproveique seus mtodos se ajustavam a uma frmula definida. A distnciaentre os fatos e as concluses era por ele descoberta atravs de umcaminho que poderia ser o habitual, se bem que percorrido em dire-o contrria. Comeando pelas concluses, Broca chegava s cren-as compartilhadas pela maioria dos indivduos brancos do sexo mas-culino que triunfaram em sua poca: por graa da natureza, estesocupavam a posio mais elevada, enquanto que as mulheres, osnegros e os pobres figuravam em posio inferior. Seus dados eramfidedignos (contrariamente aos de Morton), mas foram recolhidosde maneira seletiva e posteriormente manipulados inconscientemen-te em favor de concluses estabelecidas a priori. Tal procedimentopermitia atribuir s concluses a sano da cincia e tambm o pres-tgio dos nmeros. Broca e sua escola no usaram os fatos comodocumentos irrefutveis, mas apenas como ilustraes. Comearampelas concluses, logo comparando-as com seus dados para, por fim,e atravs de uma rota circular, voltar a essas mesmas concluses.Seu exemplo justifica um estudo mais minucioso, pois, ao contrriode Morton (que manipulou os dados, embora inconscientemente),refletiram seus preconceitos atravs de um outro procedimento, pro-vavelmente mais comum: fazer passar por objetividade o que apo-logia.

    A seleo das caractersticas

    Quando a "Vnus hotentote" morreu em Paris, Georges Cuvier,cientista maior e, como mais tarde descobriria Broca com grandeprazer, o maior crebro da Frana, evocou essa africana tal comoa havia visto em vida.

    Tinha uma maneira de projetar os lbios para a frente exatamentecomo temos observado no orangotango. Havia algo de abrupto e fants-tico em seus movimentos, que lembravam os dos smios. Seus lbioseram monstruosamente grandes [Cuvier parece ter esquecido que os

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    MEDINDO CABEAS

    dos macacos so delgados e pequenos]. Suas orelhas era como as demuitos macacos: pequenas, com o trago" dbil e a borda externa quaseobliterada na parte de trs. Essas so caractersticas prprias dos ani-mais. Nunca vi uma cabea humana to parecida com a de um smioquanto a desta mulher (in Topinard, 1878, pp. 493-494).

    o corpo humano pode ser medido de mil maneiras. Qualquerinvestigador convencido de antemo da inferioridade de determinadogrupo pode selecionar um pequeno conjunto de medies para ilus-trar a maior afinidade do mesmo com os smios. (Tal procedimento,evidentemente, tambm poderia ser aplacado no caso de indivduosbrancos do sexo masculino, embora ningum ainda o tenha tentado.Os brancos, por exemplo, tm lbios finos - propriedade que compar-tilham com os chimpanzs - enquanto que a maioria dos negros africa-nos tem lbios mais grossos e, conseqentemente, mais "humanos".)

    O preconceito fundamental de Broca consiste em sua crenade que as raas humanas podiam ser hierarquizadas em uma escalalinear de valor intelectual. Ao enumerar os objetivos da etnologia,Broca inclui o de "determinar a posio relativa das raas dentroda escala humana" (in Topinard, 1878, p. 660). No lhe ocorreuque a variao humana pode-se ramificar de forma aleatria, emlugar de linear a hierrquica. E, uma vez que conhecia a ordemde antemo, a antropometria no foi para ele um exerccio numricode empirismo elementar, mas uma busca das caractersticas capazesde ilustrar a hierarquia correta.

    Assim, Broca ps-se a buscar as caractersticas "significativas",ou seja, as que permitiriam confirmar a existncia da hierarquia admi-tida. Em 1862, por exemplo, tentou faz-Io atravs da proporoentre o rdio (o osso do antebrao) e o mero (o osso do brao),argumentando que uma proporo mais elevada correspondia aomaior tamanho do antebrao: uma caracterstica prpria dos smios.A coisa comeou bem: nos negros, a proporo era de 794, enquantoque nos brancos era de apenas 739. Mas logo surgiram dificuldades.O esqueleto de um esquim apresentou uma proporo de 703, ode um aborgene australiano, 704, enquanto a Vnus hotentote -quase simiesca, segundo Cuvier - s apresentou uma proporode 703. Agora, Broca tinha duas alternativas. Podia reconhecer que,segundo esse critrio, os brancos ocupavam uma posio inferior de vrios grupos de pele escura, ou ento abandonar tal critrio.

    Pequena salincia entrada do ouvido externo, que geralmente secobre de plos ao chegar o indivduo a uma determinada idade. (N. T.).

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    A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    Como sabia (1862a, p. 10) que os hotentotes, os esquims e os abor-genes australianos ocupavam posies inferiores da maioria dosnegros africanos, preferiu a seguinte alternativa: "Depois disso, pare-ce-me difcil continuar afirmando que o alongamento do antebraoseja uma caracterstica indicadora de degradao ou inferioridade,porque os europeus, neste sentido, ocupam uma posio interme-diria entre os negros, de um lado, e os hotentotes, os australianose os esquims, de outro" (1862, p. 11).

    Mais tarde, esteve a ponto de abandonar seu critrio funda-mental, o tamanho do crebro, pelo fato de os indivduos de peleamarela apresentarem nmeros elevados:

    Um quadro em que as diferenas foram dispostas de acordo coma magnitude de sua capacidade craniana no representaria de formaadequada seus diferentes graus de superioridade ou inferioridade, poiso tamanho representa apenas um elemento do problema [da hierarqui-zao das raas]. Nesse quadro, os esquims, os lapes, os malaios,os trtaros e diversos outros povos do tipo monglico suplantariainos povos mais civilizados da Europa. Portanto, o crebro de uma raainferior pode ser grande (1873a, p. 38).

    Mas Broca sentiu que podia resgatar um aspecto muito valioso deseus dados brutos referentes ao tamanho geral do crebro. Emboraesses dados no se prestassem a descrever de forma adequada oscasos situados no topo da escala, porque alguns grupos inferioresapresentavam crebros de grande magnitude, eles eram teis paraa descrio dos grupos situados no extremo inferior, j que os cre-bros pequenos s6 eram encontrados nos grupos dotados de um nvelbaixo de inteligncia. Assim, prosseguiu afirmando:

    Mas isso no invalida a correlao entre a pequenez do crebro e ainferioridade mental. O quadro mostra que os negros da frica Oci-dental possuem uma capacidade craniana inferior em cerca de 100crrr' capacidade craniana das raas europias. A essa cifra podemos acres-centar as dos seguintes grupos: cafres, nbios, tasmanianos, hotentotese australianos. Estes exemplos so suficientes para provar que, se ovolume do crebro no desempenha um papel decisivo na hierarqui-zao intelectual das raas, no deixa ele de ter uma importncia consi-dervel (1873a, p. 38).

    Um argumento imbatvel. Repudiado quando leva a concluses inde-sejveis, e confirmado com base no mesmo critrio. Broca no falsi-fica os dados numricos: limita-se a selecion-Ias ou a interpret-Ias sua maneira para que justifiquem as concluses desejadas.

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    MEDINDO CABEAS

    Ao selecionar entre as diferentes medidas possveis, Broca nose deixou levar passivamente pelo impulso de uma idia preconce-bida. Sustentou que a seleo entre as diferentes caractersticas eraum objetivo a ser alcanado atravs do uso de certos critrios expl-citos. Topinard, seu principal discpulo, fazia uma distino entreas caractersticas "empricas", "que no parecem ter qualquer signifi-cado", e as "racionais", "vinculadas a alguma opinio fisiolgica"(1878, p. 221). Ento, como determinar quais so as caractersticas"racionais"? Respondia Topinard: "Outras caractersticas so consi-deradas, com ou sem razo, dominantes. Podemos observar umaafinidade entre as suas manifestaes nos negros, nos smios, o quenos permite estabelecer a transio entre estes ltimos e os europeus"(1878, p. 221). Em meio a seu debate com Gratiolet, Broca tambmconsiderou esta questo, chegando a concluses idnticas (1861, p. 176):

    Superamos facilmente o problema selecionando, para nossa com-parao dos crebros, raascujas desigualdades intelectuaisnodeixamlugar a dvidas. Assim, a superioridade dos europeus em relao aosnegros africanos, os ndios americanos, os hotentotes, os australianose os negros da Oceania suficientemente certa para servir comopontode partida para a comparao dos crebros.

    A seleo dos indivduos destinados a ilustrar os diferentes gru-pos apresenta uma profuso de exemplos particularmente ultrajan-tes. H trinta anos, quando eu era menino, o vestbulo do MuseuAmericano de Histria Natural ainda exibia uma representao dascaractersticas das raas humanas dispostas numa ordem linear queia dos smios ao homem branco. As ilustraes anatmicas usuais,at a presente gerao, apresentavam um chimpanz, um negro eum branco, lado a lado e nessa ordem, embora a variao existenteno interior dos grupos brancos e negros seja suficientemente amplapara gerar uma seqncia diferente quando se selecionam outrosindivduos: chimpanz, branco e negro. Em 1903, por exemplo, oanatomista americano E. A. Spitzka publicou um longo tratado sobreo tamanho e a forma do crebro dos "homens eminentes". Esseestudo inclua a seguinte ilustrao (Fig. 3.3) com este comentrio:"O salto que existe entre um Cuvier ou um Thackeray e um zulu ouum bosqumano no maior que o existente entre estes ltimos eo gorila ou o orangotango" (1903, p. 604). Mas tambm publicouuma ilustrao similar (Fig. 3.4) em que mostrava a variao do tama-nho do crebro entre indivduos eminentes do grupo branco, aparen-temente sem perceber que estava assim destruindo o seu prprio

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    A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    o crebro do grandematemtico K. F. Gauss

    Bosqumana

    Gorila

    Fig. 3.3. Cadeia evolutiva de acordo com o tamanho do crebro, segundo Spitzka.

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    o crebro dogeneral Skobelef(

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    Professor Altmann,famoso anatomista

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    Fig. 3.4. Representao da variao do tamanho cerebral entre homens brancos emi-nentes, segundo Spitzka.

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    A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    argumento. Como disse a respeito dessas ilustraes F. P. MaU(1909,p. 24), o homem que ps em evidncia os erros de Bean: "Quando[as] comparamos, fica evidente que o crebro de Gambetta asseme-lha-se mais ao do gorila que ao de Gauss."

    Como evitar as anomalias

    Uma vez que reuniu um conjunto de dados to disparatado ehonesto, Broca inevitavelmente obteve numerosas anomalias e apa-rentes excees generalizao que o orientava: a de que o tamanhodo crebro indica o grau de inteligncia, e que o crebro dos indiv-duos brancos do sexo masculino pertencentes s classes dominantes maior que o das mulheres, dos pobres e das raas inferiores. Exami-nando a forma como lidou com cada exceo aparente, obteremosuma viso clara dos mtodos de argumentao e inferncia de Broca.Tambm compreenderemos por que os dados nunca poderiam des-truir suas suposies.

    o CREBRO GRANDE DOS ALEMES

    Gratiolet, numa ltima e desesperada tentativa de salvar suaposio, foi alm de todos os limites. Ousou afirmar que, em mdia,os crebros dos alemes eram 100 gramas mais pesados que os dosfranceses. Essa a melhor prova, dizia ele, de que o tamanho docrebro nada tem a ver com a inteligncia! Broca respondeu comdesdm: "Monsieur Gratiolet quase que apelou para os nossos senti-mentos patriticos. Mas -me fcil mostrar-lhe que pode atribuiralgum valor ao tamanho do crebro sem com isso deixar de ser umbom francs" (1861, pp. 441-442).

    Em seguida, Broca continuou a abrir caminho sistematicamenteatravs dos dados. Em primeiro lugar, a cifra de 100 gramas mencio-nada por Gratiolet provinha de afirmaes infundadas do cientistaalemo E. Huschke. Depois de cotejar todos os dados reais quepde obter, Broca comprovou que a diferena de tamanho entreos crebros alemes e franceses no era de 100, mas de 48 gramas.Ento, aplicou uma srie de correes referentes a fatores no inte-lectuais que tambm incidem no tamanho do crebro. Afirmou, combastante razo, que o tamanho do crebro aumenta proporcional-mente ao tamanho do corpo, decresce com a idade, bem como du-rante longos perodos de sade debilitada (o que explica por que

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    MEDINDO CABEAS

    os crebros dos criminosos executados nas prises so freqente-mente maiores que os de pessoas honestas que morrem de doenasdegenerativas nos hospitais). Na amostragem de Broca, a mdia deidade dos indivduos franceses era de cinqenta e seis anos e meio,enquanto que a dos indivduos alemes era de apenas cinqenta eum. Segundo ele, essa diferena explicava 16 dos 48 gramas queseparavam um grupo do outro, distncia que ficava assim reduzidaa 32 gramas. Em seguida, eliminou da amostragem alem todos osindivduos que haviam tido morte violenta ou tinham sido execu-tados. Ento, o tamanho cerebral mdio de vinte alemes mortosdevido a causas naturais ficou em 1.320 gramas, abaixo da mdiafrancesa de 1.333 gramas. E Brpca ainda no havia introduzido acorreo referente ao tamanho do corpo, cuja mdia era maior entreos alemes. Vive Ia Francet

    Um colega de Broca, de Jouvencel, ao defender a sua posiofrente ao infortunado Gratiolet, argumentou que a maior robustezdos alemes explicava a aparente diferena de tamanho cerebral emseu favor, e algo mais. Sobre o alemo tpico, ele escreveu o seguinte(1861, p. 466):

    Ele ingere uma quantidade de alimentos slidos e de bebidas muitomaior do que a que nos satisfaz. Isto, aliado ao seu consumo de cerveja,muito alto mesmo nas regies produtoras de vinho, explica por queo alemo muito mais corpulento [charnu] que o francs - de talmaneira que a relao existente entre o tamanho do seu crebro ea sua massa total, longe de me parecer superior nossa, parece-me,pelo contrrio, inferior.

    No condeno o uso que Broca faz das correes, apenas assinaloa habilidade com que se valia delas quando sua prpria posio estavaameaada. Deveremos ter este fato em mente ao analisarmos comque empenho tratou de evit-Ias quando descobriu que podiam servirpara impugnar uma de suas concluses preferidas: a pequenez docrebro feminino.

    HOMENS EMINENTES DE CREBRO PEQUENO

    O anatomista americano E. A. Spitzka instou homens eminentesa doarem seus crebros cincia aps a morte. "A mim, a idiade uma autpsia certamente menos repugnante que o processode decomposio cadavrica no tmulo, tal como o imagino" (1907,

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    p. 235). A dissecao dos colegas mortos chegou a converter-se emuma espcie de indstria caseira entre os craneometristas do sculoXIX. Os crebros exerciam seu habitual fascnio, e as listas eramexibidas orgulhosamente, no sem deixar de incorrer nas tradicionaise infames comparaes. (Os importantes antroplogos americanosJ. W. Powell e W. 1. McGee chegaram a fazer uma aposta sobrequem deles possua o maior crebro. Como disse Ko-Ko a Nahki-Poo a respeito dos fogos de artifcio que seriam acesos aps suaexecuo: "Voc no os ver, mas eles estaro l de qualquermodo.")

    De fato, alguns homens de gnio saram-se muito bem. Frente mdia europia situada entre os 1.300 e os 1.400 gramas, o grandeCuvier destacou-se com os seus proeminentes 1.830 gramas. Cuvierencabeou a classificao at que, por fim, Turgueniev rompeu abarreira dos 2.000 gramas em 1883. (Outros ocupantes potenciaisdessa estratosfera, tais como Cromwell e Swift, permanecem no lim-bo por insuficincia de registros adequados.)

    O outro extremo era um pouco mais desconcertante e embara-oso. Walt Whitman conseguiu ouvir a Amrica cantar com apenas1.282 gramas. O cmulo da indignidade foi Franz Josef Gall, umdos fundadores da frenologia - a original "cincia" que se propunhaa estabelecer as diferentes capacidades intelectuais baseando-se notamanho das regies do crebro onde estariam localizadas -, cujocrebro pesou uns minguados 1.198 gramas. (Seu colega J. K. Spurz-heim conseguiu o resultado bastante satisfatrio de 1.559 gramas.)E, embora Broca nunca chegasse a sab-Ia, seu prprio crebro spesava 1.424 gramas, sem dvida um pouco acima da mdia masnada para ser alardeado. Anatole France expandiu a amplitude devariao dos autores famosos em mais de 1.000 gramas quando, em1924, optou pelo extremo oposto da famosa marca de Turgueniev,registrando apenas 1.017 gramas.

    Os crebros pequenos eram problemticos, mas Broca, imp-vido, tratou de encontrar uma explicao para todos eles. Seus pos-suidores haviam morrido muito velhos, eram muito baixos, ou, ainda,tiveram seus crebros mal conservados. A reao de Broca a umestudo de seu colega alemo Rudolf Wagner foi tpica. Em 1855,este ltimo havia obtido uma presa valiosssima: o crebro do grandematemtico Karl Friedrich Gauss. O crebro pesou 1.492 gramas,apenas um pouco acima da mdia mas apresentando uma riquezade circunvolues maior que a de qualquer outro crebro at entodissecado (Fig. 3.5). Estimulado por essa descoberta, Wagner dedi-cou-se a pesar os crebros de todos os professores mortos - e dispos-

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    tos a se deixarem dissecar - de Gttingen, numa tentativa de estabe-lecer a distribuio do tamanho cerebral dos homens eminentes. Napoca em que Broca pelejava com Gratiolet (1861), Wagner j dispu-nha de quatro novas medies. Nenhuma delas representava umaameaa para Cuvier, e duas eram particularmente desconcertantes:a de Hermann, o professor de filosofia, com 1.368 gramas, e a deHausmann, o professor de mineralogia, com 1.226 gramas. Brocacorrigiu a cifra relativa ao crebro de Hermann baseando-se em suaidade e acrescentando-lhe 16 gramas, elevando-a assim em 1,19%acima da mdia: "no muito para um professor de lingstica", reco-nheceu Broca, "mas ainda assim alguma coisa" (1861, p. 167).Nenhuma correo foi capaz de elevar Hausmann at o nvel daspessoas normais, mas, considerando seus venerveis setenta e seteanos, Broca especulou que seu crebro poderia ter sofrido um graude degenerao senil mais pronunciado que o habitual: "O grau dedecadncia que a velhice pode impor ao crebro bastante varivele no pode ser calculado."

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    Fig. 3.5. O crebro do grande matemtico K. F. Gauss ( direita) provocou umacerta perplexidade pois, com apenas 1.492 gramas, era apenas um pouco maior quea mdia. Mas outros critrios vieram em socorro do craniometrista. Aqui, E. A.Spitzka demonstra que o crebro de Gauss apresenta muito mais circunvolues queo de um Papua ( esquerda).

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM MEDINDO CABEAS

    Mas Broca ainda no estava satisfeito. Conseguira justificar aquelesdados numericamente baixos, mas no pudera elev-los a nveis superio-res ao comum. Conseqentemente, para conseguir uma concluso irre-futvel, sugeriu com um toque de ironia que os sujeitos cujo crebroWagner medira depois do de Gauss talvez no fossem to eminentes:

    DEFEITOS NO RITMO DE CRESCIMENTO ATRAVS DO TEMPO

    , No muito provvel que num lapso de cinco anos tenham morridocinco homens de gnio na Universidade de Gttingen ... A toga profes-soral no constitui necessariamente um certificado de genialidade; mes-mo em Gttingen deve haver algumas ctedras ocupadas por homensno muito notveis (1861, pp. 165-166).

    De todos os estudos de Broca, com exceo de sua obra sobreas diferenas entre os homens e as mulheres, nenhum foi mais respei-tado ou recebeu maior ateno que a suposta demonstrao do cresci-mento progressivo do tamanho do crebro concomitante ao desen-volvimento da civilizao europia desde a Idade Mdia at a EraModerna (Broca, 1862b).

    Esse estudo merece uma anlise pormenorizada pois talvez re-presente o caso de concluses determinadas apenas pelas expecta-tivas do investigador. Broca considerava-se um liberal, no sentidode que no condenava os grupos inferiores a permanecerem indefini-damente em sua situao. O crebro feminino havia se degeneradoatravs do tempo por causa da utilizao parcial que lhe fora impostapelas condies sociais; em outras circunstncias, esse crebro podiavoltar a crescer. As raas primitivas no tiveram que se defrontarcom dificuldades suficientemente estimulantes; por outro lado, oscrebros dos europeus haviam crescido regularmente, de acordo coma marcha da civilizao.

    Broca obteve amostras de dimenses considerveis, provenien-tes de trs cemitrios parisienses: um do sculo XII, um do sculoXVIII e outro do sculo XIX. As respectivas capacidades cranianasmdias foram de 1.426, 1.409 e 1.462 em? -cifras que no corroborama firme concluso de que houve um crescimento seguro atravs dotempo. (No consegui encontrar os dados brutos de Broca para subme-t-los a uma verificao estatstica, mas, com 3,5% de diferena mdiaentre a menor e a maior amostra, o mais provvel que no existamdiferenas estatisticamente significativas entre essas trs amostras.)

    Mas como Broca pde chegar to esperada concluso, basean-do-se em dados to limitados, provenientes de apenas trs stios,e sem especificao das margens de variao em cada poca, nemtampouco a um modelo claro de evoluo atravs do tempo? O pr-prio Broca reconheceu que a princpio sentiu-se desapontado: haviaesperado que os dados relativos ao sculo XVIII alcanassem valoresintermedirios (18.62b, p. 106). A resposta, argumentou ele, deveestar na classe social dos sujeitos estudados, pois pelo menos parteda proeminncia social dos grupos que triunfaram em determinadacultura deve-se superioridade intelectual de seus membros. A amos-tra do sculo XII procedia do cemitrio de uma igreja; seus integran-tes, portanto, deviam ter pertencido nobreza. Os crnios do sculoXVIII procediam de uma vala comum. Por outro lado, a amostrado sculo XIX era mista: noventa crnios provinham de tumbas indi-

    Neste ponto, Broca desistiu de sua empresa: "O assunto delicado",escreveu ele (1861, p. 169), "e no devo mais insistir nele."

    CRIMINOSOS DE CREBRO GRANDE

    o grande tamanho dos crebros de vrios criminosos foi umafonte de preocupao permanente para os craniometristas e estudio-sos da antropologia criminal. Broca inclinava-se a rejeitar essas cifrasafirmando que a morte repentina por execuo impede a diminuiodo tamanho cerebral observvel em muitas pessoas honestas subme-tidas a longos perodos de enfermidade. Alm disso, a morte porenforcamento tendia a produzir uma congesto do crebro, o queresultava em um aumento esprio de seu peso.

    No ano da morte de Broca, T. Bischoff publicou seu estudosobre o crebro de 119 assassinos, homicidas e ladres. A mdiasuperava em 11 gramas a dos homens honestos, sendo que 14 deleschegavam a 1.500 gramas, e 5 superavam os 1.600 gramas. Por outrolado, apenas trs homens de gnio podiam orgulhar-se de pesos supe-riores a 1.600 gramas, enquanto os 1.809 do assassino Le PelIey de-vem ter feito tremer o esprito de Cuvier. O crebro feminino maispesado (1.564 gramas) pertencia a uma mulher que matara o marido.

    Paul Topinard, o sucessor de Broca, considerou esses dados comperplexidade e chegou concluso de que o excesso de bem poderesultar em mal para certas pessoas. O nvel exigido para o crimerealmente inspirado pode ser to alto quanto o que requer o virtuo-sismo profissional: quem decidir entre Moriarty e Holmes? Estafoi a concluso de Topinard: "Parece estar provado que certa propor-o de criminosos levada a se desviar das normas sociais vigentesgraas exuberncia de sua atividade cerebral; conseqentemente,pelo fato de possurem um crebro grande ou pesado" (1888, p. 15).

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    viduais - mdia de 1.484 cm ' - e trinta e cinco de uma vala comum- mdia de 1.403 cm '. Broca afirmou que, se as diferenas declasse social no podiam explicar a distncia existente entre os valoresobtidos e os esperados, ento os dados eram ininteligveis. Para ele,"inteligvel" significava "capaz de provar a existncia de um cresci-mento seguro atravs do tempo", ou seja, a proposio que essesdados deviam supostamente provar, e no sobre a qual deveriamse fundamentar. Mais uma vez, Broca anda em crculos:

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    Sem esta [diferena de classe social], teramos de acreditar quea capacidade craniana dos parisienses realmente diminuiu aps o sculoXII. Muito bem, durante esse perodo ... o progresso social e intelectualfoi considervel, e, embora ainda no estejamos seguros de que o cre-bro cresa como conseqncia do desenvolvimento da civilizao, indubitvel que ningum se dispor a pensar que ele pode ter comoconseqncia a diminuio do tamanho do crebro (1862b, p. 106).

    Mas a diviso da amostra do sculo XlX em classes sociais feitapor Broca trouxe-lhe tanto certezas quanto incertezas, pois agoraele tinha duas amostras procedentes de valas comuns, a primeiradas quais apresentava uma capacidade craniana mdia de 1.409 em:'- sculo XVIII -, enquanto que a outra apresentava uma mdiade 1.403 cm' - sculo XIX. Mas Broca no se deu por vencido:argumentou que a vala comum do sculo XVIII continha esqueletosde indivduos pertencentes a uma classe superior. Naqueles tempospr-revolucionrios, um homem tinha de ser realmente rico ou nobrepara repousar no cemitrio da igreja. No sculo XIX, os despojosdos pobres ofereceram uma mdia de 1.403 crrr'; cem anos antes,os despojos pertencentes a indivduos de boa raa haviam apresen-tado uma mdia aproximadamente similar.

    Cada nova soluo propunha dificuldades adicionais para Broca.Agora que se comprometera a realizar uma diviso por classes sociaisdentro de cada cemitrio, tinha de admitir que os dezessete crniosadicionais provenientes do ossrio do cemitrio do sculo XIX davamuma mdia mais elevada que a dos crnios dos sujeitos de classemdia e alta enterrados em tmulos individuais: 1.517 cm ' contra1.484 em". Como era possvel que crebros pertencentes a corposno reclamados, abandonados ao Estado, suplantassem a nata dasociedade? Broca realizou uma srie de inferncias, cada qual maisprecria: os necrotrios situavam-se na margem do rio e, assim, pro-vavelmente os corpos que a chegavam pertenciam a pessoas afoga-das; muitas das pessoas que se afogam so suicidas; muitos suicidasso desequilibrados mentais; muitos desequilibrados mentais, como

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    MEDINDO CABEAS

    os criminosos, apresentam crebros surpreendentemente grandes. Comum pouco de imaginao, nada pode ser verdadeiramente anmalo.

    As partes anterior e posterior do crnio

    Fale-me desse novo cirurgio, o Sr. Lydgate. Disseram-me que ele jovem e maravilhosamente inteligente; sem dvida parece s-lo, comessa testa to notvel.

    GEORGE ELlOT, Middlemarch (1872)

    A medio do tamanho global, por mais til e decisiva que fosseem termos gerais, estava longe de esgotar o alcance da craniometria.Desde a poca do apogeu da frenologia, foi atribudo um valor espec-fico a cada parte do crebro e do crnio, o que fornecia um conjuntode critrios subsidirios para a hierarquizao dos grupos humanos.(Broca, agora no como craniometrista mas como mdico, realizounesse terreno sua mais importante descoberta. Em 1861, desenvolveuo conceito de localizao cortical das funes ao' descobrir que umpaciente afsico apresentava uma leso na circunvoluo frontal es-querda, hoje conhecida por circunvoluo de Broca.)

    A maior parte desses critrios subsidirios pode ser reduzidaa uma nica frmula: a parte anterior melhor. Broca e seus colegasacreditavam que as funes mentais superiores se localizavam nasregies anteriores do crtex, e que as reas posteriores se ocupavamdas funes mais vulgares, embora cruciais, do movimento involun-trio, da sensao e da emoo. As pessoas superiores deveriamter mais matria na parte anterior que na posterior. J vimos queBean compartilhava dessa crena quando produziu seus dados esp-rios a respeito das partes anterior e posterior do corpo caloso nosbrancos e nos negros.

    Broca utilizou com freqncia a distino entre as partes anteriore posterior do crebro, especialmente quando desejava safar-se desituaes incmodas provocadas por seus dados. Aceitava a classifi-cao que Gratiolet havia feito dos grupos humanos, dividindo-osem "races frontales" (brancos, com lbulos frontal e anterior maisdesenvolvidos), "races parietales" (monglicos, com lbulos parietaise mdios mais proeminentes) e "races occipitales" (negros, commaior massa cerebral na parte posterior). Com freqncia, fustigouduplamente os grupos inferiores por apresentarem crebros menorese maior desenvolvimento posterior dos mesmos: "Os negros, princi-palmente os hotentotes, possuem um crebro mais simples que o

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  • A FALSA MEDIDA DO HOMEM

    nosso, e a relativa pobreza de suas circunvolues pode ser observadaprincipalmente nos seus lbulos frontais" (1873a, p. 32). Segundoele, uma prova mais direta era o fato de os habitantes do Taiti defor-marem artificialmente as reas frontais de certos meninos para queas partes posteriores ficassem bojudas. Esses homens tornavam-sevalentes guerreiros, mas seu estilo jamais se comparava ao dos herisda raa branca: "A deformao frontal produz paixes cegas, instintosferozes e coragem animalesca, que eu chamaria de coragem ocipital.No devemos confundi-Ia com a verdadeira coragem, a coragem frontal,que podemos chamar de coragem caucsica" (1861, pp. 202-203).

    Broca alegou tam