Caderno 2 O Globo 14 08 2011 - Espetáculo Pra Nhá Terra
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2 ● SEGUNDO CADERNO Domingo, 14 de agosto de 2011O GLOBO.
O GLOBO ● SEGUNDO CADERNO ● PÁGINA 2 - Edição: 14/08/2011 - Impresso: 13/08/2011 — 01: 34 h PRETO/BRANCO
SEGUNDA-FEIRAFelipeHirsch
QUARTA-FEIRAFranciscoBosco
QUINTA-FEIRAPELO MUNDO
Eduardo Graça,de Nova YorkEduardo Levy,de Los Angeles
SEXTA-FEIRAHermanoVianna
SÁBADOJosé MiguelWisnik
DOMINGOCaetanoVeloso
TERÇA-FEIRAPELO MUNDO
Cristina Ruiz,de Berlim
CAETANO VELOSOMomentos de glória
Quempoderá lembrar com nitidez? Eu, sim. Aome-nos algumas imagens. Mas certas informações queorientariam o leitor só poderiam surgir como resul-tado de pesquisa — coisa que não fiz nem para es-crever “Verdade tropical”. O mero pensamento deque Guilherme Araújo já morreu produz imediata-mente a sensação de que ninguém poderá me aju-dar a reconstituir o fato que quero narrar. Mas tal-vez a banda que tocava comigo fosse compostados baianos Perinho e Moacir Albuquerque, Tuzéde Abreu, Enéas Costa e Bira. E, quem sabe, AminKader pode ter sido o meu assistente nessa tem-porada. Tudo me veio à mente quando participei,na Sala São Paulo, do show dos 40 anos de carreirade Chitãozinho e Xororó. A uma certa altura, a du-pla cantou “Tenho ciúme de tudo”.
Há um travesti chamadoDitinha bem vivo em minhamemória, e, por isso, tendoa pensar que foi Ditinhaquem protagonizou a cenaque preciso descrever. Masnão me sinto seguro de quetenha sido mesmo ela, poisouço com clareza a voz deWaly repetindo seu nome —e não me parece que Walyestivesse envolvido na pro-dução desse show. É possí-vel que, mesmo não partici-pando da produção, ele ti-vesse passado uns dias emSão Paulo e assistido aoshow em que Ditinha entra-va no palco? É. Me pareceque assim foi? Não. Devoperguntar a Amin, a Perinho,a Tuzé. No entanto, queroescrever agora, no calor darecordação. Telefonar paraum deles (só tenho o telefo-ne de Tuzé) quebraria maiso ritmo do meu texto do quecontar aqui que há o riscode isso acontecer. Será quefaltarão coisas cruciais: onome do teatro, o título doshow, o nome do hotel, oano exato?De repente, Regina Casé
lembrou aqui o nome do tea-tro sob o Minhocão: Teatrodas Nações. No hotel, quenão ficava longe, passei umanoite inteira con-versando comNelson Cavaqui-nho, que veio aomeu quarto, can-tou, chorou — erepetiu muitasvezes em voz bai-xa o seu grandesegredo: a fé emDeus. Esse foi ummomento de gló-ria. O outro, quequero narrar, meveio à memóriaquando ouvi Xo-ro ró e Ch i t ãocantarem o bolero que foi su-cesso deOrlandoDias. Eu es-tava na plateia da Sala SãoPaulo, considerando a im-portância dessa dupla cam-pineira em nossa história.Também lamentando quemetenham dito, na época doshow “A foreign sound”, queeste deixara de ser gravadoem DVD porque o então dire-tor da Osesp se opunha àapresentação de música po-pular ali. Nunca averiguei —e não creio que ele estivesseerrado. Só sei que o projeto“A foreign sound” teria evi-denciado sua significação seo que foi feito no palco, comorquestra sob Jaques More-lenbaum, tivesse sido regis-trado e distribuído mundial-mente. Não rolou. Acho queera o carma do Brasil: umamirada pretensiosa sobre ocancioneiro americano esbo-çada por um brasileiro aindanão podia ser reconhecidacom respeito pela percepçãoglobal. O site Pitchfork dedi-cou uma crítica inacredita-velmente inteligente ao dis-co, mas este não tem presen-ça no imaginário internacio-nal. Se o DVD do show tives-se sido feito, tudo podia ga-nhar algum sentido. Mas nãoera hora. E o disco talvez não
mereça nem mesmo a aten-ção que o Pitchfork lhe deu.De todo jeito, eu era levado apensar na ironia de estar alipara cantar na gravação deumDVD demúsica tão popu-lar. E de uma vertente pelaqual torci muito quando elaainda era desprezada pelasplateias do culturalmentedominante litoral.“Tenho ciúme de tudo” le-
vou meus pensamentos auma voragem. Esse boleroera o exemplo mais espalha-fatoso do fenômeno de mas-sas Orlando Dias. Dias rasga-va o próprio paletó, gritava“Obrigado, minhas fãs”, ajoe-lhava-se. Era o culto a Orlan-do Silva exibindo consequên-cia no polo oposto a João Gil-berto. Dias ficou famoso noinício dos anos 1960, mas nos70, quando voltei de Londres,ele brilhava ainda, com osLPs “Obrigado minhas fãs”, 1e 2. “Tenho ciúme de tudo”,desde o título, não é uma can-ção moderada. No nosso am-biente, ríamos de Orlando —e eu achava que não tinhaciúme de nada. Decidi cantarjusto esse bolero — e comoúltimo número do meu showda temporada. Tendo encon-trado Ditinha, propus-lhe queentrasse no palco toda noite
para o número fi-nal. Eu cantavapara ela.Não l embro
exatamente co-mo era a roupade Ditinha. Masestou certo deque não era umaroupa do dia adia de uma mu-lher. Era roupa depalco — e haviaplumas. A letrado bolero dizia:“Tu és a criatu-
ra mais linda queos meus olhos já viram/ Tutens a boca mais linda que aminha boca beijou/ Sãomeusos teus lábios, esses lábiosque os meus desejos mata-ram/ São minhas tuas mãos,essas mãos que as minhasmãos afagaram/ Sou loucopor ti, eu sofro por ti, te amoem segredo/ Adoro teu portedivino/ Pelamão do destino amim tu viestes (sic)/ Tenhociúme do sol, do luar, domar/Tenho ciúme de tudo”.E aqui eu me ajoelhava
aos pés da traveca preta e,abrindo os braços, cantavaos versos finais:“Tenho ciúme até/ Da
roupa que tu vestes”.Glória não por reiterar
gesto tropicalista, em que sepretendia ir às vísceras danacionalidade. Mas porevento tão complexo dentrodo repertório ter se dadonum teatro pequeno, quenem sequer ficava cheio, ten-do permanecido obscuro etão maliciosamente secretoquanto a confissão de fé emDeus feita por Nelson Cava-quinho. Por que lembrar issoquando leio Roubini sobre acrise global e as profecias deMarx e assisto aos vídeos deMangabeira propondo tare-fas para superá-las?
Passei umanoite inteiraconversandocom NelsonCavaquinho,que veio aomeu quarto,cantou, chorou
Ponto de Partida cresce fiel às origensGrupo volta a atuar no Rio após criar grande estrutura em Barbacena
Luiz Fernando Vianna
S e a apresentação doespetáculo “Pra NháTerra” no Vivo Rio, às18h de hoje, não está
sendo saudada como o retor-no à cidade de um dos maisoriginais grupos teatrais dopaís, é por causa de uma deci-são tomada pelo Ponto de Par-tida no início de seus 31 anosde carreira: não sair de Barba-cena. A opção impediu a com-panhia de se tornar mais co-nhecida fora de Minas Gerais,mas não que ela construísseuma estrutura invejável mes-mo para Rio e São Paulo.Nomomento, ela ocupa dois
casarões da primeira fábricade seda do país e está refor-mando um terceiro. Tem 20 in-tegrantes, 190 alunos na escolaprofissionalizante de músicaBituca e cuida dos Meninos deAraçuaí, conjunto artístico dacidade do Vale do Jequitinho-nha. Ao custo anual de R$ 1,2milhão, a engrenagem é viabi-lizada pelos patrocínios de trêsempresas: Vivo, Vale e Natura.O DVD de “Pra Nhá Terra” ain-da foi realizado pela Conspira-ção Filmes e está sendo distri-buído pela Biscoito Fino.— O Ponto de Partida não é
famoso, mas tem respeitabili-dade — orgulha-se a diretoraRegina Bertola.O caminho vitorioso quase
foi interrompido em 2003, quan-do morreu Ivanée Bertola, ma-rido deRegina. Era ele quemad-ministrava o grupo, deixando
comamulher a criação demon-tagens como “Grande sertão:veredas”, “Viva o povo brasilei-ro” e “Ser Minas tão Gerais” —esta, uma das que estiveram noRio, com Milton Nascimentocantando e atuando. Mas o tra-balho seguiu e, superadas as di-ficuldades financeiras, o Pontode Partida quer voltar a viajar.— Ficar em Barbacena nos
permitiu criar uma linguagemestética independente, sem sa-ber o que faz sucesso nos gran-des centros — diz Regina.A peculiaridade atraiu inte-
resse internacional, tendo acompanhia já se apresentadona França (no Théâtre desChamps-Elysées, em Paris),na Alemanha e em outros paí-ses. Mas ela não deixa de le-var peças para lugares que
nunca viram teatro, comoaconteceu neste ano em cida-des da região Norte.— Depois das apresenta-
ções, o povo vinha falar com agente que teatro não era cha-to como eles imaginavam —conta Regina, que realiza tra-balhos de formação de públi-co desde o início do Ponto dePartida. — Ou a gente faz issoou não seremos necessáriospara mais ninguém.
Musical ambiental“Pra Nhá Terra” tem apelo
para crianças e adultos. Omusical tenta falar de modoleve de temas como sustenta-bilidade e educação ambien-tal. Escolhida pelo próprio,uma canção de Milton Nasci-mento (e Marcio Borges), “Es-
trelada”, abre a encenação.Os Meninos de Araçuaí par-
ticipam da montagem. Dos 40em cena hoje, 22 estarão es-treando. O Ponto de Partidatrabalha desde 1998 comcrianças e adolescentes de fa-mílias pobres, e já gravou comeles dois CDs e dois DVDs.— Ficamos dez meses no
início, e a ideia não era con-tinuar. Mas um deles veio fa-lar com a gente: “Foi um so-nho, melhor do que se meupai voltasse e gostasse demim.” Aí não largamos mais— relembra Regina.No primeiro fim de semana
de setembro, o grupo estaráno Te a t ro Du l c i n a com“Drummond” e “Os gnomoscontam a história do gato ma-lhado e a andorinha Sinhá”. ■
Divulgação
O ESPETÁCULO“Pra Nhá Terra”
será mostrado
hoje no Vivo Rio
pela companhia
teatral mineira e
pelos Meninos
de Araçuaí
Não b a s t o u a otrompetista ameri-cano Miles Davis(1926-1991) ser um
dos maiores músicos do séculoXX. Também não bastou a elerevolucionar o jazz — o seucampo de expressãomusical—um punhado de vezes. Miles foium popstar, um rebelde, um pa-ladino contra a exclusão racial eum homem das mulheres. Ins-trumentista, compositor, bandleader, pintor e até filósofo —“uma pintura é música que sepode ver, e música é uma pin-tura que se pode ouvir”, dissecerta vez. Umaótimapedida pa-ra se ter uma ideia da dimensãoartística do homem (e humanado artista) é a mostra multimí-dia “QueremosMiles”, até 28 desetembro no Centro CulturalBanco do Brasil (CCBB).Multimídia não por acaso,
já que Miles Davis é um dosartistas que mais fizeram jus-tiça à hoje banalizada expres-são. Quem entrar pelos corre-
Trajetória do jazzista essencial é revista em passeio longo, mas compensador
‘Queremos Miles’Centro Cultural Banco do Brasil
Silvio Essinger
Milhas emilhasdeMilesDavisdores (devidamente) escurosda exposição tomará conheci-mento de uma figura que dei-xou marcas não só na música,mas no cinema (quem conse-guiria imaginar o filme “As-censor para o cadafalso” sema sua trilha?) e nas artes vi-suais (as capas dos seus dis-cos da fase Blue Note, exem-plos de elegância atemporal;as ilustrações psicodélicas doLP “Bitches brew”, suas pró-prias pinturas), além de em li-vro e na TV (em entrevistasantológicas). É de se imaginaro que ele faria na internet.
Modernidade em várias mídiasAo entrar na caverna rumo
ao universo Miles, o especta-dor se depara com um garotode uma família negra de clas-se média, que contou com oprivilégio do estudo — e queo usou para subverter as re-gras. Partindo do som de St.Louis, ele embarcou no be-pop ao lado do saxofonistaCharlie Parker. A modernida-de desse estilo jazzístico re-siste não só na música, masnas capas dos discos e nas fo-tos das apresentações, comoa exposição bem ressalta.
Uma vez no domínio do jo-go, Miles partiu, no fim dosanos 1940, para a sua primeirarevolução: o disco “Birth ofthe cool”, inaugurador de umtipo de jazz mais relaxado, ele-gante, embora cerebral echeio de ambição artística: ocool jazz. Partituras, fotos, apresença quase tátil da capado disco ajudam a entenderum pouco do processo que le-vou aquele músico inquieto einquietante a dar esse passo. Éperto dessa época, por sinal,que Miles vai para Paris e seaproxima de nomes como Bo-ris Vian, Jean-Paul Sartre e Ju-liette Gréco — um pedaço daexposição que faz o especta-dor se coçar e imaginar comoseria fantástico pegar o táxi dofilme do Woody Allen e voltaràquela época e àquele lugar.Mas até aí ainda se andou
pouco. No território do jazz deverdade, Miles ainda teria lon-go caminho, ao lado de nomescomo John Coltrane (no disco“Kind of blue”, uma das maio-res rupturas da história do ja-zz), do arranjador Gil Evans ede promissores novatos, co-mo o pianista Herbie Hancock,ainda um garoto quando en-
trou para o seu quinteto, nosanos 1960. O trompetista sa-cudia o cânone musical aomesmo tempo em que não sefurtava a se portar como umaestrela — aliás, bem condizen-te com sua avantajada venda-gem de discos.
Cores, sons e eletricidadeA fase elétrica de Miles Da-
vis, iniciada ainda nos anos1960, quando ele assumiu osinstrumentos e o psicodelis-mo do rock, é uma das maisinteressantes (e certamente amais colorida) da mostra. Ar-tes dos discos, vídeos e ins-trumentos de época (um pia-no Fender Rhodes e pioneirossintetizadores, por exemplo)acompanham a trajetória deMiles pelo jazz-rock, pelo ja-zz-funk (que ele explorou nu-ma tentativa de encontro dopúblico negro, no LP “On thecorner”), o pop (logo depoisde um período de inatividade,que desembocaria em outromarco, o controverso dis-co“Tutu”) e até o hip-hop,mais próximo do fim da vida.É bom ir com tempo de sobra,porque o passeio é longo —mas compensa. ■
Divulgação
AMBIENTEde “Queremos
Miles”: mostra
multimídia é
ótima pedida
para se ter ideia
da dimensão
artística do
homem
(e humana
do artista)
CRÍTICA
EXPOSIÇÃO
2 ● SEGUNDO CADERNO Domingo, 14 de agosto de 2011O GLOBO.
O GLOBO ● SEGUNDO CADERNO ● PÁGINA 2 - Edição: 14/08/2011 - Impresso: 13/08/2011 — 01: 34 h PRETO/BRANCO
SEGUNDA-FEIRAFelipeHirsch
QUARTA-FEIRAFranciscoBosco
QUINTA-FEIRAPELO MUNDO
Eduardo Graça,de Nova YorkEduardo Levy,de Los Angeles
SEXTA-FEIRAHermanoVianna
SÁBADOJosé MiguelWisnik
DOMINGOCaetanoVeloso
TERÇA-FEIRAPELO MUNDO
Cristina Ruiz,de Berlim
CAETANO VELOSOMomentos de glória
Quempoderá lembrar com nitidez? Eu, sim. Aome-nos algumas imagens. Mas certas informações queorientariam o leitor só poderiam surgir como resul-tado de pesquisa — coisa que não fiz nem para es-crever “Verdade tropical”. O mero pensamento deque Guilherme Araújo já morreu produz imediata-mente a sensação de que ninguém poderá me aju-dar a reconstituir o fato que quero narrar. Mas tal-vez a banda que tocava comigo fosse compostados baianos Perinho e Moacir Albuquerque, Tuzéde Abreu, Enéas Costa e Bira. E, quem sabe, AminKader pode ter sido o meu assistente nessa tem-porada. Tudo me veio à mente quando participei,na Sala São Paulo, do show dos 40 anos de carreirade Chitãozinho e Xororó. A uma certa altura, a du-pla cantou “Tenho ciúme de tudo”.
Há um travesti chamadoDitinha bem vivo em minhamemória, e, por isso, tendoa pensar que foi Ditinhaquem protagonizou a cenaque preciso descrever. Masnão me sinto seguro de quetenha sido mesmo ela, poisouço com clareza a voz deWaly repetindo seu nome —e não me parece que Walyestivesse envolvido na pro-dução desse show. É possí-vel que, mesmo não partici-pando da produção, ele ti-vesse passado uns dias emSão Paulo e assistido aoshow em que Ditinha entra-va no palco? É. Me pareceque assim foi? Não. Devoperguntar a Amin, a Perinho,a Tuzé. No entanto, queroescrever agora, no calor darecordação. Telefonar paraum deles (só tenho o telefo-ne de Tuzé) quebraria maiso ritmo do meu texto do quecontar aqui que há o riscode isso acontecer. Será quefaltarão coisas cruciais: onome do teatro, o título doshow, o nome do hotel, oano exato?De repente, Regina Casé
lembrou aqui o nome do tea-tro sob o Minhocão: Teatrodas Nações. No hotel, quenão ficava longe, passei umanoite inteira con-versando comNelson Cavaqui-nho, que veio aomeu quarto, can-tou, chorou — erepetiu muitasvezes em voz bai-xa o seu grandesegredo: a fé emDeus. Esse foi ummomento de gló-ria. O outro, quequero narrar, meveio à memóriaquando ouvi Xo-ro ró e Ch i t ãocantarem o bolero que foi su-cesso deOrlandoDias. Eu es-tava na plateia da Sala SãoPaulo, considerando a im-portância dessa dupla cam-pineira em nossa história.Também lamentando quemetenham dito, na época doshow “A foreign sound”, queeste deixara de ser gravadoem DVD porque o então dire-tor da Osesp se opunha àapresentação de música po-pular ali. Nunca averiguei —e não creio que ele estivesseerrado. Só sei que o projeto“A foreign sound” teria evi-denciado sua significação seo que foi feito no palco, comorquestra sob Jaques More-lenbaum, tivesse sido regis-trado e distribuído mundial-mente. Não rolou. Acho queera o carma do Brasil: umamirada pretensiosa sobre ocancioneiro americano esbo-çada por um brasileiro aindanão podia ser reconhecidacom respeito pela percepçãoglobal. O site Pitchfork dedi-cou uma crítica inacredita-velmente inteligente ao dis-co, mas este não tem presen-ça no imaginário internacio-nal. Se o DVD do show tives-se sido feito, tudo podia ga-nhar algum sentido. Mas nãoera hora. E o disco talvez não
mereça nem mesmo a aten-ção que o Pitchfork lhe deu.De todo jeito, eu era levado apensar na ironia de estar alipara cantar na gravação deumDVD demúsica tão popu-lar. E de uma vertente pelaqual torci muito quando elaainda era desprezada pelasplateias do culturalmentedominante litoral.“Tenho ciúme de tudo” le-
vou meus pensamentos auma voragem. Esse boleroera o exemplo mais espalha-fatoso do fenômeno de mas-sas Orlando Dias. Dias rasga-va o próprio paletó, gritava“Obrigado, minhas fãs”, ajoe-lhava-se. Era o culto a Orlan-do Silva exibindo consequên-cia no polo oposto a João Gil-berto. Dias ficou famoso noinício dos anos 1960, mas nos70, quando voltei de Londres,ele brilhava ainda, com osLPs “Obrigado minhas fãs”, 1e 2. “Tenho ciúme de tudo”,desde o título, não é uma can-ção moderada. No nosso am-biente, ríamos de Orlando —e eu achava que não tinhaciúme de nada. Decidi cantarjusto esse bolero — e comoúltimo número do meu showda temporada. Tendo encon-trado Ditinha, propus-lhe queentrasse no palco toda noite
para o número fi-nal. Eu cantavapara ela.Não l embro
exatamente co-mo era a roupade Ditinha. Masestou certo deque não era umaroupa do dia adia de uma mu-lher. Era roupa depalco — e haviaplumas. A letrado bolero dizia:“Tu és a criatu-
ra mais linda queos meus olhos já viram/ Tutens a boca mais linda que aminha boca beijou/ Sãomeusos teus lábios, esses lábiosque os meus desejos mata-ram/ São minhas tuas mãos,essas mãos que as minhasmãos afagaram/ Sou loucopor ti, eu sofro por ti, te amoem segredo/ Adoro teu portedivino/ Pelamão do destino amim tu viestes (sic)/ Tenhociúme do sol, do luar, domar/Tenho ciúme de tudo”.E aqui eu me ajoelhava
aos pés da traveca preta e,abrindo os braços, cantavaos versos finais:“Tenho ciúme até/ Da
roupa que tu vestes”.Glória não por reiterar
gesto tropicalista, em que sepretendia ir às vísceras danacionalidade. Mas porevento tão complexo dentrodo repertório ter se dadonum teatro pequeno, quenem sequer ficava cheio, ten-do permanecido obscuro etão maliciosamente secretoquanto a confissão de fé emDeus feita por Nelson Cava-quinho. Por que lembrar issoquando leio Roubini sobre acrise global e as profecias deMarx e assisto aos vídeos deMangabeira propondo tare-fas para superá-las?
Passei umanoite inteiraconversandocom NelsonCavaquinho,que veio aomeu quarto,cantou, chorou
Ponto de Partida cresce fiel às origensGrupo volta a atuar no Rio após criar grande estrutura em Barbacena
Luiz Fernando Vianna
S e a apresentação doespetáculo “Pra NháTerra” no Vivo Rio, às18h de hoje, não está
sendo saudada como o retor-no à cidade de um dos maisoriginais grupos teatrais dopaís, é por causa de uma deci-são tomada pelo Ponto de Par-tida no início de seus 31 anosde carreira: não sair de Barba-cena. A opção impediu a com-panhia de se tornar mais co-nhecida fora de Minas Gerais,mas não que ela construísseuma estrutura invejável mes-mo para Rio e São Paulo.Nomomento, ela ocupa dois
casarões da primeira fábricade seda do país e está refor-mando um terceiro. Tem 20 in-tegrantes, 190 alunos na escolaprofissionalizante de músicaBituca e cuida dos Meninos deAraçuaí, conjunto artístico dacidade do Vale do Jequitinho-nha. Ao custo anual de R$ 1,2milhão, a engrenagem é viabi-lizada pelos patrocínios de trêsempresas: Vivo, Vale e Natura.O DVD de “Pra Nhá Terra” ain-da foi realizado pela Conspira-ção Filmes e está sendo distri-buído pela Biscoito Fino.— O Ponto de Partida não é
famoso, mas tem respeitabili-dade — orgulha-se a diretoraRegina Bertola.O caminho vitorioso quase
foi interrompido em 2003, quan-do morreu Ivanée Bertola, ma-rido deRegina. Era ele quemad-ministrava o grupo, deixando
comamulher a criação demon-tagens como “Grande sertão:veredas”, “Viva o povo brasilei-ro” e “Ser Minas tão Gerais” —esta, uma das que estiveram noRio, com Milton Nascimentocantando e atuando. Mas o tra-balho seguiu e, superadas as di-ficuldades financeiras, o Pontode Partida quer voltar a viajar.— Ficar em Barbacena nos
permitiu criar uma linguagemestética independente, sem sa-ber o que faz sucesso nos gran-des centros — diz Regina.A peculiaridade atraiu inte-
resse internacional, tendo acompanhia já se apresentadona França (no Théâtre desChamps-Elysées, em Paris),na Alemanha e em outros paí-ses. Mas ela não deixa de le-var peças para lugares que
nunca viram teatro, comoaconteceu neste ano em cida-des da região Norte.— Depois das apresenta-
ções, o povo vinha falar com agente que teatro não era cha-to como eles imaginavam —conta Regina, que realiza tra-balhos de formação de públi-co desde o início do Ponto dePartida. — Ou a gente faz issoou não seremos necessáriospara mais ninguém.
Musical ambiental“Pra Nhá Terra” tem apelo
para crianças e adultos. Omusical tenta falar de modoleve de temas como sustenta-bilidade e educação ambien-tal. Escolhida pelo próprio,uma canção de Milton Nasci-mento (e Marcio Borges), “Es-
trelada”, abre a encenação.Os Meninos de Araçuaí par-
ticipam da montagem. Dos 40em cena hoje, 22 estarão es-treando. O Ponto de Partidatrabalha desde 1998 comcrianças e adolescentes de fa-mílias pobres, e já gravou comeles dois CDs e dois DVDs.— Ficamos dez meses no
início, e a ideia não era con-tinuar. Mas um deles veio fa-lar com a gente: “Foi um so-nho, melhor do que se meupai voltasse e gostasse demim.” Aí não largamos mais— relembra Regina.No primeiro fim de semana
de setembro, o grupo estaráno Te a t ro Du l c i n a com“Drummond” e “Os gnomoscontam a história do gato ma-lhado e a andorinha Sinhá”. ■
Divulgação
O ESPETÁCULO“Pra Nhá Terra”
será mostrado
hoje no Vivo Rio
pela companhia
teatral mineira e
pelos Meninos
de Araçuaí
Não b a s t o u a otrompetista ameri-cano Miles Davis(1926-1991) ser um
dos maiores músicos do séculoXX. Também não bastou a elerevolucionar o jazz — o seucampo de expressãomusical—um punhado de vezes. Miles foium popstar, um rebelde, um pa-ladino contra a exclusão racial eum homem das mulheres. Ins-trumentista, compositor, bandleader, pintor e até filósofo —“uma pintura é música que sepode ver, e música é uma pin-tura que se pode ouvir”, dissecerta vez. Umaótimapedida pa-ra se ter uma ideia da dimensãoartística do homem (e humanado artista) é a mostra multimí-dia “QueremosMiles”, até 28 desetembro no Centro CulturalBanco do Brasil (CCBB).Multimídia não por acaso,
já que Miles Davis é um dosartistas que mais fizeram jus-tiça à hoje banalizada expres-são. Quem entrar pelos corre-
Trajetória do jazzista essencial é revista em passeio longo, mas compensador
‘Queremos Miles’Centro Cultural Banco do Brasil
Silvio Essinger
Milhas emilhasdeMilesDavisdores (devidamente) escurosda exposição tomará conheci-mento de uma figura que dei-xou marcas não só na música,mas no cinema (quem conse-guiria imaginar o filme “As-censor para o cadafalso” sema sua trilha?) e nas artes vi-suais (as capas dos seus dis-cos da fase Blue Note, exem-plos de elegância atemporal;as ilustrações psicodélicas doLP “Bitches brew”, suas pró-prias pinturas), além de em li-vro e na TV (em entrevistasantológicas). É de se imaginaro que ele faria na internet.
Modernidade em várias mídiasAo entrar na caverna rumo
ao universo Miles, o especta-dor se depara com um garotode uma família negra de clas-se média, que contou com oprivilégio do estudo — e queo usou para subverter as re-gras. Partindo do som de St.Louis, ele embarcou no be-pop ao lado do saxofonistaCharlie Parker. A modernida-de desse estilo jazzístico re-siste não só na música, masnas capas dos discos e nas fo-tos das apresentações, comoa exposição bem ressalta.
Uma vez no domínio do jo-go, Miles partiu, no fim dosanos 1940, para a sua primeirarevolução: o disco “Birth ofthe cool”, inaugurador de umtipo de jazz mais relaxado, ele-gante, embora cerebral echeio de ambição artística: ocool jazz. Partituras, fotos, apresença quase tátil da capado disco ajudam a entenderum pouco do processo que le-vou aquele músico inquieto einquietante a dar esse passo. Éperto dessa época, por sinal,que Miles vai para Paris e seaproxima de nomes como Bo-ris Vian, Jean-Paul Sartre e Ju-liette Gréco — um pedaço daexposição que faz o especta-dor se coçar e imaginar comoseria fantástico pegar o táxi dofilme do Woody Allen e voltaràquela época e àquele lugar.Mas até aí ainda se andou
pouco. No território do jazz deverdade, Miles ainda teria lon-go caminho, ao lado de nomescomo John Coltrane (no disco“Kind of blue”, uma das maio-res rupturas da história do ja-zz), do arranjador Gil Evans ede promissores novatos, co-mo o pianista Herbie Hancock,ainda um garoto quando en-
trou para o seu quinteto, nosanos 1960. O trompetista sa-cudia o cânone musical aomesmo tempo em que não sefurtava a se portar como umaestrela — aliás, bem condizen-te com sua avantajada venda-gem de discos.
Cores, sons e eletricidadeA fase elétrica de Miles Da-
vis, iniciada ainda nos anos1960, quando ele assumiu osinstrumentos e o psicodelis-mo do rock, é uma das maisinteressantes (e certamente amais colorida) da mostra. Ar-tes dos discos, vídeos e ins-trumentos de época (um pia-no Fender Rhodes e pioneirossintetizadores, por exemplo)acompanham a trajetória deMiles pelo jazz-rock, pelo ja-zz-funk (que ele explorou nu-ma tentativa de encontro dopúblico negro, no LP “On thecorner”), o pop (logo depoisde um período de inatividade,que desembocaria em outromarco, o controverso dis-co“Tutu”) e até o hip-hop,mais próximo do fim da vida.É bom ir com tempo de sobra,porque o passeio é longo —mas compensa. ■
Divulgação
AMBIENTEde “Queremos
Miles”: mostra
multimídia é
ótima pedida
para se ter ideia
da dimensão
artística do
homem
(e humana
do artista)
CRÍTICA
EXPOSIÇÃO
OGLOBO
O GLOBO ● SEGUNDO CADERNO ● PÁGINA 1 - Edição: 14/08/2011 - Impresso: 13/08/2011 — 23: 18 h
RIO DE JANEIRO, DOMINGO, 14 DE AGOSTO DE 2011 • ANO LXXXVII • No- 28.496 • EDIÇÃO FECHADA ÀS 23h15mIRINEU MARINHO (1876-1925) ROBERTO MARINHO (1904-2003)
oglobo.com.br
AZUL MAGENTA AMARELO PRETO
Redede laranjasenotas friasalimentamfraudesnoTurismoEmpresa investigada pela PF tem o mesmo endereço de outras 200
Pais de papel passadoGustavo Pellizzon
● Thainá Rodrigues brinca com uma boneca em sua casa, em Caxias. Ela é uma das mil criançasbeneficiadas pelo projeto Em Nome do Pai, criado há um ano no Rio. O programa regulariza asituação de meninas e meninos que não tinham o registro paterno na certidão de nascimento.
CH I C O
. RevistaO
Crise pegaempresas commais dívidas● Empresas brasileiras te-rão que enfrentar a novacrise mais endividadas emmoeda estrangeira do quena última turbulência. Aotodo, 212 companhias acu-mulam US$ 90,2 bi em dívi-das, US$ 38,4 bi a mais doque em 2008. O risco é o re-pique do dólar. Página 29
Gigantes quesustentamuma paixão● Uma dasmaiores rivalida-des do futebol, Barcelona eReal Madrid sãomuito maisdo que potências esporti-vas: refletem a cultura e omodo de vida dos espa-nhóis. Eles abrem a sériesobre grandes clubes domundo. Caderno Esportes
O submundodos rebeldesde Londres
BBB Futebol ClubePedro Bial diz que os 5 a 4
de Fla e Santos são exceção
à regra e que futebol no
Brasil vai de mal a pior.— Passou?
● Principal beneficiária dos desvios de verbasdo Ministério do Turismo, a ONG Ibrasi ope-rava com ajuda de empresas de fachada queemitiam notas fiscais falsas e fraudavam con-corrências. Comsedes edonosdiferentes, elassão na verdade uma rede: os sócios se conhe-cem e operam em conjunto. Uma das firmas
subcontratadas pelo Ibrasi, a Barbalho ReisComunicação e Consultoria, informa como en-dereço uma sala em Brasília, mas uma secre-tária disse que no local funcionammais de 200empresas. Numerro grosseiro, a Barbalho Reisapresentou um relatório sobre o Paraná noprojeto destinado aoAmapá.Mesmo assim, re-
cebeu R$ 220mil. Na suposta sede da Sinc, ou-tra consultoria investigada, ninguém conhecetal empresa. Segundo relatório da Polícia Fe-deral, os sócios das duas empresas são ir-mãos. A PF também descobriu que notas friasemitidas por empresas diferentes forampreen-chidas pela mesma pessoa. Páginas 3 e 11
● Nos conjuntos habitacio-nais de Londres, a exclu-são social cria o caldo decultura onde crescem osjovens por trás dos tumul-tos que sacudiram a capitalbritânica, conta FERNANDODUARTE. Página 36
SEGUNDO CADERNOSEGUNDO CADERNOMORAR BEM
SAÚDE
São Gonçalotem muitaviolência epouca polícia● Município violento e o desegunda maior populaçãodo estado, São Gonçalo temsó um PM para 2.222 habi-tantes. A polícia teria 12suspeitos da morte da juízaPatrícia Acioli. Ex-namora-do dela, um agente peniten-ciário vai depor. Página 19
TVGlobo/JoãoMiguelJr.
O mistério dapedra ametista
Cenas quentes, muito drama e
um crime são alguns dos dez
segredos do sucesso de “O Astro”.
Marcelo
O art déco,representado noEdifício Itaoca,é um dos trêsestilos que dãoforma ao Rio.
Calor destrói azeite de oliva eelimina propriedades que fazemdele um aliado da gastronomiasaudável. Página 39
Divulgação/DavidBailey
Livro destrincha a dramática vida
e a celebrada obra do cineasta
Roman Polanski (na foto, com
Sharon Tate, sua mulher,
assassinada em 1969).•••
CAETANO VELOSO:Memórias
nebulosas
motivadas por
uma canção
romântica.
3a- Edição • Preço no RJ, MG e ES: R$ 4 • Morar Bem e Boa Chance circulam na Região Metropolitana do Rio, na Costa Verde, na Região Serrana e na Região dos Lagos (menos Macaé e Rio das Ostras)