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CADERNO DE TEXTOS Da Luta Não me Retiro Pois sei onde chegar Eu quero uma universidade Que me coloque pra pensar Pensar e Agir Agir e Pensar Pois a simples Teoria Nada pode transformar E se deixarmos, como fica? Que futuro haverá? O futuro cabe a nós Estudantes em movimento É chegada grande hora De sorrir e de ousar Já não temos mais saídas Nada temos pra esperar E por isso dessa luta Nunca vou me retirar Da Luta Não me Retiro (Vinícius de Oliveira e Alexis Magnum)

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Caderno de

TexTos

Da Luta Não me RetiroPois sei onde chegar

Eu quero uma universidadeQue me coloque pra pensar

Pensar e AgirAgir e Pensar

Pois a simples TeoriaNada pode transformar

E se deixarmos, como fica?Que futuro haverá?O futuro cabe a nós

Estudantes em movimentoÉ chegada grande hora

De sorrir e de ousarJá não temos mais saídasNada temos pra esperar

E por isso dessa lutaNunca vou me retirar

Da Luta Não me Retiro(Vinícius de Oliveira e Alexis Magnum)

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Educação SupErior MiniMaliSta: a Educação quE convéM ao capital no capitaliSMo dEpEndEntE

por quE EStudar dirEito, hojE?

ManifESto contra a criMinalização daS MulhErES quE praticaM aborto

doSSiê do coMitê contra o GEnocídio da população nEGra

novo códiGo florEStal é MaiS uM capítulo do hiStórico doMínio do braSil pElo aGronEGócio.

dirEitoS SExuaiS dE GayS, léSbicaS E tranSGênEroS no contExto latino-aMEricano

o tribunal popular da tErra

SE oS tubarõES foSSEM hoMEnS

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Educação SupErior MiniMaliSta: a Educação quE convéM ao capital no capitaliSMo dEpEndEntE

* Roberto Leher - Professor da UFRJ.

Nações situadas na classe de renda baixa ou médio-baixa [...] devem se limitar a desen-volver a capacidade para acessar e assimilar novos conhecimentos (p.38, grifos nossos). World Bank: La Educación Superior en los países en desarrollo: peligros y promesas, 2000)

Embora seja um propósito mais antigo, é a partir de 1994 quando o Banco Mundial publicou o seu já célebre documento “lições deriva-das da “experiência”1 , que as polí-ticas para a educação superior de muitos países latino-americanos, em conformidade com as suas fra-ções burguesas dominantes, pas-saram a perseguir o objetivo de desconstituir o chamado modelo europeu de universidade. Confor-me o Banco Mundial, a indissocia-bilidade entre ensino e pesquisa e a gratuidade das instituições pú-blicas, os traços mais distintivos deste modelo, seriam anacrônicas com a realidade latino-americana.

As estatísticas sobre a natureza das instituições de ensino superior latino-americanas organizadas pela UNESCO e os levantamen-tos do INEP, no caso brasileiro, confirmam que, de fato, o mode-lo universitário deixou de ser rei-vindicado pelos governos locais. Os indicadores confirmam que nas duas últimas décadas ocorreu uma forte diversificação de insti-tuições2 de ensino superior na re-gião, sobretudo no setor privado. Proliferaram todos tipos de ins-tituições: tecnológicas, isoladas, centros universitários e até mesmo as universidades privadas, em vir-

tude da flexibilização dos critérios para o credenciamento como uni-versidade, são atualmente, via-de--regra, unidades de ensino quase que completamente desvinculadas da pesquisa, nada tendo de emu-lação humboldtiana3. A nature-za jurídica dessas instituições e organizações também se alterou, predominando, largamente, insti-tuições com fins lucrativos de na-tureza empresarial frente às ditas sem fins lucrativos4.

A despeito das profundas mu-danças nas instituições universi-tárias públicas, também alteradas pela mercantilização e pela hiper-trofia das atividades de serviços, a grande maioria destas instituições seguiu ofertando cursos de gradu-ação plenos, inclusive ampliando o tempo de formação em diversas carreiras.no bojo de longas refor-mas curriculares A indissociabili-dade ensino, pesquisa e extensão, embora nem sempre sistemática, se mantém como uma prática es-tabelecida nas públicas, por meio de programas como o Programa Especial de Treinamento (CAPES/SESU-MEC), o Programa de ini-ciação científica (PIBIC/ CNPq), monitorias e mesmo por ativida-des docentes em que a pesquisa desenvolvida nos programas de

pós-graduação repercute nas salas de aula da graduação.

As resistências das universidades públicas aos projetos que preten-dem imprimir um caráter aligei-rado e massificado sem qualidade têm gerado críticas sistemáticas por parte dos sucessivos gover-nos brasileiros. Todas as políticas de Collor de Mello a Lula da Silva, inclusive, são enfáticas a esse res-peito. A acusação mais comum é que as universidades públicas são burocráticas, conservadoras, eli-tistas e vivem protegidas por uma redoma de vidro que impede que se tornem instituições “integra-das” com a sociedade, como se pu-desse existir instituição social fora da sociedade!

Mas essa resistência – expres-sa em atos acadêmicos em prol da concepção universitária e por mobilizações e greves – pode es-tar sendo quebrada pelas sucessi-vas medidas adotadas pelo gover-no Lula da Silva que, diferente de Cardoso, tem obtido apoio mais ativo por parte das administrações universitárias. Em geral, todos os projetos governamentais que pre-tendiam “harmonizar” os cursos de graduação das públicas com os das privadas, tendo o padrão des-

1 WORLD BANK. Higher Education: the Lessons of Experience (1994).2 O exame das reformas do Estado e da desregulamentação do setor privado evidenciam que muitas universidades seriam melhor definidas como organizações de negócio e não instituições sociais. Marilena Chauí ofereceu uma importante contribuição ao debate em A universidade operacio-nal (Folha de S.Paulo, Caderno Mais, em 9 de maio de 1999).. 3 Relativo ao modelo apregoado por Humboldt na universidade de Berlim (1809), referenciado na indissociabilidade entre ensino e pesquisa, gratuita e mantida pelo Estado. A instituição nos termos de Humboldt, deveria ser autônoma, possuindo prerrogativa do autogoverno e da auto-normação. 4 Ver: Roberto Leher “A problemática da universidade 25 anos após a ‘crise da dívida’”, Universidade e Sociedade, n. 39, DF: ANDES-SN, 2007.

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tas últimas como referência, foram compreendidos como heterôno-mos e não contaram com o apoio ativo das administrações.

A partir do mandato de Lula da Silva a realidade é outra. Projetos que outrora foram apresentados pelo MEC e recusados pelas univer-sidades voltaram à baila, mas agora assumidos como se de autoria das próprias universidades, retirando o MEC do foco do conflito. Assim, diferente dos períodos anteriores em que os embates eram externos à universidade, o que facilitava a uni-dade da comunidade acadêmica, atualmente, o cerne dos conflitos se volta para dentro das instituições, ampliando o grau de liberdade do governo para levar adiante a sua agenda.

Outro aspecto novo a ser conside-rado é que setores mais empenha-dos no “capitalismo acadêmico”5 têm assumido um posicionamen-to mais ativo, protagônico, nesse processo, justo por vislumbrarem a possibilidade de mais e melho-res negócios em uma universidade massificada e aligeirada, em espe-cial por meio de cursos a distância. A este setor se somam docentes que apóiam a contra-reforma como uma tarefa política, por se sentirem comprometidos partidária ou ideo-logicamente com o governo de Lula da Silva, posicionamento presente em militantes petistas e de outros partidos da base governista (PC do B, PDT, PMDB, PP, PR, PSB), de distintas forças presentes na CUT e na direção majoritária da UNE.

Em que consiste essa reestrutu-

ração das universidades federais como instituições que ofertam cur-sos aligeirados? Quais as medidas que pretendem implementar esse modelo? O que é novo em relação às iniciativas que buscavam imple-mentar cursos de curta duração?

Duas medidas recentes – estreita-mente interligadas – têm o objetivo de modificar a forma de graduação, tornando-a mais breve, para que as universidades federais possam ampliar, sem recursos adicionais, a oferta de vagas: o projeto “univer-sidade nova” e o programa de rees-truturação das universidades fede-rais (REUNI).

Inicialmente, o artigo analisa a Universidade Nova, por ser um projeto mais detalhado e explícito em relação ao propósito de aligeirar a formação universitária. A seguir, o artigo discute o REUNI, a mate-rialização do projeto universidade nova, estabelecendo, ao final, nexos com o padrão de acumulação em curso no país.

Universidade Nova

O projeto Universidade Nova, apresentado originalmente em um seminário promovido pela UFBa6, pretende promover uma “nova arquitetura curricular” nas uni-versidades, promovendo um ciclo básico, curto, de natureza não pro-fissional, que garantiria aos con-cluintes um diploma de estudos ge-rais. A formação profissional seria exclusivamente para os mais aptos a prosseguir em sua formação.

O documento “Universidade Nova: Reestruturação da Arquite-

tura Curricular na UFBa” doravan-te denominado Universidade No-va-UFBa, parte da mesma premissa dos documentos do BM e dos teó-ricos da Escola de Chicago, como Gary Becker, um Nobel neolibe-ral que pertence a ala direita desta Escola, que afirmam o fracasso do projeto de construção de universi-dades públicas e gratuitas no Bra-sil. Nos termos de Becker, manter o modelo europeu (humboldtiano) no Brasil é uma irracionalidade, pois as suas universidades tão so-mente redescobrem o conhecimen-to e, ademais, significam subsídios às pessoas erradas (à dita elite).

A partir da construção dessa imagem negativa, os governos ne-oliberais, a Escola de Chicago e o BM propugnam que, em virtude de seu descolamento com a sua épo-ca, a universidade pública precisa ser completamente reestruturada: novo aqui significa a rejeição com-pleta do que foi construído no pe-ríodo do pós-Segunda Guerra, no contexto das políticas nacional-de-senvolvimentistas em que se forjou, contraditoriamente, um pensa-mento crítico à ideologia da mo-dernização e do desenvolvimento, crítica esta que supunha que o país desenvolvesse suas universidades para fortalecer a luta contra a he-teronomia cultural, cujo expoente máximo foi Florestan Fernandes.

O precioso patrimônio aspera-mente construído em um intervalo de tempo incrivelmente exíguo, o Brasil foi o último país da Amé-rica Latina a ter instituições pro-priamente universitárias, passa ser considerado um estorvo a ser re-

5 SLAUGHTER, S.; LESLIE, L.L. Academic capitalism: politics, policies and the entrepeneurial university. Baltimore, USA/London, England: The Johns Hopkins University Press (1999).6 Em sua atual versão, o projeto Universidade Nova foi divulgado no I Seminário Nacional da Universidade Nova, realizado em Salvador entre 1º e 2 de dezembro de 2006, sob o patrocínio da SESu/MEC e da ANDIFES. O evento tratou dos temas: estrutura curricular do Bacharelado Inter-disciplinar (BI), dos Cursos profissionalizantes e da Pós Graduação, modalidades de processo seletivo para o BI e para os Cursos Profissionais, antecedentes históricos da Universidade Nova, modelos de arquitetura acadêmica utilizados no mundo, impacto do projeto Universidade Nova na estrutura administrativa da universidade pública brasileira, dentre outros tópicos. Grupos de trabalho discutiram e sintetizaram as propostas do documento final. O II Seminário Nacional da Universidade Nova realizou-se na Universidade de Brasília – UnB, no Auditório Dois Candangos, no período de 29 a 31 de março de 2007, tendo como tema “Anísio Teixeira e a universidade do século XXI”.

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formulado inteiramente para aten-der às necessidades de um merca-do capitalista dependente que já não estaria demandando forma-ção acadêmico-profissional sólida e longa. Sobressaem as fórmulas bancomundialistas, os esquemas da área de negócios de educação superior estabelecidos pelo pro-cesso de Bolonha e da OCDE/ Unesco, almejando a criação de um espaço europeu de negócios educacionais com “competitivida-de internacional”, o AGCS/OMC e, sobretudo, o modelo aligeirado para os mais pobres nos EUA, os Community Colleges.

Em termos práticos, o projeto UNIVERSIDADE NOVA diagnostica que o problema central das instituições universitárias bra-sileiras é o “velho recorte discipli-nar” que a tornou uma instituição esclerosada, moribunda, inserida em um sistema classificado de “ul-trapassado”, “condenado” e “arrui-nado” incapaz de dialogar com as necessidades do tempo presente. A partir dessa consideração, os seus autores concluem que a alternati-va mais sensata é adotar o mode-lo bancomundialista, pincelando aspectos do acordo de Bolonha e carregando nas tintas do modelo dos Community Colleges.

Uma universidade a ser descartada?

A premissa fundamental do pro-jeto Universidade Nova é que o atu-al modelo universitário é nefasto, gerando uma instituição anacrô-nica e inviável, especialmente por não ter semelhança com as univer-sidades reformadas pelas políticas neoliberais nos países centrais. É preciso, preliminarmente, exami-nar esse pressuposto fundamental para seguir examinando os demais fundamentos da proposta.

Os autores do referido proje-to partem do que julgam ser uma análise histórica da constituição da universidade brasileira para, a partir do histórico, apresentar um diagnóstico e as supostas alternati-vas (já contidas na narrativa histó-rica que é escrita para corroborá--la, uma evidente teleologia). O documento qualifica as universi-dades federais como híbridas, reu-nindo o pior do modelo estaduni-dense e da universidade européia do século XIX. É desconcertante que o documento não considere que, apesar das políticas governa-mentais, as instituições possuem uma dinâmica própria engendrada pelas contradições do real. A rigor, nenhuma universidade federal se encaixa no diagnóstico da Uni-versidade Nova. Existiram resis-tências, lutas, greves (qualificadas no documento como inúteis) que impediram que as determinações oficiais fossem implementadas de modo mecânico e absoluto. Ao deixarem de examinar as institui-ções em suas particularidades, os autores ignoram que existe uma história não governamental que expressa as lutas, tensões e contra-dições que pulsam em toda insti-tuição universitária.

A análise histórica contida no documento confunde contradição com incoerência. O fato de existir tensões na universidade provocadas por perspectivas distintas de univer-sidade, longe de ser algo negativo é, ao contrário, alvissareiro, pois indica que em um determinado contexto existiram forças criticas ao projeto hegemônico. Para os autores do re-ferido projeto, a existência de forças emancipatórias que reivindicam a dimensão libertária da modernida-de é “o” obstáculo a ser removido, pois estas forças criam resistências e arestas à universidade operacional que defendem.

Embora as primeiras institui-ções propriamente universitárias tivessem sido criadas por frações dominantes com propósitos con-servadores – no caso da USP, a afirmação da burguesia paulis-ta frente ao novo bloco de poder que se afirmava sob a liderança de Getúlio Vargas – a vitalidade da universidade produziu contradi-ções muito mais profundas do que supunham os seus criadores. O mesmo efeito aconteceu no perío-do da modernização conservadora do governo empresarial-militar. O fortalecimento da pesquisa e da pós-graduação assumiu contornos muitas vezes distintos do que pre-conizava o modelo desejado pela ditadura.

Por isso, na segunda metade do século XX, o período em que a maior parte das universidades foi constituída, a função social da universidade não pôde deixar de ser contraditória, produzindo ma-joritariamente conhecimento fun-cional ao modelo capitalista de-pendente, mas, embora de forma minoritária, elaborando, também, conhecimento novo, crítico, de alta qualidade que tem contribuí-do para tornar pensável a forma-ção social brasileira, a agricultura camponesa, a saúde pública, as formas alternativas de energia, os conhecimentos históricos das lutas sociais dos trabalhadores brasilei-ros etc.

Os autores do projeto em discus-são concluem que a universidade existente tem de ser superada a partir de um histórico que, pelo exposto, é sui generis: desqualifica por completo a perspectiva eman-cipatória que, embora minoritária, parece ser a causa de todos os ma-les. Significativamente, os autores nada falam dos setores mais capi-talizados engajados na mercantili-zação e no empreendedorismo que

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6configuram o capitalismo acadê-mico periférico.

Se a universidade que pode dar certo é a universidade operacional (a serviço de um mercado apresentado como virtuoso), como os autores da proposta explicam que o país segue patinando no número de patentes7 e que a presença internacional da ciên-cia brasileira8 tem se dado, sobretudo, na pesquisa básica? O que esses indi-cadores nos mostram é que, a despeito das políticas que tentam subordinar a universidade ao utilitarismo e ao prag-matismo, a sua vitalidade reside justa-mente nos domínios em que o fazer acadêmico é mais condizente com a função social de produzir e socializar conhecimento científico e tecnológico do que com a função de ser lócus da pesquisa e desenvolvimento (a cha-mada inovação tecnológica).

Esses indicadores sobre patentes e produção do conhecimento na uni-versidade não surpreendem os que estudam a base material do país: na-ções que estão inseridas na economia--mundo de modo capitalista depen-dente (como o Brasil) não possuem um parque produtivo que requer ino-vação tecnológica significativa, e não serão as universidades que poderão preencher essa lacuna aberta pelas empresas que atuam apenas em par-te da cadeia produtiva ou se valem de tecnologias já consolidadas.

Os autores não explicam igualmen-te a expansão da pós-graduação bra-

sileira, estruturada a partir dos quase heróicos mestrados (que chegam a ser ridicularizados no documento) há apenas três décadas – uma experiên-cia extremamente bem sucedida, pois ainda hoje é o primeiro momento em que grande parte dos novos professo-res e pesquisadores faz um trabalho científico completo – tenha al-cançado a dimensão do Sistema Nacional de Pós-graduação (em 2003):

Nº de Programas e Nº de Cursos

doutorado

mestrado aCadêmiCo

mestrado

ProfissioNal

aluNos titulados

1.819 / 2.861

1.020 cursos

1.726 cursos

115 cursos

35.724

Fonte: CAPES/PNPG (2005-2010)

Mais do que o crescimento das citações internacionais, um indi-cador em vários sentidos frágil e controvertido, como explicar que uma universidade tida como ana-crônica, isolacionista, quase única no mundo por seu ecletismo, tem permitido um diálogo tão intenso com os grupos de pesquisa estran-geiros de prestigiosas instituições e a realização de doutorados san-duíches e dos pós-doutoramentos exitosos? Se o sistema fosse tão anacrônico e descolado do que existe nos países centrais, como esses diálogos aconteceriam de modo tão intenso?

O documento tampouco explica como a ciência brasileira foi capaz de produzir conhecimento com amplo reconhecimento internacio-nal, como o uso de soluções hiper-tônicas no tratamento de choque hemorrágico, uma descoberta que ampliou em cerca de 10% a sobre-vida de acidentados com múltiplos fermentos aos serviços de urgên-cia dos hospitais, ou a participação brasileira no Genoma, ou ainda a produção de vacinas contra a he-patite B no Butantan, ou os estudos sobre a fixação de nitrogênio por bactérias associadas com raízes de plantas que permitiram aumentar a produtividade do plantio de fei-jão em cinco vezes na UFRRJ, ou os estudos sobre as conseqüências do uso de mercúrio no garimpo, pela UFPa, ou os estudos sobre in-formática desenvolvidos na UFPE ou a prospecção de petróleo em águas profundas pela UFRJ que hoje garante a quase autonomia de combustível fóssil no Brasil9.

A base da infra-estrutura na-cional, estradas, portos, pontes, hidrelétricas, petróleo, o conheci-mento geográfico, o levantamen-to da biodiversidade, a produção de sementes adaptadas ao solo e ao clima do país, tudo isso difi-cilmente teria sido edificado sem os profissionais formados pelas universidades públicas. A avalia-ção social reiterada no cotidiano de que os melhores professores,

7 O Brasil perde espaço em inovação tecnológica. Em seu levantamento anual, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) aponta que, entre 2004 e 2005, o número de patentes pedidas no País caiu 13,8%, enquanto em praticamente todo o mundo aumentou. A queda foi a maior entre os 20 principais escritórios de patentes no mundo.Hoje, um quarto de toda a tecnologia disponível no planeta já está nas mãos de apenas três países asiáticos: China, Japão e Coréia do Sul. Jamil Chade, Brasil perde espaço em inovação tecnológica Estadão, 10 de Agosto de 07. Durante a década de 90 verificou-se um crescimento da ordem de 70% nos pedidos de patentes junto ao Instituto Nacional de Propriedade Inte-lectual (INPI). Os pedidos passaram de 14.186 em 1990 para 24.572 em 2001. A participação dos residentes nos pedidos de depósito, que pode ser tomada como um indicativo da importância do esforço nacional de inovação, caiu durante toda a década, chegando a atingir, em 1998, a metade do nível de 1991. Antônio Márcio Buainain e Sérgio M. Paulino de Carvalho http://www.inovacao.unicamp.br/anteriores/colunistas/colunistas--amarcio.html. Neste início do século 21, definitivamente, não fomos brilhantes. O USPTO (sigla em inglês do escritório de patentes norte-ameri-cano) concedeu-nos, no triênio 2001-2003, 336 patentes, número que caiu para 304 no triênio subseqüente. Ou seja, tivemos uma perda de 10%. Roberto Nicolsky e André Korottchenko. Publicado no Jornal de Brasília, 15/05/2007.8 30 anos, o número de trabalhos publicados por pesquisadores brasileiros aumentou exponencialmente de 0,3% para quase 2% de todo o conhe-cimento científico mundial. Entre as 15 universidades com maior produção científica no momento, 11 cresceram mais de 200% em relação a dez anos atrás (1996-2006), segundo os dados mais recentes da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) (O Estado de S. Paulo, 1/08/2007). 9 A presença da universidade pública. USP, Gabinete do Reitor, 2000.

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7enfermeiros, sociólogos, bioquí-micos, médicos, agrônomos são provenientes dessas instituições supostamente fracassadas também não é mencionada pelos detratores da universidade pública.

Ao mencionar o elitismo das públicas, os autores ocultam que atualmente as públicas sequer al-cançam 20% das vagas disponíveis na educação superior e que a ren-da familiar dos estudantes das Pú-blicas que estão entre os 20% mais pobres é de cerca de R$ 750,00 e que 75% dos estudantes possuem renda familiar de até R$ 2700,00. Isso seria a elite da Universidade Nova, da Escola de Chicago e do BM? Desconhecem os autores o estudo do IBGE que constata que, apesar de tão reduzida, ainda as-sim, em todas as situações, a uni-versidade pública é mais democrá-tica do que as privadas: em todos as carreiras a renda média dos es-tudantes das públicas é menor do que a renda média das privadas?10

Considerando a devastação pro-vocada pela tese de que cada país deve ter uma universidade com-patível com as expectativas que o imperialismo tem sobre a sua in-serção na economia-mundo – cujo exemplo africano certamente é o mais dramático – que país seria o Brasil sem a sua “arcaica, velhaca, obtusa” universidade pública?

O que realmente querem dizer os elaboradores do projeto Uni-versidade Nova quando dizem que tudo o que foi acumulado histo-ricamente com base em trabalhos tão árduos e penosos é anacrôni-co e irrelevante? É como se vinte anos de debates sobre a formação de “professores como intelectuais e produtores de conhecimento”

fosse apenas motivo de comentá-rios jocosos, lastreados em pres-supostos frágeis de Edgar Morin, um autor que se celebrizou por ter sido um operador de políticas neoliberais em seu país, como na reforma da educação tecnológica que, a exemplo da Universidade Nova, aligeirava a formação dos jovens, promovendo um levan-te da juventude francesa contra o seu modelo, situação finamente criticada por Pierre Bourdieu e que, recentemente, tentou vender o pacote de sua ONG, o Instituto ORUS em associação com o BM, para “reformar e criar uma univer-sidade nova”, dita do Século XXI, no Brasil.

Disciplina e interculturalidade

A discussão prioritária sobre a interculturalidade, o método de construção do objeto, a forma de fazer perguntas e definir os pro-blemas, o problema da unidade do ser e do saber, a unidade das ciên-cias, das técnicas, das artes e das humanidades, em suma, a reflexão a propósito das questões epistemo-lógicas e epistêmicas, ao ser desen-volvida pelos autores da Universi-dade Nova é dissolvida na fórmula simplista da interdisciplinaridade epidérmica.

Os seus autores criticam o recor-te disciplinar das faculdades, mas sustentam a interdisciplinaridade. Como é possível estabelecer rela-ção entre várias disciplinas em que se divide o saber-fazer humano se a proposta em discussão desquali-fica a existência da disciplina e das faculdades? Tudo indica que os autores desconsideram que a ex-pressão disciplina está relacionada ao “propósito de rigor, exatidão que se identificam com a posse de

´um saber´ ou o ´domínio de uma arte ou técnica´ e também com di-visões do trabalho intelectual em campos, áreas ou aspectos de um fenômeno. Ao mesmo tempo, (...) disciplina e faculdade evocam os problemas do poder estabelecido e alternativo.”11 A leitura dos do-cumentos da Universidade Nova indica, antes, que o sentido assu-mido na crítica às disciplinas é o oposto desta expressão: indiscipli-na, isto é, ausência de rigor e exa-tidão, relativismo epistemológico, nos termos do pós-modernismo midiático.

A interdisciplinaridade somente pode buscar novas formas de ri-gor e profundidade se estabelecer real diálogo com problemas bem elaborados e demarcados, pois é a busca do rigor disciplinar que exi-ge combinações e interseções de duas ou mais disciplinas, superan-do a divisão do trabalho anterior, conferindo novos sentidos para a totalidade12. O abandono do rigor reacende o empirismo vulgar e a celebração do senso comum como saber científico. As ideologias do-minantes, com isso, jamais pode-rão ser questionadas, assegurando a ordem estabelecida como uma ordem natural. É a capitulação ao fim da história.

Baseado no modelo pretendido no Bacharelado Interdisciplinar, a vida acadêmica do estudante será equivalente a do consumidor em um shopping center: os estudantes percorrerão as diversas temáticas como se estivessem diante de vi-trines, mas, tal como nesses tem-plos de consumo, nem todos pode-rão freqüentar as mesmas “lojas” (percursos escolares), posto que, como discutido adiante, alguns domínios estarão reservados aos

10 Sobre acesso, ver indicadores muito bem elaborados em José Marcelino Rezende Pinto, Educação e Sociedade, vol. 25, n.88, p.727-754, Especial, Outubro 2004. 11 Pablo G. Casanova, interdisciplina e complexidade. In: Casanova, P. G. As novas ciências e as humanidades. SP: Boitempo, 2006, p.13.12 Idem, p.13.

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8“vocacionados”. A massa terá de se contentar em adquirir alguma quinquilharia (O Bacharelado In-terdisciplinar) em alguma loja de departamento.

Com base nessa noção rala que não enfrenta o debate epistêmico (que saber está sendo produzido? Como esse saber está sendo elabo-rado?) os piores projetos em curso, como a transposição das águas do Rio São Francisco ou a hidrelétrica do Rio Madeira podem ser conce-bidos como exemplos bem sucedi-dos desse enfoque interdisciplinar epidérmico. Se compreendemos a interdisciplinaridade como justa-posição de saberes, é indubitável que esses projetos são interdisci-plinares, reunindo saberes da en-genharia, da física, da metereolo-gia, da hidrologia, da ecologia etc. Mas nem por isso anunciam pers-pectivas emancipatórias, críticas à colonialidade do saber, referen-ciadas em estudos desenvolvidos em perspectivas históricas. Essa interdisciplinaridade epidérmica já é uma realidade em quase todos os cursos, o que não altera o peso da razão instrumental que segue guiando os mesmos.

Mas a questão de fundo do pro-jeto Universidade Nova não é o de-bate epistemológico e epistêmico, mesmo porque estas preocupações inexistem no projeto Universidade Nova. A mal denominada “arqui-tetura curricular” da Universidade Nova é, sobretudo, uma “reestru-turação” gerencial para aumentar a produtividade da universidade, em termos da administração racional do trabalho taylorista. Nesse sen-

tido, o Decreto 6069/07 do MEC (REUNI) é mais honesto: trata-se mesmo de uma reestruturação da universidade. Assim como as em-presas viveram reestruturações baseadas na qualidade total, na re-engenharia etc, agora é a vez das universidades se ajustarem aos preceitos da economia capitalista dependente.

A questão central do projeto da Universidade Nova, que não pode ser objeto de confusão, é a gradu-ação minimalista com a concessão de diploma, objetivando ampliar o número de estudantes sem con-trapartida de recursos e promover um novo e perverso gargalo que tornará a profissionalização um privilégio de poucos “vocaciona-dos”.

As inspirações do modelo

Após as críticas à universidade à bolonhesa, as referências a Bo-lonha13 acabaram ocultadas, em favor de um educador respeitado: Anísio Teixeira, autor de um pro-jeto de educação nacional-desen-volvimentista, que, ao criar a UnB, desenvolveu fundamentos radi-calmente distintos dos presentes na Universidade Nova. Embora o projeto da UnB14 previsse um ciclo básico em grandes áreas, seguido de um bacharelado de três anos, perfazendo uma graduação de cin-co anos, este projeto foi pensado com os estudantes cursando o ci-clo básico em horário integral, em pequenos grupos, acompanhados pari passu por docentes. A meta, em dez anos, era que o número de estudantes por professor fosse de

6:1! A Universidade Nova prevê no ciclo básico (O Bacharelado Inter-disciplinar) 80:1 a 40:1. O REUNI 18:1! Obviamente, não há como comparar os termos da UnB com os da Universidade Nova.

A leitura do texto do Documento Universidade Nova: UFBa e do re-ferido artigo do reitor da UFBa não deixam dúvidas de que as referên-cias mais importantes são mesmo as de Bolonha e dos Community Colleges. E isso fica claro não ape-nas pela adoção do modelo do ci-clo básico (o Bacharelado Interdis-ciplinar) de curta duração, mas de todo o léxico dos textos, estrutu-rado a partir de expressões muito bancomundialistas e muito bolo-nhesas, a “nova vulgata planetá-ria”15 como: “ciclos”, “mobilidade”, ‘qualidade”, “competitividade”, “fle-xibilidade”, “empreendedorismo”, “inevitabilidade da transnaciona-lização”, “globalização”, “sociedade da informação”, “competências ge-néricas”, “polivalência”, “adaptação ao mercado” etc. Nos termos de Bourdieu e Wacquant (2001), essa vulgata opera a ideologia neolibe-ral que difunde as ‘disposições de pensamento´ necessárias para a nova ordem: o capitalismo de livre mercado inexorável e irreversível.

Em todo texto está suposto que o mercado é um agente. Quando não é o mercado, os atores que in-duzem as transformações são não--humanos, inanimados (as novas tecnologias) ou nominalizados (a transformação, a mudança). O ator mais proeminente é o “novo mundo globalizado”. Não há pro-tagonismo humano. A partir des-

13 O processo de Bolonha propugna a criação de um espaço europeu de educação superior que, na ótica dos que mercantilizam a educação, pode significar um robusto mercado educacional: essa é a expectativa da OCDE-UNESCO que incentiva a difusão do comércio transfronteiriço de educação superior por meio da EAD. O modelo preconizado pelo Relatório Attali, a graduação genérica em três anos, representa a possibilidade de um sistema abreviado e massificado que os mercadores gostariam de ver difundido em toda a Europa. (Roberto Leher “Fast delivery diploma: a feição atual da contra-reforma da educação superior Notas sobre a Universidade Nova”, publicado originalmente no sitio da Carta Maior, espaço de controvérsias). 14 Plano Orientador da Universidade de Brasília. Ed. UnB, 1962.15 Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary vulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 .

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9ses pressupostos o documento da Universidade Nova conclui que a universidade brasileira está em descompasso com esses “agentes transformadores”. Daí a obsessão com a forma distinta de organiza-ção da educação superior brasilei-ra em relação aos países centrais e ao mercado global, um sujeito que requer que a universidade faça os ajustes em conformidade às suas necessidades.

De fato, a localização das IFES fora do padrão de Bolonha ou dos community colleges é provavel-mente um dos pontos mais reite-rados do documento da Univer-sidade Nova-UFBA, estruturando a crítica à universidade atual e propugnando o ajuste aos referi-dos modelos sob o risco de “isola-mento”, como se não estar com o mesmo formato mercantilizado e “mercadocêntrico” fosse impedir o diálogo da universidade brasileira com os demais centros de produ-ção de conhecimento: “se (...) não aproveitarmos a chance de criar um novo sistema universitário ar-ticulado ao que é dominante no mundo o Brasil vai ficar isolado” (citação com ajuste de redação) (Universidade Nova-UFBa, p.13).

A solução miraculosa para esse descompasso é, como visto, a re-visão curricular, sem qualquer in-dicação de alteração nas políticas macroeconômicas do imperialis-mo que somente mantém empre-gos precários e de péssima qua-lidade, sem qualquer menção ao encolhimento da oferta pública, ao congelamento das verbas para a educação federal, ao robusto sis-tema de subsídios públicos para as instituições privadas-mercantis (PROUNI) e ao problema da pro-priedade intelectual que opõe as

nações centrais e periféricas. É ob-servável ainda a adesão à ideologia de que as pessoas trabalham em áreas distintas de sua formação ou estão desempregadas em função do anacronismo do currículo pre-sente em sua escolarização, uma afirmação que causaria orgulho em Schultz e Becker, dois dos mais importantes ideólogos do capital humano da universidade de Chi-cago que, em sua época, teriam ficado encantados com seus discí-pulos brasileiros.

Graduação minimalista para um mercado de trabalho flexível

e desregulamentado

Em linhas gerais, a Universidade Nova preconiza a seguinte estrutu-ra: após o invertebrado Bachare-lado Interdisciplinar (BI) de 2 a 3 anos (p.18), o estudante ganharia um diploma que o habilitaria a se-guir os seus estudos, se aprovado em seleção, conforme o seu perfil “vocacional”:

• Aluno(a)s vocacionadospara a docência poderão prestar seleção para licenciaturas especí-ficas com mais 1 a 2 anos de for-mação profissional, o que habilita o aluno(a) a lecionar nos níveis básicos de educação;

• Aluno(a)s vocacionadospara carreiras específicas poderão prestar seleção para cursos profis-sionais (p.ex. Arquitetura, Enfer-magem, Direito, Medicina, Enge-nharia etc.), com mais 2 a 5 anos de formação, levando todos os cré-ditos dos cursos do BI;

• Aluno(a)s com excepcionaltalento e desempenho, se aprovados em processos seletivos específicos, poderão ingressar em programas

de pós-graduação, como o mestra-do profissionalizante ou o mestra-do acadêmico, podendo prosseguir para o Doutorado, caso pretenda tornar-se professor ou pesquisa-dor16 (grifos e destaques meus).

Está evidente que essa diferen-ciação tem como fundamento o padrão de acumulação por des-possessão17 que pressupõe níveis de “competência” distintas no mercado de trabalho.

A lógica da Universidade Nova é mesma da de Bolonha. Espera--se aqui uma instituição de ensi-no superior capaz de servir a de-mandas de mercado, operando a hierarquia baseada em supostas competências gerais e específicas, lastreando conhecimentos subje-tivos que vão separar “os mais ta-lentosos” que terão uma formação mais sólida, da maioria que terá apenas uma formação panorâmica de uma grande área.

No México, por exemplo, o ins-tituto de estudos estatísticos desse país menciona que apenas 10% dos postos de trabalho exigirão for-mação universitária completa. No Brasil não temos indicadores pros-pectivos abrangentes, mas, muito provavelmente, não serão muito distintos dos mexicanos.

Essa cisão não é vista como pro-blemática, ao contrário, é celebra-da como um ajuste da educação superior ao mercado mundializa-do: “Um mundo do trabalho mar-cado pela desregulamentação, fle-xibilidade e imprevisibilidade não demanda apenas especialistas, mas também profissionais qualificados e versáteis, com competência para atuar em diferentes áreas” (Razões para a reestruturação. In: Univer-sidade Nova: uma nova arquitetura

16 http://www.universidadenova.ufba.br/arquivo/Projeto_Universidade_Nova.doc14 Plano Orientador da Universidade de Brasília. Ed. UnB, 1962.17 Bourdieu, Pierre & Wacquant, Loïc 2001 NewLiberalSpeak: notes on the new planetary vulgate. Radical Philosophy, 105, p.2-5. URL: http://www.radicalphilosophy.com/default.asp Access in july, 2003 .

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10para um novo tempo, UFBA Revis-ta, n.4, 2007). A lógica não poderia ser mais instrumental: como o fu-turo do trabalho será precário para a grande maioria é preciso “ajustar” as universidades públicas criadas em um contexto de Estado de bem--estar social para o áspero mundo do trabalho flexível e desregula-mentado, por isso os ciclos. Claro que o “velho” modelo universitário orientado para o trabalho regulado não cabe mais aqui.

Este mesmo padrão de acumu-lação requer a diferenciação das instituições de ensino superior mundiais. No caso brasileiro, uma conseqüência do projeto será a conformação das universidades fe-derais em “escolões”, em detrimen-to da pesquisa acadêmica, tendo em vista que para cumprir o con-trato de gestão, discutido adiante, o grosso do corpo docente terá de se empenhar em atender enormes turmas no primeiro ciclo, institu-cionalizando, ainda mais, o afasta-mento do modelo humboldtiano de universidade como instituição de ensino e pesquisa, capaz de garantir uma formação ampla, bildung, aos estudantes.

O modelo preconizado pelo pro-cesso de Bolonha não é distinto da formulação bancomundialista e está sendo difundida não apenas na Europa, objetivando o espaço de negócios europeus de educação su-perior, mas está promovendo o re-desenho da educação superior em muitos outros países capitalistas dependentes. A mesma estrutura pode ser encontrada na Guatemala, está em discussão na Argentina e encontra-se em implementação na Romênia e em Portugal. Na Romê-nia, o ajuste ao processo de Bolonha

tem como argumentação central a recusa a especialização excessiva e precoce, buscando uma formação mais geral e ajustada ao mercado de trabalho, assumido, tal como na Universidade Nova, como precário e flexível18.

Não casualmente, em Portugal a Comissão de educação do Parla-mento encarregada de examinar o processo de Bolonha sugeriu a sua não implementação, pois essa di-nâmica iria aprofundar a condição periférica do país no continente europeu. As principais universi-dades portuguesas não aderiram justo porque compreendem o mo-delo como prejudicial à autonomia científico-cultural do país.

As lutas dos estudantes france-ses contra o processo de Bolonha expuseram todo o arcaísmo do modelo, pois cerca de 90% dos es-tudantes não podem alcançar os níveis mais elevados do sistema. Também os estudantes gregos es-tão em luta contra o modelo bolo-nhês. Nenhuma dessas resistências é mencionada pelo Documento que se alia aos governos social-li-berais na defesa da diferenciação social.

Universidade Nova e o MEC

A pretensão de originalidade do projeto é descabida, pois não apenas em âmbito internacional projetos semelhantes estão sendo implementados em diversas partes do mundo, como, em âmbito local, vem sendo diligentemente enca-minhado pelo MEC desde Car-doso. Na proposta do Grupo de Trabalho Interministerial (2003), a idéia era expandir as vagas públi-cas por Educação a Distância, uma idéia que faz parte do núcleo sóli-

do da política do governo de Lula da Silva e que compunha o cerne da Minuta de Decreto de imple-mentação da Universidade Nova apresentada pelo MEC em março de 2007. O crescimento das matrí-culas nessa modalidade é inédito e vertiginoso, passando de 28 cursos de graduação em 2003, sendo 70% públicos, equivalendo ao ingresso anual de 21 mil estudantes, para 189 cursos em 2005, 40% deles pú-blicos, correspondendo ao ingres-so neste ano de 172 mil estudantes!

Outra idéia força foi a criação de uma graduação em moldes pós--secundários, à semelhança da re-forma conservadora do Pacto de Bolonha. A expansão da educação tecnológica, dos centros univer-sitários (2002:70, 2005:120) e das instituições com fins lucrativos (2003: 1600, 2005:1850) compro-vam que a expansão aligeirada, uma realidade nas privadas, já vi-nha sendo incentivada pelos go-vernos.

A idéia de um sistema organizado para ofertar ensino massificado e desvinculado da pesquisa, presen-te no Projeto GERES19 , qualificado como positivo pelo Documento da Universidade Nova20, é sumamen-te significativa. Distintamente do afirmado no referido documento, o ANDES-SN combateu intensa-mente o GERES por compreender que o mesmo institucionalizaria um sistema dual nas IFES: alguns poucos “centros de excelência” e muitos “escolões”, perpetuando, assim, as desigualdades sociais e regionais. Também importante é a avaliação do documento (p.12) de que o PL 7200/06 é um avanço, in-dicando o escopo em que o projeto Universidade Nova está situado.

18 Fairclough, N. (2006) Language and Globalization, London: Routledge.19 Em novembro de 1985 foi criado o Grupo Executivo para a Reformulação da Educação Superior (Geres). Composto por cinco membros, o Grupo elaborou uma proposta de lei, na qual pretendeu reformular as instituições federais de ensino superior.20 Universidade Nova - UFBa, p.11.

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11No âmbito do MEC, os funda-

mentos do Projeto Universidade Nova estão no Projeto de Lei Or-gânica (versão de dezembro de 04) que previa graduação em três anos (Art. 7) e o desmembramento da graduação em dois ciclos, o primei-ro deles de “formação geral” (Art. 21). Entretanto, as críticas impedi-ram a concretização desse intento, agora retomado pelo MEC, com apoio de parte da ANDIFES, com a Universidade Nova. A primeira menção explícita pode ser encon-trada na Minuta de Decreto Presi-dencial Plano Universidade Nova de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais Brasileiras (versão de março de 07). A incor-poração do princípio da graduação minimalista pelo MEC é muito im-portante, pois indica que, enquan-to política governamental, o MEC propugna que também as públi-cas devem se harmonizar com a tendência geral de adequação da educação superior ao mercado ca-pitalista dependente, equiparando públicas e privadas a partir do me-tro do mercado.

Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades

Federais (REUNI)

Recentemente, com o chamado PAC da Educação, o governo lan-çou um conjunto de medidas de-nominadas de Plano de Desenvol-vimento da Educação. No caso da educação superior federal editou o Decreto 6.096/2007 (24/04/07) que “Institui o Programa de Reestrutu-ração e Expansão das Universida-des Federais” (REUNI) que opera a implementação da universidade nova (incisos II, III e IV do art. 2o do decreto 6.096/2007). O inciso II garante condições para a mobilida-de e a “harmonização” dos ciclos básicos, criando um vasto merca-do para as privadas que disputarão a absorção dos excedentes do ciclo

básico. O Inciso III permite o dese-nho curricular previsto na Univer-sidade Nova e o IV a diversificação das modalidades de graduação. O Decreto também fixa metas de de-sempenho a serem alcançadas, em moldes do contrato de gestão de Bresser Pereira: os recursos finan-ceiros serão reservados a cada IFES na medida da elaboração e apresen-tação dos respectivos planos de re-estruturação (Art. 3o):

a) 90% de formados em relação aos ingressantes (Art. 1o, §1o), um índice que não tem paralelo nas comparações internacionais e que somente seria possível com a im-plementação também na educação superior da aprovação automática e uma agressiva política de assistên-cia estudantil e

b) a meta de relação professor/ estudante que deverá passar dos atuais 12 estudantes por docen-te para 18 alunos por docente em um prazo de cinco anos. Vale no-tar que a ANDIFES queria empur-rar o cumprimento dessas metas para 10 anos, mas o decreto não acatou o seu pleito. É importante registrar que os números do MEC estão fundamentados em compa-rações internacionais descabidas (pois não considera que em muitas universidades estrangeiras os do-centes podem contar com apoio de doutorandos e assistentes que não compõem o quadro permanente da instituição), ignora a expansão da pós-graduação e a especificidade de áreas.

Toda a lógica de implementação do REUNI está baseada no concei-to de contrato de gestão, tal como formulado por Bresser e Cardoso. Os recursos somente serão libera-dos em função da atendimento de determinadas metas, na melhor tradição bancomundialista, refe-renciada no léxico próprio do neo-liberalismo, já citado.

Nem os recursos previstos na pri-meira Minuta de Decreto para ins-tituir a Universidade Nova, nem o REUNI agregam montantes signi-ficativos de recursos ao orçamento geral das IFES. A previsão da pri-meira versão era de R$ 3,7 bilhões até 2012 (R$ 625 milhões/ ano), sendo 52 universidades federais, teríamos 12 milhões por ano/ uni-versidade. A versão atual foi mais pragmática, indicando a possibi-lidade de um montante que não poderá ultrapassar o equivalente a 20% das despesas de custeio e de pessoal (excluindo os aposentados e pensionistas), montante este que será distribuído ao longo de cinco anos (Art 3, parágrafo 1o). Admi-tindo que todas apresentem planos de adesão ao REUNI, que o MEC trabalhe com o teto de 20% e, ain-da, que os 20% serão distribuídos todos os anos, ao longo do período de contrato, grosso modo, o mon-tante seria de aproximadamente R$ 1,12 bi ano, cerca de R$ 21 mi-lhões/ano por instituição que, com esses recursos, terá de arcar com a expansão da infra-estrutura e com as despesas adicionais de pessoal (Art.3, inciso III).

O atendimento do Plano de cada IFES é condicionado à capacida-de orçamentária e operacional do MEC (Art.3, §3o), o que pode con-firmar um montante inferior a 20%, assim, a hipótese de que as univer-sidades contratem docentes e invis-tam em infra-estrutura e não rece-bam os magros recursos adicionais não pode ser descartada. A rigor, com o decreto 6069/07, o MEC não fica obrigado a se responsabilizar com a garantia dos recursos adi-cionais acordados. Considerando o PAC e o virtual congelamento das despesas correntes da União, essa possibilidade não é pequena. Outro detalhe: a decisão sobre a pertinên-cia ou não do contrato de gestão elaborado pela IFES compete ex-

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12clusivamente ao MEC.

Está claro que os parcos investi-mentos serão direcionados para a função de escolão. As licenciaturas pós BI estarão reservadas a possi-velmente um terço ou menos do número de estudantes do BI, abrin-do um imenso mercado nas priva-das que terão um novo ‘nicho´ de mercado: como a grande maioria dos que concluírem o BI não pode-rá se licenciar de modo pleno nas públicas, o setor empresarial bus-cará “captar” parte desses “clientes”.

Esse processo levará a uma re-nhida disputa dos estudantes por conceitos. Cada colega passará a ser visto como um inimigo em po-tencial, pois, o estreito funil para as licenciaturas plenas selecionará os estudantes de maior coeficiente de rendimento (ou outro processo de avaliação similar). As lutas estudan-tis poderão ser duramente atacadas com a quebra da solidariedade e do companheirismo entre os estudan-tes, cada um concorrente do outro na luta pela formação plena.

Mas a difusão da cizânia não esta-rá restrita aos estudantes em com-petição pela formação profissional. Como os recursos para a contrata-ção de professores serão liberados em função de “professores-equiva-lentes”: uma unidade corresponde a um professor doutor com dedica-ção exclusiva ou a três docentes de 20h e considerando a pressão para dobrar o número de estudantes, é previsível que no futuro próximo se expanda uma nova categoria de professores: os docentes que atuam no escolão. Estes, certamente, terão o caminho para a pesquisa interdi-tado, conformando duas categorias de professores: os docentes que desenvolvem todas as atividades universitárias e os que devem res-

tringir a sua atividade as aulas do Bacharelado Interdisciplinar ou do ciclo básico.

Método de implementação

Novamente, a falsificação do con-senso. O MEC não promoveu qual-quer debate com a comunidade acadêmica, não escutando os do-centes organizados no Andes-SN e tampouco os estudantes autôno-mos frente ao governo. O debate do MEC com os reitores foi tercei-rizado por um reitor que serviu de porta-voz dos anseios do governo. A proposição de que a adesão das universidades ao projeto é livre por parte das universidades também contribui para escamotear a ausên-cia de debates. De fato, estranguladas pelo contingenciamento de recursos e pelo virtual congelamento de recur-sos, mesmo os muito parcos recursos disponibilizados, em tese, pelo MEC são uma forma de constrangimento ou chantagem econômica, pois os recursos adicionais para a infra-es-trutura e a possibilidade de realizar concursos a partir de uma definição da própria instituição, um anseio das IFES, somente serão possíveis para as universidades que se ajustarem ao projeto da Universidade Nova-MEC. Essa é a “democracia” dos contratos de gestão.

Se o consenso é falsificado no an-dar de cima, não surpreende que o mesmo processo esteja acontecen-do nas IFES21 que, para cumprirem o apertado calendário do MEC (do esboço ao projeto final em aproxi-madamente dois meses), estão ig-norando o processo democrático que seguramente evidenciaria, a todos os que estão comprometidos com a causa da universidade pú-blica, que a reestruturação é uma reengenharia produtivista que des-constituirá o modelo universitário

conquistado na Constituição Fede-ral de 1988.

Universidade Nova e a contra reforma

O projeto Universidade Nova/ REUNI é um ajuste na tática go-vernamental. A política de aligei-ramento e de criação de um mer-cado educacional mais robusto é a mesma, mas a forma contém no-vidades. O Decreto 6.096/2007 a primeira vista permite um amplo grau de liberdade para instituições, afirmando que as universidades são livres para aderir ou não ao projeto (mas sem aderir não receberão os magros recursos). Em todo proces-so foi muito difundida a idéia de que a proposta nasceu da livre ela-boração das universidades federais, em especial da UFBa e UnB, inspi-radas em Anísio Teixeira, situação que não se situação, como visto an-teriormente.

O retrospecto das iniciativas de criação de uma graduação mais ali-geirada para os pobres é suficiente-mente longo para comprovar que o mesmo é parte de um padrão de acumulação muito próprio do im-perialismo de hoje, em que os pa-íses periféricos e semiperiféricos não ocuparão um lugar relevante na produção de conhecimento e em processos produtivos em que o conhecimento se constitui em van-tagem comparativa importante.

Seria um grave erro situar esse projeto como uma peça secundária no processo de contra-reforma em curso, assim como seria um grave equívoco localizá-lo como uma ini-ciativa de reitores. Assim, as fren-tes de luta serão mais complexas, tendo de conjugar a luta no âmbito interno as universidades e nas lutas anti-sistêmicas mais amplas.

21 Roberto Leher, “Metamorfoses na deliberação do Consuni impõem o Reuni como fato consumado na UFRJ”, Jornal da Adufrj, 22 de maio de 2007.

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13por quE EStudar dirEito, hojE?

* Roberto Lyra Filho - Professor Emérito da Universidade de Brasília; Fundador da Nova Escola Jurídica Brasileira

Uma das mentiras mais comuns é sustentar que vocês devem, pri-meiro, conhecer bem as leis e os costumes da classe, grupos e povos dominantes; e, depois, se quiserem, tratá-los, em mais largas perspecti-vas sociológicas, políticas e críticas.

Os juristas, duma forma geral, estão atrasados de um século, na teoria e prática da interpretação e ainda pensam que um texto a inter-pretar é um documento unívoco, dentro de um sistema autônomo (o ordenamento) jurídico dito pleno e hermético e que só cabe determi-nar-lhe o sentido exato, seja pelo desentranhamento dos conceitos, seja pela busca da finalidade, isto é, acertando o que diz ou para que diz a norma abordada.

Isto é ignorar totalmente que o discurso da norma, tanto quanto o discurso do intérprete e do aplica-dor estão inseridos num contexto que os condiciona, que abrem fei-xes de função plurívoca e propor-cionam leituras diversas. A moder-na lingüística, a semiologia, a nova retórica, a nova hermenêutica já assentaram, há muito, que o proce-dimento interpretativo é material criativo, não simplesmente verifica-tivo e substancialmente vinculado a um só modelo supostamente ínsito na dição da lei.

Desta maneira, assim como a triun-fante visão da pluralidade dos ordena-mentos jurídicos fez explodir a concep-ção do ordenamento único, hermético e estatal, a teoria e prática da interpre-tação, considerando, cientificamente, este suposto ordenamento único, em suposta coerência intra-sistemática, fi-zeram implodir o esquema tradicional das fontes e da hermenêutica.

Eis aí uma questão de grande al-cance para a vida do Direito, que se revelou móvel, e não fixo, dialético e não “lógico”.

A própria jurisprudência, e ge-ralmente sem dar por isto, mostra então o processo cujo dinamismo cabia a doutrina assinalar, analisar e sistematizar – o que geralmente não ocorre, porque falta ao juris-ta clássico (o mais comum, o que se prepara com as teses obsoletas de compêndios poeirentos e desa-tualizados) aquela informação in-dispensável sobre o que vem ocor-rendo nas ciências da expressão e comunicação, desde que a pseu-dociência dogmática do Direito se isolou numa redoma de servilismo político e defasagem técnica.

Não posso deter-me, agora, na questão da hermenêutica, mas a ela faço referência, porque desmoraliza a tese de que há um Direito feito e acabado a conhecer como algo sus-cetível de paralisação, entre uma lei que o promulga e outra que o revo-ga, entre uma ordem constitucional que vige, formalmente, e uma “re-volução” ou reforma que muda as regras do jogo.

Para dar a vocês apenas um exemplo prático, lembro que a lei de segurança do poder, que se diz de “segurança” de toda a nação, trumbicou-se, em parte, no Supre-mo Tribunal, quando pretendeu definir, com bitola autoritária, o que é segurança nacional.

A reavaliação judiciária estabele-ceu-se, não em termos do que a lei trazia, mas da lei feita por ministros liberais e a.luz de pressuposições opostas às da internacionalidade

draconiana e pretensa clareza tex-tual. E o choque de mentalidades acabou nisto que o eminente Fra-goso exprime de forma contunden-te “a fórmula complicada da lei não teve ressonância na jurisprudên-cia dos tribunais”, isto é, no ato de interpretá-la e aplicá-la, os juízes, apesar de tudo, liam um sentido consentâneo com o seu posiciona-mento, e não com o do legislador.

Há, sempre, direitos, além e aci-ma das leis, até contra elas, como o direito de resistência, que nenhum constitucionalista, mesmo reacio-nário, poderá desconhecer; ou o Direito Internacional, que encampa direitos contra os Estados, tal como no caso do genocídio praticado mediante leis que oprimem e des-troem grupos e povos, ou o direi-to de resistência nacional contra o invasor estrangeiro, ainda quando os governos de fato – os Estados, portanto – ordenam a cessação das hostilidades.

No entanto, para que se determi-nem os limites jurídicos da própria insurreição legítima, é forçosa-mente necessário estabelecer uma abordagem do campo abrangedor e complexo do Direito em totalidade e movimento e dos direitos huma-nos que não se esgotam nas decla-rações oficiais.

Por outras palavras, é preciso en-contrar o padrão objetivo (mas não imutável) do Direito interno, no momento histórico determinado.

A isto se dedica a Nova Escola Jurídica Brasileira – Nair, numa vi-são global, que, pelas razões já ex-plicadas, eu me limito a enunciar, pedindo que procurem, no escrito

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14mencionado, o desenvolvimento dessas idéias.

Para a Nova Escola Jurídica Brasi-leira – Nair, o Direito, em totalidade e movimento, é padrão atualizado de Justiça Social militante, que en-seja a determinação das condições de coexistência das liberdades in-dividuais, grupais e nacionais, com as únicas restrições admissíveis, na raiz da validade específica de toda normação legítima. E são elas, pre-cisamente, que definem, de forma evolutiva e concreta, a essência ma-nifesta da liberdade, como “direito de fazer e buscar tudo o que a ou-trem não prejudica”.

Por outras palavras, a liberdade Jurídica não é o que resta, depois que um “direito positivo” qual-quer impõe o que não se pode fa-zer, senão que as ilicitudes devem ser constituídas, num Direito le-gítimo, apenas na medida em que viabilizem a liberdade – já que a total liberdade de todos acabaria obstruindo a deste por aquele. Mas também não se pode colocar o livre desenvolvimento coletivo num su-foco público, senão que em função estrita do livre desenvolvimento de cada um.

A fundamentação desses prin-cípios, que emanam do processo histórico e sua polarização progres-sista, assim como a concretização deles, nas diferentes conjunturas, com o vetor correspondente assi-nalando as fronteiras dos direitos humanos em cada etapa – já foram longamente analisados e defendi-dos no meu livrinho já citado e ao qual me reporto.

O grande equívoco, evidente-mente, é confundir o Direito com aquilo que a pseudociência dogmá-tica isola, para enfocar apenas um aspecto mutilado do Direito, que urge recompor.

E esta situação continuará preva-

lecente, enquanto as próprias cor-rentes de esquerda reforçarem a po-sição conservadora, adotando a sua visão do Direito, isto é, encarando este último como simples veículo superestrutural de dominação, para dar-lhe apenas outra explicação e destino.

Nos compêndios tradicionais, o boi jurídico vira carne de vaca me-tafísica (o jusnaturalismo) ou apa-rece na rabada (positivista), que só aproveita o seu apêndice posterior e inferior. O positivismo só vê, no Direito, a bunda estatal.

Mas o Direito se vinga, cresce, pressiona, conquista alargamentos notáveis, brilha nos estandartes dos espoliados e oprimidos, ecoa na voz dos advogados progressistas, transborda nas sentenças de magis-trados mais inquietos, encorpa-se e procura uma sistematização no pensamento dos professores rebel-des, sacode a poeira dos tratados conservadores, rompe as bitolas dogmáticas e retempera o ânimo dos que, cedo demais, queriam dar a causa Jurídica por indefensável e perdida.

Como seria possível, numa situa-ção ainda pouco propícia, de obs-truções institucionais e violência repressiva, – atuar, nada obstante, com vista à transformação do mun-do, sob a égide libertadora do au-têntico e bom Direito?

Creio que um paralelo nos pode servir de orientação.

O maniqueísmo mais tolo volta as costas à participação no que se põe como acessível, para dar-se o con-solo triunfalista dum lance único de “tudo ou nada”.

Este caminho foi ardentemente combatido, aliás, pela maturidade lúcida de Marx, que nos advertia: Canaã não está ali na esquina e as forças democratizadoras “não po-

dem chegar ao poder… sem passar por toda uma evolução revolucio-nária de bastante longa duração”. E, noutra oportunidade, reiterava: “vocês dizem que é preciso che-garmos imediatamente ao poder ou só nos resta ir dormir… Como os (liberal) democratas fizeram da palavra – povo – um fetiche, vocês fazem um fetiche da palavra – pro-letariado. Como os (liberal) demo-cratas, vocês substituem pela fra-seologia revolucionária a evolução revolucionária”.

Temos de absorver toda abertu-ra para alargá-la (não para engolir o seu capcioso diâmetro, como os “realistas”); temos de vencer eta-pas limitadas, para superá-las (não para imaginar que com elas se re-solva tudo, em lance milagreiro); temos de inserir-nos no contexto, para transformá-lo (não para nos julgarmos adstritos a ele, como o peru natalino, em torno do qual se traga um círculo de carvão: ele fica ali, dentro do círculo, pensando que é intransponível, até que o venham buscar, para o facão, o tabuleiro e o forno).

Quando Marx pregou a organiza-ção dos trabalhadores, para inter-vir, inclusive, no processo eletivo, disse que assim se poderia transfor-mar o sufrágio universal e a demo-cracia parlamentar, de instrumento de engodo, em instrumento de li-bertação.

A pressão libertadora não se faz, apenas, de fora para dentro, mas, inclusive, de dentro para fora, isto é, ocupando todo espaço que se abre na rede institucional do status quo e estabelecendo o mínimo viável, para maximizá-lo, evolutivamente.

No Brasil, houve um período em que a linha obtusa ou porra-louca deixou as esquerdas num falso dile-ma – o abstencionismo eleitoral ou as aventuras terroristas (o que só

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15poderia facilitar o jogo da ditadura, de um lado faturando eleições de-simpedidas e, de outro, explorando a repugnância natural ao terroris-mo, revelada pelas grandes corren-tes oposicionistas, sempre necessá-rias à união nacional irresistível).

Rejeitemos os procedimentos in-suportáveis do ceticismo paralítico ou da selvageria que “justiça” ad-versários indefesos.

Mutatis mutandis, alguns jovens chegaram a pregar o amuo que os afastava dos condutos participati-vos, na estrutura universitária, com o argumento de que eles represen-tavam um buraquinho apertado pela repressão. A verificação era exata; mas a conclusão incorreta. Abandonando até esses caminhos, que restava? Esperar que o apare-lho repressivo caísse de podre ou explodi-lo numa orgia terrorista. Num caso, a incompetência; de ou-tro, a lei da selva, em que todos são feras idênticas e apenas com o sinal trocado.

A alternativa apareceu depois, quando se voltou ao trabalho in-terno, explorando as contradições e porosidades do sistema legal e recorrendo à ilegalidade não-selva-gem com lucidez e comedimento, isto é, em condições de pressão do-sada, que força a absorção de novos pontos positivos pelo sistema do-minante.

Foi o caso, por exemplo, da res-surreição da UNE, que deixou o go-verno em posição ambígua e defen-siva, sem condições de liquidar a entidade, nem jeito de “salvar face”, exceto com expedientes engraça-dos, como dialogar com dirigentes “não-reconhecidos”.

No curso jurídico, há moços que chegam a experimentá-lo e, depois, o abandonam, como se o fato de ali descobrirem um muro reacio-nário fosse razão para deixar como

está, cobri-lo de lamentações ou… transferir-se para outro setor, onde as brechas já estão abertas (como os departamentos de ciências sociais, por exemplo).

Isto, no fundo, é um comodismo, que só quer engajar-se em batalhas previamente ganhas e num terre-no onde reconheça a presença já organizada de um grupo progres-sista. De que vale bramir, de longe, contra a situação da área fechada, quem nada fez para alterá-la? Ou, pior: de que vale disfarçar esse co-modismo, com a pretensa certeza de que ali não há nada a fazer e, em vez de espancar a ideologia com nova ciência do Direito, repetir que o Direito é pura ideologia?

Que Direito aí se considera? O das normas estatais, aceitas dog-maticamente, como único direito pessoal.

Assim se cai na “armadilha kelse-niana”. E assim também se ignora que, apesar de todos os avanços e recuos, ambigüidade e formula-ções imprudentes apenas eventuais, nem Marx dá, em última análise, um apoio àquela colocação: o que ele, afinal, combatia era o direito dos dominadores e, especialmente, o direito burguês.

Organizados, vocês podem atuar, aqui mesmo e apesar de todas as di-ficuldades, em dois planos, ao mes-mo tempo:

a) o plano institucional-adminis-trativo, em que devem pressionar os órgãos e titulares, para que re-conheçam e absorvam as reivindi-cações necessárias, a fim de que o corpo discente deixe de ser tratado como súcubo dum processo “edu-cativo”, no qual TUDO lhe é impos-to -currículo, programas, normas organizacionais, disciplinares e toda a parafernália autocrática e re-pressiva: a meta será, em cada pas-so, o pólo ideal, progressivamente

aproximado, de uma co-gestão uni-versitária;

b) o plano do ensino e pesquisa em que devem, igualmente, inter-vir, questionando as teses apresen-tadas como certas, desde os “dog-mas” até os corolários, que tornam o positivista jurídico um beija-flor de pacotes.

Mas não se trata, sequer, de rejei-tar, em bloco, a erudição de docen-tes conservadores.

Estes dividem-se em três grupos principais: os ceguinhos, que ser-vem a dominação por burrice e ig-norância; os catedráticos, que a ela servem por safadeza; e os nefeliba-tas, que acabam fazendo a mesma coisa, por viverem nas nuvens.

Vocês os conhecem. O ceguinho é aquele que “adota” um compêndio do tipo Maluf, para ser decorado pelos alunos, e, nas aulas, disfar-ça a pobreza de espírito, repetindo um outro livro, não citado, que é a “cola” do mestre. Descubram este último, e ele está no papo.

Nos meus tempos de estudante, havia um ceguinho que nos manda-va rezar, nas provas, os capítulos do Direito Processual Civil, do Gabriel Rezende Filho, e salvava face reci-tando nas aulas os verbetes escolhi-dos duma enciclopédia italiana.

Os catedr’álicos me recordam aquele outro professor da épo-ca, que considerava “comunista” o Primeiro-Ministro da Inglaterra e berrava, agitando os óculos no ar, como o deputado Amaral Neto agitava o revolver quando se fala nas eleições diretas: “comigo é na lei, estão ouvindo? E no Código! E quem critica a lei, a ORDEM é CO-MU-NIS-TA!” Ele tinha tanto medo de “comunista” que, a noite, mandava a esposa verificar o que estava debaixo da cama, com receio de que lá se ocultasse o sr. Luís Car-

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16los Prestes, junto do penico.

Mas há também os nefelibatas, aqueles que conhecem mil leis, mil doutrinas, mil teorias, mas nem suspeitam o que elas representam, como projeção de circunstâncias, classes, grupos, povos em luta, no mundo real e material. E fazem uma salada semelhante à que Marx censurava a Stirner, com a “idéia do Direito”, que tiram da cabeça, e das leis, em lugar de vê-la em fun-ção das relações sociais. Assim, leis e doutrinas tornam-se “fantasmas”, numa pseudociência de assombra-ções e porrinhos idealistas.

No entanto, se vocês souberem fazer a triagem, entre as divagações alienadas e o que nelas, apesar de tudo, se reflete do que realmente in-teressa e importa, verão que ali não se deixa de ministrar um conjunto de elementos reenquadráveis numa perspectiva diferente.

Ideologia lá, ciência cá é um tipo de maniqueísmo que sacrifica a dia-lética e empobrece a ciência, pois esta nunca deixa de portar certas contradições ideológicas, tal como a ideologia não deixa de transmitir certas verdades deformadas.

Desprezemos os compêndios de resumo flatulento e diarréia fedida, mas consultemos as fontes criativas que eles assimilam mal e expelem com mentalidade purgativa.

Vocês devem, inclusive, aprovei-tar as lições de seus mestres con-servadores. Se o ceguinho remói as suas fontes, se o catedr’áulico irrita com a arrogância de cortesão, se o nefelibata da sono com os seus dis-cursos, onde há pérolas de erudição sem um fio que as reúna em colar de verdadeira cultura – todos eles, sem querer, trazem milho para o nosso moinho.

A questão é não comer o milho (não somos galinhas agachadas

diante dos galos de terreiro pe-dagógico) e, sim “moer” o milho, isto é, constituir com “ele” o nos-so fubá dialético, acrescido com outras malarias que os ceguinhos, catedr’áulicos e nefelibatas, ou não conhecem ou deturpam; e, em todo caso, não usam, porque eles são do Planalto e nós da planície, demo-crática, popular, conscientizada e libertadora.

Como dizem os ingleses, é pre-ciso cuidado para não jogar fora o bebê junto com a água do banho.

Não se esqueçam, também, de que, além dos professores de ín-dole e posicionamento conserva-dores, há (embora em minoria) os docentes de intencionalidade pro-gressista; e que, sejam quais forem as divergências entre nós, não deve-mos perder de vista o que podemos fazer juntos; em dois sentidos: 1) a conjugação de esforços para certos objetivos comuns (por exemplo, o combate à dogmática jurídica ou a introdução, no ensino, do elemento de conscientização política); 2) de-bate fraternal, em que a crítica dos companheiros com outra formação e modelo pode e deve ajudar-nos a repensar as nossas próprias opções, reavaliá-las e aperfeiçoá-las, sem deixar que a posição antidogmática se esterilize na simples troca de um dogma por outro.

Não existe ciência acabada e per-feita, e a noção de um “núcleo de verdade invariável”, em qualquer sistema filosófico ou científico, transforma o “divino mestre” em deus a contragosto, para encher a boca de xingamento ao “misticis-mo” e substituí-lo por uma triste mistificação.

O domínio da fé é um “acrésci-mo de sentido”, que fica situado em plano diverso das modestas tarefas empíricas e racionais do filósofo e do cientista.

Não é honesto jogar, neste terre-no, com as cartas marcadas, pois assim se acaba misturando as es-tações e transformando a ciência e filosofia numa teologia bastarda e numa dogmática sacrílega.

Vou concluir, se vocês me per-mitem, com algumas sugestões da minha experiência intelectual e po-lítica.

A mania do velho é dar conselhos; mas, desde que ele não pretenda transformá-los em diretivas autori-tárias, é também mania inofensiva de quem se angustia, no desejo de converter as lições positivas e nega-tivas do seu itinerário em um elen-co de propostas sobre a maneira de evitar as alocações do caminho.

O conselho é o avesso dos nossos próprios erros passados, que pro-curam redimir-se no depoimento e na advertência: “já caí em muitas armadilhas e custou muito livrar--me delas. Eis como penso que vo-cês evitariam perder tempo com mesmos acidentes”:

Não pensem que é fácil, que é cô-modo abordar a ciência.

Não esperem que a verdade vá surgir de um esqueminha “simples” e “claro”.

Nenhum acervo científico é do-minado sem esforço metódico, de-morado, persistente – tanto “mais necessário”, quando se trata de abrir caminho, quebrar as rotinas e ino-var.

O bom estudante não é borboleta, é incansável pica-pau, capaz de per-furar a rija madeira dos conceitos e teorias.

Lembrem-se, sempre, da carta de Marx a Maurice Lachatre. “Eis o in-conveniente contra o qual nada pos-so fazer, exceto prevenir e premunir o leitor preocupado com a verdade: não existe uma estrada-mestra para

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17a ciência e só tem chance de acesso aos seus cumes luminosos aqueles que não temem cansar-se, escalan-do picadas íngremes.”

Aproveitem as lições dos mes-tres conservadores, pois, como já lhes disse, eles não trazem ape-nas um monte de inutilidades e bobagens; a questão não é rejei-tá-los em bloco, mas separar o joio do trigo.

A propósito, lembrem-se das observações exatas e fecundas de Adam Schaff, “ninguém teve ja-mais ao seu dispor a verdade total e todos nós dispomos apenas de teorias que não escapam ao estado de hipóteses, pois devem ser cons-tantemente verificadas e modifica-das. O diferente reduz-se apenas a questão de saber quem possui uma verdade mais completa. Mas, em-bora persuadidos de que a nossa detém esse privilégio, o que é na-tural, não devemos admitir de an-temão que as teorias concorrentes são inteiramente desprovidas do valor da verdade, dado que, teori-camente, até uma teoria oposta à nossa a pode possuir e esta questão deve ser sempre concretamente es-tudada e resolvida. É assim que a reflexão sobre o caráter relativo da verdade de que dispomos engendra a necessidade de tolerância e até a de nos instruirmos junto do con-corrente, o que de nenhum modo significa que renunciemos a com-bater – mesmo violentamente – as suas opiniões”.

Por outro lado, a consciência de

que só possuímos uma verdade re-lativa não desanda em relativismo (este último nível todas as verdades relativas admitindo que tanto vale uma como a outra), enquanto na concepção dialética, uma “verdade processo”, procuramos determinar qual é a verdade relativa que, no momento, representa o ponto van-guardeiro (“tendendo para a verda-de absoluta”) e, de toda forma, ad-mitimos, com Hegel, que as teorias científicas, tal como as doutrinas filosóficas mais avançadas, em cada época, vão acrescentando pedras à grande, à ininterrupta, à infinita edificação, e constituem, afinal, os “momentos imperecíveis do Todo”.

Não devemos ceder ao teoricis-mo. A Nova Escola Jurídica Brasi-leira pesquisa as leis, a jurisprudên-cia, a doutrina, o Direito supralegal e, auscultando a práxis jurídica, sob o ponto de vista dos espoliados e oprimidos, sua conscientização, seus movimentos libertadores, tra-ga rumos para a atuação do advo-gado na práxis, tanto de cidadão, quanto de profissional.

“Teoria é apenas teoria da pratica, assim como a prática não é senão a práxis da teoria”.

Direito é desenganadamente polí-tica, e a questão não é ser político ou não o ser, pois não o ser e um dis-farce que adota a opção política de natureza conservadora – isto é, não quer que o estudante ou professor “façam política”, porque esperam que eles se acomodem docilmen-te à política oficial, que já tragou a

função e a maneira de exercê-la: o Estado e o autor da peça; o dirigen-te da Faculdade e o produtor e dire-tor do espetáculo; e a nos cumpriria apenas desempenhar o papel que nos foi distribuído, sem “contestar”.

Não à toa o “direito” que se adapta a esse esquema, dito apolítico (isto é, político da direita) só pode ser um “direito” examinado, segundo a teoria “jurídica” de um positivismo (capado) ou de um jusnaturalismo (brocha).

Ser político, no sentido de pólis, de participação ativa na comunida-de, do compromisso e deveres so-ciais, é recusar a desintegração do homem, numa teoria alienada, ser-vindo uma práxis reacionária.

Mas ser político não é ser sectá-rio; é orientar a conduta, em cada etapa e conjuntura, pela análise que determina a viabilidade dos passos presentes, com vistas ao objetivo fi-nal, ainda distante, mas que polari-za toda a práxis vanguardeira.

Dizem comumente que política á a arte do possível, ao que Liebkne-cht respondia com o oposto: “polí-tica é a arte do impossível”.

Dialeticamente, direi que política é tornar possível o “impossível”, isto é, o objetivo final de toda ação, me-diante a “evolução revolucionária”, constituída por sucessivas aproxi-mações, que pressionam e dilatam as barreiras da reação e do conser-vantismo, com vista à transforma-ção do mundo e, não a adaptação ao mundo da dominação instituída.

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18ManifESto contra a criMinalização daS MulhErES quE praticaM aborto

Para assinar este manifesto acesse o site:http://www.petitiononline.com/abortole/petition.html

Manifesto contra a criminalização das mulheres que praticam aborto Em defesa dos direitos das mulheres Centenas de mulheres no Brasil es-tão sendo perseguidas, humilhadas e condenadas por recorrerem à prática do aborto. Isso ocorre porque ainda temos uma legislação do século passa-do – 1940 –, que criminaliza a mulher e quem a ajudar. A criminalização do aborto condena as mulheres a um ca-minho de clandestinidade, ao qual se associam graves perigos para as suas vidas, saúde física e psíquica, e não contribui para reduzir este grave pro-blema de saúde pública.

As mulheres pobres, negras e jovens, do campo e da periferia das cidades, são as que mais sofrem com a crimi-nalização. São estas que recorrem a clínicas clandestinas e a outros meios precários e inseguros, uma vez que não podem pagar pelo serviço clandestino na rede privada, que cobra altíssimos preços, nem podem viajar a países onde o aborto é legalizado, opções se-guras para as mulheres ricas. A estra-tégia dos setores ultraconservadores, religiosos, intensificada desde o final da década de 1990, tem sido o “estou-ro” de clínicas clandestinas que fazem aborto. Os objetivos destes setores conservadores são punir as mulheres e levá-las à prisão.

Em diferentes Estados, os Ministé-rios Públicos, ao invés de garantirem a proteção das cidadãs, têm investido esforços na perseguição e investigação de mulheres que recorreram à prática do aborto. Fichas e prontuários mé-dicos de clínicas privadas que fazem procedimento de aborto foram reco-lhidos, numa evidente disposição de aterrorizar e criminalizar as mulheres. No caso do Mato Grosso do Sul, foram quase 10 mil mulheres ameaçadas de indiciamento; algumas já foram pro-cessadas e punidas com a obrigação de fazer trabalhos em creches, cuidando

de bebês, num flagrante ato de violên-cia psicológica contra estas mulheres.

A estas ações efetuadas pelo Ju-diciário somam-se os maus tratos e humilhação que as mulheres sofrem em hospitais quando, em processo de abortamento, procuram atendimento. Neste mesmo contexto, o Congres-so Nacional aproveita para arrancar manchetes de jornais com projetos de lei que criminalizam cada vez mais as mulheres. Deputados elaboram Proje-tos de Lei como o “bolsa estupro”, que propõe uma bolsa mensal de um sa-lário mínimo à mulher para manter a gestação decorrente de um estupro.

A exemplo deste PL, existem muitos outros similares. A criminalização das mulheres e de todas as lutas libertá-rias é mais uma expressão do contexto reacionário, criado e sustentado pelo patriarcado capitalista globalizado em associação com setores religiosos fun-damentalistas. Querem retirar direitos conquistados e manter o controle so-bre as pessoas, especialmente sobre os corpos e a sexualidade das mulheres.

Ao contrário da prisão e condena-ção das mulheres, o que necessitamos e queremos é uma política integral de saúde sexual e reprodutiva que con-temple todas as condições para uma prática sexual segura. A maternidade deve ser uma decisão livre e desejada e não uma obrigação das mulheres. Deve ser compreendida como fun-ção social e, portanto, o Estado deve prover todas as condições para que as mulheres decidam soberanamente se querem ou não ser mães, e quando querem. Para aquelas que desejam ser mães devem ser asseguradas condições econômicas e sociais, através de polí-ticas públicas universais que garantam assistência a gestação, parto e puerpé-rio, assim como os cuidados necessá-rios ao desenvolvimento pleno de uma criança: creche, escola, lazer, saúde. As

mulheres que desejam evitar gravidez devem ter garantido o planejamento reprodutivo e as que necessitam inter-romper uma gravidez indesejada deve ser assegurado o atendimento ao abor-to legal e seguro no sistema público de saúde.

Neste contexto, não podemos nos calar! Nós, sujeitos políticos, movi-mentos sociais, organizações políticas, lutadores e lutadoras sociais e pelos diretos humanos, reafirmamos nosso compromisso com a construção de um mundo justo, fraterno e solidário, nos rebelamos contra a criminalização das mulheres que fazem aborto, nos reuni-mos nesta Frente para lutar pela digni-dade e cidadania de todas as mulheres.

Nenhuma mulher deve ser impedida de ser mãe. E nenhuma mulher pode ser obrigada a ser mãe. Por uma po-lítica que reconheça a autonomia das mulheres e suas decisões sobre seu corpo e sexualidade. Pela defesa da de-mocracia e do principio constitucional do Estado laico, que deve atender a to-das e todos, sem se pautar por influên-cias religiosas e com base nos critérios da universalidade do atendimento da saúde! Por uma política que favoreça a mulheres e homens um comporta-mento preventivo, que promova de forma universal o acesso a todos os meios de proteção à saúde, de concep-ção e anticoncepção, sem coerção e com respeito.

Nenhuma mulher deve ser presa, maltratada ou humilha-da por ter feito aborto! Dig-nidade, autonomia, cidadania para as mulheres! Pela não criminalização das mulheres e pela legalização do aborto! Frente nacional pelo fim da criminalização das mulheres e pela legalização do aborto

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19doSSiê do coMitê contra o GEnocídio da população nEGra

ÀComissão Especial de Direitos humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo;Senhores(as) Deputados(as);Presidente da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo;Gabinete do governador do Estado de São Paulo Engº Alberto Goldman.

Prezados Deputados e Deputadas,

As organizações do Movimen-to Negro, Movimentos Sociais do Campo e da Cidade, Cursinhos Co-munitários, Sindicatos, Associações e demais grupos organizados que a esta subscreve, apresentam este do-cumento, síntese de nossa indigna-ção e revolta diante da barbárie a qual a população negra de São Pau-lo é submetida. Não bastassem as mazelas sociais que afligem histo-ricamente esta população por meio do subemprego, do desemprego, da falta de moradia, dos serviços pre-cários de saúde e educação, da falta de oportunidades e do desumano e permanente preconceito e discri-minação racial em todo e qualquer ambiente social, percebe-se a vi-gência de um projeto de extermínio da população negra, por parte do Estado brasileiro.

Herança do trato escravocrata, o Estado e suas policias mantém uma atuação coercitiva, preconcei-tuosa e violenta dirigida a popula-ção negra. Desrespeito, agressões, espancamentos, torturas e assassi-natos são práticas comuns destas instituições. Comuns nos mais de 350 de escravidão. Comuns na pós--abolição. Comuns nos períodos de ditaduras. Comuns em nossos dias.

Apesar de deter uma Constitui-ção reconhecida internacionalmen-te pela valorização à cidadania e aos diretos humanos, bem como de ser signatário de diversos tratados, convenções e pactos internacionais de defesa dos direitos humanos e de combate a todos os tipos de pre-

conceito, discriminação e racismo (entre elas a Convenção Internacio-nal sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil 1969; O Pacto internacional sobre direitos civis e políticos, ratificado pelo Brasil em 1992; e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ratifica-da pelo Brasil em 1992), o Estado Brasileiro, ao contrário de fomen-tar a prática dos Direitos Humanos, coloca-se como agente violador e promotor da violência e da morte.

Entendemos que, por conta da permanente prática de violações, do descaso e até de estímulo a ações violentas vindas das autoridades do Estado de São Paulo, apresentam-se condições jurídicas para que as víti-mas, seus familiares e as organiza-ções representativas dos movimen-tos sociais inquiram uma vez mais esta casa legislativa, exigindo provi-dências contra a violência que tem destruído centenas de vidas, em sua maioria de jovens negros.

Um País que quer ser protago-nista e mesmo árbitro das grandes questões internacionais não pode permitir constantes violações de sua própria Constituição e da le-gislação internacional. Acima de tudo, um país comprometido com a justiça e com os direitos humanos, não pode patrocinar o etnocídio de uma população, como tem feito.

Do histórico recente

Em Maio de 2006, o estado de São Paulo vivenciou um dos episó-dios mais emblemáticos da situação

de violência contra negros e pobres: policiais e grupos paramilitares de extermínio ligados à PM promo-veram um dos mais vergonhosos escândalos da história brasileira. Em “resposta” ao que se chamou na grande imprensa de “ataques do PCC”, foram assassinadas, ao me-nos, 500 pessoas - que hoje cons-tam entre mortas e desaparecidas. A maioria delas, jovens negros, afro-indígenas e pobres – execu-tadas sumariamente sem qualquer possibilidade de defesa.

Conforme relatório da Organi-zação das Nações Unidas para exe-cuções sumárias e extrajudiciais, apresentado à ONU em maio de 2008, os policiais militares e ci-vis brasileiros matam em serviço e fora de serviço. Porém nenhuma investigação é feita em relação ao pretexto para a execução, isto é, o suposto confronto. Os casos são classificados de “Resistência Segui-da de Morte” ou “Auto de Resistên-cia”, e a investigação se concentra na vida do morto. Sabe-se que os policiais são preparados prática e ideologicamente para matar. Por outro lado, os movimentos negros, movimentos sociais e sindicais que têm se organizado para a defesa dos direitos, vêm sendo violentados e perseguidos em constantes campa-nhas de criminalização.

O citado relatório da ONU, as-sinado por Dr. Philip Alston, em Missão ao Brasil, diz textualmente;

“O Brasil tem um dos mais ele-vados índices de homicídios do

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20mundo, com mais de 48.000 pes-soas mortas a cada ano. Os assas-sinatos cometidos por facções, internos, policiais, esquadrões da morte e assassinos contratados são, regularmente, manchetes no Brasil e no mundo. As execuções extra-judiciais e a justiça dos vigilantes contam com o apoio de uma par-te significativa da população que teme as elevadas taxas de crimina-lidade, e percebe que o sistema da justiça criminal é demasiado lento ao processar os criminosos. Muitos políticos, ávidos por agradar um eleitorado amedrontado, falham ao demonstrar a vontade política ne-cessária para refrear as execuções praticadas pela polícia.

Essa atitude precisa mudar. Os Estados têm a obrigação de pro-teger os seus cidadãos evitando e punindo a violência criminal. No entanto, essa obrigação acompanha o dever do Estado de garantir o res-peito ao direito à vida de todos os cidadãos, incluindo os suspeitos de terem cometido crimes. Não exis-te qualquer conflito entre o direito de todos os brasileiros à segurança e à liberdade em relação à violên-cia criminal, tampouco o direito de não ser arbitrariamente baleado pela polícia. O assassinato não é uma técnica aceitável nem eficaz de controle do crime.”

No ano de 2008, em São Paulo, foram atribuídos a “resistência se-guida de morte” 431 homicídios. Entrevistada pelo Jornal Brasil de Fato, a advogada do Programa de Justiça da Conectas Direitos Hu-manos, Marcela Fogaça Vieira, dis-se que:

“tudo é feito de forma a ajudar os policiais assassinos a ficarem im-punes. O maior problema está no boletim de ocorrência feito pelos próprios policiais como “resistência seguida de morte” ou “auto de resis-

tência”, justamente pelo fato de que são invertidos os papéis; os policiais figuram como vítimas do crime de resistência, enquanto a pessoa que morreu figura como indiciado e não como vítima de homicídio. Ou seja, o homicídio praticamente de-saparece e como o ‘indiciado’ está morto, o inquérito policial é fre-quentemente arquivado”.

No final do ano de 2009 a Human Rights Watch, ONG internacional de direitos humanos, divulgou re-latório dando conta de que a exe-cução extrajudicial de suspeitos se tornou um dos flagelos das polícias no Brasil, em especial no Rio de Ja-neiro e em São Paulo.

Divulgado no último dia 26 de Maio/10, o Relatório Anual sobre Direitos Humanos da Anistia In-ternacional, em sua edição 2010, registrou críticas veementes a cerca da violência policial no Brasil. Os dados do relatório são referentes ao ano de 2009.

Entre alguns dos casos citados no relatório ligados à violência po-licial, a Anistia criticou estratégias específicas, como a “Operação Sa-turação”, da polícia paulista, que prevê a ocupação de comunidades por longos períodos com justifica-tiva no combate ao narcotráfico - em especial, a ocorrida no Jardim Paraisópolis, bairro da zona Sul de São Paulo, em fevereiro de 2009. Segundo a entidade, houve registro de queixas por membros da comu-nidade de uso excessivo de força, intimidações, revistas arbitrárias e abusivas, extorsão e roubo por par-te dos policiais.

Conflitos armados por terra, vio-lação de direitos de trabalhadores e de povos indígenas, despejos for-çados e políticas de limpeza em fa-velas (especialmente no Estado de São Paulo) também foram citados.

Ainda mais recente, o comunica-do da ONU, datado de 1º de Junho de 2010, sacramenta o estado de barbárie vivida pela população bra-sileira, em especial negros e negras. O professor Philip Alston, Relator Especial da ONU sobre execuções extrajudiciais, registrou:

“O dia-a-dia de muitos brasilei-ros, especialmente aqueles que vi-vem em favelas, ainda é vivido na sombra de assassinatos e violência de facções criminosas, milícias, es-quadrões da morte e da polícia..”

O Relatório de Seguimento le-vanta dados sobre o progresso que o Brasil tem feito para reduzir mor-tes pela polícia desde a sua visita ao país, em 2007.

“Atualmente, a situação não mu-dou dramaticamente. A polícia continua a cometer execuções ex-trajudiciais em taxas alarmantes, e eles geralmente não são responsa-bilizados por isso.”

“Autos de Resistência continu-am a uma taxa muito grande”, disse ele, referindo-se mortes causadas pela polícia que são depois relata-das como tendo ocorrido em auto--defesa. “Houve pelo menos 11 mil mortes registradas como ‘resistên-cia seguida de morte’ em São Pau-lo e no Rio de Janeiro entre 2003 e 2009. As evidências mostram clara-mente que muitas dessas mortes na realidade foram execuções. Mas a polícia imediatamente as rotula de ‘resistência’, e eles quase nunca são seriamente investigados. O Gover-no ainda não acabou com esta prá-tica abusiva”.

“resistências seguidas de morte” aumentaram em São Paulo desde 2007. Ele pediu ao Brasil para “abo-lir esta categoria que permite uma licença para atirar para a polícia, e para investigar esses assassinatos como quaisquer outras mortes.”

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21 Do Estado Penal e Policial e a

“Resistência Seguida de Morte”

Trata-se de um Estado Policial e Penal, extremamente habituado a policiar, julgar, condenar e punir uma ampla parcela de seus cida-dãos e cidadãs, sobretudo a maioria mais pobre e negra. Um Estado cé-lere para praticar prisões preventi-vas e manter presas, sem julgamen-to, pessoas que na maior parte das vezes cometeram (ou supostamente cometeram) pequenos delitos.

Um Estado que aplica para esses crimes e para os praticantes do pe-queno comércio de drogas, deno-minado de “crime hediondo”, penas colossais.

Basta apenas dar uma passada breve pelas estatísticas de detenções verificadas no país - que só perdem em proporção populacional para as dos Estados Unidos da América. Já as estatísticas de tortura policial são campeãs mundiais!

E ainda, depois do julgamento, é esse mesmo Estado Penal que não respeita as garantias previstas em sua própria Lei de Execuções Pe-nais, em grande parte pela omissão e inoperância do Poder Judiciário (muitas vezes agindo assim de ma-neira deliberada). Além disso, tal Estado tem também o seu lado ex-terminador.

Do primeiro trimestre de 2009 ao primeiro trimestre de 2010, a taxa de ocorrências policiais no Estado de São Paulo que acabaram em ho-micídios e foram registradas como “resistência seguida de morte”, AU-MENTOU 40%, segundo dados oficiais da própria Secretaria de Se-gurança Pública de São Paulo.

Do crime de tortura

A tortura é a imposição de dor física ou psicológica por crueldade, intimidação, punição, para obten-

ção de uma confissão, informação ou simplesmente por prazer da pes-soa que tortura.

Em nosso ordenamento jurídico a tortura é considerada um crime inafiançável e insiscestível de graça ou indulto.

O crime de tortura consiste em crime material e caracteriza-se com a consumação de sofrimento à pes-soa torturada, tanto física quanto psicológica.

A Lei nº 9.455, de 07 de abril de 1997 define o crime de tortura e as penas, conforme transcrevemos abaixo:

“Art. 1º Constitui crime de tortu-ra:

I - constranger alguém com em-prego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:

a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) em razão de discriminação ra-cial ou religiosa;

II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ame-aça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar cas-tigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena - reclusão, de dois a oito anos.

§ 1º Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o de-

ver de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

§ 3º Se resulta lesão corporal de na-tureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.

§ 4º Aumenta-se a pena de um sexto até um terço:

I - se o crime é cometido por agente público;

II - se o crime é cometido contra a criança, gestante, deficiente e ado-lescente;

III - se o crime é cometido median-te seqüestro.

§ 5º A condenação acarretará a perda do cargo, função ou emprego público e a interdição para seu exer-cício pelo dobro do prazo da pena aplicada.

§ 6º O crime de tortura é inafian-çável e insuscetível de graça ou anis-tia.

§ 7º O condenado por crime pre-visto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.

Art. 2º O disposto nesta Lei apli-ca-se ainda quando o crime não tenha sido cometido em território nacional, sendo a vítima brasileira ou encontrando-se o agente em local sob jurisdição brasileira.”

A criminalização da prática da tortura no âmbito internacional foi um importante acontecimento histórico. A Convenção das Nações Unidas contra Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, De-sumanos e Degradantes, lançada pela ONU em 1984, foi ratificada por cerca de 124 países que se com-prometeram a cumprir as determi-nações desse documento.

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22 O relatório da ONU sobre a tor-

tura no Brasil, lançado em 2007, denuncia que essa prática é “sis-temática” e “generalizada”, princi-palmente em suas carceragens e penitenciárias. Além disso, o uso da tortura na atividade policial é prática corrente e diária. As vítimas são, em sua maioria, jovens, afro--descendentes, moradores de áreas pobres, autores ou suspeitos de cri-mes comuns.

Importante destacar que o Bra-sil aderiu à Convenção das Nações Unidas contra Tortura, ou seja, é um dos países que ratificou esse documento e que se comprometeu a cumprir as suas determinações. Em 2006, o país também ratificou o Protocolo Facultativo à Convenção, que obriga o Estado a constituir um Comitê Nacional para Prevenção da Tortura.

A Declaração Universal dos Di-reitos Humanos de 1948 determina que ninguém pode ser submetido a tortura, a pena de morte ou a tra-tamentos cruéis, desumanos ou de-gradantes, ao qual adere o Brasil.

(tema elaborado a partir do se-guinte trabalho: Costanze, Bueno Advogados. (Crime de Tortura). Bueno e Costanze Advogados, Guarulhos, 29.03.2008. Disponível em : <http://buenoecostanze.adv.br>. acesso em : 08 de junho de 2010).

Da conjuntura da Violência

Neste 1º Semestre de 2010 a população de São Paulo assistiu, aterrorizada, a uma onda de cres-cimento da violência praticada pe-las diversas polícias, seja do Estado (Civil e Militar), seja Guardas Mu-nicipais de diferentes cidades.

No último período, as manche-tes das grandes mídias têm sido ocupadas por informações dando conta do aumento significativo de

homicídios. Já em Fevereiro/10, o balanço dos índices de criminali-dade divulgados pela SSP-SP (Se-cretaria de Segurança Pública de São Paulo) apontava que, em 2009, foram registradas 549 mortes pro-vocadas em confrontos com a polí-cia – o que significou um aumento de 27% em relação ao ano anterior. Para o delegado geral da Polícia Ci-vil, Domingos Paulo Neto, o núme-ro maior reflete o “trabalho policial mais intenso em locais violentos”. Enquanto voz oficial do Estado, o delegado surpreendeu a todos ao explicitar o posicionamento autori-tário e assassino do Governo:

“Nós fizemos 124 mil prisões no ano inteiro. Nessas prisões, em ope-rações de risco, é natural que ocor-ra a morte. Se for do marginal que reagiu, é melhor a morte do crimi-noso do que a do policial, que está arriscando a vida em benefício da sociedade, não é verdade?”

(Domingos Paulo Neto - Delega-do Geral da Polícia Civil) fonte R7 notícias.

Diante da repercussão dos índices negativos, o secretário da Seguran-ça Pública, Antonio Ferreira Pinto, elegeu o combate aos crimes contra o patrimônio como prioridade. E o resultado veio a cavalo. No início de Maio, mais uma vez os noticiá-rios deram destaque ao aumento de homicídios quando da divulgação do aumento de 23% desses casos. O governo do Estado, surpreendido com os índices, tentou diminuir o impacto da crise tratando-o como “oscilação” e como fruto de esfor-ços do governo e de suas polícias em conter a criminalidade.

Dos últimos acontecimentos

Nas últimas semanas, assistimos estarrecidos e revoltados, as notí-cias veiculadas pela grande mídia, acerca da violência da Polícia Mili-

tar do Estado de São Paulo dirigida a dois jovens negros.

Infelizmente, a forte divulgação dos acontecimentos nos surpre-endeu mais que os próprios fatos, afinal, espancamentos, torturas e assassinatos não são novidades no tratamento da polícia de São Paulo à juventude e à população negra e pobre.

Eduardo Luís Pinheiro dos San-tos, 30 anos e Alexandre Santos, 25 anos, tinham muitas coisas em comum. Além do sobrenome e de serem ambos trabalhadores moto-bys, eram negros! Talvez por isso a infeliz coincidência também em suas violentas mortes.

Eduardo foi encontrado morto no último dia 10 de Abril, após ser torturado. Alexandre foi espanca-do até a morte na frente da mãe, na porta de casa. Os dois foram víti-mas da Policia Militar do Estado de São Paulo. Elza Pinheiro dos San-tos, mãe de Eduardo, em momen-to de desabafo disse: “Meu filho foi morto por ser negro”. Maria Apare-cida, mãe de Alexandre, em deses-pero relatou: “Eu tentava segurar a mão do policial e pedia pelo amor de Deus para que ele parasse de ba-ter no meu filho”.

Paralelo à repercussão destes ca-sos em toda mídia, a Baixada San-tista registrou nas últimas duas se-manas mais de 20 homicídios. Mais uma vez, a maioria das vítimas são moradores de periferias, jovens e negros. Os indícios são fortíssimos de que há em curso a ação de gru-pos de extermínio com a participa-ção de policiais.

Negros são alvos preferenciais

Em julho de 2009 a Secretaria Especial dos Direitos Humanos, UNICEF e o Observatório de Fa-velas divulgam resultados de sua pesquisa, e os dados são ainda mais

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23estarrecedores: 33,5 mil jovens se-rão executados no Brasil no curto período de 2006 a 2012. Os estudos apontam que os jovens negros têm risco quase três vezes maior de se-rem executados em comparação aos brancos.

“Há uma morte negra que não tem causa em doen-ças; decorre de infortúnio.”

A afirmação acima consta do ar-tigo A Cor da Morte, publicado por Luís Eduardo Batista e colaborado-res, na Revista de Saúde Pública, em 2004. Esta matéria apresenta as causas de óbito conforme caracte-rísticas de raça, no Estado de São Paulo, entre os anos de 1999 e 2001. Tal pesquisa aponta que negros e brancos morrem vitimizados por causas diferentes. Segundo o estu-do, a maior parte dos brancos vai a óbito por tumores ou doenças do aparelho circulatório, respiratório, sistema nervoso, congênitas, entre outras. Ao contrário, a maior parte dos negros morre por motivo não associado a doenças, como causas externas (violência, por exemplo).

O racismo que ganhou nova rou-pagem nos dias atuais é o principal fator pela condição de miséria do negro e da violência por ele sofrida. Pelo IDH (Índice de Desenvolvi-mento Humano) da ONU, o Brasil se encontra em 63º lugar na coloca-ção de países de médio desenvolvi-mento humano. Os pesquisadores Wânia Sant’Ana e Marcelo Paixão fi-zeram o mesmo estudo para negros e seus descendentes isoladamente e a colocação é 120º, colocação que denota as péssimas condições de vida do negro brasileiro.

A polícia de São Paulo está ex-terminando a juventude negra. Os pesquisadores Rodnei Jericó e Sue-laine Carneiro do Geledés – Insti-tuto da Mulher Negra realizaram um estudo do qual se extrai:

“Os dados re-gistrados pela série documental “Mapa da Violência: os jovens do Brasil” , revelam que nossas taxas de homicídios são eleva-das e tem como principal vítima a população do sexo masculino pertencente a raça negra. Ne-gros é o grupo racial brasileiro mais vulnerável à morte por ho-micídios. O estudo aponta que no ano de 2004, a taxa de viti-mização desse grupo foi de 31,7 em 100 mil negros, enquanto para a população branca foi de 18,3 homicídios em 100 mil brancos. A população negra teve 73,1% de vítimas de homicídio a mais do que a população branca (WAISELFISZ, 2006, p.58).

As iniqüidades raciais refletem--se na mortalidade da população negra e são decorrentes de condi-ções históricas e institucionais que moldaram a situação do negro na sociedade brasileira. Os números revelam o que se deseja silenciar: a morte tem cor e ela é negra. Os jovens negros são as principais ví-timas da violência, que vivem um processo de genocídio.

Para Major, Polícia Militar é racista

As evidências dos abusos e da ação criminosa das polícias de São Paulo são tão flagrantes e se dão a tanto tempo que, infelizmente, há a uma tendência a naturalização. Por essa razão, causa surpresa que denúncias surjam da própria cor-poração.

E foi justamente o que aconteceu quando da veiculação na grande mídia da dissertação de mestra-do major da Polícia Militar de São Paulo, Airton Edno Ribeiro, Mes-tre em Educação das Relações Ra-ciais e chefe da divisão de ensino do Centro de Altos Estudos de Se-gurança (CAES), que fez o estudo

sobre “A Relação da Polícia Militar Paulista com a Comunidade Negra e o Respeito à Dignidade Humana: a Questão da Abordagem Policial”

Ribeiro, com conhecimento de causa, traça um forte relato sobre como a questão é tratada no inte-rior da PM:

“há um silêncio na Polí-cia Militar paulista sobre os problemas referentes à cor, à negritude e ao racismo, tanto na relação com a população afrodescendente, como den-tro da própria Instituição, onde a presença negra sem-pre foi expressiva entre as praças”. – Fonte: O vermelho

Para o policial, características ét-nicas próprias e perfil socioeconô-mico e cultural diferenciados, dada a convivência com a pobreza, favo-recem o surgimento de criminosos.

“É na realização diária da atividade de polícia os-tensiva que se manifesta a individualização dos pensa-mentos do policial e de seus preceitos humanos, ou seja, estando o policial de serviço na viatura, sozinho ou com um companheiro, ele escolhe diretamente a pessoa a ser abordada ou influencia o ou-tro policial a abordar. E nesse contexto a escolha da pessoa a ser abordada recai sobre o negro em qualquer situação, em sutilezas que tomam con-ta das condutas dos policiais no exercício do policiamen-to”. Fonte: O vermelho

Em recente palestra proferida em São Paulo, o Major falou também sobre a percepção do policial que faz a revista. De acordo com essa percepção “o destino do negro é ser abordado”; “quem coopera não apanha”, “o policial negro não se

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24sente negro”; “e negros esclarecidos irritam a Polícia”.

Da impunidade: de Robson à Flavio

A impunidade aos atos de violên-cia policial é histórica no Estado de São Paulo.

Em 1978, o trabalhador Robson Silveira da Luz, foi preso e tortura-do no 44º distrito policial de Guaia-nazes, sob a responsabilidade do delegado Alberto Abdalla, que foi condenado pelo ato, mas até hoje não passou um único dia na prisão, pelo crime cometido.

Os Policiais Militares que mata-ram o dentista Flavio Santana, em 2002, foram condenados, presos e logo libertados.

Agora os casos de tortura e mor-te dos motoboys – Eduardo Pinhei-ro dos Santos e Alexandre Santos nos apontam ações cada vez mais ousadas, fruto da impunidade que acompanha as ações de violência policial no estado de São Paulo.

Foram vítimas de tortura, com Alexandre sendo enforcado diante da mãe. Os policiais militares agi-ram com requinte psicopático.

Há de se dar fim à impunidade da violência policial, sob pena de esta violência ganhar dimensões cada vez mais bárbaras.

Das iniciativas da sociedade civil, movimento e

demais organizações

Não é de hoje que inúmeros de-fensores de direitos humanos, mo-vimentos negros, movimentos so-ciais, sindicatos, parlamentares e familiares de vítimas da violência policial apresentam denúncias com suas respectivas provas, testemu-nhos e farta documentação relacio-nada ao tema e expõe suas reivindi-cações diante do Estado.

A maior indignação é pelo fato de que as arbitrariedades e o exter-mínio de pobres e negros são prati-cados em nome do Estado Demo-crático de Direito e supostamente em defesa da lei e da ordem.

A constatação é que o Estado de São Paulo, neste caso específico responsabilizado pela ação de seus policiais e demais agentes, comete sistematicamente graves violações de direitos humanos e o alvo prefe-rencial dessas ações são as parcelas mais pobres da população brasilei-ra, em especial negros e negras.

Em 19 de Novembro de 2009, véspera do feriado da Consciência Negra, movimentos negros e sociais apresentaram uma REPRESENTA-ÇÃO, protocolada junto ao Go-verno do Estado de São Paulo, na Secretaria de Justiça e Cidadania, no Ministério Público, no Gabinete do Procurador Geral de Justiça, na Defensoria Pública e na Assembléia Legislativa, com a Comissão de Di-reitos Humanos.

Em resumo, a Representação (có-pia em anexo) relatou denúncias de violações de direitos humanos por parte da Polícia Militar de São Paulo, práticas discriminatórias, índices de desigualdades étnico--raciais levantados por organismos nacionais e internacionais e, como proposição, o documento apontou um conjunto de ações envolvendo o Poder Público e sociedade civil organizada.

Os únicos andamentos oficiais dados à Representação foram estes:

1) Reunião ocorrida em 10/03, do Núcleo de Combate ao Racismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo com representantes de entidades do movimento negro, na qual aquela Instituição demonstrou que possui disposição e prerrogati-va para agir em defesa dos direitos

coletivos e difusos tratados na Re-presentação. A partir de então, a Defensora Pública Dra. Maira Co-raci acompanha o desenrolar das atividades ligadas ao caso.

2) Houve trâmite perante a Comissão de Direitos Humanos da ALESP, com procedimento interno número 9080/2010, com parecer proferido pelo Deputado Relator em reunião ordinária do dia 25/03.

Infelizmente, a inércia absoluta e total omissão política por parte dos órgãos responsáveis pela segu-rança pública, principalmente PM, Secretaria de Segurança Pública e Governo do Estado de São Paulo, deu razão aos argumentos levanta-dos pelos movimentos sociais em 19/11/2009, quando da referida Re-presentação àquela data, demons-trando-se que há um genocídio em curso, e o grupo étnico racial viti-mado pela ação violenta por agen-tes do Estado são jovens negros moradores de periferia.

Com a repercussão nacional e internacional dos assassinatos dos dois jovens trabalhadores moto-boys negros, a Comissão de Direi-tos Humanos da Assembléia Le-gislativa do Estado de São Paulo deliberou pela realização desta Au-diência Pública sobre violência po-licial e racial, depois de pedido feito pela FEPPIR (Frente Parlamentar pela Promoção da Igualdade Ra-cial) e da pressão do conjunto dos movimentos negros e sociais.

Em meio à repercussão dos as-sassinatos dos dois jovens moto-boys negros pela PM, Movimen-tos Negros e Sociais protocolaram no dia 5 de maio desde ano, um requerimento exigindo uma audi-ência imediata com o Governador interino, Alberto Goldman, além de explicações públicas (protoco-lo 38391/2010, de 11 de maio de 2010). A resposta foi negativa. Nes-

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25te mesmo período os 12 policiais militares acusados de assassinar o motoboy Eduardo Luís Pinheiro dos Santos foram soltos.

Hoje, dia 9 de Junho de 2010, fazemos uso deste espaço oficial da Audiência Publica chamada pela Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Esta-do de São Paulo, para registrarmos aqui nossas intenções, reivindica-ções e exigências, enquanto popu-lação negra, indígena e pobre.

Intervenção propositiva

Todos e todas temos ampla consciência das limitações de in-tervenção de um Estado com ba-ses fundantes tão conservadoras e comprometidas com o “status quo” vigente. Bem como é também de nossa ciência o posicionamento e a vontade política ideologicamente comprometida de seus dirigentes.

No entanto, cumprimos nosso papel enquanto cidadãos e cidadãs e enquanto movimentos da socie-dade civil organizada, ao ocupar os espaços de diálogo e cobrança existentes neste e Estado Demo-

crático de Direito e, diante de um histórico e de fatos tão contunden-tes, apresentamos as seguintes rei-vindicações à Comissão de Direitos Humanos da ALESP:

• Demissão imediata do Se-cretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Sr. Antonio Ferreira Pinto;

• Demissão imediata do Comandante Geral da Polícia Mi-litar do Estado de São Paulo, Cel PM Alvaro Batista Camilo;

• Tipificação dos casos de violência policial, que resultem ou não em mortes, como crimes de tortura, conforme a Lei 9455/97;

• Instituição de uma CPI das Polícias de São Paulo, que vise desmantelar milícias, apurar de-núncias/crimes e punir responsá-veis;

• Fortalecimento das Ou-vidorias e Construção de uma Corregedoria única, autônoma, controle e fiscalização por parte da sociedade civil;

• Desmilitarização e unifica-

ção das polícias;

• Debate Público sobre o conteúdo teórico e prático de for-mação para policiais, bem como a instituição de um Grupo de Tra-balho por esta casa, para elabo-ração de legislação sobre forma e o conteúdo do treinamento e for-mação de policiais;

• Criação de Grupos de Tra-balhos Temáticos que provoquem debates públicos e elaborem pro-jetos de lei que atendam as seguin-tes demandas: Fim do registro de “Resistência seguida de morte” ou “Auto de resistência” para as exe-cuções sumárias; Fim dos fóruns privilegiados para Autoridades e Polícias; Exigência de indeni-zações para todas as vitimas de violência e/ou seus familiares; Federalização de processos; Fim das ações violentas em despejos e reintegrações de propriedades; Direitos Humanos para popula-ção indígena e LGBT; Debate Pú-blico e elaboração de políticas de estado de promoção da reparação histórica dirigida à população ne-gra e indígena.

ÀAssembleia Legislativa do Estado de São PauloAtt.: Comissão de Direitos Humanos

É com pesar e revolta que as orga-nizações que compõem este Comitê, bem como aquelas que subscrevem como organizadoras do Ato de 13 de Maio de Luta de 2011, nos dirigimos a esta casa legislativa.

Há muitos anos as organizações negras e os movimentos sociais de-nunciam as condições degradantes à qual a população negra é submetida historicamente no Brasil. Não bas-tasse o desemprego, o subemprego, a falta de moradia, os péssimos ser-viços de saúde e educação, a falta de oportunidades e o preconceito e dis-

criminação racial em todos os níveis, percebe-se um aumento da violência estatal dirigida particularmente à po-pulação negra.

Pesa sobre São Paulo um históri-co de violência brutal direcionada ao povo negro. O massacre do Caran-diru, em 1992, quando 111 homens foram assassinados e os Crimes de Maio de 2006, quando policiais e grupos de extermínio ligados à PM promoveram o assassinato de cerca de 500 pessoas são episódios emble-máticos do terror estatal. O perfil das vítimas é sempre o mesmo: jovens,

negros e pobres.

Ainda sobre o Crimes de Maio de 2006, esta semana foi divulgado um detalhado estudo realizado pela ONG Justiça Global, em parceria com a Clínica Internacional de Direi-tos Humanos da Faculdade de Direi-to de Harvad, sob o título “São Pau-lo sob Achaque: Corrupção, Crime Organizado e Violência Institucional em Maio de 2006”, onde se reafirma o assassinato de centenas de pessoas em supostos confrontos com a PM e em ações de grupos de extermínio ligados à polícia. Até hoje o Estado se

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26esquiva e não promove apuração dos fatos ou punição dos responsáveis. Movimentos Sociais e familiares das vítimas esperavam também maior intervenção desta casa legislativa e do próprio Ministério Público do Es-tado, o que não houve.

Em 2010 nos revoltamos contra o assassinato de dois jovens motoboys negros, Eduardo Luís Pinheiro dos Santos, 30 anos e Alexandre Santos, 25 anos. E em 2011 a violência con-tinua: Em Ferraz de Vasconcelos, na grande São Paulo, uma mulher cora-josa relatou em tempo real no “190”, o assassinato de um jovem levado por uma viatura da PM para o cemi-tério da cidade, onde foi executado. Longe de ser exceção, tais casos são a regra de uma policia que humilha, extorque e mata.

Segundo matéria da Folha de São Paulo, de 27/04/11, no 1º trimestre deste ano, 111 pessoas foram mortas por policiais no Estado em casos de “resistência seguida de morte” - 90 delas na capital e na Grande São Pau-lo. Os PMs mataram 87 pessoas; os policiais civis, três. Na Baixada San-tista, o cenário talvez seja dos mais graves. Depois dos Crimes de Abril de 2010 (quando 27 pessoas foram assassinadas, em apenas uma se-mana, por grupos de extermínio na Baixada), durante o mês de Abril de 2011, apesar de todas as denúncias dos movimentos sociais, repete-se o cenário de terrorismo estatal: agentes policiais e grupos de extermínio vol-tam a agir, praticando novas chacinas e aterrorizando toda população.

A situação de violência racista se estende por todo o país. A instalação de UPP`s e polícias travestidas de “comunitárias” promovem repres-são, faxina étnica e deslocamento das populações em função da Copa do Mundo e Olimpíadas. Há também

uma onda de agressões a consumi-dores negros em shoppings, redes de supermercados e lojas tais como Walmart, Carrefour, Eldorado, Ma-risa, Americanas e bancos privados e públicos, como, por exemplo, a agên-cia do Banco do Brasil em SP, em que o rapper e poeta negro James Bantu fora constrangido e agredido por se-guranças e PMs em abril de 2011.

Ao mesmo tempo em que o braço armado do Estado oprime a popu-lação negra, nos espaços de poder institucionais, agrupamentos con-servadores e políticos racistas agem no sentido de impedir o avanço de politicas públicas e de reparações para o povo negro brasileiro. Os se-nadores Demóstenes Torres e Katia Abreu lideram os grupos que defen-dem a prática do trabalho escravo em propriedades rurais dos barões do agronegócio; a tentativa de derrotar a políticas de Cotas em universidades no STF; e o cinismo cruel em negar as Titulações dos Territórios Qui-lombolas.

A severa radicalidade racista que se dá através da negação à cidadania, da negativa em investimentos em edu-cação, da negativa em promover po-líticas públicas e reparação histórica à população negra (seja na aplicação da Lei 10639 ou na implementação de Cotas em Universidades), somada a permanente disseminação da dis-criminação e do preconceito racial, promovem uma realidade lamenta-velmente naturalizada, divulgada há dois dias em toda grande mídia: O número negros entre os miseráveis pobres é quase três vezes maior que o brancos (IBGE-2011).

Nesta semana que marca 123 anos da falsa abolição da escravidão no Brasil, dirigimos a voz à ALESP, no sentido fazer valer nossa indignação diante da barbárie em que o povo ne-

gro e toda a classe trabalhadora está envolta, bem como exigimos inicia-tivas dos deputados comprometidos com as lutas populares em relação às seguintes reivindicações:

• Tomada de iniciativas no sentido de combater o genocídio da população negra promovido por este Estado e este governo;

• Pela aprovação dos projetos de leis que instituem Cotas para ne-gros/as em Instituições de Ensino Superior estaduais.

• Pela elaboração de legislações que defendam e garanta o pleno di-reito a terra e a cultura originária às comunidades quilombolas;

• Pela implementação da Lei 10639 no Estado de São Paulo;

• Tipificação dos casos de vio-lência policial, que resultem ou não em mortes, como crimes de tortura, conforme a Lei 9455/97;

• Instituição de uma CPI das Polícias de São Paulo, que vise des-mantelar milícias, apurar denún-cias/crimes e punir responsáveis;

• Fortalecimento das Ouvido-rias e Construção de uma Correge-doria única, autônoma, controle e fiscalização por parte da sociedade civil;

• Pelo fim do registro de “Resistência seguida de morte” ou “Auto de resistência” para as execu-ções sumárias;

• Pelo fim dos fóruns privile-giados para Autoridades e Polícias;

• Pela Federalização do pro-cessos relativos aos crimes de maio de 2006;

• Exigência de indenizações para todas as vitimas de violência e/ou seus familiares;

COMITÊ CONTRA O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRASÃO PAULO

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novo códiGo florEStal é MaiS uM capítulo do hiStórico doMínio do braSil pElo aGronEGócio.

Gabriel Brito e Valéria Nader*, da Redação do Correio Cidadania / 1º de Junho de 2011

http://www.correiocidadania.com.br/ - Acesso em 03.06.11

Após meses de calorosos debates e pesados lobbies, a Câmara dos De-putados aprovou o substitutivo do atual Código Florestal, projeto apre-sentado pelo deputado do PC do B Aldo Rebelo, em nome de toda a bancada dos empresários ruralistas que ocupam o Congresso. Para ana-lisar a pior derrota do núcleo duro governista até o momento, refratá-rio ao novo Código, o Correio da Cidadania conversou com o geógra-fo da USP Ariovaldo Umbelino.

Escaldado com os projetos anti--ambientais, naquilo que já cunhou de “agrobanditismo”, Umbelino não se mostrou surpreso com mais essa vitória ruralista, na esteira das MPs 422 e 458, além do programa Ter-ra Legal. São todos estes, a seu ver, contribuintes inequívocos para o aumento da violência no campo, já registrado nas estatísticas de 2009 para 2010 e marcado a fogo com o assassinato de um casal de extrati-vistas paraenses na véspera da vota-ção do novo Código Florestal.

O professor da USP, atualmente em visita na Universidade Federal de Tocantins, critica todos os pon-tos modificados ao interesse dos latifundiários, mas destaca como mais temerárias a anistia a desma-tamentos já realizados e a redução de Áreas de Proteção Permanente, as APPs. Além da diminuição da exigência de preservação de matas ciliares, quando estudos já apontam que isso leva ao ressecamento de nascentes de rios, como se verifica no São Francisco.

Sobre estados e municípios toma-rem para si a atribuição federal de definir políticas ambientais de uso e concessão de solo, considera ser o ponto mais fácil de derrubar no Supremo. De toda forma,Umbelino

crê que, com ou sem o novo Código, o desmatamento continuará a todo vapor, “porque não tem fiscalização e governo que façam cumprir as in-frações à lei no Brasil” e “a maior parte do Congresso é favorável à desregulamentação geral do que o agronegócio entende como obstácu-los”. Exatamente por isso, não acre-dita que Dilma conseguirá impor o veto ao projeto, conforme declarou.

A entrevista com Ariovaldo Um-belino pode ser lida em sua íntegra a seguir.

Correio da Cidadania: Como o se-nhor analisa a aprovação na Câmara dos Deputados do novo Código Flo-restal, apresentado por Aldo Rebelo, com o afrouxamento de exigências e regras estabelecidas pelo Código anterior?

Ariovaldo Umbelino: A aprovação do Código Florestal com as mo-dificações introduzidas pelo Aldo Rebelo vai na mesma direção de um conjunto de legislações que fo-ram sendo afrouxadas, sob o obje-tivo fundamental de liberação in-tegral para a ação do agronegócio em território brasileiro. Tais ações começaram com a lei que permi-tiu a introdução dos transgênicos, passaram pela permissão à retirada de madeira de dentro das florestas nacionais e também pelas MPs 422 e 458, que permitiram a legalização da grilagem na Amazônia legal.

Portanto, o projeto desse Código Florestal faz parte da história que marcou o governo do presidente Luiz Inácio e agora se estende, no sentido de desregulamentar toda e qualquer legislação que impeça a ação do agronegócio no Brasil. É o principal ponto.

E evidentemente Aldo Rebelo pres-

tou mais um desserviço à sociedade brasileira. Primeiro, por fazer um substitutivo já ruim, e, em segundo lugar, por abrir a possibilidade de aprovação das modificações intro-duzidas no plenário. Elas tornaram o projeto, do ponto de vista da pro-teção ambiental, péssimo e infrator de todos os princípios de preserva-ção, ainda introduzindo artigos que permitirão a imposição da lógica da terra arrasada ao meio ambiente brasileiro.

Correio da Cidadania: Com o novo Código, estados e municípios, mais vulneráveis a pressões políticas, po-derão legislar sobre o uso e conces-são do solo em Áreas de Proteção Permanente, uma política, dentre outras, até então sob o âmbito fede-ral. O que pensa disto?

Ariovaldo Umbelino: Esse talvez seja o ponto mais fácil de derrubar no Supremo. A Constituição atribui à União o poder de legislar sobre o meio ambiente. É um item que co-meça a abrir precedentes, mas ima-gino que, mesmo aprovado, possa ser derrubado por ação de incons-titucionalidade. Diferentemente dos outros itens, de interesse direto ao próprio Código, que pela Consti-tuição devem ser objeto de lei. Eles também têm problemas de introdu-ção, mas a briga é sempre imprevi-sível.

De toda forma, tal medida equivale a transferir toda a legislação de ter-ras a estados e municípios.

Correio da Cidadania: O que é impraticável na realidade, pois, tal como você já nos disse, biomas e áreas de preservação não reconhe-cem limites geográficos desenhados pelo homem.

Ariovaldo Umbelino: É como di-

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28zer que a legislação ambiental não é mais da alçada do governo federal. E assim, com uma lei, se revoga a Constituição. De qualquer maneira, ainda acho que esse ponto não é o mais complicado. O pior são as re-duções nas APPs, a consolidação do estrago já feito nelas com a anistia a desmatadores.

Correio da Cidadania: A dispensa de reposição de reservas em peque-nas propriedades, de até 4 módu-los fiscais, não acarretará, ademais, uma avalanche de medidas para dri-blar a legislação, como, por exem-plo, a partilha de propriedades?

Ariovaldo Umbelino: Sobre isso, há o problema de se apresentar tal fato como reivindicação dos peque-nos proprietários. Na realidade, isso não existe tão claramente como se coloca aqui no Brasil. Como exem-plo, temos o setor sucroalcooleiro, cujas propriedades nunca deixa-ram de continuar a ser compradas, mas seus donos nunca fundiram as escrituras dos imóveis comprados, convertendo-as em uma única. Nes-se setor, portanto, existe muita área considerada pequena propriedade, cuja escritura atesta ser inferior a 4 módulos fiscais. Esses proprietários também serão beneficiados, porque a rigor a propriedade é inferior ao tamanho proposto.

Os grandes proprietários do Brasil não anexam todas as suas proprie-dades. Por trás da proteção aos pe-quenos agricultores, portanto, pro-tegem-se os grandes. Em Ribeirão Preto e região, há até unidade in-dustrial de usina de açúcar em cima de APP. Na verdade, é uma proteção aos grandes, a todos os setores do agronegócio.

Correio da Cidadania: Haveria como averiguar efetivamente onde estão os agricultores que são real-mente familiares, que são aqueles que deveriam de fato ficar isentos dessa reposição de reservas?

Ariovaldo Umbelino: É claro. Na verdade, a permissão deveria ser competência do IBAMA, via utiliza-

ção de imagens de satélite do INPE, para verificar onde há de fato uma agricultura familiar forte. Mas deve-ria ser estudado caso a caso, e não fazer uma legislação que afrouxa tudo genericamente.

Correio da Cidadania: Vivemos uma época com a ocorrência ine-gável de catástrofes produzidas por eventos da natureza, com destaque para a mais recente tragédia, a da Região Serrana do Rio de Janeiro. Além dos afrouxamentos já citados, reduzir a área de proteção nas matas ciliares e em margens de rio poderá agravar este quadro com grande in-tensidade?

Ariovaldo Umbelino: No caso do Rio de Janeiro, deve-se ver de for-ma distinta. Houve deslizamentos em áreas de intervenção humana, assim como em áreas sem interven-ção. Um ano antes em Angra foi a mesma coisa. Na realidade, a pro-teção de tais áreas é necessária por-que por natureza são áreas instáveis. Sobretudo nos biomas onde chove acentuadamente, como é o caso des-sa região do Rio de Janeiro. É bom lembrar que na década de 60 o mes-mo fenômeno ocorreu em Caragua-tatuba. O desmatamento só agrava, mas vale dizer que mesmo assim es-sas áreas são instáveis.

Já a proteção das matas ciliares tem fundamentalmente a ver com a pro-teção das nascentes. Há estudos em Minas Gerais dando conta de que mais de 3000 nascentes do São Francisco já secaram em função do desmatamento das matas ciliares. Já há estudos no Brasil comprovando que o desmatamento da mata ciliar pode levar ao ressecamento das nas-centes.

Correio da Cidadania: Quanto à anistia que se pretende dar às infra-ções ambientais cometidas até 2008, desde que reconhecidos os crimes pelos infratores, não vai abrir um sério precedente para o incremento do desmatamento em estados tradi-cionalmente agressores da preserva-ção ambiental?

Ariovaldo Umbelino: Bom, é claro que devemos classificar esta medida como gravíssima, não há como não usar essa palavra. Mas no Brasil ne-nhum infrator é multado! E quando o é, o Estado não cobra a multa.

Por exemplo: os proprietários que não pagaram o Imposto Territorial Rural nunca foram multados, pro-cessados. Se lembrarmos do Raul Jungmann, no governo FHC, quan-do assumiu o Ministério do Desen-volvimento Agrário (MDA), a pri-meira modificação legal que ele fez foi introduzir o imposto territorial progressivo. Ou seja, se o dono não paga o imposto, ele aumenta no ano seguinte, progressivamente, até que um dia a multa supere o próprio va-lor do imóvel. Mas nunca alguém foi processado.

O Brasil tem leis boas, o problema sempre foi, infelizmente, o cumpri-mento, a execução do Estado para que elas se cumpram de fato.

Correio da Cidadania: Mas isso não pode se agravar diante de tama-nha liberalização?

Ariovaldo Umbelino: A anistia é um ato declarado disso tudo. Mas, quando o presidente Luiz Inácio fez o decreto que legalizou os transgê-nicos, também perdoou quem ti-nha importado e usado ilegalmente sementes transgênicas até então. A história brasileira é de condescen-dência com as ações ilegais.

Se eu infrinjo a lei, sou multado e anistiado, posso continuar infrin-gindo a lei. O ponto é que, com ou sem esse novo Código Florestal, aconteça o que acontecer, o desma-tamento vai continuar, porque não há fiscalização e não tem governo que faça cumprir as ações contra a infração da lei.

E nesta questão se inclui ainda o Ju-diciário. Sabemos que o Judiciário não julga nada ou julga a favor dos grandes. Como exemplo, lembro a Cosan, que foi incluída na lista suja do trabalho escravo. No dia seguin-te, um juiz foi lá e deu liminar para

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29que o nome da empresa fosse retira-do da lista suja. A justiça brasileira também nunca garantiu o cumpri-mento e o respeito às leis.

Correio da Cidadania: O que o se-nhor diria a respeito dos argumen-tos de cunho nacionalista proferidos por Aldo Rebelo e outros defensores da proposta aprovada?

Ariovaldo Umbelino: Quem fez o texto do substitutivo ao Código Flo-restal apresentado por ele foi uma advogada da CNA, Confederação Nacional da Agricultura, informa-ção conhecida pelo Brasil todo. Em segundo lugar, se formos olhar a lis-ta dos seus doadores de campanha, veremos que constam as principais empresas do agronegócio.

Portanto, ele é um vendido. Como diria Brizola, “mais um vendilhão da pátria”.

Correio da Cidadania: O que pensa do assassinato do casal José Clau-dio e Maria, militantes do campo, às vésperas da votação do novo Có-digo? Podemos esperar por tempos ainda mais violentos no campo, com a aprovação desse Código Florestal?

Ariovaldo Umbelino: Sim, pode-mos. Se olharmos os dados da CPT, a Comissão Pastoral da Terra, de as-sassinatos no campo no ano passado e também em 2009 verificamos que há aumento no número de crimes. Quer dizer, entre 2009 e 2010 já ocorreu aumento dos assassinatos, após as MPs 422 (regulariza pro-priedades de até 1500 hectares na Amazônia Legal) e 458 (visa acelerar regularização de tais propriedades, apelidada de “MP da Legalização da Grilagem”, por igualar posseiros e grileiros) e o programa Terra Legal (regulariza posses na Amazônia sem garantir fiscalização à propriedade, a fim de comprovar as dimensões declaradas, entre outras irregulari-dades abrigadas também nas MPs citadas).

A realidade, portanto, é que já houve conseqüências, e a aprovação desse novo Código, evidentemente, só vai

aumentar a violência do campo.

Correio da Cidadania: O que essa vitória da bancada parlamentar do-minada pelos empresários do lati-fúndio representa do atual estado de nossa política parlamentar e ins-titucional?

Ariovaldo Umbelino: Primeiro, de-vemos lembrar a realidade cruel: a maior parte dos nossos representan-tes no Congresso é favorável a essa desregulamentação geral de leis que o agronegócio entende como obs-táculos restritivos. Mas não é só a bancada ruralista a responsável. O Aldo Rebelo não precisava ter feito o substitutivo. Já foi líder de banca-da do governo, presidente da Câma-ra... Podia ter feito diferente. Aliás, a ação dele nesse episódio e na de-marcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2009, mostra que de comunista ele não tem mais nada.

A verdade é que a maior parte de nossos parlamentares tem compro-misso com o agronegócio. E estão fazendo valer o poder que têm, vo-tando favoravelmente ao agronegó-cio, inclusive os partidos de esquer-da, que entendem que esse estilo de agricultura e o capitalismo devem continuar se expandindo, pois ge-ram empregos, divisas pra balança comercial... A mesma concepção que vem desde o período colonial e que faz do Brasil uma economia primário-exportadora.

Correio da Cidadania: Acredita que a reforma do Código Florestal possa ser barrada, ou minimamente alte-rada, no Senado? Em um momento em que o governo está refém de uma crise política, novamente protagoni-zada por Palocci, terá a presidente Dilma condições de reverter os pon-tos mais lesivos?

Ariovaldo Umbelino: Eu acho que não. Acho que o Senado oferece o risco de piorar ainda mais a situa-ção. E se a Dilma for lá e vetar, como já está declarando, o que vai aconte-cer é que vão derrubar o veto. E do ponto de vista político o estrago será maior. O caso do Palocci só torna o

jogo político mais agudo. O governo do Luiz Inácio também foi refém do Congresso durante oito anos. Esse não será diferente.

Correio da Cidadania: O que espe-rar do governo Dilma na área am-biental e no que se refere à política agrária?

Ariovaldo Umbelino: Até o mo-mento, ela não tornou públicos os seus planos. Na área agrária, só co-nheço o primeiro documento que circulou, do MDA, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, que sim-plesmente abandona de forma defi-nitiva a reforma agrária como po-lítica pública no Brasil. Nos outros setores, o único ponto em que há al-gum esboço é na questão que se re-fere ao combate à pobreza extrema.

Aliás, o Brasil não tem miseráveis, mas “pobres extremos”. Como se não fosse a mesma coisa. E eviden-temente o desejo dela de fazer algo nessa área é maior. Mas também não há plano divulgado.

Correio da Cidadania: Mas sem uma reforma agrária autêntica, esse objetivo também fica dificultado...

Ariovaldo Umbelino: Porém, quem colocou a questão da reforma agrá-ria na pauta dos governos nos últi-mos 30 anos foram os movimentos sociais. E eles abandonaram essa bandeira. Se olharmos o abril ver-melho deste ano, vamos ver que foi verde e amarelo.

Correio da Cidadania: O que achou do papel da mídia na apresentação da discussão?

Ariovaldo Umbelino: A mídia bra-sileira, sobretudo a grande mídia, comercial, sempre foi favorável ao agronegócio, isso quando não ti-nha – ou tem – interesses diretos no agronegócio. Pra mim, particu-larmente, não foi novidade alguma. Continuaram fazendo o mesmo também em outros temas, como mostra seu combate feroz aos mo-vimentos sociais. É uma mídia in-teiramente comprometida com o agronegócio.

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dirEitoS SExuaiS dE GayS, léSbicaS E tranSGênEroS no contExto latino-aMEricano

* Roger Raupp Rios - Juiz Federal. Mestre e Doutor em Direito (UFRGS – Brasil). Pesquisador associado ao NUPACS/UFGRS. Membro do CLAM – Brasil.

1. INTRODUÇÃO

Um exame da situação dos di-reitos de gays, lésbicas e transgê-neros (designados neste trabalho como `direitos sexuais GLBT`) na América Latina pode ser realizado a partir de múltiplas perspectivas. Estas abrangem, por exemplo, aná-lises sobre os sucessos e fracassos, limites e possibilidades, do reco-nhecimento formal destes direitos por parte dos Estados nacionais la-tino-americanos, numa abordagem mais pertinente à ciência política. Ao lado destas, também podem ser propostos estudos a respeito da efetividade dos direitos já existen-tes, conforme o grau de compro-misso das diversas instituições es-tatais envolvidas em sua aplicação, adotando-se uma perspectiva mais sociológica. Do mesmo modo, in-vestigações antropológicas podem apontar para os impactos que o reconhecimento formal destes di-reitos pode produzir nas represen-tações sociais acerca destes grupos, seja interna, seja externamente ao próprio grupo.

Nesta reflexão, proponho o exame da situação dos direitos de gays, lés-bicas e transgêneros a partir de uma perspectiva jurídica. O que significa realizar tal espécie de análise? Qual a relevância de uma abordagem ju-rídica desta questão? Em primeiro lugar, deve-se distinguir uma aná-lise jurídica de um mero inventário de legislação e de jurisprudência a

1. Introdução 2. Tipologia dos ordenamentos jurídicos quanto aos direitos glbt 3. Tendências no desenvolvimento jurídico dos direitos glbt 4. Desafios ao desenvolvimento dos direitos glbt 5. Conclusão

respeito do tema. Uma análise jurí-dica é mais que uma compilação de dados; ao contrário, ela requer um exame crítico da legislação vigente, de suas potencialidades e limites para o tratamento destes direitos, seja ela expressa ou não a respeito deles direitos sexuais. Uma análi-se jurídica também deve dar conta das tendências e dos desafios para o reconhecimento e para a imple-mentação destes direitos, servindo de material importante para uma compreensão mais adequada da realidade, a ser incorporado por pesquisadores e ativistas. Na medi-da em que o direito – seja na sua formulação oficial, seja na aplica-ção que os órgãos jurídicos fazem dele – também é um dado da rea-lidade social, sua compreensão e consideração são necessárias para a reflexão e para a prática. Eis a rele-vância de uma abordagem jurídica dos direitos sexuais de gays, lésbi-cas e transgêneros.

Para tanto, este trabalho partirá de uma tipologia dos ordenamen-tos jurídicos quanto ao nível de re-pressão ou de proteção jurídica de gays, lésbicas e transgêneros. Feito isto, serão arroladas tendências e desafios presentes no cenário lati-no-americano, objetivando a com-preensão da situação presente e das perspectivas destes direitos.

2. TIPOLOGIA DOS ORDENAMENTOS JURÍDCOS

QUANTO AOS DIREI-

TOS DE GAYS, LÉSBICAS E TRANSGÊNEROS

A relação entre o direito, enten-dido como ordenamento jurídico (isto é, o conjunto de instrumentos normativos estatais vigente num determinado momento em um de-terminado país, englobando atos legislativos e decisões judiciais), e a sexualidade não é novidade. Tra-dicionalmente, o direito estatal foi produzido como instrumento de reforço e de conservação dos pa-drões morais sexuais majoritários e dominantes. Vale dizer, o direito es-tatal atua na confirmação de deter-minadas relações e práticas sexuais hegemônicas. Exemplos disto são a consagração da família nuclear pe-queno-burguesa, as atribuições de direitos e deveres sexuais entre os cônjuges e a criminalizacao de atos homossexuais.

Com a emergência de movimen-tos sociais reivindicando a aceita-ção de práticas e relações divorcia-das deste modelo, levou-se à arena política e, conseqüentemente, ao debate jurídico, a questão dos direi-tos sexuais, especialmente dos di-reitos GLBT. O surgimento destas demandas e o reconhecimento de alguns direitos, ainda que de modo lento e não uniforme, inaugurou uma nova modalidade na relação entre os ordenamentos jurídicos e a sexualidade. Historicamente, con-centrando-nos na modernidade, pode-se perceber o irromper des-

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31tes direitos a partir dos anos 80 do século XX, tomando-se por marco o julgamento, pela Corte Européia de Direitos Humanos, do primeiro caso em que uma lei criminalizado-ra da sodomia foi afastada por vio-lar um direito humano básico, qual seja, a privacidade.

Desde então, é possível falar na possibilidade de níveis diversos de proteção de direitos sexuais de gays, lésbicas e transgêneros, donde a proposição da seguinte tipologia dos ordenamentos jurídicos:

a) ordenamentos jurídicos com grau mínimo de proteção: são aqueles onde foram revogadas as proibições tradicionais de práticas sexuais divorciadas dos padrões hegemônicos, especialmente veicu-ladas pelo direito penal;

b) ordenamentos jurídicos com grau intermediário de proteção: são aqueles em que, além de não criminalizarem tais práticas sexu-ais, instituem medidas sancionado-ras de atos discriminatórios, como, principalmente, a proibição de dis-criminação por orientação sexual;

c) ordenamentos jurídicos com grau máximo de proteção: são aqueles onde, além da descrimina-lização das práticas referidas e do sancionamento de atos discrimi-natórios, são instituídas medidas positivas de proteção e de reconhe-cimento de práticas e identidades sexuais de gays, lésbicas e transgê-neros.

No contexto latino-americano, a aplicação desta tipologia dos or-denamentos jurídicos quanto ao grau de proteção dos direitos GLBT permite avaliar a situação destes direitos na região. O objetivo des-te trabalho não é mapear a situa-ção de cada país individualmente (tarefa para a qual seria necessário o esforço conjunto de muitos pes-quisadores e a coleta minuciosa de

dados, sem esquecer do dinamismo que caracteriza a produção legisla-tiva e judicial em uma área tão ex-tensa). Ele busca salientar alguns elementos marcantes neste cenário, possibilitando uma análise das ten-dências e desafios destes direitos na América Latina.

Uma visão panorâmica da situ-ação latino-americana, conside-rando os dados disponíveis, revela que: 1) não há na América Latina ordenamento jurídico que crimina-lize práticas sexuais homossexuais, exceto em contextos específicos, como, por exemplo, em estabeleci-mentos militares; 2) os ordenamen-tos jurídicos latino-americanos, em sua maioria, sancionam atos de dis-criminação fundados em expres-sões da sexualidade (Argentina, Brasil, Colômbia, Equador, México e Peru, por exemplo); 3) poucos ordenamentos jurídicos instituem medidas positivas de proteção e de reconhecimento destes direitos se-xuais (Argentina e Brasil).

De fato, quanto à divisão entre ordenamentos repressivos e prote-tivos (estes em seus diversos graus), apenas o direito cubano registra expressamente a punição de ma-nifestações públicas homossexuais (Código Penal, art. 303). Mesmo que ordenamentos jurídicos como o chileno não possam ser conside-rados dentre os repressivos (uma vez que revogaram legislação cri-minalizadora de relações entre pessoas do mesmo sexo), deve-se enfatizar que em alguns casos tais relações deixaram de ser crime há bem pouco tempo (no caso chileno, em 1998).

Já na esfera dos ordenamen-tos protetivos, Brasil, Argentina e Colômbia são exemplos de países onde não há somente proibição de discriminação, como o reconhe-cimento institucional de uniões entre pessoas do mesmo sexo (no

Brasil e na Colômbia, em virtude de decisões judiciais; na Argentina, existe legislação expressa). O grau de proteção varia de país a país. O Brasil registra grau elevado de proteção institucional, pelo menos formalmente, desde a edição do II Plano Nacional de Direitos Huma-nos e do Programa Governamental Brasil sem Homofobia, isto sem se esquecer do apoio governamental (especialmente por intermédio do Ministério da Saúde) a campanhas de visibilidade e de atendimento específico a grupos gays e lésbicos.

No quadro dos ordenamentos protetivos, o Equador merece des-taque em virtude de previsão cons-titucional expressa proibindo a dis-criminação por orientação sexual, redigida nos seguintes termos:

“A igualdade perante a lei. To-das as pessoas serão consideradas iguais e gozarão dos mesmos di-reitos, liberdades e oportunidades, sem discriminação em razão de nascimento, idade, sexo, etnia, cor, origem social, idioma, religião, fi-liação política, posição econômica, orientação sexual, estado de saúde, incapacidade ou diferença de qual-quer outra índole.”

A pesquisa mais panorâmica da situação dos direitos GLBT (isto é, sem a análise detida e minuciosa de cada ordenamento jurídico nacio-nal, tarefa a que não se dedica este trabalho) na região revela, ainda, na prática, a ausência de uma re-gulamentação fundada na perspec-tiva dos direitos humanos quando se cuida da situação específica da transexualidade ou de travestis. Nestas frentes, aliás, costumam prevalecer as abordagens biomédi-cas, especialmente no que respeita à transexualidade. Quanto ao trata-mento dirigido a travestis, mesmo nos países onde tal condição não é considerada ilícita, predomina uma abordagem repressiva, a partir da

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32criminalização de atos considera-dos obscenos na via pública e da repressão à prostituição.

Sucintamente indicados estes ele-mentos, pode-se avançar para um balanço das tendências e desafios dos direitos GLBT na América La-tina.

3. TENDÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO DOS

DIREITOS GLBT

Da análise do surgimento e do de-senvolvimento dos direitos GLBT na América Latina, podem ser extraídas algumas tendências. Tendo presente o quadro acima esboçado, serão des-tacadas: (1) o reconhecimento destes direitos num contexto de redemocra-tização da região; (2) o impacto da epidemia de HIV/AIDS; (3) a arti-culação destes direitos com preocu-pações de saúde pública e (4) a afir-mação destes direitos em demandas relacionadas a direitos sociais.

Com efeito, desde meados da dé-cada de 80 do século XX, a região latino-americana experimentou um processo de redemocratização, fruto do esgotamento das várias ditaduras militares e das mudanças relaciona-das à ordem internacional decorren-tes do desmantelamento do poderio soviético e do conseqüente desten-sionamento das relações leste-oeste. Neste contexto mais amplo, surgiram espaços para o fortalecimento da so-ciedade civil e de diversos movimen-tos sociais. Dentre estes, destacam-se os movimentos feminista e homos-sexual, atores sociais decisivos para a reivindicações dos direitos GLBT diante do Estado.

Mais especificamente, esta dinâ-mica atingiu os Poderes legislativo e judiciário, não só pela construção paulatina de alianças e diálogo com forças parlamentares progressitas, como também pelo fortalecimento dos órgãos judiciários. A estes, insu-flados pelo constitucionalismo eu-

ropeu continental do pós-2ª Guerra Mundial, abriu-se a possibilidade da proteção de direitos humanos, consa-grados tanto na ordem internacional quanto nas Constituições de cada país.

Para o desenvolvimento dos direi-tos GLBT na América Latina, este foi um fator importante. De fato, tribu-nais constitucionais de vários países, como Brasil, Colômbia e Peru profe-riram decisões sancionando discri-minações por orientação sexual.

Outro fator importante que se ob-serva no desenvolvimento destes direitos sexuais é o seu incremento a partir da eclosão da epidemia de HIV/AIDS. De fato, ainda que a epi-demia inicialmente tenha sido fator de inegável estigmatização de homos-sexuais e de travestis, as respostas que foram se construindo para o comba-te da epidemia proporcionaram, ao longo do tempo, uma maior reflexão e articulação entre tais grupos. Esta circunstância fez avançar a consciên-cia acerca das discriminações e exige a reflexão sobre a relação entre direi-to e sexualidade, apontando a neces-sidade da adoção de um paradigma de direitos humanos nesta área.

Nesta linha, pode-se enumerar outra tendência que se revelou bas-tante presente no desenvolvimento dos direitos GLBT: sua relação com questões de acesso aos serviços de saúde. Países que contam com servi-ços públicos de saúde, especialmente naqueles onde se pretende aumentar o acesso da população a estes servi-ços, enfrentam múltiplas demandas por tais serviços. Esta circunstância aponta para a necessidade de pres-tar serviços de saúde que levem em consideração situações específicas de grupos que reivindicam direitos se-xuais, tais como as travestis.

Ao encerrar esta enumeração de algumas tendências presentes no desenvolvimento dos direitos GLBT na região, é preciso atentar para uma

especificidade latino-americana, pelo menos quando comparada a evolu-ção desta questão aqui com a expe-rimentada na Europa e América do Norte.

Do ponto de vista jurídico, na Eu-ropa e na América do Norte o reco-nhecimento de direitos sexuais GLBT iniciou-se e continua a desenvolver--se a partir de demandas invocando o direito à privacidade e o direito a não sofrer discriminação. Trata--se dos chamados “direitos negati-vos”, vale dizer, demandas por não--intromissão estatal ou de terceiros nas escolhas e práticas individuais. A história jurisprudencial na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, sempre enfatizou a privacidade como cláusula constitucional principal para a afirmação de direitos de indivíduos e de grupos GLBT.

Enquanto isto, a experiência latino--americana tem revelado outras al-ternativas. Demandas por direitos sociais têm impulsionado a discussão sobre direitos GLBT. Exemplo disto é a reivindicação por direitos previ-denciários e de inclusão em planos de saúde, pioneira e melhor sucedida estratégia jurídica de reconhecimen-to destes direitos no Brasil.

4. DESAFIOS AO DESENVOLVIMENTO DOS DI-

REITOS GLBT

A história, ainda que recente, do desenvolvimento dos direitos GLBT na América Latina registra vários de-safios. Dentre estes, destacam-se: (1) a dificuldade do desenvolvimento de um campo específico relacionado aos direitos sexuais, sem necessariamen-te estarem associados à idéia de direi-tos reprodutivos; (2) a necessidade da fundamentação dos direitos sexuais a partir do paradigma dos direitos hu-manos, ao invés da afirmação do cul-tivo da saúde sexual; (3) as reações religiosas conservadoras diante do reconhecimento de direitos sexuais

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33GLBT e a dificuldade da afirmação do Estado laico; (4) a persistência de realidades culturais incompatíveis com o desenvolvimento dos direitos sexuais GLBT e (5) as condições só-cio-econômicas de pobreza que atin-gem grandes contingentes na região.

Conforme a história dos instru-mentos internacionais de Direitos Humanos demonstra, os direitos se-xuais não foram concebidos original-mente de modo autônomo aos direi-tos reprodutivos. Ao contrario, eles foram entendidos como uma espécie de complemento da idéia de direitos reprodutivos. De fato, a preocupação principal que historicamente orien-tou a expressão “direitos reproduti-vos e sexuais” foi a denúncia da injus-tiça presente nas relações de gênero e à negação de autonomia reprodutiva. Não há dúvida da importância da luta contra a injustiça reprodutiva e entre os gêneros.

Todavia, como os direitos GLBT deixam muito claro, o âmbito da se-xualidade vai mais além destas esfe-ras. Ele abrange liberdade de expres-são sexual, questões gays, lésbicas, transexuais e travestis. Ademais, a afirmação de direitos sexuais alcança, inclusive, práticas sexuais não asso-ciadas a identidades, sendo o sado-masoquismo um bom exemplo desta realidade.

Outro desafio importante para a afirmação dos direitos sexuais GLBT é a tendência para a justificação bio-médica destes direitos. Para aquilatar este desafio é necessário atentar para os fundamentos que orientam a rei-vindicação destes direitos. Se é ver-dade que preocupações vinculadas à saúde sexual são importantes para a efetivação dos direitos sexuais, tam-bém o é que o reconhecimento de direitos sexuais se radica numa pers-pectiva mais larga que a preservação e o cultivo da saúde. Direitos sexuais em geral, e especialmente direitos sexuais GLBT, são informados por

uma perspectiva de direitos huma-nos, perspectiva esta que pode entrar em conflito com visões biomédicas mais restritas. Uma arena onde este conflito se revela particularmente é a situação das travestis.

Um aspecto importantíssimo des-te mesmo desafio, em particular, é a resistência de muitos à aceitação mesma da idéia de direitos humanos em nossos países. Para uma parte considerável de nossa população, a idéia mesma de direitos humanos é percebida de modo distorcido e pre-conceituoso, como se fossem direitos destinados somente a proteção de criminosos. Esta mentalidade, fruto de uma longa história de autorita-rismo, impregna muitas instituições e grupos, dentro e fora do Estado, tornando ainda mais difícil fazer avançar demandas por direitos sexu-ais GLBT fundadas em princípios de direitos humanos.

A emergência de movimentos re-ligiosos fundamentalistas é outro desafio de grande monta para o de-senvolvimento dos direitos GLBT na região. E isto não só entre muitas das igrejas denominados neo-pentecos-talistas. Inclusive no seio da Igreja Católica, mais e mais ganham corpo e prevalecem correntes conservado-ras em matéria de conduta sexual. Reunidos, estes grupos reagem ao fortalecimento do movimento GLBT, propondo, por exemplo, legislação visando à “conversão” de homosse-xuais em heterossexuais, inclusive através do sistema público de saúde.

Nesta linha, a dificuldade de afir-mação da laicidade do Estado nas jovens e imaturas democracias lati-no-americanas é fator crucial, na me-dida em que nossas sociedades carre-gam a experiência histórica de uma forte associação institucional entre a Igreja Católica e o poder civil ao lon-go de séculos.

A persistência de representações de

inferioridade feminina e de subordi-nação entre os gêneros, expressa em formulações culturais como o ‘ma-chismo’, é outro desafio, de ordem cultural, ao desenvolvimento dos di-reitos sexuais GLBT na América Lati-na. Cuida-se de um contexto cultural divorciado dos princípios de direitos humanos, chegando aos exemplos extremos de violência como assassi-natos de gays e travestis e estupro de mulheres em larga escala.

Por fim, as precárias condições só-cio-econômicas em que vive grande parte da população latino-americana são um desafio maiúsculo à imple-mentação de direitos sexuais GLBT. A pobreza e a miséria são barreiras efetivas para o acesso a vários benefí-cios, tais como conhecimento, infor-mação e serviços relacionados à se-xualidade. Elas limitam a percepção dos riscos atinentes à prática sexual desprotegida. Elas são um obstáculo à educação formal, tendo conseqüên-cias na constituição de uma vida so-cial livre de certos preconceitos.

5. CONCLUSÃO

Considerandos os elementos noti-ciados ao longo desta reflexão, espe-cialmente pelo exame das principais tendências e desafios ao desenvolvi-mento dos direitos sexuais na Amé-rica Latina, pode-se chegar a uma balanço positivo e ao mesmo tempo preocupante.

Se é verdade que nos últimos anos os direitos de gays, lésbicas e transgê-neros passam a merecer mais aten-ção institucional e, inclusive, obter conquistas legislativas e judiciais em vários momentos, também o é que os fatores que os desafiam deixam incerta sua afirmação e consolidação. Ademais, se isto se aplica aos países onde estes direitos sexuais já tive-ram algum grau de reconhecimento, quanto mais àqueles onde tais direi-tos praticamente ainda não foram conquistados.

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o tribunal popular da tErra

“Por onde passei, plantei a cerca farpada,plantei a queimada.

Por onde passei, plantei a morte matada.Por onde passei, matei a tribo calada,

a roça suada,a terra esperada...

Por onde passei, tendo tudo em lei, eu plantei o nada.”

Pedro Casaldáliga

Ao longo desses dois anos, o Tribunal Popular, vem se conso-lidando como importante espaço de articulação dos diversos grupos que lutam contra a perversa lógica opressora do capital que tem crimi-nalizado, encarcerado e extermi-nado considerável contingente da classe trabalhadora empobrecida.

Para esse ano (2011), estamos or-ganizando o Tribunal Popular da Terra, para discutir a situação das populações no campo e na cidade, na perspectiva de discutir terra e territorialidade, quando discutire-mos as opressões que aumentaram no campo em decorrência do neo-desenvolvimentismo , que tem nas obras do PAC o carro chefe, o que tem provocado enorme opressão e deslocamento dos diversos grupos que tem sua vida baseada no campo (Indígenas, Quilombolas, Caiçaras , Ribeirinhos, Lutadores pela Re-forma Agrária) e ainda, pescadores.

E para debater também, em fun-ção dos megaeventos (Copa e Olim-píadas), que tem como propósito a reorganização das cidades para que elas se adéqüem aos interesses eco-nômicos em detrimento dos inte-resses da população de forma geral, as ações que removerão grandes contingentes de trabalhadores mo-radores em áreas de interesses prin-cipalmente do setor imobiliário.

A proposta do Tribunal da Ter-ra, tem como norte, criar espaços

de identificação das violações que ocorrem nesse último período, proporcionar o reconhecimento das violações ocorridas nos grupos específicos, estimulando o rompi-mento do olhar fragmentado sobre a opressão, criando uma rede de so-lidariedade das diversas lutas exis-tentes contra as opressões.

Para iniciar esse processo, esta-mos sugerindo em princípio a dis-cussão em quatro eixos temáticos, que são:

1 – Povos da Terra X Agronegócio

“Malditas sejamtodas as cercas!

Malditas todas aspropriedades privadas

que nos privamde viver e amar!”

Do poema Terra Nossa, Liberdade,

Dom Pedro Casaldáliga,

O Agronegócio apresenta-se como um setor de atividade eco-nômica que se diferencia de ou-tros setores pela terra apresentar-se como o fator de produção essencial, porém, segue o mesmo script dos demais setores de atividade econô-mica capitalista, pois possui a con-tradição entre a produção social e a acumulação privada.

O resultado de seu movimento pode ser resumido em alguns fenô-menos:

• Concentraçãoda riquezasocial produzida no campo e a con-centração da terra;

•Asnovastecnologiasdega-nhos de produtividade e eficiência possuírem um forte impacto am-biental[1] , além de criar uma forte dependência das zonas do mundo produtoras agrícolas com baixa composição tecnológica em relação aos centros do mundo que inovam com tecnologias de insumos quí-micos (transgênicos, fertilizantes, corretivos etc.), máquinas e equi-pamentos agrícolas;

• Outro fatorquedeve serconsiderado pelo alto consumo de agroquímicos são as contamina-ções de águas subterrâneas ou su-perficiais, condenando a biodiver-sidade das regiões afetadas;

• Reduçãoda intensidadede trabalho no campo, o resultado desta equação é o aumento nos ní-veis de desemprego nas regiões de produção do agronegócio co-exis-tindo com práticas criminosas de trabalho escravo;

•Aconcorrênciainternacio-nal e a pressão do mercado exter-no obrigam as empresas agrícolas a ocuparem novas áreas de acumula-ção de capital nas regiões agrícolas, atingindo biomas que pertencem a comunidades de povos da terra ou biomas que são áreas de reser-va ambiental (impacto social e am-

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35biental).

Deve-se lembrar que o agronegó-cio também possui diversos impac-tos nas zonas urbanas: por meio de pressão demográfica, por pressão inflacionária na cesta de consumo de alimentos ou por padrão fitos-sanitário do alimento consumido nos centros urbanos. Todavia, as primeiras vítimas do movimento do agronegócio são os povos da terra: os trabalhadores rurais, os povos indígenas (povos originá-rios), os quilombolas ou moradores da floresta. Em suma, uma gama di-versificada de povos que vivem da terra são atingidos pelo movimento do capital nas regiões de produção agrícola ou de extração de produ-tos da terra. O movimento do ca-pital possui um funesto impacto ambiental com conseqüências glo-bais: reservas florestais devastadas para pasto ou produção de soja; o mercado de carbono, por exemplo, produz verdadeiros desertos verdes de eucalipto (alterando de manei-ra predatória os recursos hídricos da região de plantio); o padrão de consumo energético determinando construções de plantas-de-produ-ção de energia em reservas ambien-tais (hidrelétricas, térmicas etc). O Tribunal Popular da Terra deve trabalhar a contradição entre povos da terra x agronegócio, interesses inconciliáveis cujo futuro social e ambiental do planeta terra está em jogo.

2 – Acumulação de Capital e a Funcionalidade da Cidade

“A existência da cidade im-plica imediatamente a necessi-dade da administração, da po-lícia, dos impostos, etc., numa palavra, a necessidade da orga-nização comunitária, partindo da política em geral. É aí que aparece em primeiro lugar a divisão da população em duas grandes classes, divisão essa que

repousa diretamente na divisão do trabalho e nos instrumentos de produção. A cidade é o resul-tado da concentração da popu-lação, dos instrumentos de pro-dução, do capital, dos prazeres e das necessidades”

[A Ideologia Alemã – Marx K. e Engels F. p.62]

A formação da cidade apresenta--se como o início de uma existên-cia do Capital independente da propriedade fundiária, tendo por base um tripé: a propriedade, o trabalho e as trocas. As cidades foram formadas por “verdadeiras associações” motivadas pela defesa dos interesses imediatos na pro-dução e na acumulação de capital, um complexo voltado para a defesa da propriedade, da ampliação dos meios de produção e da ampliação da produção e apropriação privada da riqueza social produzida.

Deve-se observar que entre 1940 e 1980 a população brasileira pas-sou de predominantemente rural para predominantemente urbana, ou seja, repensar o desenho agrá-rio brasileiro passa por modificar o modelo político e econômico brasi-leiro, mas a questão urbana é a ga-rantia de mudança direta na vida de milhões de homens e mulheres his-toricamente esquecidos. Este mo-vimento sócio-territorial (um dos mais rápidos e intensos do mundo) é balizado por um desenvolvimen-to urbano que priva a parcela pobre da cidade a ter acesso aos aparelhos da cidade. As periferias das cidades do Brasil são castigadas pelas en-chentes, pelo precário fornecimen-to de energia elétrica, pelo escasso acesso ao saneamento básico, água, esgoto etc.

Além de excludente, este mode-lo é extremamente concentrador, e concentra economicamente e de-mograficamente:

•Observa-se,porexemplo,que 50,1% do Produto Interno Bru-to (PIB) do Brasil está concentrado em 1,2% das cidades do Brasil. Ou seja, 66 municípios, de 5.564 muni-cípios do Brasil, segundo dados do IBGE, para o ano de 2007;

•Enquantoqueaproximada-mente 50% da população do Brasil está localizada em apenas 190 mu-nicípios, ou seja, apenas 3,4% das cidades do Brasil concentram me-tade da população do Brasil;

As qualidades urbanas estão res-tritas as “áreas de mercado”, aos lo-cais de negócio e consumo de uma minoria. Nota-se que estas “áreas de mercado” são regulamentadas por um vasto e complexo sistema de normas, de leis e contratos, e a condição sine qua non para ingres-sar na “Disneylândia” da cidade é a propriedade escriturada e registra-da.

Algumas questões fortalecem esse sistema perverso de cidade e que devem ser consideradas em uma administração que aponte para a necessidade de superar os marcos da forma social do valor que se va-loriza:

•Ademarcaçãoimobiliária(sistema de legislação urbanística ou ambiental), a constituição de uma nova demarcação que esta-beleça o forte compromisso com a ocupação do solo de maneira am-bientalmente sustentável e social-mente justo.

• Asuperaçãodeumsiste-ma de créditos burocráticos e fora da realidade da população pobre da cidade.

Os assentamentos humanos pre-cários, ou as favelas, é algo presente em todas as regiões do Brasil, nor-malmente estas regiões possuem marcas semelhantes de norte a sul. Entre estas pode-se destacar:

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361 – As famílias que vivem nestas

regiões possuem um salário baixo e insuficiente para cobrir os custos de moradia;

2 – Falta de recurso técnico e ausência do poder estatal para garantir condições mínimas de moradia, e quando o Estado não é ausente os recursos são escas-sos, mas a repressão e a violência institucional contra a população pobre tornam-se a marca de pre-sença do poder estatal;

3 – O espaço ocupado é terra re-jeitada pela legislação ambiental e urbanística para o mercado imobi-liário;

Assim, inicia-se a produção da cidade fora dos marcos legais da cidade, criando uma cidade regu-lar e uma cidade irregular, a mais brutal reprodução da desigualdade na construção da cidade. A contra-dição capital x trabalho, faz o seu registro na construção da forma cidade. Da divisão social do traba-lho nascem as graves desigualda-des regionais: econômicas e demo-gráficas.

Como se não bastasse os dese-quilíbrios regionais, existem fortes contradições internas nos gran-des centros urbanos concentrado-res de contingentes populacionais e de riqueza. A concentração de oportunidades em um fragmen-to da cidade, é por exemplo, uma grande contradição, a periferia da cidade está cada vez mais distante das oportunidades. Esta forma de contradição interna, entre centro e periferia, impõe também uma lógi-ca ambiental predatória. Seja para o deslocamento do contingente populacional ou pela forma de ocu-pação do solo. O Tribunal Popular da Terra deverá debater a terra e a territorialidade no espaço urbano, o papel da especulação imobiliá-ria, zonas industriais ou zonas da

nova economia determinando um desenho urbanístico que seja fun-cional com o padrão de acumula-ção de capital dominante em uma determinada região geográfica, esse modelo condena um vasto contingente populacional as mais diversas intempéries: de desastres ambientais, a falta de serviços bá-sicos ou a violência em sua forma mais clara.

3 – Disputa da Terra e da Territorialidade

“Na luta de classes, todas as armas são

boas: pedras, noite e poemas.”

(Leminski)

A definição ocidental de Estado democrático é aquele em que exista o exercício pleno de eleições livres e diretas, a liberdade de imprensa e o pleno Estado de direito. Deve-se exercitar a transcendência e supe-rar a forma democracia apenas no campo jurídico ou político institu-cional, passando a pensar no Esta-do democrático também no campo do econômico.

O acesso a terra, às riquezas natu-rais, aos bens e serviços produzidos por um país deve entrar na equação que “mede” o nível de democracia e de respeito aos direitos huma-nos. Uma democracia sólida, ine-vitavelmente, possuirá uma riqueza democratizada. Deve-se inventar uma equação que agregue questões como o acesso ao poder político e, ao mesmo tempo, dê conta da re-lação da riqueza produzida, de sua distribuição e do acesso a terra e as territorialidades do espaço urbano.

A divisão social do trabalho pro-duziu um homem cindido entre possuidores de capital e possui-dores de sua força de trabalho. O Estado “democrático”, sobre os princípios liberais, surgiu como a

expressão de interesses inconciliá-veis entre os possuidores de capi-tal – senhores do lucro – e aqueles que recebem o salário, trabalhado-res livres do meio de produção. Os núcleos dominantes tentam amor-tecer este conflito distributivo, esta incessante luta de classes por meio de mecanismos jurídicos da demo-cracia liberal. Entretanto o Estado “democrático” transformou a von-tade geral, apontada por Rousseau, em vontade específica do capital.

O Brasil é a única democracia moderna que não passou por um processo de reestruturação fundiá-ria, mais de 500 anos de profunda contradição no desenho da estru-tura de propriedade no Brasil: o alto desenvolvimento tecnológico do agronegócio convivendo com a pobreza do trabalhador do cam-po; e regiões da cidade portadora de todas as virtudes do espaço ur-bano coexistindo com bolsões de pobreza (zonas de não consumo de mercadoria). Isto sem considerar-mos o papel antinacional de nosso agronegócio, pois transforma nossa economia em uma frágil refém da dinâmica de acumulação do resto do mundo.

A disputa da terra e da territoria-lidade é a disputa de concepção de modelo econômico e de modelo de cidade, são homens e mulheres dis-putando a forma de ser do campo e da cidade. Estas lutas apresentam--se com ocupações de sem-terras e sem-tetos; a partir da resistência aos processos elitistas e higienis-tas de “revitalização de centro”; as resistências indígenas, as resistên-cias quilombolas e as diversas re-sistências nos espaços urbanos. O Tribunal Popular da Terra debaterá principalmente o processo de cri-minalização dos atores que lutam pela terra e pelas territorialidades, por espaços amplos, plurais e de-mocráticos no campo ou na cidade.

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374 – Terceiro Setor e as armadi-

lhas institucionais na luta pela terra e a territorialidade

“O lado problemático da estrutura institucio-nal prevalecente revela--se com eloqüência em expressões como ‘cons-ciência sindical’, ‘buro-cracia partidária’ e ‘cre-tinismo parlamentar’, para citar apenas um nome em cada categoria.”[MÉSZÁROS, István. Atualidade Histórica da Ofensiva Socialista. P65]

Debater o terceiro setor e as arma-dilhas institucionais tornou-se um desafio para os setores que organi-zam as classes subalternas do cam-po e da cidade de maneira autôno-ma e classista. Nota-se que tanto as ONGs (Organizações Não-Gover-namentais) quanto às armadilhas institucionais são empecilhos que travam ou amortecem a luta pela terra e pela territorialidade. Não se empregou as terminologias terceiro setor e armadilhas institucionais de maneira casual, mas para expressar as duas possíveis faces do Estado

capitalista para desarticular a orga-nização das classes subalternas:

• A lógica do terceiro setor, nomelhor cenário, ganha força em um momento histórico marcado pelo desmonte do pacto keyensiano. Os defensores do modelo neoliberal defendem um Estado mínimo com pouca ou nenhuma responsabilida-de social, neste sentido o terceiro setor surgiu como agente que ocu-pará o vazio deixado pelo Estado, harmonizando e amortecendo as contradições do Estado capitalista. No pior cenário, o terceiro setor promove biopirataria e biogrilagem (caso registrado, por exemplo, com ONGs que trabalham para trans-nacionais na região da Amazônia e garantem patentes de produtos amazônicos na OMC (Organização Mundial do Comércio)), é espaço de lavagem de dinheiro ou de ga-rantia de isenção fiscal;

• Poroutrolado,asarmadilhasinstitucionais derivam-se em duas armadilhas possíveis: 1) São as tenta-tivas de resignificar um possível pro-jeto de Estado de bem-estar social, políticas sociais do Estado capitalista atenuando a pobreza e criando ilu-sões nas classes subalternas; 2) Isso

sem considerarmos as armadilhas da disputa do Parlamento. Meszáros lembra que o Parlamento tem sido alvo de uma crítica muito justifica-da, e até hoje não há teoria socialista satisfatória sobre o que fazer com ele após a conquista do poder (...). Ape-sar de os clássicos do marxismo te-rem lutado contra a ‘indiferença po-lítica’ e a defesa igualmente sectária do ‘boicote ao parlamento’, eles não conseguiram imaginar um ‘estágio intermediário’. O caso brasileiro, em especial, demonstra o custo organi-zativo que a ilusão parlamentar tem causado nas organizações das clas-ses subalternas.

O Tribunal Popular da Terra de-verá repensar o atraso que terceiro setor e as armadilhas institucionais têm causado na organização autô-noma e classista das classes subal-ternas. Neste sentido, o imperativo do Tribunal Popular da Terra é as-sumir a batalha de idéias, denun-ciar a neofilantropia oportunista das ONGs, a falácia corporativa da “responsabilidade social”, as ver-sões rebaixadas de políticas uni-versalistas promovidas pelo Estado com fim eleitoreiro e todo tipo de submissão ao capital, organizado fora ou dentro dos marcos estatais.

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SE oS tubarõES foSSEM hoMEnS

“’Se os tubarões fossem homens’, perguntou ao Sr. K. a filha da sua senhoria, ‘eles seriam mais amigáveis com os peixinhos? ’ ‘ Certamente’, disse ele. ‘Se os tubarões fossem homens, construiriam no mar grande gaiolas para os peixes pequenos, com todo tipo de alimento, tanto animal como vegetal. Cuidariam para que as gaiolas tivessem sempre água fresca, e tomariam toda espécie de medidas sanitárias. Se, por exem-plo, um peixinho ferisse a barbatana, então lhe fariam imediatamente um curativo, para que ele não lhes morresse antes do tempo.

Para que os peixinhos não ficassem melancólicos, haveria grandes festas aquáticas de vez em quando, pois peixinhos alegres têm melhor sabor do que os tristes. Naturalmente, haveria também escolas nas gaiolas. Nessas escolas os peixinhos aprenderiam como nadar para as goelas dos tubarões. Precisariam saber geo-grafia, por exemplo, para localizar os grandes tubarões que vagueiam descansadamente pelo mar.

O mais importante seria, naturalmente, a formação moral dos peixinhos. Eles seriam informados de que nada existe de mais sublime do que um peixinho que se sacrifica contente, e de que todos deveriam crer nos tubarões, sobretudo quando dissessem que cuidam da felicidade futura. Os peixinhos saberiam que esse futuro só estaria assegurado se estudassem docilmente. Acima de tudo, os peixinhos deveriam evitar toda inclinação baixa, materialista, egoísta e marxista, e avisar imediatamente os tubarões, se dentre eles mostrasse tais tendências.

Se os tubarões fossem homens, naturalmente fariam guerras entre si, para conquistar gaiolas e peixinhos estrangeiros. Nessas guerras eles fariam lutar os peixinhos, e lhes ensinariam que há uma enorme dife-rença entre eles e os peixinhos dos outros tubarões. Os peixinhos, eles iriam proclamar, são notoriamente mudos, mas silenciam em línguas diferentes, e por isso não podem se entender. Cada peixinho que na guerra matassem alguns outros, inimigos, que silenciam em outra língua, seria condecorado com uma medalha de sargaço e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem homens, naturalmente haveria também arte entre eles. Haveria belos quadros, re-presentando os dentes dos tubarões em cores soberbas, e suas goelas como jardins onde se brinca delicio-samente. Os teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos nadando com entusiasmo para as goelas dos tubarões, e a música seria tão bela, que aos seus acordes todos os peixinhos, com a orquestra na frente, sonhando, embalados nos pensamentos mais doces, se precipitariam nas gargantas dos tubarões. Também não faltaria uma religião, se os tubarões fossem homens. Ela ensinaria que a verdadeira vida dos peixinhos começa apenas na barriga dos tubarões.

Além disso, se os tubarões fossem homens também acabaria a idéia de que os peixinhos são iguais entre si. Alguns deles se tornariam funcionários e seriam colocados acima dos outros. Aqueles ligeiramente maiores poderiam inclusive comer os menores. Isto seria agradável para os tubarões, pois teriam, com maior Freqüência, bocados maiores para comer. E os peixinhos maiores, detentores de cargos, cuidariam da ordem entre os peixinhos, tornando-se professores, oficiais, construtores de gaiolas, etc.’ Em suma, haveria uma civilização no mar, se os tubarões fossem homens. ’ ”

* BRECHT, Bertolt. Histórias do Sr. Keuner. São Paulo, Brasiliense, 1982. P. 54-6.