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2023 CABRIÃO: A CRÍTICA AOS“VINAGRES” E “BEATAS” Danilo A. ChampanRocha Universidade Estadual de Maringá (UEM) Resumo: O Brasil oitocentista foi palco de intensas disputas políticas desde a Abertura dos Portos com a chegada da Família Real na colônia em 1808. A penetração de mercadorias inglesas, juntamente com os ideais defendidos pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa, foram os responsáveis pela Crise do Sistema Colonial. Em paralelo aos debates entre os diferentes grupos políticos em defesa de diferentes modelos de governosurgiu,em alguns centros provinciais da América Portuguesa, uma imprensa ativista. Mesmo após a emancipação e a implantação de uma monarquia constitucional, as disputas entre defensores do federalismo, do republicanismo e de uma monarquia centralizadora perpetuaram-se ao longo do Brasil Império.Em conjunto a estas disputas, a imprensa desempenhou um importante papel como plataforma política. Neste contexto, o objetivo deste trabalho é analisar as relações de poder na província de São Paulo na década de 1860 entre os diferentes segmentos sociais que compunham a sociedade brasileira. Para isso, utilizei como fonte o jornal domingueiro Cabriãode Américo de Campos, Ângelo Agostini e Antônio Manoel dos Reis. As críticas do hebdomadário ao regime vigente com as denuncias dos abusos das autoridades políticas e do sistema burocrático imperial a partir de temas do cotidiano como, por exemplo, o recrutamento para a Guerra do Paraguai e a escravidão, evidenciou como a Política era pensada por meio das relações pessoais e os arranjos formados segundo os interesses privados. Palavra-chave: Brasil Império; Imprensa Ilustrada; Cabrião.

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2023

CABRIÃO: A CRÍTICA AOS“VINAGRES” E “BEATAS”

Danilo A. ChampanRocha

Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Resumo: O Brasil oitocentista foi palco de intensas disputas políticas desde a Abertura dos Portos com a chegada da Família Real na colônia em 1808. A penetração de mercadorias inglesas, juntamente com os ideais defendidos pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa, foram os responsáveis pela Crise do Sistema Colonial. Em paralelo aos debates entre os diferentes grupos políticos em defesa de diferentes modelos de governosurgiu,em alguns centros provinciais da América Portuguesa, uma imprensa ativista. Mesmo após a emancipação e a implantação de uma monarquia constitucional, as disputas entre defensores do federalismo, do republicanismo e de uma monarquia centralizadora perpetuaram-se ao longo do Brasil Império.Em conjunto a estas disputas, a imprensa desempenhou um importante papel como plataforma política. Neste contexto, o objetivo deste trabalho é analisar as relações de poder na província de São Paulo na década de 1860 entre os diferentes segmentos sociais que compunham a sociedade brasileira. Para isso, utilizei como fonte o jornal domingueiro Cabriãode Américo de Campos, Ângelo Agostini e Antônio Manoel dos Reis. As críticas do hebdomadário ao regime vigente com as denuncias dos abusos das autoridades políticas e do sistema burocrático imperial a partir de temas do cotidiano como, por exemplo, o recrutamento para a Guerra do Paraguai e a escravidão, evidenciou como a Política era pensada por meio das relações pessoais e os arranjos formados segundo os interesses privados. Palavra-chave: Brasil Império; Imprensa Ilustrada; Cabrião.

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Introdução

Em 1859, Ângelo Agostini (1843-1910) chegou à cidade do Rio de Janeiro,

lugar onde faria história como um importante caricaturista e abolicionista,

principalmente, após a fundação e a sua participação nas publicações da Revista

Ilustrada (1876-1888). Pouca coisa é conhecida sobre Agostini antes de sua

chegada ao Brasil, constituindo uma lacuna na vida do autor. Até o momento, os

estudos feitos sobre o artista destacaram a passagem por Paris no período de sua

adolescência, momento na qual teve os primeiros contatos com a pintura e o

desenho1. Natural de Piemonte, região norte da Itália, Agostini mudou-se para a

França após a morte de seu pai, Antônio Agostini, indo morar com a sua avó. Não se

sabe exatamente o motivo da viagem para o Brasil, porém, a informação

consolidada no meio acadêmico é a de que Agostini, aos 17 anos de idade, aportou

no Rio de Janeiro, junto com sua mãe, a cantora lírica Raquel Agostini,

acompanhado do jornalista Antônio Pedro Marques de Almeida, seu padrasto2.

Durante sua curta estadia no Rio de Janeiro, Marcelo Baladan aponta que

Agostini não desempenhou atividades ligadas à imprensa, mas sim trabalhou como

capataz nas obras da ferrovia Mauá3. Poucos meses após, Agostini mudou-se para

São Paulo, onde assumiu a profissão de pintor-retratista, aprimorando aos poucos o

seu traço artístico com os retratos a óleo. Ainda segundo o autor, esta fase em que

Agostini trabalhou em uma oficina fotográfica, foi importante para que ele adquirisse

noções básicas para reproduzir ambientes, expressões faciais e poses, contribuindo

para a sua formação como caricaturista e na sua inserção na imprensa ilustrada.

Agostini mantêm a profissão de retratista mesmo com a fundação do jornal

domingueiro Diabo Coxo, em 1864, na qual foi responsável pela ilustração do

periódico até o fim de sua circulação. Isso demonstra a fragilidade econômica do

piemontês ao envolver-se em diferentes tipos de trabalhos para sobreviver no Novo

1Entre os autores que adotaram esta perspectiva, podemos citar: SODRÉ, Nelson Werneck. História

da Imprensa no Brasil. 4. Ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999; BALADAN, Marcelo. Poeta do Lápis: A trajetória de Angelo Agostini no Brasil Imperial – São Paulo e Rio de Janeiro – 1864-1888. Tese Doutorado. São Paulo: UNICAMP, 2005; GALLOTTA, Brás Ciro. São Paulo aprende a rir: a imprensa humorística entre 1839-1876. Tese Doutorado. São Paulo: PUC, 2006; OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de. Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal (1864-1910). Tese Doutorado. São Paulo: USP, 2006; SILVA, Rosângela de Jesus. A crítica de arte de Angelo Agostini e a cultura figurativa do final do segundo reinado. Dissertação Mestrado. São Paulo: UNICAMP, 2005. 2SILVA, Rosângela de Jesus, op. cit., p. 15.

3BALADAN, Marcelo, op. cit., p. 62.

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Mundo, desde a sua estadia no Rio de Janeiro, além de também indicar o baixo

retorno financeiro que a folha proporcionava para os redatores.

Na sua primeira experiência na imprensa, como ilustrador no jornal Diabo

Coxo é possível observar o traço rudimentar de um artista ainda em processo de

aprendizagem no manuseio com a pedra litográfica, ilustrando ambientes de forma

simplista, com poucos detalhes e contornos na sua forma. Entretanto, desde o início

de sua carreira, destaca-se em sua obra a influência estética dos padrões artísticos

europeus na medida em que o ambiente e as pessoas são retratados conforme as

proporções físicas naturais, sem qualquer deformação dos personagens

estampados. Talvez por este motivo, muitos cronistas do século XX, compararam os

trabalhos de Agostini aos de Rugendas e Debret, por descreverem de forma nítida

em suas obras as cenas do cotidiano brasileiro. Dessa forma, seus desenhos são

considerados caricaturas pela forma cômica e satírica em que o assunto era

abordado, sem desobedecer às dimensões e as características do ambiente e das

pessoas ilustradas.

O Diabo Coxo era impresso na Tipografia e Litografia Alemã de Henrique

Schroeder, podendo ser adquirido o número avulso por 500$ réis ou pela assinatura

de 12 exemplares por 4$000 réis para a capital e 5$000 réis para o interior4.

A redação desse jornal, constituído de quatro páginas de ilustrações e quatro

páginas de texto, foi assumida pelo abolicionista Luiz Gama (1830-1886),

possivelmente um dos disseminadores dos ideais antiescravistas na qual Agostini

teve contato, contribuindo para a formação e postura crítica que o italiano manteve

contra um dos principais pilares do sistema colonial. O hebdomadário contava

também com a participação de Sizenando Barreto Nabuco de Araújo (1842-1892),

irmão de Joaquim Nabuco, e obviamente, a de Ângelo Agostini com as ilustrações.

A folha possuía uma posição política de crítica à ordem social vigente,

satirizando as personalidades regionais da época pertencentes à monarquia. A

inserção de conteúdos que denunciavam as práticas abusivas de senhores locais, a

crítica ao governo após as medidas excessivas usadas no recrutamento para a

Guerra do Paraguai, a sátira dos costumes e hábitos observados no retrato do dia-a-

dia da provinciana cidade paulista, além de outros aspectos, constituíram a principal

razão para o fim da circulação do jornal. A pressão de autoridades locais contra as

4 Ibidem, p. 63.

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publicações da folha e as dificuldades financeiras tornou impossível a continuidade

do semanário, encerrando-se assim em dezembro de 1865.

Em 30 de setembro de 1866, Agostini juntamente com Américo de Campos e

Antônio Manoel dos Reis, publicavam um novo jornal domingueiro na cidade de São

Paulo: Cabrião. O semanário circulou até 29 de setembro de 1867 e foi impresso

durante esse período em duas tipografias. A primeira foi a Tipografia Imparcial de

Joaquim Roberto de Azevedo Marques, responsável pela produção do Cabrião até o

13º volume. Enquanto a segunda foi a Tipografia Alemã de Henrique Schroeder, a

mesma tipografia usada para a impressão do Diabo Coxo e que foi incumbida da

impressão do periódico do 14º número até o último5. Não se sabe ao certo o motivo

da troca, mas a mudança de tipografia poderia estar relacionada com a posição

política da folha e a cisão interna do Partido Liberal.

Quanto à formatação, o hebdomadário era dividido em oito páginas,

organizado de forma semelhante ao Diabo Coxo, com quatro páginas de caricaturas,

enquanto as demais quatro páginas eram ocupadas por textos escritos, destinados a

uma série de conteúdos, como anúncios, notícias do cotidiano da vida urbana,

poesias, entre outros assuntos. A diferença entre o Cabrião e o Diabo Coxo estava

apenas em suas dimensões, sendo o primeiro um pouco menor, com 17 x 22 cm

comparado ao segundo com 18 x 26 cm.

Baladan observe que um exemplar do Cabrião poderia ser obtido em números

avulsos por 500$ réis ou pela assinatura anual que custaria na capital 17$000 réis e

nas demais localidades 19$000 réis6. Porém, a anuidade da folha só obteve este

preço a partir do segundo trimestre, custando ao longo do primeiro trimestre 13$000

réis para a capital e 14$000 para a província, aumentando o valor apenas com a

mudança das impressões do jornal para a litografia de H. Schroeder. De toda forma,

as assinaturas podiam ser feitas na Rua do Rosário e saiam em média três vezes

mais caro que os demais jornais da época7.

5SANTOS, Délio Freire dos. Introdução. In: AGOSTINI, Ângelo; CAMPOS, Américo de; REIS, Antônio

Manoel dos. Cabrião: 1866-1867. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado: Arquivo do Estado, 1982. 6BALADAN, Marcelo, op. cit., p. 93.

7OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de. Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à

Capital Federal (1864-1910). Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 2006, p. 50.

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O Cabrião

A fundação em São Paulo do Diabo Coxo em 1864 e o Cabrião em 1866

significou um marco para a imprensa paulista. A incorporação de novos assuntos,

não apenas referentes a política, revolucionou a configuração dos periódicos.

Temas como a moda, a arte, os costumes e o cotidiano, até então desprezados pela

imprensa, foram discutidos pelos hebdomadários de forma satírica como uma crítica

para aquilo em que os redatores consideravam os vícios da sociedade.

O Cabrião, assim como o Diabo Coxo, também foi pioneiro no uso de

caricaturas e ilustrações em São Paulo. Nenhum periódico da província havia

inserido ilustrações em seus jornais, resultando numa grande novidade e num

sucesso a fundação do Diabo Coxo e do Cabrião. Apenas a Semana Ilustrada

(1860-1876) de Henrique Fleiuss, fundado na Corte e precursor da imprensa

ilustrada no Brasil, apresentava desenhos semelhantes ao de Agostini nos jornais

paulistas. A Semana Ilustrada forneceu o padrão que seria adotado na imprensa

ilustrada a partir do seu grande sucesso logrado, fomentando e influenciando uma

geração de periódicos ilustrados a partir da década de 1860, inclusive o Cabrião e o

Diabo Coxo8. Esta influência pode ser observada com uma comparação das

semelhanças entre ambos periódicos: O Moleque e o Dr. Semana, personagens

fictícios do jornal carioca, equivalem ao Pipelet e o Cabrião do hebdomadário

paulista. Da mesma forma, a organização do jornal da Corte em oito páginas no

total, sendo quatro de texto e quatro de ilustrações, é idêntica à composição do

Cabrião.

O atraso na instalação de uma imprensa ilustrada e a inexistência de uma

imprensa sólida com uma produção contínua e de longa duração em São Paulo,

durante a primeira metade do século XIX, expressou o atraso econômico da região.

O status de primeira grandeza e a opulência da província, atingidos no período da

produção cafeeira, tornou-se uma realidade apenas a partir de 18709. Durante o

período colonial, a economia local de São Paulo estava voltada à produção de

8 OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de, op. cit., p. 25.

9 Na virada do século XIX, entre 1890 e a década de 1900, São Paulo tornou-se o principal Estado

da República com o aumento de cinco vezes da produção cafeeira. Para aprofundar a leitura sobre a cafeicultura em São Paulo, ler: STOLCKE, Verena. Cefeicultura: homens, mulheres e capital (1850-1980). São Paulo: Brasiliense, 1986, p. 53.

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gêneros alimentícios e ao comércio de animais com baixa expressão nas

exportações a nível nacional e com uma população majoritariamente rural10.

No Cabrião, os autores fazem menção sobre o atraso da região e os

comentários de época sobre a impossibilidade da instalação de um “jornal de

caricaturas em São Paulo” por ser a “terra muito atrasada”, não tendo o “necessário

desenvolvimento para tal coisa”11. De forma altiva, o hebdomadário comemorou o

fracasso das previsões e atribuiu o sucesso da folha ao terreno fértil encontrado na

opinião pública. Porém, este “terreno fértil” composto por uma demanda crescente

por informações e cultura foi uma consequência da ampliação urbana iniciada nos

anos finais da década de 1860 com as estradas de ferro. Dessa forma, o

Cabriãousufruiu de condições privilegiadas na qual seus antecessores não tiveram,

estando inseridos no limiar das transformações entre uma sociedade patriarcal e a

intensificação do viver urbano, com o nascimento de novos costumes e valores no

seio da população.O relato do cotidiano do Cabriãoe a incorporação de questões

observadas a partir de sua análise sobre a população da província possibilitou o

conhecimento do início do processo de mudanças culturais, na passagem da década

de 1860 para a de 1870.

No decorrer de suas publicações, as denúncias do Cabrião atingiam diversos

grupos sociais da cidade, aumentando a oposição contra o periódico. Porém, como

prometido na apresentação da folha no primeiro número, nenhum grupo foi tão

criticado pelo Cabriãoquanto os jesuítas e os conservadores. Este primeiro grupo,

geralmente descrito pelo periódico como um obstáculo ao progresso da civilização e

por alcunhas chistosas como “barbados” e “barrigudos”, são um dos principais temas

discutidos e criticados no hebdomadário. Em uma caricatura de capa no nº 06,

algumas cozinheiras desempregadas com a retirada dos estudantes da capital no

período das férias, pedem para o Cabriãoindicar alguns possíveis locais de trabalho.

Sem hesitar, o Cabriãoaconselhou as cozinheiras a dirigir-se ao Seminário, pois lá,

encontrariam uma “cozinha decente”12. No mesmo número, o Cabriãopublicou um

anúncio fictício informando a necessidade de um cozinheiro francês no Seminário13.

10

Sobre a economia de gêneros de subsistência para o abastecimento dos núcleos mineradores da Capitania de Minas Gerais, ler: ANDREONI, João António. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1987. 11

Cabrião, 1982, nº 13, p. 98. 12

Cabrião, 1982, nº 06, p. 41. 13

Ibidem, p. 47.

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Nessas duas passagens, observamos a relação satírica que a folha delineava entre

os jesuítas e as refeições ao representarem não apenas as ótimas condições de

vida dos religiosos, alegado pela folha com a fartura de vinhos e alimentos em suas

mesas, mas também em alusão à busca insaciável pela realização dos seus

interesses pessoais. Dessa forma, a barriga significava o egoísmo destes indivíduos,

estando as suas ações condicionadas aos seus “umbigos”.

A rivalidade entre o semanário e os jesuítas e simpatizantes atingiram o auge

após a publicação, no nº 06, da caricatura do Dia de Finados. A ilustração retratou o

cemitério da Consolação em um ambiente festivo composto por esqueletos e

visitantes consumindo bebidas e charutos14. No número seguinte, uma caricatura

demonstra o alvoroço causado pela ilustração do Dia dos Finados na época.

Agostini satirizou as possíveis reações dos mortos diante da ilustração: “os

sensíveis” suicidavam-se, enquanto “os valentes” agrediam o Cabrião e o Pipelet e

“os pobres de espírito” denunciavam a publicação15. Quanto aos “pobres de

espírito”, a folha referia-se indiretamente a Cândido Silva, proprietário do Diário de

São Paulo, responsável pela denúncia feita contra o Cabrião, sob a alegação da

caricatura do Dia de Finados ter sido um atentado a religião16.

Na caricatura do nº 09 da folha, fantasmas são ilustrados assustando o

Cabrião à noite com a legenda de que “os mortos continuam a cabrionar”, tornando-

se um indício de como a polêmica permanecia em discussão na capital17. Apenas no

nº 12, o ocorrido teve um desfecho com o Cabriãosendo absolvido das acusações

pelo promotor público, não considerando a publicação uma afronta a moral e os

bons costumes18. Ironicamente, a folha publicou na caricatura de contracapa do

mesmo número uma ilustração de um baile dado aos mortos em comemoração ao

fim do processo. O Cabrião, sentado em uma poltrona no centro do salão, observa

os esqueletos bebendo e dançando, enquanto, Pipelet segura uma bandeira

protestando contra os “delatores”19.

Entretanto, os conflitos entre os redatores e os “seguidores do jesuitismo” não

pararam. Na caricatura do nº 16, Agostini retratou a postura de um “liberal cascudo”

14

Ibidem, p. 48. 15

Cabrião, 1982, nº 7, p. 52. 16

Ibidem, p. 54. 17

Cabrião, nº 09, p 72. 18

Cabrião, nº 12, p. 90. 19

Ibidem, p. 96.

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com a aproximação das eleições. Diante de um “horizonte entroviscado”, o

candidato acende uma vela a S. Miguel e a Satanás para o sucesso nas eleições20.

Novamente, as publicações do jornal tomaram fisionomias drásticas. Segundo os

redatores no nº 17, a publicação do último número da folha “foi recebida com

entusiasmo pelas beatas e pelos meninos”, sendo todos os exemplares comprados

pelos jesuítas de Itu e retirados de comercialização. Em seguida, fizeram um

“conclave secreto”, excomungando as “folhinhas” e considerando “heréticos todos os

fiéis que as comprassem e lessem”21. Este tipo de discurso religioso, além de

representar um golpe financeiro para a folha com a diminuição de assinantes, indica

também as tentativas da velha ordem social em extinguir a circulação de ideias

contrárias ao status quo vigente. A preocupação em combater os discursos da folha

também denota o impacto que estas ideias tinham na época e o poder de

transformação contido em seus desenhos e textos.

A religião pode ser pensada, para entender melhor as relações de

sociabilidade da época e as críticas do Cabrião, como um artifício político de

mobilização do eleitorado e da sociedade em geral. Na caricatura de capa do nº 23,

o Cabrião criticou justamente esta interferência política da instituição religiosa por

meio do diálogo entre o Cabrião e o “reverendíssimo”. O Cabrião exige que o

reverendo “castigue severamente os padrecos politicões do bispado”, alegando que

“o padre deve ser somente padre”, perdendo a “dignidade de seu cargo” ao “meter-

se em traficâncias políticas”22.

O jornal ilustrado deixa evidente por meio das “Instruções” como o apoio

do clero às autoridades políticas foi uma via de mão dupla, formada a partir da troca

de favores entre os grupos envolvidos. O Cabriãosatirizou esta parceria, assentado

em interesses pessoais, em suas “Instruções secretas dos padres da Companhia de

Jesus”. As “Instruções” foram textos irônicos publicados em vários capítulos no

semanário e era constituído como uma espécie de manual de conduta para os

jesuítas ingressados recentemente na Companhia. Portanto, no nº 17, as

“Instruções” exigiam que por meio do poder de autoridades políticas “há dê-se

buscar o favor destes para contra os nossos adversários”. Também “deve-se usar da

sua autoridade para adquirir grandes empregos e que tacitamente se servirá com os

20

Cabrião, nº 16, p. 125. 21

Cabrião, 1982, nº 17, p. 134. 22

Cabrião, 1982, nº 23, p 177.

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segredos de seus nomes para a aquisição de bens temporais”23. Como podemos

observar, as alianças eram formadas a partir de interesses individuais e não apenas

por convicções políticas e religiosas. Apesar das passagens referirem-se

restritamente aos jesuítas, este trabalho parte do pressuposto de como esta prática

estava presente também no clero nacional e, sobretudo, nas alianças e decisões

políticas na época.

Dessa forma, muitas das críticas consideradas à religião devem ser

compreendidas como uma condenação à conduta de pessoas ligadas à religião. O

clero nacional e os jesuítas estavam inseridos no núcleo familiar de grande parte da

população livre da província, ligados politicamente em sua maioria à monarquia,

influenciando as decisões tomadas pelos patriarcas e mantendo a estrutura política

e social. Uma das passagens que demonstrou o respeito dos redatores a religião

está presente no nº 07, publicado inclusive em meio ao conturbado processo sofrido

pelo Cabriãocom a publicação da caricatura do Dia de Finados no nº 06. Os

responsáveis pela folha condenam a conduta “desdenhosa e desrespeitosa” de

ateus diante da procissão de domingo ocorrido na semana anterior. O

Cabriãosolicitou a intervenção da polícia nesses casos para “fazer respeitar a

liberdade de consciência em matéria de religião”. No entanto, como o próprio

semanário alertou, não era do interesse do Cabriãoque esses indivíduos aderissem

“o sórdido e grosseiro beatério pregado pelos ardilosos jesuítas”, mas sim o meio

termo, entre a racionalidade e a religião24.

Conclusão

A manutenção da monarquia absolutista no Brasil após a independência

teve como ponto principal, assegurar a unificação do território correspondente ao

período colonial, além de evitar qualquer possibilidade de convulsões sociais com a

manutenção da monarquia e a preservação do status quo. Dessa forma, com

poucas exceções, desde os primórdios da formação do Brasil emancipado, houve a

priorização dos interesses pessoais em detrimento dos interesses públicos,

independente da posição política dos grupos partidários.

23

Cabrião, 1982, nº 17, pp. 130-131. 24

Cabrião, 1982, nº 7, p. 54.

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Para discutir os diferentes projetos de estado, a elite política utilizou a

imprensa como uma ferramenta de mobilização da opinião dos homens livres da

época, sendo reprimidos em alguns períodos, no momento em que sua crítica

ameaçasse a ordem social vigente. Nesse contexto, Ângelo Agostini fundou,

juntamente com Américo de Campos e Antônio Manoel dos Reis, o Cabrião (1866-

1867)na província de São Paulo. Considerando-se um liberal, Agostini criticou

severamente a conduta política presente na capital paulista por meio de suas

caricaturas, utilizando em seus traços, uma linguagem satírica e cômica, que o

tornou um dos pioneiros deste gênero no Brasil.

Em suas críticas, Agostini observou como os interesses particulares de

autoridades políticas e administrativas no Segundo Reinado permeavam as decisões

públicas tomadas dentro das instituições políticas e jurídicas no Brasil Império.

Consciente das relações fraudulentas e da corrupção entre as elites políticas, o

Cabriãotornou-se um porta-voz na capital de São Paulo, ao denunciar um regime

déspota centrado na figura do Imperador D. Pedro II.

Além de assuntos políticos, o periódico inovou com a incorporação de

temas como a arte, a moda, os costumes e a religião. Em todos esses assuntos, o

Cabriãoadotou uma postura crítica, desagradando boa parte dos grupos sociais da

capital. Cada vez mais isolado, principalmente por suas denúncias com relação às

autoridades e a estrutura política, o Cabrão não conseguiu resistir às pressões

políticas e os problemas financeiros da folha, interrompendo sua produção em

setembro de 1867.

Bibliografia

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GALLOTTA, Brás Ciro. São Paulo aprende a rir: a imprensa humorística entre 1839-1876. 2006. 320 f. Tese (Doutorado em História Social) – Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, São Paulo, 2006.

OLIVEIRA, Gilberto Maringoni de. Angelo Agostini ou impressões de uma viagem da Corte à Capital Federal (1864-1910). 2006. 335 f. Tese (Doutorado em História Social) – Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, USP, São Paulo, 2006.

SANTOS, Délio Freire dos. Primórdios da imprensa caricata paulistana: o Cabrião. In: AGOSTINI, Ângelo; CAMPOS, Américo de; REIS, Antônio Manoel dos. Cabrião: 1866-1867. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1982.

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