Caderno de Agosto - pdf.leya.compdf.leya.com/2011/Apr/caderno_de_agosto_ttsy.pdfDepois veio a...

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São exactamente três da tarde do primeiro dia de Agosto e vou cumprir a promessa. Quer dizer: vamos cumprir a promessa. Olho para ela, sempre muito direita diante do computador, e tenho a cer-teza que tudo irá dar certo. Neste momento o António deve estar a trocar impressões com o pai, sobre os últimos avanços da psiquiatria. Tenho muita pena do António, mas alguém tinha de se sacrificar. De resto, eu nem sei bem se isso será sacrifício para ele que, no fundo, no fundo, sonha com um belo consultório cheio de gente perfuma-da, com a voz da Belmira ao telefone, «ó Madame Marques, como está?, desculpe mas o senhor doutor só vai poder atendê-la no mês que vem». Essa história de ser médico para bem do povo, a mim não me leva: é tudo palavreado do António para ganhar as boas graças da Renata. E uma voltinha na sua Harley-Davidson, evidentemente.

A casa está em silêncio: o computador mal se ouve, e a minha mãe não suporta música quando trabalha. Aqui para nós, ela é ainda um bocado azelha a utilizá-lo, estilo «ó Glória» («Glorinha», se a aflição é muita), «e se eu carregar nesta tecla o que é que aconte-ce?» Já lhe expliquei muitas vezes as teclas todas, as maravilhas e os perigos de uma maquineta daquelas, e que ela tem de estar muito concentrada se não quer que tudo vá, de repente, para o maneta. A Avó Tita é que fica furiosa quando eu digo isto. Já lhe contei não sei quantas vezes que o maneta era um general das invasões francesas que só tinha um braço e que, por ser terrível, as mãezinhas de então

diziam às criancinhas de então que as mandavam para ele se elas se portassem mal, não comessem a sopa toda, essas coisas que as mães, em todas as épocas da História, proíbem às suas crias. Mas a minha avó é insensível a argumentos históricos, e só resmunga: «Coisas que a tua mãe te mete na cabeça.»

Enquanto a minha mãe aproveita os avanços da técnica, eu limito--me a esta esferográfica de tampa roída e a este caderninho todo cheio de grinaldas e florinhas, com as páginas em tons esbatidos de rosa e lilás e, no meio, a cara desfocada dos Beatles. Custa-me um bocado escrever em cima da cara deles, confesso, ainda agora mes-mo o «B» ficou encavalitado no nariz do John Lennon, coitado, não há mal que não lhe aconteça, nem mesmo depois de morto tem des-canso.

Se eu usasse o computador, lá se iam as grinaldas e as florinhas e até é divertido escrever num caderno assim. A Luciana tem um pare-cido, só que cheira a morango. Eu sou ligeiramente mais discreta, até porque o cheiro podia levar-me à suprema tentação de ir ao frigorí-fico, onde há uma taça cheia deles — e eu sou alérgica a morangos. Uma das poucas alergias que eu tenho. Uma das poucas alergias que o Teotónio não tinha.

Todos os estores da casa estão corridos, abertos apenas o mínimo para podermos trabalhar, por causa deste calor infernal de Agosto. Mas tem de ser: das oito ao meio-dia aqui vamos ficar, ela pensando em Mónica e Alfredo Henrique, eu pensando em tudo e enchendo as páginas deste caderno com o que tem sido a nossa vida nestes últimos tempos.

Quando éramos pequenos, íamos todos em Agosto para a Casa da Várzea, que era enorme e dava para a família inteira. O Fábio e o Marco ainda eram bebés e a gente achava-lhes muita graça. Depois o tio Anselmo e a tia Benedita compraram aquela casa horrenda em Linda-a-Velha («Chalet Menezes», como é possível viver-se a vida inteira numa casa com um nome destes e não morrer de vergonha?!) e, como estão sempre a dizer, «campo por campo, ficamos no que é nosso». Porque, para o tio Anselmo e para a tia Benedita, Linda-a-

-Velha é campo.Depois veio a história do divórcio, e o avô Bernardo declarou que

não valia a pena abrir a casa só para ele e para a Avó Tita, e que além disso a Clarinda estava a ficar velha e não aguentava o trabalho que dava um casarão daqueles. Fechou-se a Casa da Várzea e nós pas-sámos a ficar em Lisboa durante o mês de Agosto, que é a melhor altura para se viver na cidade: não há trânsito, não há bichas para os autocarros, não há a barulheira costumada dos vizinhos do quinto que marcharam todos para o Algarve, não há choques na esquina da nossa rua, a mãe tem sempre lugar para o automóvel mesmo em frente da nossa porta, há pouca gente na urgência do hospital, e o médico do costume não faz férias nesta altura.

E pronto: das oito ao meio-dia estamos as duas aqui, no escritório da minha mãe. Ela porque tem um trabalho a cumprir, e eu para a vigiar e fazer com que esse trabalho seja entregue no prazo marcado.

Assim o prometi ao Alexandre Ribeiro, jurando sobre Paixões nas Dunas e As Noites Escaldantes de Bora Bora.

Eu e o António temos grande experiência na nobre arte de lidar com os nossos pais. Olho neles! Olho neles, senão, ao mínimo des-cuido da nossa parte, pisam o risco e tornam-se incontroláveis.

Claro que é tudo por causa de Mónica e de Alfredo Henrique. E da Interlúdio.

Mas tenho a certeza absoluta de que também é por causa do Teo-tónio. E do Arcanjo.

— E do Alexandre Ribeiro — diz Luciana.— E do médico. Não nos podemos esquecer do médico-do-costu-

me — diz o António.A Luciana e o António são um pouco doidos, temos de lhes dar

um desconto nas tolices que dizem. Por mais que eu explique que o Alexandre Ribeiro é apenas trabalho, só trabalho e nada mais que trabalho, ela não se convence.

— Pois sim. Diz-lhe que é trabalho. Eu é que sei.Quanto ao médico, coitado dele. Mas o António afirma que sim,

que basta olhar para ele para percebermos.O que acontece é que a nossa casa fica mesmo diante de um hos-

pital, de maneira que por tudo e por nada («sobretudo por nada», diz o António) a minha mãe está lá caída. Acho mesmo que já nos deviam ter dado assim uma coisa parecida com o passe social para a primeira maca disponível.

Ou então chamá-la para sócia.— Ou pedi-la em casamento — insiste o António, que é de ideias

fixas.Mas é uma tolice. De resto a minha mãe, quando fala no médico,

nem sequer começa a assobiar. E o assobio é um sinal — como vie-mos a descobrir mais tarde — bastante revelador.

Da primeira vez que a ouvi, olhei para ela sem perceber nada.— Mónica casou finalmente com Alfredo Henrique! — exclamei.A minha mãe olhou para mim, como se eu tivesse acabado de

proferir a maior barbaridade.— Deves estar doida, com certeza!— Ó mãe, tu não me digas que eles não se casam! Olha que...Mas ela cortou-me logo o discurso:— Quero lá saber da Mónica e do Alfredo Henrique. Continuou a assobiar.Continuei a olhar para ela. Que, entretanto, olhava para as mãos,

estiraçava-se no sofá daquela maneira que nos está sempre a dizer que não se deve fazer, traçava e destraçava as pernas, pendurava o sapato na ponta do pé e fazia-o balançar de um lado para o ou-tro, enfiava os dedos pelo cabelo, puxava uma almofada das maiores para cima da barriga, olhava para o tecto.

Depois, de repente, levantou-se e enfiou pela cozinha dentro, asso-biando sempre. Agarrou num pacote muito bem feito, com papel da pastelaria lá do bairro, e fita cor-de-rosa toda encaracolada que até parecia prenda de Natal, desembrulhou e meteu tudo no frigorífico. Tive a certeza de que eram trouxas de ovos, coisa que a minha mãe odeia.

— O que é isso? — perguntei.— Nada — disse ela.É a pior resposta que me podem dar e ela sabe.Mas nem tive tempo de refilar porque ela já tinha pegado num

daqueles enormes malões com que anda sempre («porque eu sei lá do que é que posso precisar de repente!») e desandado porta fora para a escola.

Sempre a assobiar.Coisas muito estranhas estariam a acontecer.

Mónica tinha acordado bem-disposta. Há muito tempo que isso não lhe acontecia. Às vezes, bastava um simples pormenor para ficar con-tente, a luz clara da manhã, o café a escaldar na chávena de flores vermelhas, a água límpida de Bora Bora na fotografia recortada da re-vista e colada na parede do quarto, o calor do duche, a voz do locutor a anunciar que são sete horas em Portugal Continental, seis na Madeira e cinco nos Açores. Arrepia-se quando ouve falar nas cinco horas, meu Deus!, o que seria se estivesse agora a levantar-se nos Açores para ir para o Salão Rosário, a escuridão que não deve fazer por lá.

Tem muita pena de não conhecer os Açores. Todas as manhãs sente vontade de lá ir, quando a rádio dá o sinal horário. Na Madeira já este-ve algum tempo, a estranha sensação de se encontrar no meio de um bi-lhete postal, flores e verde por toda a parte, que ela, para falar verdade, pouca coisa viu durante esse ano, mas recorda sempre os antúrios ver-melhos e brancos, as estrelícias com aquele bico de ave bem no alto do seu caule, hortênsias e bananeiras pelas estradas. Nesse tempo comia banana ao pequeno-almoço e milho frito a quase todas as refeições. D. Gilberta tinha um dia certo da semana para o fritar, e nem pensar em torcer o nariz ao petisco:

— Nesta casa toda a gente gosta de tudo — dissera ela, logo no dia em que Mónica chegou.

— Gosto de tudo — respondera ela.— Ainda bem — dissera D. Gilberta, que era de poucas falas, sobre-

tudo quando estavam à mesa, «lugar sagrado», dizia.Mónica tem às vezes saudades da Madeira e apetece-lhe lá voltar,

para ver tudo o que Alfredo Henrique viu e ela não. Mas sobretudo gostava de ir aos Açores, ver as furnas e as lagoas e os vulcões, que só conhece da televisão e do À Deriva, que ela compra todos os meses. São cinco horas nos Açores. Lá fora, ainda mal amanheceu. Isto por-que é quase Verão. Se fosse Inverno, era noite cerrada. Agora com este acertar de horas pela Europa, acordamos de noite e deitamo-nos com o sol a entrar pela janela dentro, pensa.

— Isto é que dá volta à cabeça das pessoas — costuma dizer Tó Lu-zes, que insiste em reger a sua vida pela hora solar e não pelas regras

da CE.— Mania da normalização... — diz Mónica, enquanto passa água-

-de-colónia pelo corpo. — Qualquer dia ainda vamos andar todos ca-rimbados como os frangos e as maçãs.

Não lhe apetece pensar nessas coisas para não estragar a alegria com que acordou. Alegria que nem sabe donde vem. «Alfredo Henrique já deve estar à minha espera», pensa, olhando para o relógio, que põe, apressadamente, no pulso direito.

— Nunca vi ninguém usar o relógio nesse braço — exclamara D. Gilberta, alguns dias depois de ela ter chegado. — É para as pessoas repararem em ti, é?

Calara-se, envergonhada. Depois, com esforço, lá foi dizendo que usava o relógio no braço direito porque se habituara na escola, assim era mais fácil ir vendo o tempo que faltava para entregar os testes, era só olhar para a mão que escrevia.

— Esquisitices do continente — murmurara D. Gilberta.A verdade é que nunca se habituara a usar o relógio no braço esquer-

do, como toda a gente.Como D. Gilberta.Como Alfredo Henrique, que já deve ter olhado vezes sem conta

para o seu relógio, no braço certo, sentado a uma mesa do café onde, todas as manhãs, antes de abrir o stand onde vende automóveis, espera por ela.

Quando a minha mãe assobia, alguma coisa de estranho se passa. Isto foi uma das coisas mais importantes que descobri nestes meus quinze anos de aprendizagem de vida.

Porque a minha mãe raramente assobia.Ou melhor: se alguém lhe perguntar «por que é que estás a asso-

biar?», ela faz aquele olhar de ó-meu-Deus-por-que-me-fizeste-tão--inteligente-no-meio-de-tantos-burros e explica que tudo não deve ter passado de uma ilusão sonora, ela nunca, mas nunca assobia. Se tem tempo e a verve professoral lhe sobe à garganta, explica até um pouco mais:

— A minha mãe sempre me disse que era muito feio uma menina assobiar, e estas coisas que nos metem na cabeça em criança nunca passam.

A minha avó é assim, realmente. Sempre a dar ordens. Cheia de manias. Mas não é má pessoa. A verdade é que não consigo estar ao pé dela mais de cinco minutos sem começarmos a discutir. Porque tenho a saia curta de mais. Porque ando sempre despenteada. Por-que falo de uma maneira que ninguém entende. Porque chego tarde a casa. Porque almoço e janto em tabuleiro e não na mesa como toda a gente.

E sobretudo porque o meu ideal de um domingo bem passado não é, de modo algum, ir com ela, o avô, o António e a minha mãe para casa do tio Anselmo e da tia Benedita aturar o Marco e o Fábio e

ainda assistir a um vídeo que eles fizeram, e que acaba sempre com a tia Benedita estatelada no quintal, o tio Anselmo a regá-la com uma mangueira e os parvos dos meus primos a escorregarem na água e a darem com o nariz na casota do Rambo, que se limita a olhar para todos com um ar de profundo desprezo, e que é o único habitante do «Chalet Menezes» a manter uma certa dignidade no meio daquilo tudo.

A primeira vez que lá fomos para ver o filme, até teve piada. A tia Benedita faz um pudim de maracujá que é de tentar um santo (até o Teotónio condescendeu um dia em «comer uma colherinha»), e as peripécias familiares no ecrã não custaram muito a suportar. O tempo estava bom, demos uns mergulhos no tanque (a que eles, mui-to pomposamente, chamam piscina), o Marco e o Fábio andaram o tempo todo atrelados ao Super-Mário, e não houve desgraça de maior. «Esteve-se», como costuma dizer a tia Fátima.

Da segunda vez, é como o outro, não custava nada fazer o jeito à minha mãe, que precisava de perguntar não sei o quê à tia Benedita, qualquer coisa relacionada com os novos processos de avaliação. Os professores, quando se encontram, são insuportáveis. E lá veio, mais uma vez, o vídeo, «ó Anselmo, passa lá depressa esse bocado, que vergonha!», mas o tio Anselmo queria ver tudo outra vez, e mais outra, e volta atrás e torna a voltar, «ó Benedita, mas eu tinha-te avisado que ia regar a relva por que é que te foste meter à minha frente?», e o Marco e o Fábio «ó pra nós, ó pra nós!», e a gente farta de ó pra eles e ó pra os tios e ó pra o cão, até ao momento salvador em que o avô Bernardo se levantou e disse:

— A conversa está muito animada mas temos de ir embora que eu não quero apanhar bicha no caminho.

Da terceira vez, juro!, até o pudim de maracujá me agoniou.E na semana seguinte ainda foi pior, porque, entretanto, o tio An-

selmo tinha mandado uma cassette para o Isto só Vídeo, convencido que tinha feito uma obra de arte, e qual não foi o espanto dele ao ver aquele momento de exaltação das alegrias campestres exibido na televisão entre «os piores da semana».

— Não perceberam nada! Mas isto é assim mesmo, a gente já sabe que são sempre os amiguinhos que ganham...

A partir daí percebi que todas as semanas ia ser aquele fadário, para a gente entender bem como aquelas imagens eram perfeitas e como a injustiça e o compadrio reinavam nos meios de comunica-ção.

— E não só — rematava sempre a avó Tita. Tudo a bem da união familiar e dos laços que devem sempre exis-

tir entre primos. Pelo menos era isto que me dizia o avô Bernardo quando ao sábado à noite telefonava a marcar a hora da partida. O avô Bernardo e a avó Tita vivem no pavor de «ver a família disper-sa». E acham que os melhores amigos que eu e o António podemos ter na vida são o Marco e o Fábio, pela única razão de serem nossos primos.

— A família deve estar sempre acima de tudo — diz o avô Ber-nardo.

— E não só — diz a avó Tita.O Fábio chama-se assim porque nasceu numa altura em que pas-

sava na televisão uma telenovela com o Fábio Júnior, e a tia Bene-dita decidiu, logo depois de meia-dúzia de episódios, que não havia melhor nome para o seu primogénito. A minha tia apaixona-se por todos os actores das telenovelas brasileiras, sejam eles novos, velhos ou assim-assim. O Fábio Júnior era então um pobre imberbe, segun-do conta a minha mãe, mas para a tia Benedita o sotaque carioca dava-lhe em graça o que lhe faltava em maturidade.

Quando nasceu o Marco, estava ela apaixonada por um galã da-queles entradotes (isto diz a minha mãe; cá para mim, quando o vejo agora nas 453 telenovelas que passam todos os dias na televi-são, acho que está completamente a cair da tripeça, mas adiante) e jurou que a criança havia de ter o seu nome. Mas aí o tio Anselmo impôs-se, e berrou que «Tarcísio» só por cima do seu cadáver. O tio Anselmo é um paz-de-alma, mas das poucas vezes em que se irrita dá-lhe sempre para grandes tiradas dramáticas. A tia Benedita ainda insistiu, mas depois lá acabou por desistir, até porque o galã da tele-

novela, coitado, acabava por morrer, estendidinho na praia ao lado da Bruna Lombardi, que era juíza mas não parecia nada.

— Então vai chamar-se Marco António.A tia Benedita é de extremos. Depois das telenovelas, a paixão

dela são os filmes antigos que, de vez em quando, vai buscar ao clube de vídeo. É capaz de estar a ver o mesmo filme dias e dias seguidos. Naquela altura dera-lhe a paixão da Cleópatra, uma coisa intragá-vel com a Elizabeth Taylor e uns canastrões que ela achava a oitava maravilha.

— Marco António, a paixão de Cleópatra — murmurou.O tio Anselmo encolheu os ombros. Desde que não fosse Tarcí-

sio...Escusado será dizer que tanto o Fábio como o Marco detestam os

nomes que têm. Ainda por cima, de nada valeram os gostos históri-cos da tia Benedita: toda a gente pensa que o Marco se chama assim por causa do Marco Paulo. Nada a fazer.

Se calhar é por isso que eles são tão pouco simpáticos. Eu cá, se me chamasse assim, também havia de estar sempre zangada com o mundo. Deve ser aquilo a que o meu pai dá o nome de «trauma de infância». O pior é que, diz ele, essas coisas não têm cura, e não melhoram nunca. A tia Helena, por exemplo, deve ser um trauma de infância de Mónica.

Quando falei disso à minha mãe, ela olhou para mim de sobrolho franzido e perguntou:

— Quem te disse isso?— Ninguém. Descobri eu.— Ná. Essa conversa de trauma, desculpa lá, mas cheira ao teu

pai à légua.A minha mãe pode ser despassarada, mas de burra não tem nada.

Chamo-me Maria da Glória por causa de D. Maria II.Ou melhor: por causa de uma tese de mestrado que a minha mãe

começou a fazer na altura em que eu estava para nascer.A D. Maria II é a grande paixão da vida da minha mãe, que ainda

hoje não perdoou que a tivessem tirado das notas de mil.Neste momento, a tese está parada. Agora é preciso resolver os

problemas de Mónica e de Alfredo Henrique. Mas de vez em quan-do a minha mãe tem acessos culturais: então tira as 200 páginas, já prontas, de dentro de um baú de latão pintado de verde e acrescenta--lhe um ou dois parágrafos. Mas qualquer dia, diz a minha mãe, vai mesmo continuar a sério. Entretanto a rainha dorme no baú verde, onde a minha mãe enfia tudo aquilo que não quer perder: análises, notas estrangeiras, recibo dos impostos, relógios velhos e canetas es-tragadas. A minha mãe é incapaz de se desfazer de relógios e canetas, mesmo que já tenham dado o último suspiro depois de muitos anos de leais serviços.

Quando fala de D. Maria II, a minha mãe repete sempre que se trata de «uma das personagens femininas mais dramáticas da Histó-ria de Portugal», e quem sou eu para a desmentir. Mas isso não era razão para me darem o seu nome.

— Muita sorte ainda tiveste por o teu pai ter insistido comigo que só queria que te pusesse dois nomes — diz a minha mãe, quando eu resmungo.

Pois é. Estarei por isso eternamente grata ao meu pai, que, pelos vistos, na altura do meu nascimento ainda não sonhava em perten-cer ao jet-set, ou desfilar entre os convidados do casamento de D. Duarte Pio.

— Dois nomes. Só dois nomes — dissera ele.E assim me livrei de carregar para o resto da vida com o harmo-

nioso nome de Maria da Glória Joana Carlota Leopoldina da Cruz Francisca Xavier de Paula Isidora Micaela Rafaela Gonzaga. Que era o sonho da minha mãe.

O meu irmão chama-se António por motivos muito menos inte-lectuais ou aristocráticos: nasceu na noite de 12 para 13 de Junho, quando toda a gente andava nos arraiais a comer sardinha assada e a cheirar manjericos.

Toda a gente — incluindo o meu pai, o que fez com que a minha mãe, por essa razão, tivesse inaugurado a sua longa relação com a urgência do hospital em frente.

Diga-se, em abono da verdade e do bom nome do meu pai, que o meu irmão não era esperado tão cedo.

— Lá para finais de Junho — garantira a médica, na última con-sulta.

Mas o meu irmão sempre foi muito apressado.E só não nasceu nas Escadinhas de S. Miguel, ao som do «olha

o fungagá/olha o solidó», porque a minha mãe, à última hora, teve receio de ir para Alfama com uma barriga já daquele tamanho e, além disso, iam dar na televisão um filme que lhe apetecia muito ver. A verdade é que a minha mãe nunca morreu de amores pelas festas dos santos populares, e preferiu mil vezes ficar sossegada em casa.

— Mas vai tu, que gostas tanto — disse para o meu pai, com a ex-pressa recomendação de lhe trazer um vaso de manjerico com cravo de papel e quadra apropriada.

É claro que não houve filme nem sossego caseiro: minutos depois de o meu pai ter saído, já a minha mãe enfiava pela urgência dentro, queixando-se de umas dores nas costas que lhe pareciam muito es-tranhas.

— São estranhas, são — disse o médico, rindo. — É a sua criança que vai nascer!

Horas depois entrava pela urgência o meu pai, esbaforido, de vaso de manjerico na mão, à procura da minha mãe, que, antes de sair, ainda tivera tempo de lhe deixar um bilhete em cima da mesa da entrada: «Vou à urgência. Não demoro».

— Que é da minha mulher? — perguntou alarmado.— A sua mulher? E quem é a sua mulher? — resmungou a empre-

gada do guichet — Se o senhor soubesse a quantidade de mulheres que têm entrado esta noite...

— A minha mulher está grávida... Chama-se Luísa...— Ah, já sei. Está aqui a ficha. A sua mulher está na sala de partos

— lá descobriu a empregada, decerto mais desejosa de estar a comer sardinhas assadas em Alfama do que ali de plantão.

— Na sala de partos? — espantou-se o meu pai. — A fazer o quê?— A dançar o vira ou a saltar a fogueira — resmoneou ela.O meu pai ia-lhe dando uma coisa.— Ó senhora, não me venha com brincadeiras a uma hora destas!

Olhe que eu...— Mas o que é que o senhor quer que uma grávida esteja a fazer

numa sala de partos? — berrou ela. — Está a ter a criança!— A ter a criança? Mas a criança só deve nascer em fins de Julho!— Adiantou-se, que é que quer que eu faça? Deve estar com von-

tade de brincar ao Santo António — disse a mulher, deixando-o ali sozinho, de vaso de manjerico na mão («mas por que é que eu não deixei esta porcaria em casa!»), o cravo de papel à banda, com uma quadra espetada onde se lia:

Santo António disse às moçasque as havia de casar.Santo António contou malpois eu cá fiquei sem par.

Não se podia dizer que fosse uma quadra muito apropriada à situ-

ação, mas o Santo António era casamenteiro e não parteiro.E por ali ficou, a fumar cigarro atrás de cigarro, a caminhar de um

lado para o outro, a perguntar «e então?» a toda a gente que passas-se junto dele com ar de médico ou enfermeira.

— Então o quê? — admirou-se uma bata azul que nem sabia de que é que ele estava a falar.

— A minha mulher?— Eu sei lá da sua mulher! O melhor é perguntar aí a uma en-

fermeira, eu cá sou das limpezas e só gostava de saber onde é que me puseram o raio do balde. Está para ali um bêbado a vomitar no corredor que é um nojo, daqui a bocado escorregam todos naquela porcaria e depois eu quero ver como é.

E a bata azul sumiu-se pelo corredor, deixando o meu pai a ba-rafustar contra os médicos, as enfermeiras, o serviço de saúde, os bêbados, o Santo António, a minha mãe e a criança apressada.

Ainda por cima o meu pai estava preparado para assistir ao parto e tudo, acompanhara a minha mãe nas consultas, tinha sido um fu-turo pai exemplar e já tinha até a máquina de filmar pronta a entrar em acção quando chegasse o momento. Afinal tudo fora em vão, e ali estava ele, na urgência do hospital em frente, manjerico na mão, sem saber o que estava a acontecer para lá daquele corredor. Ainda tentou ligar para a médica da minha mãe, mas primeiro não tinha moedas para a cabina, e quando as conseguiu, do outro lado do fio ninguém respondeu.

— Claro... anda na rambóia... — resmungou. Entretanto a empregada do guichet tinha mudado.— Ó minha senhora, pode-me dar notícias da minha mulher? —

tentou o meu pai de novo.— A que horas entrou ela? — perguntou, meio ensonada.O meu pai engasgou-se, não sabia muito bem, só quando chegara

a casa é que soubera que ela tinha vindo para a urgência.— Estou a ver... — resmungou a mulher. — Foi para a farra e a

mulher em casa a trabalhar! O meu pai tornou a gaguejar, que também não era bem assim, que

a mulher estava grávida e...— Ainda por cima grávida! É mesmo não ter consciência nenhu-

ma, desculpe que lhe diga! — indignou-se a mulher. — É por essas e por outras que eu nunca hei-de casar!

O meu pai ainda pensou em responder-lhe que se ela não casasse era com certeza por causa dos 120 quilos de peso e da verruga com pêlo espetado mesmo por baixo do nariz, mas calou-se, o que ele queria era saber da minha mãe e não arranjar conflitos desnecessá-rios.

— É o primeiro filho? — perguntou a megera.— E.Foi então que rebentou a gargalhada.— Então ainda tem muito que esperar! Se calhar pensa que isto é

atar e pôr ao fumeiro, não? Julga que isto é como as cadelas? Ai estes homens, estes homens, bem se vê que não são eles que têm os filhos... Sente-se aí, sente-se aí que ainda a procissão vai no adro.

E desapareceu do guichet, enquanto o meu pai pisava mais uma beata, abria mais o colarinho, sentava-se e levantava-se, olhando sempre para a porta donde havia de aparecer o médico ou a enfer-meira ou a mulher da limpeza ou lá quem fosse que lhe desse alguma informação.

Passaram-se horas. Ele já lhes tinha perdido a conta.Por aquela porta já tinham entrado cinco cabeças partidas, um

pescoço com uma naifada, três costelas deslocadas, duas cólicas de rins, uma voz rouca que berrava «agarrem-me senão eu mato-a, agarrem-me senão eu mato-a!», amparada por outra que contrapu-nha «ó Marcolino, não ligues, são tudo intrigas da tua sogra!» — não contando com o bêbado que continuava a vomitar.

— Homens... — resmungava a mulher, de volta ao guichet —, são todos a mesma coisa, todos da mesma laia. Cá por mim, é tudo a mesma cambada! Bem faço eu que não os aturo.

O meu pai acercou-se timidamente:— A minha mulher?...— Ó senhor, já lhe disse que não tenha pressa! Sente-se aí que

quando for preciso a gente chama-o. Descanse que não lhe ficamos com a mulher!

Suspirou e rematou:— Ai estes homens, estes homens... O parto foi demorado. O meu irmão trazia o cordão umbilical

à volta do pescoço e teve de levar oxigénio para começar a chorar. Horas depois, chegava, finalmente, o médico:

— Parabéns! Tem ali um rapaz e pêras! Pesa...E o médico não disse mais: colarinho desapertado, descalço e de

manjerico na mão, o meu pai dormia o sono dos justos.