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CADERNO DE DEBATES 5

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CADERNO DE DEBATES5

SÃO PAULO, FEVEREIRO/2020

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ÍNDICE

5 APRESENTAÇÃO

11 GT DE EDUCAÇÃO

37 GT DE SAÚDE COLETIVA

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APRESENTAÇÃO5

PROJETO BRASIL POPULAR

QUEM SOMOS?

Diante da profunda crise política, econômica e social que o Brasil atravessa no último período, compreendeu-se como de suma importância criar um espaço para reunir as diferentes forças de esquerda e suas bases sociais estimuladas pelo desafio de junto com a sociedade brasileira debater e formular um projeto nacional. Acre-ditamos que esse processo de debate também auxiliará na organização da luta de massas, ou seja, na construção de força social em torno dessas propostas de país.

É importante destacar, no entanto, não ser de hoje que homens e mulheres deba-tem um projeto de país. Entendemos que este é um debate permanente na vida dos povos e estratégico para os setores populares, o qual, diante do desmonte da nação, tornou-se urgente e dispõe de condições favoráveis a partir das necessidades concre-tas que atualmente se apresentam. O que aqui chamamos de projeto nacional é um conjunto de questões que apontam dilemas estruturais do nosso país e as mediações necessárias para resolver as condições imediatas da vida do povo diante da crise.

A esquerda brasileira já formulou importantes contribuições sobre esse tema. Po-rém, historicamente, o processo de produção dessas reflexões, via de regra, não es-teve combinado com o processo de articulação com movimentos populares e sindi-cais, resultando em formulações teóricas que, embora consistentes, contaram com pouca capacidade de enraizamento social. Nas últimas décadas nossas formulações e estratégias não avançaram para a construção de um projeto de nação ou de um pro-grama amplo, que transcendesse as medidas imediatas, as plataformas ou os progra-mas eleitorais. Por isso, embora se trate de um tema com o qual temos permanente preocupação, não temos conseguido produzir formulações e estratégias unitárias de médio e longo prazos que nos possibilite mobilizar força social em torno de uma proposta viável de desenvolvimento para o país.

Entendemos ser fundamental que, em paralelo à formulação de análises e propostas, possamos reafirmar a necessidade de diálogo com as bases sociais e o compromisso e disponibilidade para o debate de ideias com o povo. Mobilizados por essa perspecti-va, desde fevereiro de 2016 dedicamo-nos à tarefa de debater e formular o conteúdo programático de um projeto nacional, democrático e soberano, que represente uma oportunidade para a construção de uma nova hegemonia de forças construída a partir do diálogo junto ao povo brasileiro.

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6APRESENTAÇÃO

O QUE QUEREMOS?

Não estamos partindo do zero. Diversos setores têm refletido ao longo da história sobre propostas, estratégias e questões que apontam os problemas estruturais do Brasil e indicado caminhos para a sua superação. O projeto de país que estamos construindo deve expressar estes acúmulos e reflexões, além de buscar estimular o acúmulo de força social em torno desses esforços.

Fundamentalmente o que nos propomos a construir é um projeto para o Brasil que aponte para a superação de todas as formas de desigualdades, de exploração e de falta de liberdades. Portanto, um projeto que suscite rupturas com o passado escra-vocrata, colonial, patriarcal, ditatorial, antipopular e que responda a um presente de crise no qual essas dimensões estruturais da exploração, dominação e opressões estão intensificadas.

Acreditamos que a melhoria das condições objetivas de vida do povo brasileiro de-pende do modelo de desenvolvimento econômico, político, cultural e ambiental implantado, pois ele indicará como serão distribuídas as riquezas e a renda gerada por toda a sociedade, além de orientar como serão tratados nossos bens públicos. As bases para a construção desse projeto popular para o Brasil estão alicerçadas na construção de um novo Estado orientado por novos paradigmas.

Dessa forma, reafirmamos que há a necessidade de, durante o processo de formula-ção do projeto, construirmos referências de valores e princípios capazes de contri-buir para análise crítica da complexidade do presente e enunciar o inédito futuro que queremos compartilhar. Essas referências fundamentais sobre as quais serão assentadas as bases do nosso projeto de sociedade são os nossos paradigmas, capazes de exprimir as nossas referências estruturantes no processo e de indicar conteúdo para a sociedade que pretendemos construir. Por isso definimos os seguintes temas como nossos paradigmas que guiam nossas reflexões:

Vida boa para todos/as ou o Bem Viver: Compreendemos o ser hu-mano em sua integralidade e afirmamos que a vida deve ser vivida em todas as suas dimensões, por isso devemos orientar as formas de pro-dução dos bens, a reprodução social e os bens públicos para garantir a qualidade de vida de todos/as. Quanto ao Estado, ele deve atuar para proporcionar ao povo uma vida que vale a pena ser vivida. Isso se vincu-la à garantia do exercício de um conjunto de direitos, mas também com uma outra forma de organizar a produção, a reprodução e o consumo.

Bens comuns: Prezamos pela garantia e soberania dos bens comparti-lhados pelas comunidades. A natureza, o ar e a água, a cultura, a lingua-gem, os conhecimentos tradicionais e o patrimônio histórico, assim como a própria comunidade em que nos inserimos, são bens comuns e, em

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conjunto sustentam a vida humana. Ao contrário do que afirma o ideário de atribuição de valor capitalista, os bens comuns têm seu valor medido pelos benefícios que produzem ao coletivo e sua preservação não deve está condicionada ao retorno financeiro, mas sim ao compromisso de uso comum em longo prazo.

Igualdade e diversidade: Buscamos superar as condições de opres-são e engendrar novas relações sociais entre as pessoas e os povos. No Brasil a desigualdade é um componente histórico e estrutural, que ten-de a reproduzir novas formas permanentes de exclusões e discrimina-ções. O enfrentamento à desigualdade tende a encontrar resistência de uma parte da sociedade, mas não é possível caminhar na perspectiva de transformar a sociedade sem enfrentar todas as dimensões desse pro-blema: desigualdade econômica, regional, cultural, racial, de gênero, de conhecimento, de acesso a serviços sociais de qualidade, divisão social e sexual do trabalho etc. A construção da igualdade é uma referência para a formulação de um projeto para o país que passa pela defesa de políticas que contribuem para o combate das exclusões, discriminações e as fontes de produção das diferenciações sociais e econômicas.

Democracia, Participação e autonomia: Trabalhamos a partir da compreensão de sentido público do Estado, retirando-o da condição de simples garantidor de direitos, para estabelecer como prioridade prestar serviços de qualidade ao povo. Devendo atuar como um Estado com-prometido com a autodeterminação dos povos, que respeite a diversi-dade e seja ativo na construção de uma sociedade igualitária.

Soberania Nacional e Desenvolvimento: Apontamos um caminho para o desenvolvimento no qual a apropriação da riqueza seja justa e onde os compromissos sociais submetam a lógica da economia de mercado. A Soberania Nacional é compreendida como a garantia de autodeterminação do conjunto do povo brasileiro para escolher e de-cidir sobre seu próprio destino. Ao propor também Desenvolvimento como eixo paradigmático queremos afirmar a necessidade de desen-volvimento das forças produtivas em um país periférico que deve res-peitar a sustentabilidade ambiental e proporcionar condições dignas de vida a todos e todas.

Esses paradigmas são referências gerais para o trabalho do grupo, e também para as discussões temáticas devendo ser considerados mesmo para elaborações mais especí-ficas. Em processo cíclico de construção, os Grupos de Trabalhos Temáticos devem ao mesmo tempo em que partem deles para construir propostas, enriquecê-los com novas formulações. Através deles buscamos reafirma a generosidade humana do Projeto que propomos e seu esforço permanente em afirmar e resgatar os valores humanistas que orientam a busca da emancipação e da libertação do ser humano das mais variadas formas de opressão e alienação.

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8APRESENTAÇÃO

MÉTODO DE CONSTRUÇÃO DO PROJETO

Partimos de um contexto histórico que leva a necessidade de um debate de projeto de país devido a gravidade da crise e ao desmonte da nação. Entendemos que a burguesia não possui um projeto nacional e utiliza esse contexto de crise econômica para provocar instabilidade política e impor um projeto neoliberal. Diante disso, a esquerda deve se debruçar para a produzir um projeto popular para o país.

Portanto, precisamos construir um projeto de país e, com ele, uma alternativa de socie-dade construída junto ao povo. Por esse motivo o método é tão importante quanto o resultado. Entendemos que o programa só cumprirá sua função se for uma produção coletiva que deve combinar conhecimento científico e militância social. Apenas des-sa forma será ampliada nossa capacidade de mobilização: considerando o povo como protagonista das mudanças no país. Por isso, devemos constantemente checar com a realidade as nossas reflexões, interpretar as contradições e a partir delas formular no-vas propostas. O método com o qual nos propomos a trabalhar é coletivo, dialógico e dialético capaz de envolver diversos setores, conjugando especificidades e especialidades, temas, regiões, naturezas diversas dos sujeitos, dialogando com a visão do todo e com a visão dos lugares desses sujeitos.

O processo de construção será numa espiral crescente, partindo da produção de sínte-ses que serão retomadas para maior aprofundamento que possibilitará a construção de novas sínteses. Temos desafios importantes: 1) produzir um projeto de nação; 2) trans-formar esse projeto em um instrumento do processo político pedagógico que estimule nosso povo a debater, criticar e formular novas questões; 3) formular sínteses coletivas a partir desse acumulo e criar força social em torno dessas propostas. Neste sentido, esse é um processo contínuo no tempo e na sua intencionalidade, um processo permanente de disputa de hegemonia de um projeto de nação na sociedade brasileira.

Atualmente possuímos 31 grupos de trabalho temáticos (GTs) que possuem a tarefa prioritária de refletir sobre os temas estratégicos para a formulação de um projeto de país. Esses grupos de trabalho são constituídos por intelectuais comprometidos com o desenvolvimento do país; militantes dos movimentos populares que trazem o acumulo de propostas de cada movimento; trabalhadores com experiência em gestão de políticas públicas e com conhecimento em diversas áreas. Os GTs debatem e formulam propos-tas para que obtenhamos uma elaboração programática que possa posteriormente ser discutida pela sociedade, buscando com isso agregar força social e apontar para as bases de um projeto de país. Até o momento 16 GTs produziram suas primeiras sínteses, as sínteses são publicadas em nossos Cadernos de Debates.

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Além dos GTs, foram estabelecidos Eixos Temáticos. A discussão em eixos objetiva po-tencializar a transversalidade dos temas discutidos nos grupos e garantir que os do-cumentos produzidos por eles tenham visibilidade e unidade programática. O Eixo temático realiza a síntese integrada dos debates realizados pelos GTs, sendo o espaço prioritário de sistematização e aprofundamento de propostas e pontos divergentes.

Não devemos ter a pretensão de dar solução para tudo, muito menos em nome de to-dos e todas, mas buscaremos agir em torno de um esforço coletivo e intelectual, para formular um projeto que sirva como referência para as lutas sociais e para o pensamento crítico brasileiro.

Somar-se ao Projeto Brasil Popular é vislumbrar a esperança de construção coletiva das condições que irão possibilitar ao Brasil ser um país mais justo, soberano e democrático.

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Eixos e Grupos de Trabalhos Temáticos DireitosCultura

EducaçãoEsporteCidades

Religião, Valores e ComportamentoSaúde Coletiva

Economia, Desenvolvimento e Distribuição de RendaAAgricultura Biodiversidade e Meio Ambiente

AmazôniaDemografia e Migrantes

Desenvolvimento RegionalCiência, Tecnologia e Inovação

EconomiaEnergia e petróleo

FinanceirizaçãoTransportes e Logística

MineraçãoReforma tributária

Seguridade Social e PrevidênciaSemiárido

Trabalho, Emprego e RendaEstado, Democracia e Soberania Popular

Democratização da Justiça e Direitos HumanosEstado, Democracia, Participação Popular e Reforma Política

Federalismo e Administração PúblicaSistema de comunicação

Relações Internacionais, Integração Regional e DefesaSegurança pública

Igualdade, Diversidade e AutonomiaCombate ao Racismo e Igualdade Racial

JuventudeLGBT

MulheresPovos Indígenas

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GT DE EDUCAÇÃO

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12 GT DE EDUCAÇÃO

POR UMA EDUCAÇÃO PARA UM PROJETO TRANSFORMADOR DE BRASIL 1

Este documento é uma contribuição para o debate público, a ser realizado por meio de muitas e criativas formas (rodas de conversa, oficinas, seminários, ações nas redes sociais, saraus, slams, outras atividades culturais etc), envolvendo diversos sujeitos e ocorrendo em diferentes lugares do país. Sendo assim, é um documento aberto, em construção, que convida a todas, a todos e a todis2 a responderem a pergunta: qual a educação necessária para um projeto transformador de país?

Ele nasce da esperança, da ousadia e da crença de que é fundamental anunciar pos-sibilidades e construir horizontes de luta política mesmo em tempos extremamente difíceis. Mas também nasce de uma gigantesca indignação frente à destruição de conquistas constitucionais da população brasileira, em especial, da educação públi-ca, uma das áreas mais atacadas pelo projeto autoritário que tomou o Brasil após o golpe institucional de 2016.

Destruição que vem se concretizando por meio dos imensos cortes de recursos financeiros que estão inviabilizando a implementação do Plano Nacional de Edu-cação (PNE), lei aprovada pelo Congresso em 2014, depois de um intenso debate público, que estabeleceu vinte metas para o país avançar na garantia da educação de qualidade. Tal destruição também vem sendo promovida por movimentos ul-traconservadores como o Movimento Escola Sem Partido e outros grupos fun-damentalistas religiosos que defendem uma educação para a obediência a uma ordem desigual. Movimentos que vêm perseguindo escolas, universidades, profis-sionais de educação, estudantes e familiares em todo o país e impedido o debate sobre desigualdades, ciências, gênero, sexualidade, direitos humanos e o racismo nos espaços educacionais.

Este documento contém propostas para uma educação pública, universal, gratuita, laica e de qualidade, comprometida profundamente com a democracia, com os direi-tos humanos, com a justiça social, com a distribuição de renda, terras e conhecimen-tos, com a sustentabilidade socioambiental. Comprometido com o entendimento que a diversidade da população brasileira não é um problema, muito pelo contrário; o pro-blema são as imensas desigualdades e a forma como essa diversidade é compreendida e tratada pelas políticas públicas, em especial, pela política educacional.

Um projeto transformador que esteja a serviço da superação do racismo vivido pela população negra e indígena, do sexismo, da LGBTIQfobia, do capacitismo (contra as pessoas com deficiências) e de outras tantas discriminações e desigualdades – como a existente entre campo, florestas e cidades; entre regiões do país; entre centro e pe-

1 Coordenação do GT Educação do Projeto Brasil: Denise Carreira e Sérgio Haddad. Texto: Denise Carreira. Leitura crítica: Analu Silva e Souza, Barbara Barbosa, Cláudia Bandeira, Daniel Cara, Ednéia Gonçalves, Josè Marcelino de Rezende Pinto, Júlia Daher, Luciene Fernandes, Salomão Ximenes, Sérgio Haddad, Vitor Alcantara e Setorial de Educação do MST. Este texto foi elaborado tendo com base estudos, pesquisas, eventos de movimentos sociais e uma oficina organizada com objetivo de subsidiar a construção deste texto intitulada “O lugar da educação em um projeto de esquerda”, realizada nos dias 21 e 22 de fevereiro de 2018, na Ação Educativa. A Oficina contou com a participação de Ana Elisa de Siqueira; Analise da Silva; Ana Paula Corti; Andressa Pellanda; Cláudia Bandeira; Cleuza Repulho; Cristina Vargas; Ednéia Gonçalves; Elida Elena; Fábio Silva; Fernando Cássio; Gabriel Di Pierro; Gilmar Soares; Iva Mendes; Jessy Dayane; João Feres Júnior; José Marcelino de Rezende Pinto; Júlia Dias; Júlia Daher; Keila Chaves; Luciene Fernandes; Lucimara Domingues; Maria Lúcia da Silva; Marcelo Rocha; Marcos José da Silva; Marcos Sorrentino; Maria Malta Campos; Maria Carla Corrochano; Maria Virginia Freitas; Miguel Arroyo; Mônica Borba; Nilma Lino Gomes; Paulo Carrano; Pedro Pontual; Sumika Freitas; Raquel Trajber; Roberto Catelli; Rubens Barbosa de Camargo; Salomão Ximenes; Sérgio Haddad; Suelaine Carneiro; Salomão Ximenes; Selvino Heck; Teresa Maia; Tiago Mangini; Thais Gava; Toni Reis; Vanda Ribeiro; Vinicius Xavier; Wagner Santana; Ana, Leila, Guilherme e Tchetche. A oficina foi mediada por Denise Carreira e contou com relatoria de Júlia Dias e Lucimara Domingues.

2 Todis se referem as pessoas não binárias, chamadas também de queer, ou seja, pessoas que não se reconhecem exclusivamente como mulheres ou homens. Elas integram a população LGBTIQ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans, Intersexuais e Queer).

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GT DE EDUCAÇÃO

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riferias das metrópoles etc. Desigualdades que marcam estruturalmente o acesso ao poder, ao recursos financeiros, às condições de vida digna, à atenção, a informações e ao conhecimento e, em especial, ao direito humano à educação de qualidade no país.

Esta proposta está sintonizada com a busca de concretização dos paradigmas do Projeto Brasil Popular, em especial, vida boa para todas e todos; bens comuns; igual-dade e diversidade; democracia, participação e autonomia. Com relação ao quin-to paradigma Soberania Nacional e Desenvolvimento, esta proposta parte de uma perspectiva crítica em relação à ideia de desenvolvimento e às políticas econômicas implementadas nas últimas décadas no país.

Entende que é urgente revogar as políticas econômicas de austeridade – que concen-tram ainda mais a renda; aumentam vertiginosamente o desemprego e a pobreza; destroem direitos e políticas sociais; e acirram as desigualdades em um país extrema-mente desigual – da qual a Emenda Constitucional 95/2016 (a chamada Emenda do Teto dos Gastos Sociais) representa o que há de mais perverso no mundo. Mas também que é necessário superar as políticas que estimulam: o consumo como ca-minho para a “inclusão social”, as grandes obras de infraestrutura, a exportação de commodities, a financeirização da economia, a privatização na oferta das políticas sociais (via terceirização, convênios e repasses a Organizações Sociais), a destruição da natureza e das comunidades tradicionais e a subordinação das políticas públicas aos grandes interesses econômicos nacionais e transnacionais.

É necessário avançar para uma nova economia que distribua e não concentre re-cursos nas mãos de poucos, que não privatize o Estado, enfrente desigualdades e privilégios e que priorize as políticas de cuidado e de reprodução da vida, ainda pre-dominantemente desenvolvidas de forma desvalorizada e invisível pelas mulheres, sobretudo pelas mulheres negras e de setores populares. Uma economia crítica ao consumismo e que reconheça os direitos da natureza, na perspectiva do bem viver.

A educação brasileira é um direito social previsto na Constituição de 1988, dever do Estado, e uma das políticas sociais que mobiliza diariamente a ida às escolas públi-cas de mais de cinquenta milhões de crianças, adolescentes, jovens e adultos. É um esforço gigantesco em um país tão desigual como o Brasil e não se pode esquecer que a maioria dessas pessoas que faz a “roda da educação girar”, assim como das demais políticas sociais, é constituída por mulheres: mães, avós, tias e tantas outras familiares que viabilizam as condições diárias para que esse mundo de pessoas che-gue às creches e escolas; e as profissionais de educação (professoras, merendeiras, diretoras, coordenadoras pedagógicas, gestoras educacionais) que constituem mais de 80% das profissionais da educação básica, profissão ainda tão desvalorizada em nosso país. Cabe ainda destacar que, pelo fato, de mais de 80% do gasto educacio-nal ser dedicado ao pagamento de pessoal, o investimento em educação tem um efeito dinamizador da economia do país.

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14 GT DE EDUCAÇÃO

1. PONTO DE PARTIDA: A EDUCAÇÃO COMO UM DIREITO HUMANO

Neste documento para debate público, partimos do entendimento que um projeto transformador de sociedade exige afirmar que a educação de qualidade é um direito humano. Isso significa dizer que entendemos a educação como um direito huma-no de todas as pessoas, detentoras desse direito, simplesmente pelo fato de serem humanas, independente do país onde elas tenham nascido. Então, haitianos, boli-vianos, peruanos, venezuelanos, imigrantes de países africanos e asiáticos e tantas outras pessoas que chegam ao nosso país em busca de uma vida melhor, devem ter garantido o direito à educação para suas crianças, adolescentes, jovens e adultos, sem quaisquer discriminações e constrangimentos.

No nosso Brasil, na prática, a educação de qualidade, embora prevista no art. 206 da Constituição Federal, ainda não se configura como um direito de todas as pes-soas: as pessoas pobres, negras, indígenas, migrantes e imigrantes, com deficiências, LGBTIQs, do campo e das florestas, entre outros grupos marcados pelas desigual-dades, ainda têm grande parte de seus direitos negados ou, quando acessam algum direito, ele é ofertado em condições muito precárias e de baixa qualidade.

Ainda há uma mentalidade na sociedade, no Estado e em muitas creches, escolas e universidades que a educação, assim como outros direitos humanos, é um “favor” concedido à população. Sintonizado com isso, muitos de nós somos educadas e educados a acreditar que a desigualdade imensa no Brasil é algo natural, quase um destino, resultado de uma “ordem divina”, uma “sina”, ou mesmo “culpa” daqueles que não souberam se esforçar o bastante para melhorar de vida.

Em nosso país, de cada cem crianças que entram no primeiro ano do ensino funda-mental, menos de cinquenta chegam ao final dos nove anos dessa etapa e somente onze conseguem “sobreviver” e alcançar o ensino superior. Essa exclusão sistemática e previsível – que acontece todo ano - atinge principalmente crianças e adolescentes dos setores populares, em especial, os meninos negros.

Assumir a educação como direito humano, significa também reconhecê-la na rela-ção de interdependência com outros direitos humanos (saúde, alimentação, mora-dia, segurança, ao meio ambiente etc), ou seja: na vida concreta, não dá para pensar a educação isolada de outros direitos humanos e dos direitos da natureza.

Uma criança, por exemplo, precisa se alimentar, ter onde morar, não sofrer violência doméstica, conseguir chegar à escola com segurança e ter acesso aos cuidados de saúde, entre outras necessidades, para exercer plenamente o direito humano à edu-cação. Para muitas crianças, adolescentes e jovens do país, frequentar a escola muitas vezes faz a fronteira entre a vida e a morte: seja pelo acesso à alimentação escolar (a

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única alimentação diária para milhões de estudantes) ou pela proteção que a escola representa contra o genocídio promovido diariamente por forças policiais, milícias e outros grupos criminosos, em especial, contra adolescentes e jovens negros.

Nesse sentido, uma educação transformadora pressupõe avançar, ir muito mais fun-do em uma perspectiva intersetorial da educação com outras políticas sociais, ser-viços públicos e organizações de sociedade civil nos territórios em que a escola está localizada e concretizar a rede de proteção dos direitos da criança, do adolescente e do jovem previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e no Estatuto da Juventude (2013).

Por último, compreender a educação como um direito humano significa também assumir que ele é um direito que pode ser exigido juridicamente (nas instâncias nacionais e internacionais dos sistemas de justiça) e exigido politicamente por meio da pressão social realizada por movimentos sociais, mobilizações de rua, coletivos juvenis, redes de sociedade civil e tantas outras. Dentre todos os direitos humanos, a educação é considerada um direito de síntese porque a partir dela as pessoas têm mais chance de conhecer, acessar e lutar para exercer outros direitos humanos. Educação é poder!

A luta pelo direito à educação no país, a conquista de cada direito que consta na legislação brasileira, foi fruto de muitas disputas e de um esforço gigantesco de or-ganização popular, não foi uma concessão das elites.

Uma das principais tarefas de um projeto transformador da educação no país é de manter viva essa memória das lutas sociais protagonizadas por mulheres e homens ao longo da história brasileira, muitos dos quais jamais conheceremos seus nomes e de seus coletivos e movimentos, mas que fizeram a diferença para que déssemos passos importantes rumo à democratização da educação do país.

Uma luta árdua que persiste e se reinventa, ainda mais urgente em tempos de per-seguição e de tentativas de silenciamento das escolas, universidades, organizações sindicais, movimentos sociais, organizações de sociedade civil e de grandes ataques aos direitos constitucionais. Ataques à noção de que a educação de qualidade deve ser de fato um direito de todas e todos e não um favor e nem uma mercadoria ex-plorada pelos grandes grupos econômicos.

2. A EDUCAÇÃO NO BRASIL: PROJETO TARDIO E DESCONTÍNUO

A luta pelo direito à educação no Brasil é muito antiga, remontando ao tempo da Colônia. Movimentos e grupos de pessoas negras, abolicionistas, mulheres, in-dígenas, juvenis, trabalhadores do campo e das florestas, movimentos operários,

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pessoas com deficiências e outros coletivos e movimentos sociais atuaram ao longo da história brasileira pela construção de uma política de educação pública universal e democrática em meio a contextos políticos adversos, autoritários e excludentes. Durante mais de dois séculos do período colonial o Império Português terceirizou a oferta educacional, instituindo-a como um monopólio dos jesuítas.

Ao longo do século XIX, o racismo deu base às justificativas das elites econômicas para o não investimento em uma política de educação como parte de um projeto de nação, fazendo com que o Brasil fosse um dos últimos países da América Latina a construir uma política educacional para a população.

Em grande parte, esse não investimento em um projeto de educação pública decor-reu do pavor da elite branca brasileira de que acontecesse aqui o que havia ocorrido na Revolução Haitiana de 1804, movimento que derrubou a elite local e instaurou no Haiti o primeiro país latino-americano governado por pessoas negras que ha-viam sido escravizadas.

Em relação às mulheres não escravizadas (brancas e libertas), até 1827, elas não ti-nham o direito legal à educação elementar, e somente em 1879 foi autorizado o acesso feminino ao ensino superior. Mesmo assim, somente parcela dessas mulheres conse-guia chegar à escola e quando acessavam esse direito era para aprender a ler e escrever e a cuidar melhor da casa, dos filhos e do marido. O ensino de ciências, da matemática e de outras áreas do conhecimento foi por muito tempo proibido às mulheres.

É importante registrar que nossa primeira lei de instrução pública de 15 de ou-tubro (dia do professor) de 1827 representou avanços significativos no direito à educação, como forte enfoque na figura dos mestres e mestras, mas virou letra morta com o Ato Adicional de 1834 que delegou a oferta e a normatização do ensino primário e secundário às províncias, que não contavam com recursos fi-nanceiros para investir na educação.

No Brasil, a República foi proclamada em 1889, e o investimento em uma política de educação universal não vingou. As primeiras décadas do século XX foram marcadas por greves operárias, grandes mobilizações nas maiores cidades, seguidas de repressão violência pelo aparato estatal e foi somente a partir da década de 1930, após o forte investimento na imigração europeia como forma de “branquear” a população brasilei-ra, que a proposta de uma política de educação pública avançou, em meio a conflitos entre grupos progressistas e conservadores, expressos na Constituição de 1934, e que teve no Manifesto dos Pioneiros da Educação (1932) um grande marco.

Na luta histórica pela democratização da educação pública ao longo do século XX, fizeram parte diversos movimentos sociais e organizações sindicais, de mulheres e de

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pessoas negras, destacando-se entre as últimas a Frente Negra Brasileira, criada em 1931 na cidade de São Paulo, e o Teatro Experimental do Negro, surgido no Rio de Janeiro em 1944.

Após a ditadura do Estado Novo (1937–1945), uma nova tentativa de construir um projeto republicano de educação, traduzido na Constituição de 1946 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, foi sabotada pelo golpe mili-tar de 1964, reprimindo a efervescência dos movimentos de cultura, movimentos estudantis e de educação popular que se estenderam por vários lugares do país no início dos anos de 1960.

A construção de uma política educacional nacional foi assumida pela ditadura mi-litar (1964-1985) como parte de seu projeto desenvolvimentista, baseado em um modelo de expansão do acesso à escolarização com baixo investimento por aluno e forte desvalorização salarial do professorado – profissionais, a maioria constituída por mulheres, que viram seu poder de compra e voz despencar, assim como outros sujeitos políticos da época, submetidos à profunda repressão que assolou o país.

Assim como ocorrido na Constituição Federal da ditadura do Estado Novo, o regi-me militar suprimiu mais uma vez a vinculação de recursos para a educação, ou seja, a destinação de um percentual da receita de impostos da União, Distrito Federal, estados e municípios, para a manutenção e desenvolvimento do ensino, vinculação conquistada na Constituição de 1934 e retomada na Constituição de 1946.

Mesmo nesse contexto de tantos ataques e restrições, diversas experiências educa-tivas desenvolvidas em escolas, comunidades e movimentos sociais buscaram evi-denciar a existência das muitas desigualdades sociais, do racismo e do sexismo e de outras formas de discriminação, bem como propor novas perspectivas para a educação, baseadas muitas vezes na educação popular que tinha como inspiração o pensamento de Paulo Freire.

O processo de democratização e a Constituição Brasileira de 1988 trouxeram novas esperanças e conquistas legais para os movimentos sociais. A Constituição Federal de 1988 inovou no tratamento do direito à educação como direito social, previsto em seu artigo 6.º, fruto de embates políticos e da intensa mobilização de movimen-tos sociais, educadores, estudantes, intelectuais que atuaram no processo consti-tuinte. Em especial, com forte protagonismo do Fórum Nacional de Educação na Constituinte em Defesa do Ensino Público e Gratuito, que posteriormente passou a se denominar Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública. Fórum que retomou o esforço liderado por Florestan Fernandes, entre outros, na década de 1950, nos debates da LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, por uma educação pública estatal, gratuita e laica.

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Entre os avanços na Constituição de 1988, destacam-se a formulação mais pre-cisa sobre gratuidade, a incorporação das creches ao atendimento educacional, a garantia do direito à educação de jovens e adultos e de pessoas com deficiências, o reconhecimento do dever do Estado para com o ensino noturno, o direito à educa-ção indígena na língua materna e o estabelecimento de instrumentos jurídicos para exigibilidade do direito à educação. Avanços que foram detalhados e ampliados no ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e na LDB - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996).

Esses avanços constitucionais repercutiram em muitas políticas locais e estaduais, mas foram em grande parte minimizados pela onda das reformas neoliberais dos anos 1990 na América Latina. Essas reformas pregavam o enxugamento do Estado e defendiam a diminuição dos gastos públicos, que já eram insuficientes diante da gigantesca e histórica dívida social brasileira. Apesar disso, o acesso à educação cres-ceu e o país chegou quase à universalização da oferta de vagas para a população dos 7 aos 14 anos na etapa obrigatória do Ensino Fundamental na década de 1990, mas tudo com base em uma educação de baixa qualidade e precária.

3. A AGENDA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS PARA A EDUCAÇÃO

A partir dos anos 2000, do ponto de vista da atuação de movimentos, fóruns e orga-nizações da sociedade civil brasileira, é possível identificar duas grandes perspectivas de ação políticas que predominaram visando às políticas públicas e à melhoria da qualidade educacional. Em meio a alianças, conflitos e contradições, essas pers-pectivas se articularam muitas vezes na atuação política de coletivos, movimentos, sindicatos, redes, fóruns e organizações da sociedade civil, partindo de uma mesma constatação: o não reconhecimento pleno no país do direito humano à educação de qualidade para todos e todas. As duas perspectivas são:

A luta por políticas universais de educação como políticas de Estado, que que-brem a lógica histórica da descontinuidade, com metas de médio e longo prazo, com financiamento adequado por meio do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) – uma das principais agendas de luta da Campanha Nacional pelo Direito à Edu-cação, rede de organizações e movimentos da sociedade civil que nasce em 1999. O CAQ é um mecanismo previsto legalmente, mas que nunca foi cumprido no país. Ele representa o valor por aluno necessário para que o financiamento da educação brasileira consiga garantir o direito à educação de qualidade da forma como está prevista na Constituição Federal (art. 211) e na LDB. Vinculada ao desafio do país avançar rumo à política de Estado, está a valorização efetiva dos profissionais de educação, envolvendo melhoria das condições salariais, de traba-lho e de vida. Também constam: a criação do Sistema Nacional de Educação; a existência de um regime efetivo de colaboração entre os entes federados (municí-

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pios, estados e União); o fortalecimento da gestão democrática (da escola às po-líticas educacionais, para que as vozes sejam ouvidas, para que a participação em seu sentido plural seja exercida); entre outras ações, como o maior investimento em formação e em políticas de avaliação para além das políticas de avaliação de larga escala baseadas em exames estandardizados cujos resultados são forte-mente dependentes do capital cultural e financeiro das famílias dos estudantes e, portanto, têm pouco a dizer sobre o trabalho realizado pelas escolas. Aqui se colocam também as lutas contra as diversas formas de privatização da educação pública via terceirizações de serviços (alimentação, transporte, vigilância, lim-peza) ou por meio de convênios com instituições privadas, muito comuns na educação infantil e que, atualmente, ameaça atingir outras etapas e níveis. Em um país marcado pela descontinuidade e pelo insuficiente controle social das políticas sociais, por desigualdades estruturais, avançar rumo à política de Estado de educação significa um gigantesco passo.

A luta pelo reconhecimento das diferenças como desigualdades na educação. Essa agenda ascende com mais força no debate educacional a partir dos anos 2000 e vem sendo impulsionada por sujeitos diversos: movimentos negros, in-dígenas, LGBTI, mulheres, juvenis, do campo e das florestas, pessoas com de-ficiência, ambientalistas e outros vinculados a temas de fronteira do direito à educação. Esses movimentos sociais apontam as insuficiências das atuais políti-cas universalistas quanto a dar conta dos desafios das múltiplas desigualdades e da destruição ambiental. A situação educacional da população negra brasileira exemplifica esse limite ao revelar que, apesar da melhoria dos indicadores educa-cionais de brancos e negros nos últimos anos, o hiato racial no país se mantém estável. Esses movimentos sociais também questionam os modelos hegemônicos de escolarização ainda referenciados na hegemonia do patriarcado, do eurocen-trismo, da heteronormatividade etc. Tensionam as políticas de inclusão escolar como aquelas que preveem a inclusão dos diferentes em um modelo de escola que não reconhece e não valoriza a diversidade existente em um país multirracial, multiétnico, multicultural. Denunciam que tanto as políticas públicas como as escolas são espaços de reprodução de desigualdades, mas também de transforma-ção e de enfrentamento das mesmas das discriminações exercidas no ambiente escolar. Esses questionamentos disputam e reconfiguram a noção de qualidade na educação e vão além da ideia de criação de programas “específicos” para gru-pos discriminados, exigindo uma abordagem transversal que mexa nas concep-ções do que se entende por função social da escola e por políticas universais de educação. Nos últimos anos, esses movimentos sociais conquistaram as ações afirmativas com recorte de renda e raça no ensino superior brasileiro, benefi-ciando estudantes negros, indígenas, pessoas com deficiências e alunos oriundos de escolas públicas; mudanças curriculares como as que tornam obrigatório o ensino das histórias e culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas em toda a educação básica e a promoção da igualdade de gênero como forma de enfrentar

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a violência contra meninas e mulheres; as políticas de educação especial na pers-pectiva da educação inclusiva; políticas diferenciadas para populações indígenas, quilombolas e do campo; política nacional de educação ambiental; entre outras.

Essas duas perspectivas se articularam e estiverem presentes na construção conflitiva do Plano Nacional de Educação (PNE), lei aprovada em junho de 2014 pelo Con-gresso Nacional, que estabeleceu metas decenais para a melhoria da educação bra-sileira. Após o golpe institucional de 2016, o PNE foi inviabilizado pela adoção de medidas drásticas de austeridade econômica pelo governo brasileiro - em especial, a chamada Emenda Constitucional 95 - e por ataques de grupos ultraconservadores à educação, intensificados após a eleição do governo Bolsonaro em 2019. Na verdade, a política econômica de austeridade adotada tem feito com que os enormes gastos com juros e encargos da dívida pública só crescessem chegando ao patamar de 8% do PIB, mostrando que o que se busca de fato é redirecionar para o setor rentista (daquele que vive de renda decorrente de aplicações no mercado financeiro e não do investimento no setor produtivo da economia) os minguados investimentos adicionais feitos nas políticas sociais entre os anos 2004-2014. Não se trata, assim, de reduzir o tamanho do Estado, mas de promover diversas formas de apropriação privada de parcela ainda maior do fundo público, em detrimento da maioria da população, como as reformas trabalhistas, da previdência e a EC 95/2016 tornaram evidentes.

4. A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO EM DISPUTA

Podemos afirmar que com a ascensão dos governos petistas, foram muitos os avan-ços nas políticas, programas e iniciativas governamentais comprometidas com a democratização da educação na perspectiva da educação como um direito, entre eles, a melhoria das condições de financiamento da área; a ampliação dos programas sociais articulados ao atendimento educacional; o investimento, embora tardio, nas Conferências Nacionais de Educação, na gestão democrática e em outras formas de participação; a ampliação do número de instituições públicas de educação profis-sional e tecnológica e de ensino superior pelo país; a ampliação do acesso à creche; o maior acesso de setores populares e negros ao ensino superior por meio de ações afirmativas em instituições públicas, mas também por meio do polêmico subsídio de dinheiro público às instituições privadas do ensino superior de menor qualidade via Prouni (Programa Universidade para Todos) e, principalmente, por meio do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil).

Apesar desses e de outros avanços, muitos deles insuficientes para o tamanho e a complexidade da dívida educacional brasileira para com a população, é possível afirmar que as políticas educacionais não tiveram como prioridade de sua agenda o investimento sistêmico na construção de uma cultura democrática comum que mudasse mentalidades e ampliasse as bases sociais para a sustentação de um projeto

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de justiça social no país comprometido com a superação das desigualdades, com o avanço da igualdade com o reconhecimento das diferenças e com a sustentabilidade socioambiental. Uma cultura democrática que fosse compreendida como um dos eixos estruturadores da noção de qualidade educacional, ancorada nas noções de interesse público e de bens comuns.

Predominantemente, nos governos petistas, as políticas de educação foram aborda-das com base em três perspectivas conflitantes: como política de inclusão precária de novos segmentos populares e negros à educação formal, do qual o Prouni e, em especial, o Fies constituem exemplos, com um grande investimento público em universida-des privadas de baixa qualidade; como política destinada a aumentar a capacidade competitiva do país para uma economia globalizada, do qual o número de registros de patentes foi considerado um indicador de sucesso; como direito a ser alcançado por meio da ampliação e do aprimoramento das políticas universais e da criação de políticas afirmativas, do qual várias políticas e programas criados se vincularam e o PNE (2014-2024) representou uma grande aposta na perspectiva do salto da melhoria da qualidade educacional.

Cabe ressaltar que de 2003 a 2012 o gasto federal em manutenção e desenvolvimen-to do ensino triplicou, em relação ao PIB, chegando a 1,2%, um esforço gigantesco, mas ainda pequeno frente ao gasto público total (5% do PIB) e frente aos recursos do fundo público em mãos do ente federal (mais de 50%). E, mais grave, como muitos dos recursos adicionais não foram constitucionalizados, como o Custo Alu-no Qualidade Inicial - CAQi3 via Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvi-mento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação Básica)4, por exemplo, e se configuravam como transferências voluntárias, ficou fácil ao go-verno golpista de Temer, e depois a Bolsonaro reduzir drasticamente esses valores.

Observa-se também que, em um jogo dinâmico e contraditório, muitas vezes a educação também exerceu o papel de compensação ou de estratégia de resistência diante da interdição de mudanças estruturais urgentes não realizadas, como, por exemplo, os avanços com relação à construção de um projeto popular de educação do campo em contraposição à incipiente mudança na histórica concentração de terras nas mãos de poucos.

Em relação às chamadas diferenças na educação, importantes conquistas foram ob-tidas nos anos de governo petista, grande parte delas relacionadas à atuação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), sendo esta uma conquista decorrente da proposição política de movimentos sociais. Nes-sa perspectiva, ainda consta a criação das Secretarias de Políticas para as Mulheres (SPM), de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) e de Direitos Huma-nos (SDH), com status de ministério. É fundamental registrar que a Secad, que em

3 Segundo a proposta da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (2007), o CAQi traduz em valores quanto o Brasil precisa investir por aluno ao ano, em cada etapa e modalidade da educação básica pública, para garantir, um padrão mínimo de qualidade do ensino, previsto na legislação. Já o CAQ avança em relação ao padrão mínimo e se aproxima do padrão de qualidade de países desenvolvidos em termos educacionais.

4 Os Fundos são mecanismos de financiamento da educação pública. O Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério) foi criado em 1996 e substituído em 2007 pelo Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação) com vigência até 2020. O Fundef era destinado somente ao ensino fundamental e o Fundeb envolve toda a educação básica (educação infantil, ensino fundamental, ensino médio e mais as modalidades). Como o Fundo funciona? É como se cada estado brasileiro tivesse uma “cesta de recursos”. Cada prefeitura daquele estado e o governo estadual contribuem com uma parte de impostos para esta cesta. Feito o “bolão” de recursos, dividi-se pelo número de alunos(as) atendidos pela educação pública municipal e estadual. Desse modo, chega-se a um valor mínimo estadual. Se este valor mínimo estadual é inferior ao valor mínimo nacional, decretado pelo governo federal no início de cada ano, a União complementa para que nenhuma rede municipal ou estadual invista menos recursos por aluno do que o mínimo nacional. Sendo assim, cada prefeitura vai até a cesta de recursos do seu estado e retira uma quantidade de recursos proporcional ao número de crianças (no caso da creche) e de alunos (para as outras etapas e modalidades da educação básica) existente em sua rede de ensino. O mesmo é válido para o governo estadual que retira da cesta um valor proporcional ao número de alunos de sua rede. Atualmente tramita no Congresso Nacional a nova proposta de Fundeb, prevendo que o Fundo se torne permanente. Um dos principais pontos de disputa no Congresso é o aumento da participação da União no volume de recursos do Fundo, passando dos atuais 10% para 40%.

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2011 passou a ser chamada de Secadi, foi encerrada pelo governo Bolsonaro logo após a posse em 2019.

Entre os avanços da abordagem das diferenças na educação, destacaram-se: as di-retrizes sobre inclusão e diversidade elaboradas pelo Conselho Nacional de Edu-cação e as estratégias conquistadas no Plano Nacional de Educação (2014-2024); o desenvolvimento de políticas de ação afirmativa no ensino superior e na educa-ção profissional com critério étnico-racial e com reserva de vagas para estudantes de escola pública; a criação de programas de formação e de produção de materiais didáticos; o surgimento de órgãos similares à Secad/Secadi em várias secretarias municipais e estaduais; a expansão de políticas universais para grupos e popula-ções discriminados; a ampliação de arranjos intersetoriais e de institucionalidades participativas com sujeitos vinculados a movimentos sociais que abordam a rela-ção igualdade e diferenças.

Apesar desses e de outros importantes avanços relativos às agendas das diferenças nas políticas educacionais, observa-se também que, tanto no que se refere aos seus conteúdos quanto em relação aos novos arranjos institucionais construídos para dar resposta às agendas das diferenças, eles pouco impactaram a formulação e a imple-mentação das políticas universais de educação – aquelas que são destinadas a todos os estudantes da educação – muitas delas reprodutoras de desigualdades da educa-ção, mesmo com a crescente adesão discursiva à chamada diversidade.

Nos últimos anos, a noção do que é qualidade em educação ficou reduzida para a maior parte das escolas e redes de ensino ao Ideb (Indicador de Desenvolvimento da Educação Básica), indicador criado pelo governo federal em 2007 que mede o desempenho dos alunos em matemática e português e o fluxo escolar, ou seja, se os alunos conseguem avançar na sua trajetória escolar ou se repetem de ano e são excluídos da escola. Apesar do significado do Ideb, essa noção de qualidade em educação induzida não dá conta de dimensões fundamentais de uma noção voltada para um projeto transformador. É necessário ir além.

E o que consideramos qualidade em educação? A noção de qualidade é sempre algo construído e negociado em cada sociedade, em cada momento histórico, mas há vários componentes que constituem consensos na sociedade brasileira, contando com base legal, e que tem forte impacto no financiamento educacional. Entre eles, uma escola de qualidade deve contar:

A garantia do acesso a um conhecimento emancipador, que promova as habi-lidades de leitura, escrita, matemática e de outras áreas do conhecimento conec-tadas ao estímulo à curiosidade, à pesquisa, à leitura crítica e criativa do mundo, ao letramento político, ao cuidado; valorizando a história e as culturas africanas, afro-brasileiras e indígenas; os conhecimentos e saberes populares presentes nos

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territórios e em outros lugares do Brasil e do mundo; reeducando as relações sociais para a superação do racismo, do machismo, da LGBTIfobia e de tantas outras desigualdades e discriminações; a valorização da política em prol do bem comum e da transição para uma sociedade sustentável que reconheça os direitos da natureza e de que somos parte dela;

Com profissionais de educação valorizadas(os), que recebam salários dignos, comparável àqueles recebidos por profissões de maior prestígio social, formação adequada e tenham condições de trabalho, inclusive em equipe, podendo se de-dicar exclusivamente a uma escola, em vez de ter que trabalhar em várias delas para sobreviver;

Com menos crianças/estudantes por turma, possibilitando uma abordagem mais individualizada, que reconheça a legitimidade das várias formas e ritmos de aprendizagem;

Com alimentação adequada, transporte escolar, infraestrutura, equipamentos e materiais adequados;

Com articulação com outras políticas públicas: de saúde, assistência social, justiça e com organizações da comunidade, concretizando a rede de proteção dos direitos das crianças, adolescentes, jovens e adultos, prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto da Juventude;

Que tenha como base a participação e a gestão democrática na perspectiva de direitos, apostando na relação com os estudantes, com as famílias – em sua di-versidade – com as comunidades do entorno e com o território no qual está inserida. Uma participação que influencie a construção e a implementação das políticas educacionais (municipais, estaduais e federal). Alerta-se para a impor-tância de que a gestão democrática não seja utilizada para promover discrimina-ções e reduzir direitos da população, como defendido pelo Movimento Escola sem Partido e por outros movimentos ultraconservadores na educação;

Que acolha e proteja as crianças, adolescentes e jovens da fome e da violência e enfrente desigualdades educacionais, racismos e outras discriminações presentes no ambiente escolar, promovendo uma cultura democrática.

5. O PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO (2014-2024): CONQUISTAS E DERROTAS

Fruto de forte atuação de redes, movimentos e organizações da sociedade civil no Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação foi aprovado em junho de 2014. O PNE contém vinte metas5 para a melhoria da qualidade na educação até 2024, que estão sendo inviabilizadas com os gigantescos cortes de recursos da edu-cação e a aprovação da Emenda Constitucional 95, em dezembro de 2016, que reduziu drasticamente o financiamento da educação e de outras áreas sociais. Em função do corte de gastos e das políticas recessivas, a educação vem perdendo deze-nas de bilhões de reais.

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Dentre os avanços, o PNE 2014-2024 incorporou várias deliberações da Conferên-cia Nacional de Educação 2010, entre elas, os 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação, a implantação do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi) e do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) com complementação de recursos financeiros da União e a equiparação da média salarial do magistério com a média de remuneração das demais profissões com a mesma formação. Entre as derrotas do campo progressista, constaram: a inclusão de parcerias público-privadas e parte dos recursos ao Fies na contabilização dos 10% do PIB e a limitação da gestão democrática à educação pú-blica, não envolvendo as instituições privadas de educação.

Comparado ao Plano Nacional de Educação 2001-2010, o novo PNE avançou no trato das questões de diversidades associadas à superação de desigualdades. No en-tanto, não enfrentou em suas metas os desafios referentes à promoção da sustentabi-lidade socioambiental na educação, permanecendo esta somente como uma diretriz genérica no preâmbulo do documento.

As agendas da educação do campo, indígena e quilombola ganharam maior trans-versalidade no conjunto das metas do PNE. Das vinte metas do novo PNE, quinze metas abordam de forma articulada a educação nessas modalidades. Essas conquistas se deveram à atuação conjunta dos movimentos sociais vinculados a cada uma delas e ao apoio a essas agendas por parte dos principais movimentos sociais, entidades sindicais, associações acadêmicas e organizações da sociedade civil que incidiram na tramitação do PNE no Congresso Nacional.

Em relação à agenda de educação antirracista, protagonizada historicamente pelos movimentos sociais negros, observaram-se conquistas importantes, entre elas, o re-forço da garantia nos currículos escolares dos conteúdos de história e culturas afro--brasileiras e indígenas, nos termos da Lei n. 10.639/2003 e da Lei n. 11.645/2008 que alteraram a LDB. Entretanto, o novo PNE não reconheceu em seu texto o Pla-no Nacional de Implementação da Lei n. 10.639, instrumento construído de forma participativa e lançado em 2010, que estabeleceu um conjunto de metas visando à institucionalização da Lei n. 10.639 nos sistemas de ensino. O reconhecimento do Plano Nacional da Lei n. 10.639 pelo PNE garantiria um status de política de Estado às suas metas, além de condições de maior exigibilidade política e jurídica.

As ações afirmativas estão previstas explicitamente nas Estratégias 11.3 e 12.9, que abordam, respectivamente, a redução das desigualdades étnico-raciais e regionais no acesso e na permanência na educação profissional técnica e a ampliação da partici-pação proporcional de grupos historicamente desfavorecidos na educação superior. Apesar das emendas parlamentares apresentadas com base em proposições do movi-mento social negro, o mesmo não ocorreu com a pós-graduação. A Meta 14.5 prevê a implementação de ações destinadas a reduzir as desigualdades étnico-raciais, re-gionais e favorecer o acesso das comunidades indígenas e quilombolas a programas

5 Metas do PNE: 1 (Educação Infantil); 2 (Ensino Fundamental); 3 (Ensino Médio); 4 (Educação Especial/Inclusiva); 5 (Alfabetização de crianças); 6 (Educação integral); 7 (Qualidade da Educação); 8 (Elevação da escolaridade média e diminuição de desigualdades); 9 (Alfabetismo de jovens e adultos); 10 (EJA integrada à Educação Profissional); 11 (Educação Profissional); 12 (Educação Superior); 13 (Mestres e doutores no Ensino Superior); 14 (Pós-graduação); 15 (Formação de professoras e professores da educação básica); 16 (Formação continuada e pós-graduação de professores); 17 (Valorização dos profissionais do magistério); 18 (Planos de Carreira para as/os Profissionais de Educação); 19 (Gestão democrática); 20 (Financiamento da Educação). Para acessar o documento completo do Plano Nacional de Educação (PNE): http://bd.camara.leg.br/bd/handle/bdcamara/20204#

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de mestrado e doutorado, sem se prever a adoção de ações afirmativas. A redução das desigualdades étnico-raciais também está prevista na Estratégia 12.5, que trata do acesso ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

Uma das grandes conquistas do PNE, contidas no projeto original do MEC enca-minhado ao Congresso Nacional, foi o estabelecimento da Meta 8 como uma meta de equalização, com o foco na redução de desigualdades. A Meta prevê a elevação da escolaridade média da população de 18 a 24 anos, de modo a alcançar, no mínimo, doze anos de estudo no último ano de vigência do Plano, para as populações do campo, da região de menor escolaridade no país e dos 25% mais pobres. O texto da Meta também prevê igualar a escolaridade média entre negros e não negros decla-rados ao IBGE até 2024.

A Educação de Jovens e Adultos e a Educação Especial foram objeto não somente de estratégias, mas de metas específicas no PNE. A EJA foi abordada predominan-temente em três metas (8, 9 e 10), que tratam, respectivamente: da elevação da escolaridade média da população de 18 a 29 anos; da elevação da taxa de alfabeti-zação da população com 15 anos ou mais, erradicação do analfabetismo absoluto e redução da taxa de analfabetismo funcional; da oferta das matrículas de educa-ção de jovens e adultos nos ensinos fundamental e médio, na forma integrada à educação profissional.

Apesar dos avanços, o PNE não enfrentou uma das principais reivindicações dos movimentos de educação de jovens e adultos, que é a isonomia do financiamento da modalidade de ensino com as etapas dos ensinos fundamental e médio, mais es-pecificamente o cálculo compatível aos custos nos fatores de ponderação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação Básica). Isso significa que, ainda hoje, uma matrícula de um aluno da EJA vale menos recursos para a gestão educacional que uma ma-trícula de um aluno no ensino fundamental ou médio regular. Tal fato contribui para desestimular a expansão das matrículas. O PNE também não previu a obriga-toriedade dos gestores e das gestoras educacionais declararem o quanto gastam com a EJA, o que fragiliza o controle social de uma modalidade que ainda é tratada de forma secundária pela política educacional.

Entre 2013 e 2014, na tramitação do PNE no Senado, uma aliança entre grupos católicos e evangélicos pentecostais e parlamentares – vinculados ou não a esses grupos religiosos – obteve a vitória com a retirada da menção a gênero e sexualidade do Plano Nacional da Educação. Esta mesma aliança atuou para que o PNE não previsse em seu texto mecanismos de defesa ativa da laicidade na educação pública.

A ênfase no texto em gênero e sexualidade havia sido conquistada na tramitação

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na Câmara dos Deputados por meio de emendas parlamentares propostas por organizações da sociedade civil com base nas deliberações da Conferência Nacio-nal de Educação de 2010. A retirada da menção a gênero e sexualidade do PNE também afetou a estratégia referente à implementação de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou discriminação “racial, por orientação sexual e identidade de gênero”, que passou a ser “por quaisquer formas de discriminação”. Nomear as formas e causas de discriminações e violências é fundamental para que as políticas possam reconhecer quem são os “alvos” e construir respostas mais específicas aos problemas.

Os grupos religiosos obtiveram ainda outra conquista: incluíram no inciso V do mesmo artigo 2.º, que tratava da formação para o trabalho e para a cidadania, “a ênfase nos valores morais e éticos em que se fundamenta a sociedade”, na perspec-tiva de abrir espaço para investidas religiosas nos currículos e nos programas de formação de professores e professoras.

A aliança entre esses grupos teve como base a defesa da família tradicional e do ma-trimônio, ancorada nas críticas às conquistas sociais das mulheres, na patologização da homossexualidade (considerada uma perversão por vários desses grupos) e em um ativismo contrário aos direitos humanos sexuais e reprodutivos.

Apesar dessa derrota no PNE, o direito à educação em gênero e sexualidade nas escolas e universidades continua garantido por lei já que está previsto em normas nacionais e internacionais do qual o Brasil é signatário. Tem consistente base legal na Constituição Brasileira (1988); na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Na-cional (LDB/1996); nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica: Diversidade e Inclusão6 e nas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio (Art.16), elaboradas pelo Conselho Nacional de Educação; e na Lei Maria da Penha (2006), que estabelece em seu artigo 8º que as escolas devem abordar gênero e raça como forma de prevenir a violência doméstica e familiar.

6. PROPOSTAS PARA A EDUCAÇÃO

As propostas a seguir estão profundamente interconectadas e dão centralidade à superação das diversas desigualdades que marcam a garantia do direito humano à educação de qualidade e à ampliação da noção do que é considerada qualidade educacional para um projeto radical de transformação da sociedade brasileira: do cotidiano às macro políticas públicas.

Construção que contribua para a ampliação e a qualificação das demandas sociais por justiça social e ambiental e para a sustentação política deste projeto ao longo no tempo. Tal processo pressupõe o fortalecimento da sociedade civil democrática

6 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica - Diversidade e inclusão: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos (2000); Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (2001); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (2004); Diretrizes Operacionais para a Educação de Jovens e Adultos (2008); Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado na Educação Básica, modalidade Educação Especial (2009); Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação para Jovens e Adultos em Situação de Privação de Liberdade nos Estabelecimentos Penais (2010); Diretrizes para o Atendimento de Educação Escolar de Crianças, Adolescentes e Jovens em Situação de Itinerância (2011); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena (2012); Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (2012); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Ambiental (2012); Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (2012); Diretrizes Nacionais para o atendimento escolar de adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas (2016).

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e da capacidade do Estado de garantir direitos e de promover e induzir padrões de direitos humanos e de direitos da natureza na sociedade por meio do conjunto de suas políticas, programas e ações, em especial, por meio da educação em articulação com outras políticas (cultura, ciência, tecnologia e comunicação, entre outras).

Sabemos que historicamente a política educacional brasileira não foi formulada, implementada e avaliada na perspectiva da equalização, ou seja, na perspectiva da redução das desigualdades, muito pelo contrário, predominantemente as políticas educacionais contribuíram e contribuem para acirrar ainda mais as desigualdades educacionais e sociais.

Por isso, as propostas a seguir representam uma mudança de paradigma com im-pactos que vão da sala de aula, da relação das creches, escolas e universidades com os territórios dos quais fazem parte, às macro políticas educacionais (de financia-mento, avaliação, currículo, financiamento, gestão democrática, valorização das/dos profissionais de educação, produção de materiais didáticos e paradidáticos etc) e às políticas intersetoriais e transversais, que efetivem abordagens multidisciplina-res e concretizem redes de proteção de crianças, adolescentes, jovens e adultos nos territórios contra a fome, a violência e por vida digna. As propostas também partem do reconhecimento dos acúmulos das Conferências Nacionais de Educação (2010 e 2014), da Conferência Nacional Popular de Educação (2018) e das Conferências, Fóruns e Congressos Nacionais que as precederam e que mobilizaram a participação de milhares e milhares de pessoas em todo o país.

1) RETOMADA E IMPLEMENTAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

(2014-2024): O PNE (Lei 13.005/2014) representa um grande marco na luta pelo direito à educação que vem sendo inviabilizado completamente em decorrência dos cortes de recursos sofridos pelas políticas sociais, em especial, pela educação, e pelo projeto autoritário que seques-trou o Estado brasileiro após o golpe institucional de 2016. O PNE, com suas vinte metas, é uma conquista, mas também com derrotas e omissões fundamentais, como abordado anterior-mente. Mesmo assim, como esforço suprapartidário, o PNE representa o que de mais avançado a sociedade brasileira conseguiu produzir em termos de plano de longo prazo comprometido com o avanço do direito humano à educação no país. Nosso ponto de partida para um projeto transformador da Educação é a retomada e a implementação do PNE (2014-2024), com suas metas e regulamentações, entre elas, do Sistema Nacional de Educação; do Custo Aluno Qua-lidade; do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb); da Política Nacional de Formação dos profissionais de educação; da Gestão Democrática; da Política Nacional de Mate-riais Didáticos e Paradidáticos. Destaque também deve ser dado às estratégias de implementação do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) da meta 20, que deveria ter sido implementada desde junho de 2016; e a que estabelece a participação da comunidade escolar na escolha da equipe de gestão escolar prevista na meta 19. Apesar da importância do PNE, defende-se aqui que um projeto transformador de educação não deve se restringir ao Plano Nacional de Educação (2014-2024), mas deve ir além dele.

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2) PROMOÇÃO DE UMA CULTURA DEMOCRÁTICA COMUM PARA A SUSTENTA-

ÇÃO DE UM PROJETO DE JUSTIÇA SOCIAL E DE TRANSIÇÃO PARA UMA SOCIE-

DADE SUSTENTÁVEL ARTICULADA ÀS POLÍTICAS DE CULTURA, PARTICIPAÇÃO,

CIÊNCIA E TECNOLOGIA: É necessário reorientar o conjunto das políticas públicas de Estado e, em especial, da política de educação para a promoção de uma cultura democrática comum, que promova: o letramento político da população brasileira; a alteridade; o compromisso com o bem comum e com o interesse público; a intolerância para com as desigualdades, racismos, sexismos, LGBTIfobias e demais discriminações que desumanizam as outras e outros; desconstrua a subal-ternização e a inferioridade; a crítica ao consumismo e a alfabetização ecológica e pelo bem viver, destinada à transição para uma sociedade sustentável, no contexto das mudanças climáticas. No plano macro, o Brasil se mostra extremamente despreparado para enfrentar as mudanças climáticas que vêm ocorrendo em ritmo acelerado no planeta e acirrando desigualdades sociais e o racismo ambiental que impactam de forma muito mais perversa comunidades pobres, negras e indígenas. Na área educacional, a promoção dessa cultura comum deve ser realizada por meio da educação formal e de uma política nacional de educação popular em direitos humanos e em direitos da na-tureza, com forte articulação com as políticas e programas de cultura (pontos de cultura, política nacional de estímulo à leitura e a construção de bibliotecas comunitárias, cinema, teatro, etc), de participação social e de fortalecimento de espaços públicos e de ciências e tecnologias (como a expansão do acesso à internet de alta velocidade). Processo este que reconheça a importância, valorize, apoie financeiramente, fortaleça, estimule e multiplique experiências educativas, culturais e tecnológicas inovadoras nas creches, escolas e universidades, como parte do currículo formal, e para além da educação formal, no campo da sociedade civil: coletivos juvenis, organizações, movimentos sociais, grupos culturais e tantas outras formas diversas de organização popular. Des-taca-se que nesta proposta as tecnologias estão a serviço de um projeto emancipador de educação que supere desigualdades e que alimente processos criativos e potencialidades e não são em si – de forma descontextualizada e mercantilizada – tomadas como a solução dos problemas da educação brasileira em uma realidade precarizada, como defendido por determinados setores da sociedade.

3) ACESSO AO CONHECIMENTO EMANCIPATÓRIO E PRODUÇÃO DE NOVOS

CONHECIMENTOS NA EDUCAÇÃO FORMAL QUE TENSIONEM E AMPLIEM O

QUE SE CONSIDERA UNIVERSAL, DE FORMA CONTEXTUALIZADA E CONEC-

TADA AOS TERRITÓRIOS: Entendemos por conhecimento emancipatório aquele que faz os sujeitos se sentirem capazes de aprender e de valorizar os conhecimentos de suas famílias, de suas comunidades, de seus territórios e ancestralidades como portadores de dignidade; permita a apropriação crítica e criativa das histórias, culturas, da ciência e da tecnologia decorrentes da presença humana no planeta; o desenvolvimento colaborativo, contextualizado e articulado das habilidades de leitura, escrita, matemática, pesquisa e de cuidado (consigo, com as outras pessoas, com a divisão do trabalho doméstico, com as comunidades e planeta); que fortaleça as estudantes e os estudantes como sujeitos de direitos, de vida cotidiana, de transformação da rea-lidade em prol do bem comum, cruzando fronteiras impostas por uma sociedade historicamente segregada, racista e patriarcal. Esse conhecimento está presente nas universidades, nas escolas, nas creches, nos territórios, nos movimentos sociais, nos espaços de culturas, entre outros espaços. Conhecimento emancipatório é aquele que amplia e tensiona a fronteira do que historicamente

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foi considerado conhecimento “universal” (branco, eurocêntrico, patriarcal, heteronormativo etc) e conhecimento “das outras e dos outros”, dos considerados diferentes (mulheres, negras/os, indígenas, pessoas LGBTIs, pessoas com deficiências, comunidades do campo, das florestas etc). Nessa perspectiva, é fundamental implementar as Diretrizes Nacionais Curriculares de Educação, Inclusão e Diversidade, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação, construídas ao longo das décadas de 2000 e 2010, desconsideradas pelas políticas de avaliação educacional e foco de resistência de grande parte do sistema educacional. Em especial, dar centralidade a LDB alterada pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008, que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africanas, afro-brasileira e indígenas como eixo estrutural de uma revisão curricular que supere o racismo estrutural, os epistemicídios, e amplie a noção de conhecimento universal para todas e todos e a própria função da escola.

4) PREVENÇÃO E ENFRENTAMENTO DO RACISMO, DO SEXISMO, DA LGBTI-

FOBIA, DO CAPACITISMO E DEMAIS DISCRIMINAÇÕES, FIM DO ENSINO RELI-

GIOSO EM ESCOLAS PÚBLICAS E DEFESA ATIVA DA LAICIDADE NA EDUCAÇÃO

PÚBLICA: Esta prioridade prevê uma papel ativo do estado na superação do racismo, do sexis-mo, da LGBTIQfobia, do capacitismo e das demais discriminações, xenofobia e intolerâncias e violências nos espaços escolares e para além dele com a implementação de mecanismos de pre-venção e de enfrentamento imediato de situações de discriminações e de violências e de defesa ativa da laicidade na educação pública. Além do que já foi expresso nos pontos anteriores – em especial, a centralidade da LDB alterada pelas leis 10.639/2003 e 11.645/2008 – é fundamen-tal a implementação do artigo 8º da Lei Maria da Penha, que estabelece a obrigatoriedade das escolas abordarem gênero e raça como forma de prevenir a violência doméstica e familiar. Dis-cutir gênero na escola significa também chamar a atenção para as desigualdades entre homens e mulheres, meninos e meninas, a divisão de trabalho com o cuidado com a casa e com a vida e colocar em questão como o modelo hegemônico de masculinidade se relaciona com a violência contra meninas, mulheres e população LGBTIQ e com a destruição da natureza e das comuni-dades tradicionais. Nesse sentido, é necessário garantir ativamente o direito humano à liberdade religiosa, que prevê também o direito humano de não professar nenhuma religião. Conforme deliberado na Conferência Nacional de Educação de 2014, é necessário construir as Diretri-zes Nacionais Curriculares de Educação, Gênero e Sexualidade e estabelecer mecanismos que promovam a educação laica em creches, escolas e universidades públicas, atualmente marcadas pelo crescimento assustador de casos de proselitismo religioso, de perseguições e de intolerância religiosa e do cerceamento da abordagem de gênero, raça e sexualidade nas escolas. Intolerância que tem como principais alvos a população LGBTIQ e as adeptas e os adeptos de religiões de matriz africana, levando a situações de depressão, isolamento social e até abandono escolar. O Estado deve atuar para que a escola pública não seja espaço de disputa religiosa por parte de gru-pos fundamentalistas em busca de adeptos e que as famílias e as servidoras e servidores públicos consigam estabelecer a fronteira entre sua fé e o exercício de função pública de profissional de educação, comprometida com a garantia do direito humano à educação de todas e todos. Nessa perspectiva, defende-se o fim do ensino religioso em escolas públicas, previsto no parágrafo 1º do artigo 210 da Constituição Federal. Se a justificativa que deu base à inclusão do ensino religioso na Lei Magna era a importância do ensino religioso para a promoção de valores como

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respeito, tolerância e solidariedade, atualmente o Brasil conta com uma normativa de educação em direitos humanos que prevê a formação para tais valores, na perspectiva cidadã e laica, como é o caso das Diretrizes Nacionais de Educação em Direitos Humanos de 2012. Muito pelo contrário, diversos estudos revelam que o ensino religioso – mesmo em suas versões intercon-fessional e não confessional – tem sido sequestrado por determinados grupos religiosos que têm projeto político-partidário e disputam o Estado, recursos públicos e adeptos, contribuindo para aumentar ainda mais a intolerância, os preconceitos e as discriminações nas escolas públicas.

5) TERRITÓRIOS EDUCATIVOS - ACESSO E PERMANÊNCIA NA EDUCAÇÃO,

COM PROTEÇÃO INTEGRAL E FORTALECIMENTO DA ESCOLA PARA A VIDA

DIGNA: Na maior parte do país, a escola é o único equipamento público que mantém uma relação cotidiana com a população. Ainda é um grande desafio para a educação brasileira que todas crianças, adolescentes, jovens e adultos – das cidades, do campo e das florestas – consigam acessar uma vaga, permanecer na escola, aprender coisas que façam sentido e concluir sua traje-tória escolar e universitária. Exclusão que afeta mais perversamente a população pobre, negra e indígena. Como parte desse desafio, é importante considerar que, desde 2009, a Emenda Cons-titucional 59 tornou obrigatório no país que todas as crianças, adolescentes e jovens entre 4 e 17 anos devem estar na escola, mesmo assim são quase 3 milhões de crianças e adolescentes nesta faixa etária que estão fora da escola. Além do diminuir o número de estudantes por turma, me-lhorar as condições de trabalho das/dos profissionais de educação para que possam se dedicar ex-clusivamente a uma única escola, destaca-se aqui a importância do trabalho coletivo nas institui-ções de ensino e a implementação da rede de proteção de crianças, adolescentes e jovens contra a fome, a violência e pela vida digna. Essa abordagem territorializada da escola e da universidade prevê também a implementação da noção de território educativo, na qual as creches, escolas e universidades de um mesmo território atuem de forma articulada com outras organizações da sociedade civil e espaços educativos existentes na comunidade para garantir o direito à educa-ção de todos, superando uma abordagem equivocada que torna algumas escolas especializadas em receber os alunos que são excluídos por outras escolas de um mesmo território. Pressupõe também, na perspectiva de equalização, um maior investimento por parte das políticas públicas em melhores condições para as escolas que situadas em territórios mais pobres, marcados pelos piores indicadores sociais, com a garantia de bolsas e de outros programas de permanência para estudantes do ensino médio e de ensino superior oriundos de setores populares e vinculados aos programas de ações afirmativas. Educação em tempo integral não pode significar confinamento para as crianças e jovens pobres, mas aumento de experiências enriquecedoras em condições e equipamentos adequados e sob supervisão de profissionais qualificados. A noção de territórios educativos traz ainda uma concepção de educação integral para além daquela vivenciada nas instituições de ensino formal. Criar condições para que a educação integral se efetive e garanta o pleno desenvolvimento das pessoas, como previsto no Art. 2º da LDB, requer uma gestão inter-setorial nos territórios que possibilite o diálogo da educação com as áreas da cultura, assistência social, saúde, socioambiental, desportiva, entre outras.

6) IMPLEMENTAÇÃO DO CUSTO ALUNO QUALIDADE (CAQ) E PROMOÇÃO DE

UMA POLÍTICA DE FINANCIAMENTO PARA A EQUALIZAÇÃO: Previsto na legisla-

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ção educacional, mas nunca cumprido, o CAQ representa quanto o Brasil deve investir por aluno para garantir os insumos de qualidade para toda creche e escola públicas do país e dar um salto na oferta de uma educação de qualidade. Esses insumos devem efetivar o chamado padrão de qualidade educacional e abarcam desde a infraestrutura dos prédios (com acessibi-lidade para pessoas com deficiências), equipamentos, materiais didáticos, salários e formação do professorado etc. O Plano Nacional de Educação (2014-2024) previa que até 2016 o Brasil estabelecesse o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), ou seja, um primeiro passo rumo ao Custo Aluno Qualidade, mas isso não ocorreu. Desde 2010, o Ministério de Educação não homologou o parecer n. 8 do Conselho Nacional de Educação, elaborado com base nos estudos da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, que apresentava um referencial de cálculo para o CAQi. Em marco de 2019, no governo Bolsonaro, em um ato autoritário, o parecer n. 8 do Conselho Nacional de Educação foi revogado pelo mesmo CNE que o havia aprovado por unanimidade. Uma educação de qualidade para um projeto transformador de sociedade pressupõe a retomada e implementação do CAQ. Tendo o CAQ como base para o conjunto das creches e escolas públicas do país, propomos que para, além disso, seja im-plementada uma política de financiamento equalizadora com base na noção do Adicional CAQ que invista recursos a mais em regiões e territórios marcados por maiores desigualda-des visando garantir mais infraestrutura, estímulo à fixação de professores mais experientes e qualificados, entre outras medidas, que garantam melhores condições para quem mais precisa e não o contrário, como historicamente ocorre na política educacional. No caso do ensino superior, defende-se aqui um maior investimento na expansão do atendimento por meio de instituições públicas, buscando reverter o quadro da oferta atual caracterizada pela maior pre-sença de instituições privadas de baixa qualidade (cerca de 75% da oferta do ensino superior) e do crescente vertiginoso da educação a distância como resposta à precarização desta etapa de ensino. No caso da EAD o mais grave é que boa parte dos cursos são na área de formação de professores, agravando ainda mais o desprestígio da profissão docente pelo excesso de diplo-mados com formação precária. A rede pública de educação superior tem condições de atender todas as necessidades de professores da educação básica que o país necessita.

7) CARREIRA NACIONAL PARA OS PROFISSIONAIS DE EDUCAÇÃO BÁSICA E

DO ENSINO SUPERIOR DE INSTITUIÇÕES PÚBLICAS: Esta prioridade visa fazer da profissão docente uma das mais atrativas do país, com a valorização efetiva das/dos profissio-nais de educação, com a dedicação exclusiva dos profissionais a uma instituição de ensino. Para isso, é necessário abordar as políticas de valorização das/dos profissionais de educação em seu sentido ampliado, como defendido pelos movimentos sindicais de profissionais de educação. Essas políticas devem ser compostas por: formação inicial e continuada de qualidade; salários dignos com planos de carreira; jornada integral, com ao menos um terço do tempo destina-do a atividades extraclasse, como trabalho coletivo com outros/as profissionais de educação, planejamento e correção de trabalhos, relação com a comunidade escolar; regras de ingresso na carreira, como a admissão por concurso público e a avaliação profissional; condições de trabalho (número adequado de estudantes por turma, infraestrutura, materiais etc.); direito à participação nas decisões da escola e à representação sindical; acesso a bens culturais. Para além da urgência da implementação das conquistas legais da última década – como o Piso Sa-

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larial Profissional Nacional para os Profissionais do Magistério (2008) e de outras estratégias previstas no Plano Nacional de Educação – esta proposta defende a necessidade de aprovação pelo Congresso Nacional das Diretrizes Nacionais de Carreira (versão atualizada), expressa no PL 1592, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores de Educação, e da criação de uma Carreira Nacional para os profissionais de Educação Básica, com valores salariais que venham progressivamente a ser equiparados aos profissionais de educação superior. Destaca-se que esta proposta rechaça, com base em estudos nacionais e internacionais, qualquer política de premiação por meio de bônus e de outros ganhos financeiros aos professores por melhoria de desempenho de alunas e alunos, ressaltando seu caráter acirrador de desigualdades, ao afastar os professores mais preparados e experientes das escolas que deles mais necessitam. Observa-se também que a criação da Carreira Nacional deve prever critérios que valorizem a origem local dos candidatos e critérios de ação afirmativa cor/raça, etnia, origem social, iden-tidade de gênero e presença de deficiências conforme percentual da presença desses grupos no total da população do município ou estado. Dessa forma, se buscará evitar o fenômeno de que a valorização de uma profissão venha associada ao branqueamento dessas categorias e garantir um corpo de profissionais de educação mais diverso. Os concursos públicos devem envolver também provas didáticas para avaliar o potencial do futuro professor. Tudo isso, contudo, só será efetivo se houver substancial aumento no padrão de remuneração.

8) REGULAÇÃO DA PRESENÇA PRIVADA NA EDUCAÇÃO PÚBLICA E ESTÍMULO

PARA QUE AS CLASSES MÉDIAS E ALTAS FREQUENTEM A ESCOLA PÚBLICA: A regulação do setor privado na educação é uma demanda desde a Constituição de 1988, objeto de grandes embates no Congresso Nacional, demanda que foi reforçada pelas Conferências Nacionais de Educação de 2008, 2010 e 2014 e que não foi devidamente enfrentada no Plano Nacional de Educação (2014-2024). Sintonizada com os Princípios Internacionais de Abidjan (2019), esta proposta prevê a regulamentação do setor considerando a diversificação de formas e a crescente privatização da educação pública, com a consequente subordinação dela aos inte-resses das corporações, em um contexto de intensa financeirização da economia. Na perspectiva de superar a gigantesca segregação social e racial na educação e o déficit de cultura democrática vigente na sociedade brasileira, propõe-se o estímulo por parte do Estado que estudantes de classes médias e altas se matriculem em escolas públicas. Nessa perspectiva, também é proposto que na regulação da educação ofertada por instituições privadas seja estabelecida a obrigatorie-dade: de ações afirmativas com critério racial na contratação de profissionais de magistério e na composição do alunato, garantindo-se dessa forma a presença de alunos e professores negros e indígenas nessas instituições privadas conforme a representação desses grupos no total da popu-lação do estado na qual a instituição atua; e de mecanismos de gestão democrática. Considera-se fundamental: a progressiva extinção do Fies com destinação dos recursos para ampliação da rede pública; congelamento das vagas via convênios, organizações sociais e vouchers em todas as etapas, modalidades e níveis da educação; regulação imediata das Fundações privadas de apoio atualmente existentes nas instituições públicas de ensino superior com a garantia de que a desti-nação dos recursos por ela mobilizados seja definida pelos colegiados institucionais e a vedação de cobranças em cursos de extensão, MBAs e cursos de atualização de quaisquer modalidades.

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9) POR UMA POLÍTICA DE AVALIAÇÃO EDUCACIONAL PARA A TRANSFORMA-

ÇÃO SOCIAL: Uma política de avaliação educacional comprometida com a justiça social neces-sariamente precisa ser contextualizada e sensível para captar as permanências, os acirramentos e as mudanças das desigualdades da oferta educacional. Deve contribuir para revelar desafios, avanços, limites e possibilidades, sempre na perspectiva da garantia do direito à educação de qualidade, fortalecendo a ação transformadora dos sujeitos escolares e da gestão educacional e a construção de uma cultura comum democrática no país. Essa perspectiva coloca o desafio de superar uma ava-liação ainda muito presente no Brasil, pautada pela competição, pela seleção, pelo individualismo, pela premiação e pela punição, em prol de uma avaliação compreendida como processo formativo. Ou seja, superar uma cultura de avaliação que muitas vezes contribui para reiterar e acirrar racis-mos e desigualdades. Apesar do reconhecimento da importância de determinados aspectos das políticas de avaliação de larga escala no país, quando desenvolvidas de forma descontextualizadas e isoladas de outros tipos de avaliação, vem contribuindo para o encurtamento dos currículos escola-res, a responsabilização de professores, alunos e famílias pelos resultados obtidos e estimular novas e velhas formas de exclusão educacional e de estigmatização de determinados segmentos escolares. Questiona-se aqui o uso excessivo e a sobreposição de avaliações censitárias no país, de alto custo e de grande impacto nas dinâmicas das redes de ensino e escolas, que deveria ser urgentemente revis-to e – conforme o objetivo e a necessidade – substituído por avaliações amostrais. Por isso, defen-demos a construção de uma política de avaliação que retome os princípios da portaria 369/2016 (INEP/MEC), elaborada em diálogo com organizações da sociedade civil e movimentos sociais, revogada logo após o golpe institucional de 2016. A proposta visa a construção de uma política nacional de avaliação contextualizada, crítica a uma abordagem que prioriza o desempenho e ao fluxo dos alunos, mas que considere os insumos, os processos, o acesso e a equidade, e o estímulo à construção de uma cultura democrática comum, buscando tornar visível aquilo que muitas vezes é invisibilizado e naturalizado no cotidiano escolar e na gestão educacional.

10) INVESTIMENTO NA EDUCAÇÃO DE JOVENS ADULTOS E NAS OUTRAS MO-

DALIDADES DE ENSINO COMO POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA E DE REPA-

RAÇÃO À DÍVIDA SOCIAL BRASILEIRA. Em 2017, 7% das pessoas com mais de 15 anos não sabiam ler nem escrever, o que equivale a 11,5 milhões de analfabetos, e 27% da população que cursaram a escola constavam como analfabetos funcionais. Considerada uma política des-valorizada pelos sistemas educacionais, destinada aos mais excluídos da sociedade, a EJA exige uma postura ativa do Estado de estímulo à manifestação da demanda social e de garantia de uma oferta de atendimento educacional com qualidade para a população a qual ela é destinada para reverter o quadro de desabamento das matrículas dos últimos anos. Além disso, exige uma postura ativa na promoção desse direito na esfera pública, capacidade de inovações institucionais e de envolvimento da sociedade na valorização da EJA como direito humano e como resposta a uma dívida social do país para com milhões de pessoas, dos quais mais de 70% são pessoas negras. Frutos das lutas dos movimentos sociais pelo direito à educação, a EJA e as demais mo-dalidades de ensino (Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação do Campo e Educação Especial das Pessoas com Deficiência na Perspectiva da Educação Inclusiva) precisam ocupar um novo lugar na política educacional, não somente como política de repara-ção a essas populações, mas como políticas de tensionamento das políticas universais, ampliando

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os referenciais do que é considerada a norma, o padrão, a regra para a maioria. Para sua melhor efetivação, além de mais financiamento, essas modalidades exigem uma nova institucionalidade mais complexa e sensível aos diferentes sujeitos e contextos que estão na fronteira da fronteira do direito à educação e abordagens mais integrais, intersetoriais e territorizalizadas, articuladas aos movimentos e organizações de sociedade civil, em uma perspectiva ancorada na garantia dos DHESCAS (Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais).

11) RADICALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO POPULAR E DA GESTÃO DEMOCRÁTI-

CA EM EDUCAÇÃO NA PERSPECTIVA DOS DIREITOS: Apesar das conquistas participa-tivas nos governos petistas, constatou-se que esse avanço se refletiu pouco na tomada de decisão das políticas educacionais, além do que, muitas vezes, prevaleceu nesses processos uma noção de participação pouco sensível e limitada no que diz respeito à participação de sujeitos diversos e a formas não institucionalizadas de participação popular e juvenil. Considerando essa realidade, que política de gestão democrática e participação é necessária para desenvolver e sustentar um projeto de justiça social no país? Em primeiro lugar, é fundamental que a participação seja assumida não como concessão, mas como um direito humano de todas as pessoas, sem discriminação e que reconheça a diversidade e a legitimidade das diferentes formas de participação: as ocupações es-tudantis em escolas e universidades entre 2015 e 2016 ensinaram muito sobre novos referenciais para se pensar as políticas de participação popular em educação. Articulada a isso, é necessário que se adote uma gestão democrática, compreendida como princípio do Estado de Direito. Trata-se de um processo que exige intencionalidade, condições materiais, o estabelecimento de mecanismos legais e institucionais e o planejamento e a organização de ações que desencadeiem e estimulem a participação social e política ao longo do tempo, na perspectiva de construção de uma cultura democrática comum. Ainda é necessário superar três pontos, que limitam a maior diversidade da participação popular em educação. Um deles se trata do referencial de família implícito e, muito vezes explícito, nas ações e políticas destinadas a promover a gestão democrática. Esse referencial ainda tem na família nuclear (pai + mãe + filhos), patriarcal, branca e de classe média, o arranjo ideal e “organizado”, sendo os outros chamados de “famílias desestruturadas”. Diante desse qua-dro, é necessário construir uma gestão democrática para famílias reais e diversas, estimular a maior participação de pais (não somente de mães, tias e avós) e desenvolver uma relação com as famílias que permita reconhecer suas possibilidades, saberes e limites em um país extremamente desigual. Uma relação que considere condições concretas para a participação das famílias na vida escolar e para o estabelecimento de um diálogo possível e efetivo em prol da proteção, do acolhimento, da autonomia e da aprendizagem dos estudantes. Como parte disso, um dos pontos estratégicos é o horário das reuniões e dos processos participativos nas escolas. Os horários utilizados muitas vezes impossibilitam a participação de inúmeras famílias. Outro ponto que merece ser abordado é a necessidade de políticas que garantam a implementação de salas de acolhimento durante as reuniões. Trata-se de medida essencial para que mães, pais, avós e outras pessoas responsáveis por crianças possam efetivamente participar. É preciso considerar, ainda, o acolhimento das famílias e a abordagem dos conteúdos, na perspectiva de que as/os responsáveis pelos estudantes se sintam em condições de participar, de trazer suas contribuições e explicitar conflitos, não recaindo no jogo de culpas entre escolas e famílias. Desafio que também deve ser trabalhado em processos de formação das e dos profissionais de educação e de demais integrantes de instâncias participativas,

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visando a ampliação da participação. É importante destacar que a gestão democrática não se limite à educação pública. Precisa alcançar também as instituições privadas de ensino e os novos arranjos da relação público-privada.

12) UNIVERSIDADE DESCOLONIZADA COMPROMETIDA COM UM PROJETO

DEMOCRÁTICO DE PAÍS COM JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL: Pressupõe a reto-mada do investimento na universidade pública, tanto na ampliação de vagas na perspectiva da universalização do acesso a todas pessoas concluintes do ensino médio, como na garantia de condições de permanência e sucesso de seus estudantes, sobretudo dos setores populares, negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência e população trans. Destacam-se os desafios de regulamentação precisa da presença do capital privado no ensino superior, limitando a redução da educação à mercadoria; e da urgente reversão – em favor das universidades públicas – do quadro atual de mais de 70% da formação de professoras e professores das escolas públicas do país ocorrer em instituições privadas, a maioria de baixa qualidade. Uma universidade que reveja criticamente uma cultura elitista, produtivista e competitiva – fortemente presente no sistema de avaliação da pós-graduação – e multiplique arranjos colaborativos, inter e multidisciplinares e de experimentação comprometidos com os interesses públicos. Uma universidade que reflita cri-ticamente: a sua função social; o seu lugar nas relações globais do sistema universitário e de pro-dução de conhecimento científico – não somente buscando se adaptar a ele. Uma reflexão crítica que resulte na afirmação pública da universidade como lugar de construção de respostas concre-tas aos desafios contemporâneos do país e do mundo por meio de comitês multidisciplinares e de outras formas de ação. Um sistema universitário que reveja seus indicadores de desempenho, em busca de um maior equilíbrio entre pesquisa, ensino e extensão, traduzidos nos sistemas oficiais de avaliação e no acesso ao financiamento. Em especial, a necessidade urgente do reco-nhecimento da docência e o maior investimento em projetos e ações com comunidades e com a sociedade, fortalecendo a relação com os territórios e reconhecendo a legitimidade da produção de conhecimento que ocorre em diferentes lugares, para além dos espaços acadêmicos. Uma universidade que limite os cursos à distância ao que é estritamente necessário às características da população demandante, evitando a tendência atual de substituição do presencial por motivos econômicos e de mercado. Investimento em políticas de ação afirmativa com recorte racial, de gênero, social, para pessoas com deficiências, nos cursos de graduação, na pós-graduação e na contratação de docentes e pesquisadores, em todas as áreas de conhecimento e cursos, inclusive os hegemonizados por população branca. Destaca-se também a necessidade de superação da segregação por sexo em cursos, não somente com o estímulo a entrada de mulheres nas áreas de exatas e tecnologias, mas do estímulo à presença masculina e a valorização efetiva das áreas vin-culadas ao cuidado com a vida. Investimento em estratégias de ensino e de acolhimento voltadas a setores populares, revendo criticamente a branquitude e as diversas formas de discriminação que marcam a universidade brasileira e se abrindo a presença, aos conhecimentos, às agendas e às provocações trazidas por estes setores da população às universidades. Uma universidade que bus-que ativamente se descolonizar, valorizando as diferentes formas de produção de conhecimento da população, em especial, da população negra e indígena do país, e que reconheça, valorize e se conecte ativamente ao conhecimento produzido no hemisfério sul do planeta.

COORDENAÇÃO: DENISE CARREIRASÉRGIO HADDAD

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GT DE SAÚDE COLETIVA

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DEMOCRACIA, DIREITOS HUMANOS, DESIGUALDADE E SAÚDE: QUE CAMINHOS TRILHAMOS?

A Crise do Capitalismo de 1929, a partir do crash da bolsa de Nova York, impactou praticamente todo o mundo, com falências de empresas, desemprego e grave impacto social. Um de seus desfechos foi a tragédia da II Grande Guerra Mundial, que deixou 50 milhões de mortos, outros milhões de mutilados e dezenas de países destruídos. Foi a receita do capital para suas próprias contradições.

A crise disseminada no mundo hoje tem sido considerada por especialistas de várias áreas do conhecimento como a mais grave desde 1929. Em 2008, de repente, evapo-raram aproximadamente US$ 40 trilhões do patrimônio global e US$ 14 trilhões de riquezas das famílias. Quatro milhões de pessoas perderam os empregos; e, de 2008 a 2011, a cada 3 meses, 250 mil famílias tiveram que sair de suas casas apenas nos EUA. A crise ganhou a Europa e o resto do mundo. Uma de suas marcas mais cruéis é o aumento da desigualdade em um mundo já desigual. Hoje, em todo o planeta, 800 milhões de pessoas têm fome em um cenário em que, entre 1988 e 2011, a renda dos 10% mais pobres aumentou US$ 65,00, enquanto a do 1% mais rico aumentou US$ 11.800,00, ou seja, 182 vezes.

Essa concentração de riqueza não se deve apenas à financeirização desregulamentada imposta pelas forças hegemônicas do neoliberalismo, mas sua participação é dominan-te. Enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) mundial tem crescido entre 1% e 2,5%, as aplicações financeiras rendem acima de 5%. Cria-se, assim, uma dinâmica em que a capacidade produtiva, vinculada às necessidades sociais, é transformada em patrimônio financeiro, apropriado por grupos transnacionais monopolizados. Em outras palavras, dinheiro produzindo dinheiro sem qualquer compromisso social, de tal ordem que ape-nas nos EUA, em 2008, o volume de crédito era 365% do PIB. Foi o estouro da bolha que contraditoriamente fez o congresso nacional daquele país aprovar, em outubro de 2018, US$ 800 bilhões para salvar Wall Street.

Os efeitos globais não demoraram. No Brasil, um país sem políticas universais de prote-ção social, o impacto econômico atinge principalmente as populações mais necessitadas. O golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016 escancarou as portas para o aumento da desigualdade. A aprovação da PEC 95, que congela por 20 anos os investimentos do Estado, e a aprovação da Reforma Trabalhista, que refina os instrumentos institucionais para o aumento da exploração sobre os trabalhadores, são componentes desse proces-so que aponta para um cenário ainda mais preocupante. Aumentou o desemprego e fez cair a renda, com rápidas consequências sobre as condições sociais, expressas na escalada da violência, no retorno do País ao mapa da fome, na volta do sarampo e no crescimento da taxa de mortalidade infantil, apenas para citar alguns componentes da

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situação atual. Isto é, entramos em um ponto de bifurcação entre civilização e barbárie. Uma nação solidária, que enfrente suas desigualdades, não pode jamais estar a serviço do 1% mais rico.

São tempos difíceis que nos matam 60 mil vezes no ano, a maioria jovem, pobre e ne-gra. Somos atacados por sermos mulheres, por sermos LGBTI+ e por defendermos os direitos humanos. Batemos todos os recordes dos crimes contra setores específicos da população. A violência brasileira é superior a muitos lugares em guerra.

Todo esse retrocesso atingiu também o sistema de saúde em todos os seus níveis de atenção. Inicia-se com a mudança na Política Nacional de Atenção em Básica (PNAB), em que se retira a padronização do número de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) por equipe da Estratégia Saúde da Família (ESF) com a finalidade de reduzir os custos no setor; assim como a reformulação da PNAB, em 2017, que colocou em xeque a integralidade, o trabalho dos ACS e importantes avanços da ESF.

O Sistema Único de Saúde (SUS) tem sofrido desde a sua criação um subfinancia-mento crônico, agora agravado, e vive um desabastecimento de insumos de saúde sem precedentes que condena o País a um colapso de saúde, sanitário e social. Para ilustrar tal fato, caso a PEC 95 estivesse em vigor entre 2003 e 2015, a União teria gasto 42% a menos (257 bilhões) com ações e serviços públicos de saúde. Os recursos públicos investidos na saúde pelo governo federal, no ano pós-golpe, em 2017, foram de apenas R$ 101,134 bilhões com um aumento de 2,23% em relação a 2016, quando a inflação do ano foi de 2,95%. O que é alardeado pelas autoridades como economia, na verdade, representa a subtração de direitos na saúde pública.

São necessários investimentos públicos que possam superar as desigualdades sociais com severo impacto na saúde. Por exemplo, a expectativa de vida ao nascer entre quem vive na região mais rica e quem vive na mais pobre do País chega a variar 26 anos. A mortalidade infantil em áreas das regiões Norte e Nordeste é sempre maior do que a média nacional – e com tendência de aumento com a retirada das políticas sociais. Houve uma desaceleração na política de saneamento básico, o que contribuiu para o retorno das emergências sanitárias com a volta de doenças, como foi o caso também da febre amarela. Isso sem considerar os impactos socioambientais de um modelo de desenvolvimento que privilegia a mineração e o agronegócio, fazendo o País consumir um milhão de toneladas de agrotóxicos ao ano e protagonizar o maior crime ambiental do mundo decorrente da mineração, como foi o caso do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana (MG).

O Programa Mais Médicos ajudou a enfrentar uma carência histórica de médicos na atenção básica, em diferentes municípios do país, mas ainda ficou longe de resolver a questão da formação médica e de outros profissionais de saúde que atendam a popu-lação rural e urbana que ficam distantes dos grandes centros do Brasil. O Estado pre-

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cisa retomar o papel de regulação e de formação de quadros para o SUS, levando aos locais mais precarizados as ações de saúde. Uma das propostas em andamento no país é o fomento à uma política aos planos de saúde para os pobres, o que precariza ainda mais o SUS e acentua a mercantilização do sistema de saúde brasileiro. É fundamental a resistência para encerrar o ciclo da privatização e do subfinanciamento. A população necessita da atenção integral à saúde, que, para isso, precisa contar com aumento dos recursos assistenciais. É importante que avancemos na construção de uma política para o país que torne a atenção primária forte, qualificada, integral, longitudinal e resoluti-va, com a universalização da cobertura em todos os níveis de atenção.

A possibilidade de conter o retrocesso em curso só será possível com a ampla partici-pação de todos os setores da sociedade, comprometidos com uma outra concepção de mundo, em que prevaleçam o respeito às diversas formas de expressão da vida, como raça, gênero e sexualidade, assim como com a emancipação dos trabalhadores de to-das as formas de opressão, em um mundo onde o espírito da solidariedade suplante a violência e a exclusão em curso. A construção do SUS só foi possível devido à ampla participação social dos profissionais, entidades e instituições da saúde, dos sindicatos dos trabalhadores da cidade e do campo, dos diversos conselhos profissionais, do movi-mento das mulheres, das associações de moradores, dos quilombolas e de uma série de outros movimentos em um vigoroso processo democrático.

No resgate desse processo, está a esperança da contenção da acentuação do grave cená-rio que já está em curso.

ALGUNS INDICADORES DE SAÚDE DA POPULAÇÃO BRASILEIRA

Quando comparamos certos indicadores de saúde de 1990 e 2015, concluímos que houve uma redução significativa da mortalidade por doenças transmissíveis, da morbi-mortalidade materno-infantil, de mortes por causas evitáveis e da desnutrição infantil. E há outros avanços significativos:

A expectativa de vida da população brasileira passou de 68,4 anos em 1990 para 75,2 anos em 2016;

As taxas de mortalidade geral padronizadas por idade caíram em 34%; O Programa Bolsa Família e a Estratégia Saúde da Família contribuíram para reduzir

a mortalidade de crianças; Foram observadas melhorias acentuadas no Norte e no Nordeste, que não elimina-

ram, mas reduziram certas desigualdades regionais; A ampliação das ações de vigilância, controle e prevenção reduziu a prevalência e a

mortalidade por doenças transmissíveis, principalmente das imunopreveníveis;

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Houve uma significativa expansão da rede pública, principalmente nas unidades de atenção básica, ampliando o acesso a consultas médicas e diminuindo as internações;

Foram reduzidas as internações por causas sensíveis à atenção básica, que passaram de 120 a 66 por 10.000 habitantes, entre 2001 e 2016;

Houve melhoria do desempenho das ações de vigilância por meio do Sistema Na-cional de Vigilância Sanitária.

Enfim, os avanços no SUS, associados a melhorias econômicas e a outras medidas de proteção social contribuíram para um resultado positivo, expresso em melhorias nas condições de saúde e na ampliação do tempo em vida saudável da população. A partir de 2015, no entanto, surgem indicadores que ameaçam a continuidade de evolução positiva da situação de saúde:

De 2015 a 2016, as taxas de mortalidade infantil (menores de 1 ano) cresceram, sobretudo por causa da diarréia, invertendo uma tendência histórica de redução;

A eventual redução das coberturas do Programa Bolsa Família e da Estratégia de Saúde da Família, com base em microssimulações, apontam para um futuro próxi-mo um aumento do número de óbitos de crianças de até cinco anos 5 e de adultos até 70 anos;

No Brasil, os 20% mais ricos têm uma renda 17 vezes maior do que a renda dos 20% mais pobres, situação pior do que a do Paraguai, onde a renda dos 20% mais ricos é 13 vezes maior;

A ocorrência de Dengue, Chinkungunya e Zika, para as quais não há tecnologias de controle efetivas, elevou a prevalência de doenças infecciosas no Brasil;

No caso dos riscos ambientais, não se implantou um modelo de desenvolvimento socioeconômico orientado para a redução de risco de doenças e agravos e um meio ambiente ecologicamente equilibrado;

Ainda persiste a escassez de profissionais de saúde, especialmente de dentistas, assim como uma distribuição desigual de médicos e outros profissionais entre as regiões do país e entre áreas com distintas condições socioeconômicas;

A ampliação do acesso e a melhoria da qualidade dos serviços não reduziram as de-sigualdades regionais;

Persistem sérios problemas de controle de grandes empresas (como as dos ramos de alimentação, bebidas e cigarros), cujas atividades têm fortes conexões com fatores de risco relacionados à atual epidemia de doenças crônicas.

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A POLÍTICAS DE AUSTERIDADE E SUAS CONSEQUÊNCIAS NO BRASIL

A. INVESTIMENTO NO BRASIL E A EC 95

As despesas com investimentos empenhadas do Poder Executivo federal caíram signi-ficativamente entre 2012 e 2016, passando de R$ 87,2 bilhões, em valores de 2016, para R$ 37,3 bilhões no último ano, com redução de 57% (Figura 3). Em relação aos valores pagos, a queda foi de 42% no mesmo período. Neste caso, é melhor tomar por referência as despesas pagas porque boa parte das despesas com investimentos acaba inscrita como restos a pagar, os quais vêm sendo rolados ao longo dos últimos anos.

Outra medida que contribui para a redução da capacidade de o governo efetivar uma retomada mais acelerada do crescimento econômico foi a aprovação, em dezembro de 2016, da Emenda Constitucional 95 (EC 95), que estabelece um teto de gasto para as despesas primárias da União, deixando de aplicar qualquer limite para as despesas financeiras deste ente da federação. Chamado de Novo Regime Fiscal (Brasil, 2016a), instituiu que as despesas primárias do governo federal ficam limitadas, entre 2017 e 2036, a aproximadamente R$ 1,3 trilhão valor a ser corrigido anualmente pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, e que constitui o limite para paga-mento de despesas em cada exercício financeiro, incluindo os restos a pagar (Volpe et al., 2017). Na prática, têm-se o congelamento das despesas primárias da União, em termos reais, por 20 anos.

FIGURA 3 - Investimentos do Poder Executivo federal, 2008 - 2016.

Fonte: Siga Brasil. Grupo de Natureza de Despesa (GND 4). Valores deflacionados pelo IPCA médio.

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Os gastos com saúde e educação perderam a vinculação em relação às receitas e passa-ram a ter as aplicações mínimas congeladas nos mesmos termos das despesas primárias, com a diferença de que essa regra começará a valer a partir de 2018, de forma que o montante mínimo será correspondente à aplicação mínima do ano imediatamente an-terior corrigido pelo IPCA. Em 2017, foram observadas as aplicações mínimas segundo a regra de 15% da receita corrente líquida do exercício para a saúde e 18% da receita de impostos para a educação.

Argumentou-se durante a tramitação da PEC que deu origem à EC 95 (PEC 241 na Câmara dos Deputados e PEC 55 no Senado Federal), que a regra proposta e que foi aprovada não impede que a cada ano recursos adicionais à aplicação mínima sejam alo-cados à saúde e à educação. De fato, não há mpedimento legal a este respeito. Contudo, a restrição existente é de ordem orçamentária e impõe limites muito rígidos a cada ano. O crescimento vegetativo médio anual estimado dos benefícios previdenciários será de 3,17% ao ano entre 2017 e 2020 (Brasil, 2016b). Mesmo que aprovada uma reforma da previdência, seus impactos dificilmente serão observados no curto ou médio prazos, o que significa que as despesas com benefícios previdenciários crescerão nos próximos anos, ganhando maior participação no teto das despesas primárias ao longo dos anos.

Os impactos da aprovação da EC 95 para a aplicação mínima em saúde em compa-ração com a regra anterior, dada pela EC 86, de 2015, foram estimados, demons-trando-se que sob a vigência da EC 95 e, em cenários de crescimento econômico, as perdas para o SUS poderão variar de R$ 168 bilhões em valores de 2016 à taxa de crescimento anual média do PIB de 1% a R$ 738 bilhões com taxa de crescimento anual média de 3% do PIB até 2036 (Vieira e Benevides, 2016b). Caso a EC 95 esti-vesse em vigor no período 2003- 2015, as perdas acumuladas no período chegariam a R$ 135 bilhões (Funcia, 2016).

As implicações da EC 95, ainda na sua fase de proposta, também foram analisadas para a assistência social. Segundo estimativas feitas, já no primeiro ano de sua vigência, mantido o orçamento estimado do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário em R$ 79 bilhões, este valor não seria suficiente para fazer frente às responsabilidades socioprotetivas do órgão, que demandariam R$ 85 bilhões (redução de 8%), podendo chegar à queda de 54% até 2036. A perda para a assistência social em 20 anos totaliza-ria R$ 868 bilhões e a redução da participação dos gastos com as políticas assistenciais alcançaria patamares inferiores ao observado em 2006 (0,89%), passando de 1,26% em 2015 para 0,70% em 2036 (Paiva et al, 2016).

Outra questão importante que precisa ser considerada é o quanto a opção pela austeri-dade no Brasil, especialmente com a adoção do teto do gasto para as despesas primárias, afeta o tamanho do Estado por meio da política fiscal. Nesse ponto, deve-se conside-rar que um dos efeitos práticos imediatos da EC 95 com a retomada do crescimento econômico será a redução da participação das despesas primárias do governo federal

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no PIB, de cerca de 20% em 2016 para cerca de 16% a 12% até 2036, a depender do desempenho da economia (Fórum 21 et al, 2016).

Sobre o rigor da EC 95, Pires (2016) afirma que nenhum governo do mundo adotou regime fiscal tão estrito quanto este escolhido pelo governo brasileiro, mesmo em países com situação de desequilíbrio fiscal pior do que a brasileira. Segundo o autor, somente o Japão estabeleceu regra semelhante à da EC 95, mas se trata de um país muito di-ferente do Brasil, pois não apresenta crescimento populacional e passa por período de deflação. Ainda segundo ele, a maioria dos governos que adotaram limites para o cresci-mento dos gastos públicos fez o ajuste fiscal permitindo crescimento do gasto acima da inflação, seja definindo explicitamente o percentual de crescimento real na regra, seja estabelecendo a regra para o crescimento como percentual do PIB.

Estas constatações reforçam o argumento de que, no Brasil, a austeridade está sendo utilizada para além da motivação neoliberal das políticas na Europa, mas para produzir uma reforma profunda do Estado instituído com a Constituição Federal de 1988.

Soma-se a este processo de redução do tamanho do Estado por meio do congelamento das despesas primárias do governo federal, a realização de reformas estruturais como a reforma trabalhista, recentemente aprovada, e a reforma da previdência, que está em tramitação no Congresso Nacional.

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B. EFEITOS SOCIAIS DAS CRISES ECONÔMICAS E DA AUSTERIDADE NO BRASIL

No Brasil, os resultados de alguns indicadores sociais macros demonstram os efeitos da crise econômica. Como se pode ver na figura 5, o percentual de pessoas desocupadas estava em 13% no segundo trimestre de 2017. Considerando que o desemprego está entre as principais causas da piora da saúde mental em momentos de crise econômica e de austeridade fiscal, pode-se ter uma noção sobre a magnitude do problema. A taxa de desocupação, que é o percentual de pessoas desocupadas na semana de referência em relação às pessoas na força de trabalho nessa semana, passou de 6,9% no quarto trimes-tre de 2012, quivalentes a 6,6 milhões de pessoas, para 13% no segundo trimestre de 2017, o que corresponde a 13,5 milhões de indivíduos.

Como no Brasil o tipo de contratação majoritária de planos privados de saúde é o con-trato coletivo empresarial, o aumento do desemprego pode ter impacto significativo no número de beneficiários desse segmento do sistema de saúde. Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), este tipo de contratação respondeu por 66,4% dos beneficiários de planos privados de assistência médica com ou sem odontologia em março de 2017.

Considerando todos os tipos de contratação, o que se observa é uma queda de 5% no número total de beneficiários a partir de junho de 2015, com redução de aproximada-mente 2,6 milhões de contratos até junho de 2017 (figura 6). Este pode ser o número aproximado de pessoas que passam a depender exclusivamente do SUS em relação à assistência à saúde, aumentando a demanda no sistema no curto prazo.

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua.

FIGURA 5 - Percentual de pessoas desocupadas em relação às pessoas na força de trabalho, Brasil, 2012 - 2017

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O tempo decorrido após o agravamento da crise econômica e da implementação de medidas de austeridade fiscal ainda é curto para a realização de análises robustas com base em dados agregados a respeito dos seus possíveis impactos sobre o funcionamento do SUS e sobre os resultados em saúde.

Apresentam-se a seguir alguns indicadores que podem ser acompanhados para esta finalidade em estudos futuros. Na figura 7, verifica-se a redução de 3,6% do gasto total com as ações e serviços públicos de saúde (ASPS), passando de R$ 257 a R$ 248 bilhões, em termos reais, entre 2014 e 2016.

Fonte: Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS. Obs. O termo “beneficiário” refere-se a vínculos aos planos de saúde, podendo incluir vários vínculos para um mesmo indivíduo.

FIGURA 6 - Beneficiários de planos de assistência médica, Brasil, 2008 - 2017.

Fonte: Ministério da Saúde. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde - Siops. Consulta feita em 5 set. 2017. Valores deflacionados pelo IPCA médio.

FIGURA 7 - Gasto ações e serviços públicos de saúde (ASPS), Brasil, 2002 - 2016

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Em valores per capita, a queda do gasto com ASPS foi de 5% entre 2014 e 2016. A taxa de crescimento médio real desse gasto no período de 2004 a 2014 foi de 6,3% ao ano, havendo uma reversão dessa tendência a partir deste último ano, com redu-ção anual média de 2,6% a partir de então (Figura 8).

Quanto ao número de leitos, já vinha caindo a disponibilidade de leitos no SUS por mil habitantes e continua a tendência descendente, mesmo quando são subtraídos os leitos psiquiátricos (figura 9). A média de redução dos leitos de internação, descon-tados os psiquiátricos, foi de 0,72% no período de 2007 a 2014. A partir de então, a velocidade de redução aumenta, registrando uma queda anual média de 1% entre 2014 e 2017, que pode ser consequência da diminuição do gasto total com ASPS.

Fonte: Ministério da Saúde. Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde - Siops. Consulta feita em 5 set. 2017. População estimada pela Ripsa até 2012, pelo MS segundo metodologia da Ripsa de 2013 a 2015 e pelo IBGE para o TCU de 2016. Valores deflacionados pelo IPCA médio.

FIGURA 8 - Gasto total per capita com ações e serviços públicos de saúde (três esferas de governo), Brasil, 2002 - 2016

Fonte: Ministério da Saúde. Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde - CNES.

FIGURA 9 - Leitos de internação por mil habitantes disponíveis para o SUS, Brasil, 2006 - 2017

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Em relação aos suicídios, o número de casos está em trajetória ascendente desde 2000 (figura 10), o que pode refletir, em parte, a melhoria da informação e do registro dos óbitos no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM). Como os dados não estão disponíveis para 2016, que é justamente o ano de maior impacto da recessão econômica do período recente, uma análise sobre os possíveis efeitos da crise para este desfecho ainda não é possível de ser realizada.

A taxa média de crescimento anual do número de casos foi de 3% no período de 2002 a 2015 e de 1,4% nos óbitos por 100 mil habitantes no mesmo período. Con-siderando que os casos podem ser mais frequentes entre indivíduos mais vulneráveis socioeconomicamente, por exemplo, desempregados e pessoas sofrendo transtornos mentais, a realização de estudos que avaliem a ocorrência deste tipo de óbito por grupos sociais é fundamental para investigar se os efeitos da crise econômica e da austeridade para o aumento dos casos de suicídio observados em outros países tam-bém ocorrem no Brasil.

O início da implementação do SUS, há 29 anos, coincidiu com o começo da fi-nanceirização do orçamento público nacional, acompanhando de forte restrição nas políticas públicas da área social. Para a construção do então novo sistema de saúde, simultaneamente à implementação dos referenciais positivos e diretrizes constitu-cionais, passaram a ser também efetivados outros referenciais, estes negativos, cuja percepção foi se dando ao longo desses anos de existência do SUS. Uma perversa articulação estratégica entre esses referenciais revela inequívoco e eficaz engendra-mento desviante das diretrizes constitucionais.

Fonte: Ministério da Saúde. Sistema de Informações sobre Mortalidade - SIM. População estimada pelo IBGE para o TCU.

FIGURA 10 - Mortalidade por lesões autoprovocadas voluntariamente (suicídios) no Brasil, 2000 - 2015

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São os cinco referenciais que estamos denominando de negativos ao SUS:

A. Em nome do ajuste fiscal, a esfera federal retraiu sua participação no financia-mento do SUS, passando de 75% iniciais para 45% atuais, enquanto as esferas municipal e estadual somadas elevaram sua fatia conjunta de 25% iniciais para 55% atuais, permanecendo o baixíssimo financiamento público entre 3,5% e 3,9% do PIB. Como não bastasse, a execução orçamentária do Ministério da Saúde é induzida aos contingenciamentos do empenho, da liberação e do paga-mento, com perdas anuais na execução orçamentária não compensadas ao Fundo Nacional de Saúde, como se dá em outros fundos públicos.

B. Em nome da complementaridade de serviços privados contratados e conve-niados como previsto na Constituição, onde predomina o pagamento por pro-dução, o investimento público nos serviços próprios foi rudemente precarizado, tornando-os minoritários e marginalizados no sistema, o mesmo se dando com os recursos humanos.

C. Em nome da livre atuação dos serviços privados no mercado, prevista na Constituição, o campo da oferta privada passou a ser fortemente subsidiado pela esfera federal, tanto para as empresas privadas de planos privados de saúde, inclu-sive com deduções de multas, como os empréstimos públicos subsidiados para a construção hospitalar privada.

D. Em nome da livre negociação nos dissídios trabalhistas, o forte co-finan-ciamento federal de planos privados de saúde para os trabalhadores dos setores público e privado passou à condição de primeira moeda de troca nas mesas de negociação, o que descolou os trabalhadores organizados e a estrutura sindical da vanguarda das lutas sociais por políticas públicas de cidadania.

E. Em nome da autonomia constitucional entre as esferas de governo, a federal exacerbou a relação fragmentada com e entre as demais unidades federadas, acar-retando grande prejuízo da implementação da diretriz constitucional da regiona-lização e, por consequência, do que deveria ter sido o novo modelo de atenção à saúde, vinculado à implementação articulada e sinérgica do conjunto das diretri-zes constitucionais, que contaria com uma Atenção Básica universal de alta reso-lutividade, ordenadora das redes regionais de atenção integral. Paradoxalmente, essa autonomia exacerbada resultou na aceitação das imposições federais para o recebimento de centenas de pequenos repasses financeiros federais, negociados um a um e com prestações de contas burocratizadas, esta sim, configurando im-portante forma de perda de autonomia.

Qualquer análise da construção do SUS no país deve considerar que esta vem se dando no contexto de hegemonia desses cinco referenciais acima expostos. Mesmo

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sob as distorções herdadas do modelo anterior e limites impostos pelos referenciais negativos hegemônicos, o SUS incluiu quase metade da população antes excluída e aprimorou, qualificou e ampliou a Atenção Básica, os Centros de Atenção Psi-cossocial (CAPS), dos Centros Regionais de Saúde do Trabalhador (CEREST), do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e, ainda, consegue ser uma referência internacional em imunização contra doenças transmissíveis, vigilância em saúde, controle do HIV/Aids, hemocentros e transplante de tecidos e órgãos.

Cabe considerar que os cinco referenciais negativos desenvolvem-se muito menos com o objetivo de obstaculizar e distorcer o SUS e muito mais como os pilares de um outro sistema de saúde, no caso, calcado em: a) redução dos gastos públicos com saúde e austeridade fiscal; b) elevação da contratação de serviços privados de assis-tência às doenças; c) instituição do co-pagamento dos usuários do SUS no ato do uso do serviço de saúde; d) gerenciamento de serviços públicos por entes privados; e) estímulo à planos privados populares de saúde (os planos acessíveis, populares ou “planecos”) e; f ) estabelecer indicadores de “cobertura universal de saúde” em que importa tão somente se a totalidade da população tem cobertura de algum serviços de saúde, independentemente se pago ou não e de sua capacidade de resolução do problema de saúde da pessoa.

A implementação desse outro modelo de atenção à saúde, defendido pelas agências internacionais e nacionais com o nome de “Cobertura Universal de Saúde”, vem sendo apresentado com estratégias e formatos diferenciados conforme o desenvolvi-mento e o peso geopolítico de cada país.

Também é preciso investigar as implicações da crise econômica e da austeridade fiscal para outras políticas sociais, considerando que com a implantação do teto de gasto a redução do gasto público será mais significativa ainda para as áreas de assistência social, trabalho e renda, cultura, desenvolvimento agrário, saneamento básico, habitação, entre outras.

FOCALIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA

O DESMONTE DAS POLÍTICAS SOCIAIS NO GOVERNO BOLSONARO

Para uma análise detida de qualquer política de saúde se faz necessário entender o contexto na qual surge, e o vetor geral das políticas sociais adotadas pelo Governo de plantão, no caso brasileiro, como este interpreta ou não a Constituição de 1988.

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Desta forma, antes de tecer quaisquer comentários mais específicos sobre o Pro-grama Médicos pelo Brasil, recém-lançado pelo governo Bolsonaro, é importante deixar evidente que este é o mesmo governo que vem atacando as políticas sociais garantidas na Carta Magna com uma voracidade sem precedentes. O ataque ao en-sino laico, público e gratuito, em forma de asfixia financeira das Universidades Fe-derais; as políticas de meio ambiente que estão sendo absolutamente desmontadas permitindo o avanço desmesurado do desmatamento na amazônia; o desmonte das políticas afirmativas raciais e de proteção à população LGBTQI; os cortes sucessivos dos orçamentos da Educação, Ciência e Teconologia; as políticas de Saúde mental que retomam a agenda do encarceramento em massa e o estímulo à reconstrução de Manicômios; o entreguismo da capacidade produtiva nacional com a venda dos campos do pré-sal a preços irrisórios e, mais fundamentalmente, o ataque mais se-vero aos direitos dos trabalhadores com a Reforma da Previdência.

É neste contexto de políticas sociais que se situa o novo programa lançado pelo governo na área da saúde e, desta forma, ele não pode ser compreendido como um raio no céu azul. O mesmo governo que acena para um vínculo CLT hoje para os médicos, é o governo que está preparando a mais severa reforma trabalhista com a “carteira verde e amarela”, que pretende retirar da CLT os chamados “custos tra-balhistas”, que para os trabalhadores nada mais são do que a proteção mínima e civilizatória que este regime ainda garante.

O próprio Governo afirma com todas as letras, através de seus secretários: “Estamos aqui para implementar um Sistema de Saúde liberal. O SUS não tem que ser para todos, mas apenas para aqueles que não conseguem proteger a si próprios. Quem quiser discutir universalidade, volte para a década de 20”. É esta a tese que embala o programa que doravante discutiremos.

NOVO PROGRAMA SUBSTITUI MAIS MÉDICOS, MAS SE RESTRINGE À AGENDA DO PROVIMENTO

Apesar das críticas do atual Governo ao Programa Mais Médicos, considerado em seu discurso como “improvisação”, o Programa Médicos pelo Brasil funcionará con-comitante à manutenção das atividades de ensino e extensão e integração ensino--serviço que embasam o funcionamento do Mais Médicos, utilizando vários itens do programa, a exemplo da vinculação com bolsa mais INSS e isenção de Imposto de Renda. Além disso, propaga que utilizaria novos critérios para definir municípios prioritários, não considerando as diversas evidências científicas de que o Programa Mais Médicos alcançou regiões de extrema vulnerabilidade.

O Mais Médicos foi uma das raras ocasiões de nossa história em que a totalidade dos Distritos Sanitários Indígenas (DSEI) foram plenamente providos de profissio-

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nais médicos de forma simultânea e contínua. Os mesmos critérios do IBGE e da OCDE utilizados para dimensionar setores sociais em remota, semi-remota, rural e metropolitana utilizados no Médicos pelo Brasil foram utilizados na estrutura de alocação de médicos do Programa Mais Médicos, sendo que no caso da proposta anterior havia uma maior complexificação nesta distribuição se considerando a di-versidade regional de nosso país e uma construção da proposta mais compartilha-da com a Frente Nacional de Prefeitos e com o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde, que são aqueles entes federativos responsáveis pela gestão dos serviços locais de atenção básica em todo o país;

Assim, o Mais Médicos já estava fortemente presente no que agora se chama de “Brasil Profundo” do semi-árido nordestino, região amazônica, Vales do Jequitinho-nha e Mucuri, Vale do Ribeira, Contestado, Pantanal, fronteiras, cerrados e outras localidades consideradas “remotas e semi-remotas” no país. Contudo não foi igno-rado na proposta anterior que a maior parte da população brasileira vive na periferia das grandes cidades, que acompanham o mapa da desigualdade das riquezas.

Ao mesmo tempo, as iniciativas de estruturação física de unidades básicas de saúde e as ações de mudanças na formação médica estavam contidas na proposta anterior, que eram parte também do Programa Mais Médicos, parece-nos que foi também abandonada ou colocada em segundo plano pelo Governo Bolsonaro. Não há ne-nhuma sinalização de aporte de recursos para reforma e construção de novas uni-dades básicas de saúde pelo país, bem como mudanças no marco da formação de especialistas no país, no caso tendo como principal modelo a residência médica. Dessa forma, abandonam-se as ações estruturantes do Programa, que dispôs sobre um novo marco regulatório da formação médica.

A AGÊNCIA DE DESENVOLVIMENTO DA APS: A PORTA PARA O SETOR PRIVADO NA APS DO SUS

Na Medida Provisória que institui o Programa Médicos pelo Brasil, o governo também institui a Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde (ADAPS), numa modalidade de gestão classificada como “Serviço Social autôno-mo”, na forma de pessoa jurídica de direito privado, a qual pode – por exemplo – dispensar processos de licitação de compras públicas.

A criação desta Agência chama atenção pela abrangência de suas atribuições, que vão muito além da simples gestão do Programa Médicos pelo Brasil, teoricamente o objeto da Medida Provisória. Além de executar o próprio programa, a agência poderá ela mesma desenvolver atividades de ensino e pesquisa, prestar serviços de atenção primária e articular-se com órgãos e entidades públicas e privadas para o cumprimento de seus objetivos.

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Mais notório ainda é o Parágrafo 1 da Seção VI da Medida Provisória que diz: “A Adaps poderá firmar contratos de prestação de serviços com pessoas físicas ou jurídicas, sempre que considerar ser essa a solução mais econômica para atingir os objetivos previstos no contrato de gestão, observados os princípios da impessoa-lidade, da moralidade e da publicidade.” Como ressaltamos no início desta nota não se pode perder de vista o contexto político do qual este programa emerge: em nossa análise é este parágrafo que dará sustentação legal a um projeto que vem sendo bem gestado pelo Governo e planos de saúde privados: a contratação direta dos planos e operadoras para prestação de serviços de Atenção primária median-te contrato de gestão com o poder público, neste caso, com a Agência. Ou seja: transferência direta de recursos públicos para o setor privado, agora numa nova fronteira e com novos atores. Se antes uma grande parte dos municípios brasilei-ros resistiram à ampliação das Organizações Sociais, agora será o próprio Ministé-rio que poderá contratar as Operadoras de saúde para realizar atividades-fim que deveriam ser prestadas pelo poder público.

Atentamos ainda para seu Conselho Deliberativo, que além de membros do Mi-nistério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (CONASEMS), apresenta um representante do setor privado no colegiado, sem mencionar nenhum membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS), maior instância deliberativa com prerroga-tiva legal no âmbito do SUS.

Este tipo de dissociação é fundamental para uma agenda de terceirização de respon-sabilidades do Estado pela assistência, entregando a prestação direta de serviços de atenção primária para planos de saúde, que vem acumulando expertise no campo da APS nos últimos anos a partir da vinda de muitos médicos de família para o âm-bito destas organizações. Para nós, é muito sintomático trocar um representante do Controle Social do SUS por um representante do mercado para entender para onde rumará a política de Atenção Primária Brasileira.

UMA CARTEIRA DE SERVIÇOS A SERVIÇO DA FOCALIZAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DA ATENÇÃO PRIMÁRIA

Uma carteira de serviços reflete o modelo assistencial de APS que se deseja imple-mentar. Nosso modelo de Saúde da Família, com equipe multiprofissional e abor-dagem territorial e comunitária, tem tido impactos positivos na saúde da população evidenciados em diversas pesquisas.

A carteira proposta pelo Ministério da Saúde em Consulta Pública diz que esta se baseia em quatro dos atributos da APS (Acesso, Longitudinalidade, Integralidade e Coordenação do Cuidado) conforme Bárbara Starfield. De fato, a carteira colo-

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cada em consulta centra-se na lista de uma série de ações a serem ofertadas pouco explicitando os outros três: acesso, longitudinalidade e coordenação. Em nenhum momento incorpora os atributos primordiais de orientação familiar, orientação co-munitária e competência cultural propostos por Barbara. Atributos importantes tanto para o cuidado individual quanto para uma abordagem territorial e popula-cional para a promoção da saúde e prevenção de doenças.

Uma APS efetiva deve buscar o equilíbrio entre o cuidado individual e o cuidado coletivo. Desta abordagem integral dependem os efeitos positivos da APS na saúde da população. A promoção da participação social, uma das dimensões cruciais da atenção primária integral, seja em seu componente individual de participação do paciente seja em seu componente comunitário, não é mencionada em qualquer momento.

O foco explicitado para o estabelecimento da carteira de serviços está no alcance de melhor eficiência, quando deveria ser em proporcionar melhor acesso e qualidade. Parte-se de uma premissa equivocada que a eficiência geraria qualidade, como ex-pressado na seguinte frase “(...)pilar fundamental para atingirmos melhor eficiência, resultando em maior qualidade da atenção à população, aliado a ganhos econômi-cos nominais que garantirão a sustentabilidade do sistema de saúde(...)” A busca da eficiência em si poderia reduzir custos, mas não gera qualidade. Qualidade resulta de um conjunto amplo de iniciativas articuladas e seu alcance em geral implica em uso de recursos adicionais. O foco nos aspectos econômicos faz subentender que a carteira tem por objetivo, não primordialmente melhorar a qualidade, mas servir como instrumento para estabelecer contratos com o setor privado. Esta parece ser a intenção com alinhamento claro à política de austeridade fiscal e restrição de direi-tos sociais e de destruição da seguridade social.

A integralidade proposta é restrita. Expressa-se em resumido rol de ações indivi-duais sem considerar a abordagem biopsicossocial, a ênfase na promoção da saúde e a garantia de acesso à atenção especializada conforme necessidades, com integração da rede assistencial para a continuidade do cuidado.

A especialidade em medicina de família e comunidade parece ter sido abolida na carteira de serviços proposta. O termo utilizado é médico de família, sem comuni-dade. Não se trata apenas de desconsiderar o atributo de orientação comunitária, mas também de mudar o foco desta especialidade médica que é crucial para a APS integral de qualidade, de fato robusta, que tanto tem se empenhado para se legiti-mar como especialidade. O descaso pela denominação da especialidade na carteira enfraquece a identidade e a posição dos médicos de família e comunidade.

Chamam também atenção a inclusão de temas não consensuais, mesmo entre mé-dicos de família e comunidade, como a ênfase na lista de pacientes desterritoriali-

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zada como se fora uma forma de “valorização do trabalho de longo prazo, de forma continuada e com fortalecimento do vínculo”. Listas de pacientes têm sua origem como instrumento para remuneração, outro componente necessário para o esta-belecimento de um contrato com um prestador externo qualquer. O texto afirma literalmente “(...)conceitos como o de lista de pacientes devem definitivamente ser introduzidos na APS brasileira(...)”.

O texto introdutório no eixo acesso define amplo conjunto de regras de organização do trabalho das equipes que extrapolam a proposição de uma carteira adequada de serviços para a APS integral de qualidade e engessa o trabalho das equipes. As pro-postas de organização dos horários de trabalho de cada tipo de profissional nas UBS aproximam-se de modelos de plantonista: fragmentam fortemente o trabalho em equipe, rompem o vínculo com a população adscrita, quebram a longitudinalidade da relação interpessoal e afastam os profissionais da convivência da realidade do território. Não garantem um bom equilíbrio no atendimento das demandas espon-tâneas e programadas e programáticas.

Há ausência completa de menção da ação dos agentes comunitários de saúde, elo crucial da articulação das equipes com as populações, cruciais na busca ativa, na facilitação do acesso para famílias vulneráveis, nas ações de saúde coletiva, na edu-cação em saúde, na promoção da participação social.

A carteira se divide apenas em: Atenção à Saúde do Adulto/Idoso, Atenção à Saúde da Criança, Procedimentos na APS e Saúde Bucal. Com apresentação de uma listagem totalmente desarticulada de ações em áreas totalmente diferentes, que impede a orga-nização da carteira nas UBS e a uma análise da suficiência do conjunto do conteúdo. As ações estão listadas em ordem alfabética: mistura desde cuidados paliativos a cui-dado no puerpério e análise da situação epidemiológica, sem qualquer estruturação programática. Atenção à Saúde do Adulto/Idoso engloba tudo ficando dificílimo re-conhecer quais as ações que de fato devem ser oferecidas por ciclo de vida / ou princí-pios da APS e da medicina de família e comunidade. A aversão aos programas chegou ao máximo de listar as ações em ordem alfabética de forma desarticulada.

Causou espanto incluir na carteira proposta a menção sobre identificar porte de armas. Alinhamento completo à política do ex-capitão? Talvez este item seja prove-niente de um instrumento de avaliação estadunidense que já foi adaptado no Brasil em duas versões. Na primeira versão feita por Celia Almeida e James Macinko esta pergunta não foi incluída pois foi feita uma adaptação cultural. Neste sentido, um aspecto precisa ficar claro. Uma coisa é uma pergunta em um questionário de um pesquisador qualquer. Outra é inserir na norma nacional dando por certo, por cor-reto, que o porte de armas deve ser ou será difundido. Um absurdo!

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Uma carteira de serviços em APS forte, integral, de qualidade não pode restringir-se a práticas clínicas individuais como o que está sendo proposto nesta carteira sob pena de apenas promover a medicalização sem melhorar nem a qualidade, nem a eficiência. O cuidado oportuno de qualidade e a abordagem populacional territorial com ação comunitária e promoção da participação social são componentes cruciais de uma atenção primária à saúde integral.

PIORA DO QUADRO DE ASFIXIA FINANCEIRA DO SUS: O QUE FAZER?

O objetivo desta seção é evidenciar a piora do quadro de asfixia financeira do SUS depois que a aplicação dos “remédios” indicados na Emenda Constitucional 95/2016 (EC 95); por isso, desde a tramitação da PEC 341 na Câmara dos Depu-tados e PEC 55 no Senado no segundo semestre de 2016, aprovadas e promulgadas como EC 95, ela ficou rotulada como a “PEC da Morte”.

Está no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5658) referente a essa EC, sobre a qual o Conselho Nacional de Saúde (CNS)(1) tem mobilizado apoio por meio de abaixo assinado e a Conferência Nacional de Saúde(2) aprovou no dia 07 de agosto, com mais de 95% dos votos das(os) delegadas(os) um documento intitulado “Saúde é democracia!”, em que reforça a necessidade urgente de lutar pela saúde no contexto da defesa da seguridade social e dos direitos sociais, estabelecendo a revogação da EC 95 como um dos objetivos para esse fim.

É necessário deixar claro que criticar a EC 95 não significa uma posição contrária ao controle das despesas públicas, mas sim contra a regra de controle estabelecida por ela: em sentido figurado, a regra da EC 95 para controlar as despesas públicas parece um caso real acontecido numa grande área livre na propriedade de uma instituição, cuja horta cultivada pelos trabalhadores dessa instituição para autoconsumo era alvo de furtos diários; a solução encontrada pelo dirigente dessa instituição foi aca-bar com a horta dos trabalhadores, no lugar de providenciar medidas de segurança para evitar os furtos.

A EC 95 é prejudicial para o financiamento das despesas sociais, especialmente da saúde dos brasileiros, porque, depois dela, houve:

a) Redução do piso federal e das despesas empenhadas com ações e serviços públicos de saúde (ASPS) como decorrência da regra do piso federal que “con-gela” o valor desse piso de 2017 com atualização tão somente pela variação anual do IPCA/IBGE até 2036, conforme Tabela 1.

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Essa redução da alocação de recursos para o financiamento federal do SUS fica ain-da mais evidente quando se calcula o que representou em valores monetários a que-da das despesas empenhadas como proporção da RCL, considerando como cenários de empenho de 2018 os percentuais da RCL aplicados em 2015, 2016 e 2017 em comparação ao efetivamente empenhado em 2018, conforme Tabela 2: conforme o cenário, as perdas em 2018 foram de R$ 2,640 bilhões (se mantivesse a aplicação de 2015), R$ 3,694 bilhões (se mantivesse a aplicação de 2016) ou R$ 10,197 bilhões (se mantivesse a aplicação de 2017).

Para se ter uma dimensão dessas perdas, os valores calculados com base em 2015 e 2016 corresponderiam a cerca de um ano das despesas do Programa Mais Mé-dicos (cuja reformulação provocada pelo novo governo vencedor das eleições pre-sidenciais de 2018 mesmo antes da posse e depois da posse tem deixado milhões de brasileiros sem atendimento) e com base em 2017 permitiriam aumentar em aproximadamente 50% as despesas para ações classificadas na subfunção orça-mentária “Atencão Básica”.

Elaboração Francisco Funcia. Fonte: Adaptado de Ministério da Fazenda/Secretaria do Tesouro Nacional (STN)(3); Ministério da Saúde/Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO)(4). Nota: (*) Parte dos dados oriundos da reflexão conjunta entre Carlos Ocke-Reis (IPEA), Rodrigo Benevides (IPEA) e Francisco Funcia (Cofins/CNS).

(**) 2019 LOA = Informações da Lei Orçamentária Anual da União 2019.

Elaboração Francisco Funcia. Fonte: Adaptado de Ministério da Fazenda/Secretaria do Tesouro Nacional (STN)(3); Ministério da Saúde/Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO)(4).

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b) Ampliação da tendência de queda da participação do governo federal no financiamento do SUS, o que impacta o financiamento dos Estados, Distri-to e Municípios, porque cerca 2/3 das despesas do Ministério da Saúde são transferências para esses entes da Federação, o que pressiona por aumento na alocação de recursos próprios dessas esferas de governo no financiamento do SUS, principalmente nos Municípios, que já aplicam muito acima do piso de 15% da receita base de cálculo em todas as regiões do Brasil (conforme Gráficos 1 e 2, respectivamente).

c) O “teto financeiro” para o total das despesas primárias do governo fede-ral no valor de 2016 atualizado apenas pela variação anual do IPCA/IBGE, mesmo que a receita primária cresça até 2036; isto, por sua vez, condiciona negativamente a liquidação e o pagamento das despesas federais do SUS, gerando a reversão da queda observada anualmente dos empenhos a pagar de cada exercício desde o início desta década (Gráfico 3) e, consequentemente, o crescimento do estoque de restos a pagar a partir do encerramento de 2017 e início de 2018, em comparação com a situação até o final de 2016, para cifras em torno de R$ 20 bilhões.

Elaboração Francisco Funcia. Fonte: Adaptado de Ministério da Saúde/Desid/SIOPS(5).

Elaboração Francisco Funcia. Fonte: Adaptado de Ministério da Saúde/Desid/SIOPS(5).

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As propostas a seguir refletem alguns debates que têm ocorrido na Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (Cofin/CNS), nas deliberações recentes da 16ª Conferência Nacional de Saúde, bem como em pu-blicações de alguns especialistas do tema. Essas propostas não esgotam o conjunto de ações que podem ser adotadas para reversão do aprofundamento do processo de subfinanciamento do SUS, que acabará resultando no seu desmonte e dos seus princípios constitucionais – universalidade, integralidade, equidade e participa-ção da comunidade.

Revogar a Emenda Constitucional 95/2016, especialmente os seus dispositivos que diminuem, na prática, os pisos federais da saúde e da educação e a alocação de recursos para as demais políticas públicas.

Retomar o crescimento econômico, reduzindo a taxa de juros (SELIC), retiran-do o investimento público do cálculo do superávit primário e implementando política fiscal anticíclica (despesa primária condicionada a meta fiscal vinculada ao ciclo econômico), diferente daquela estabelecida pela EC 95/2016, que impôs o regime de teto de despesas primárias com base nos valores pagos em 2016, mas liberou desse teto as despesas financeiras e os gastos tributários (indiretos).

Apoiar a tramitação da PEC 01/D de 2015, que foi aprovada em 1º turno na Câmara dos Deputados em abril de 2016, que aloca 19,4% da receita corrente líquida como piso federal do SUS (similar ao projeto de iniciativa popular “Saúde + 10”).

Destinar os novos recursos da concessão onerosa do Pré-Sal para a saúde e a educação, bem como para integrar o Fundo de Participação dos Estados (PPE) e Fundo de Participação do Municípios (FPM).

Instituir a tributação sobre grandes fortunas para o financiamento da seguridade social, com rateio específico para a saúde, bem como aumentar as alíquotas da

Ministério da Saúde/Subsecretaria de Planejamento e Orçamento (SPO)(4).

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tributação sobre bebidas açucaradas, álcool, tabaco, motocicletas, como meio de fortalecer as fontes de financiamento exclusivas da seguridade social, e do SUS em particular.

Reduzir a renúncia de receita (gasto tributário) estimada em mais de R$ 300 bi-lhões, por meio da avaliação do efetivo cumprimento das contrapartidas legalmen-te estabelecidas para a sociedades, bem como rever a isenção concedida no imposto de renda sobre os rendimentos das pessoas físicas oriundas de dividendos.

Fortalecer a atenção básica como a ordenadora de toda a rede de cuidados da saúde da população, bem como valorizar os servidores públicos de saúde e a rede própria de unidades de saúde federais, estaduais e municipais.

Mobilizar a sociedade para a defesa do SUS e da democracia, nos termos da Nota “Saúde é Democracia aprovada na 16ª Conferência Nacional de Saúde

PLATAFORMA DE LUTAS PARA A SAÚDE

Bases e princípios da luta por Democracia e Saúde:

Lutar contra o capitalismo que produz as desigualdades e a exclusão social. Repudiar e denunciar todas as formas de violência, incluindo a pena de morte,

violência urbana, doméstica, de gênero, institucional e em saúde. Lutar por democracia, contra o fascismo e todas as formas de intolerância política. Defender o pluralismo social, denunciando e repudiando o patriarcado, a homo-

fobia, a lesbofobia, a transfobia e o racismo. Defender a descriminalização das drogas. Defender a legalização do aborto e os direitos sexuais e reprodutivos. Defender e mobilizar por democracia, pelos direitos sociais, seguridade social

e saúde. Resgatar o sistema de seguridade social definido pela Constituição, com amplia-

ção de seu orçamento global, garantindo o investimento público e financiamen-to exclusivo da rede pública estatal de serviços, incluindo a saúde.

Fim da aplicação da Desvinculação das Receitas da União (DRU) no orçamento da seguridade social e de suas derivadas estaduais e municipais.

Contra a entrada de capital estrangeiro nos serviços de assistência à saúde e pela revogação do artigo nº 142 da Lei nº 13.097/2015.

Extinguir subsídios, isenções fiscais e perdão de multas para o setor privado, garantindo o fortalecimento do setor público como única estratégia capaz de romper com a necessidade de utilização de serviços particulares.

Realizar um enfrentamento direto aos planos acessíveis e impedir mudanças le-gislativas que favoreçam as empresas desse setor.

Extinguir processos de privatizações e terceirizações na saúde,de maneira a forta-lecer a administração direta existente para garantir o cuidado com a vida humana

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e romper com a lógica de tratar a saúde como mercadoria. Extinguir subsídios públicos a qualquer serviço do sistema privado de saúde (pla-

nos privados de saúde, “novos modelos de gestão”, Hospitais Filantrópicos, com-pra de serviços privados). Pela abolição de todos os chamados “Novos Modelos de Gestão” e pela revogação das Leis (federais, estaduais e municipais, conforme a situação) que deram origem às OS; às OSCIP; às Fundações Estatais de Direito Privado; à EBSERH e suas subsidiárias; aos Serviços Sociais Autônomos (SSA); e àquelas que permitem e/ou preveem as Parcerias Público-Privadas, como as Comunidades Terapêuticas e demais contratações de serviço.

Defender o modelo de atenção que supere a perspectiva médico-privatista e ba-seado no cuidado humano e nos princípios da universalidade, igualdade, integra-lidade e autonomia.

Defender Plano de Cargos e Salários para profissionais de saúde. Apoiar os ajustes na formação acadêmica dos profissionais de saúde aproximan-

do às necessidades do SUS. Defender o SUS público com integralidade e quali-dade, universal e público.

BIBLIOGRAFIA

Abrasco. (Agosto de 2019). Pela Garantia do Direito Universal à Saúde no Bra-sil. Fonte: Abrasco: https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2019/06/DIGITALemA4_03jun19.pdf

Cebes. (2017). Cebes na luta: transformar e radicalizar a Democracia para asse-gurar Direitos Sociais e Saúde. Tese 2017-2019. Fonte: Cebes: www.cebes.org.br

Giovanella, L. (06 de Set de 2019). Comentários sobre a carteira nacional de serviços para a APS sob consulta. Fonte: Abrasco: https://www.abrasco.org.br/site/outras-noticias/opiniao/comentarios-sobre-a-carteira-nacional-de-servicos-pa-ra-a-aps-sob-consulta-artigo-de-ligia-giovanella-e-cassiano-franco/42331/

Miranda, A. C., Castro, H. A., & Souto, L. R. (2018). Democracia, direitos hu-manos, desigualdade e saúde: que caminhos trilhamos? Saúde em Debate.

Ocké-Reis, C., & Funcia, F. (Agosto de 2019). PIORA O QUADRO DE ASFIX-IA FINANCEIRA DO SUS – O QUE FAZER? Fonte: Idisa - Domingueira nº 29: http://idisa.org.br/domingueira/domingueira-n-29-agosto-2019#a0

Vieira, F. S., Santos, I. S., Ocké-Reis, C., & Rodrigues, P. H. (2018). POLÍTICAS SOCIAIS E AUSTERIDADE FISCAL: Como as políticas sociais são afetadas pelo austericídio da agenda neoliberal no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Cebes.

COORDENAÇÃO: THIAGO SILVA ALISSON SAMPAIO

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