CADERNO DO PROFESSOR Contribuições para o trabalho …

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SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE INDAIATUBA CADERNO DO PROFESSOR Contribuições para o trabalho pedagógico EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL TEXTO EM VERSÃO PRELIMINAR PROIBIDA A REPRODUÇÃO Indaiatuba - SP 2009

Transcript of CADERNO DO PROFESSOR Contribuições para o trabalho …

SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO DE INDAIATUBA

CADERNO DO PROFESSOR

Contribuições para o trabalho pedagógico

EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL

TEXTO EM VERSÃO PRELIMINAR

PROIBIDA A REPRODUÇÃO

Indaiatuba - SP2009

Prefeitura Municipal de Indaiatuba Secretaria Municipal de Educação

Reinaldo Nogueira Lopes Cruz

Prefeito Municipal

Profª. Doutora Jane Shirley Escodro Ferretti

Secretário Municipal de Educação

Organizadores:

Eliete Rodrigues

Elizanita Cristina Pimentel

Jacimara Martins Siqueira de Miranda

Kelli Regina Sander

Maria Josestela Rocha Alencar

Tânia Regina Cataldi Milan

© .................... 2009.

Ficha Catalográfica

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CADERNO DO PROFESSOR

Contribuições para o trabalho pedagógico

EDUCAÇÃO INFANTIL E ENSINO FUNDAMENTAL

Indaiatuba - SP2009

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O que será que acontece com a curiosidade e a desenvoltura das crianças com o passar do tempo? Por que razão são tão poucas as que continuam a ter suas ideias brilhantes?Talvez porque, a partir de uma certa altura, os adultos dão uma importância cada vez menor às descobertas intelectuais que elas fazem. Ou são minimizadas por serem consideradas banais, ou são reprovadas por serem consideradas sem propósito – descobrir o que se pode sentir ao usar os sapatos trocados nos pés, ou fazer perguntas embaraçosas do ponto de vista social, ou desmontar uma coisa para ver como é por dentro... A consequência disso é que as crianças não são encorajadas a explorar suas ideias e assim dizemos, em atos, que não têm valor, são tolas, sem relevância, ruins.O desafio pedagógico (tanto quanto isso é possível...) é ‘revelar’ o mundo às crianças. Familiarizá-las com fenômenos biológicos e físicos e químicos e tecnológicos e sociais e antropológicos e de todo tipo – desde larvas, nuvens, plantas, misturas, engenhocas, luz, até as mudanças no tempo e no espaço, o dinheiro que compra as coisas, a igualdade e diferença entre as pessoas... Tornar o conhecimento das ‘coisas do mundo’ interessante e acessível. Interessar as crianças, deixar que sejam elas a questionar e a responder inicialmente às suas próprias questões, deixá-las perceber que as suas ideias têm importância! Incentivar as crianças a levarem adiante as próprias ideias!

Rosaura Soligo Texto Adaptado de Cómo Tener Ideas Maravillosas,

Eleanor Duckworth. Madrid: Visor, 1987

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S U M Á R I O

Apresentação

IntroduçãoA importância do conhecimento didático para a docência

Breves considerações sobre o novo período escolar que hoje temos

Parte 1 – A escola hojeO papel da educação escolar na infância

Propósitos da escola nestes tempos em que vivemos

Parte 2 – Alguns pontos de partidaDo que falamos quando falamos em objetivos, conteúdos e atividades?

Planejar para ensinar

Por trás do que se faz

◦ Formas de organizar os conteúdos escolares

Parte 3 - SubsídiosSobre a aprendizagem inicial da matemática

Sobre a aprendizagem da língua oral e escrita

◦ Atividades permanentes de alfabetização

◦ O Caderno de Leitura – um recurso importante em favor da alfabetização

Sobre os gêneros textuais

Sobre a organização de projetos temáticos

Bibliografia

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Apresentação

Este Caderno compõe a Série ‘Orientações Curriculares’, que reúne e aprofunda conteúdos abordados na Rede Municipal de Indaiatuba nos últimos anos, traz subsídios para o trabalho pedagógico dos professores e está assim organizada, em nove volumes:

1. Caderno do Professor – livro de fundamentação didática destinado a todos os professores, polivalentes e especialistas, composto de uma Introdução com considerações sobre a importância do conhecimento didático para a docência e sobre o novo ano criado no Ensino Fundamental; a Parte 1 e a Parte 2, com os pressupostos nos quais estão ancoradas as propostas curriculares da Educação Infantil e do Ensino Fundamental; e a Parte 3, com textos formativos, de subsídio para ampliar o conhecimento sobre o ensino e a aprendizagem inicial da matemática e da língua escrita, sobre os gêneros textuais e sobre a organização dos conteúdos escolares na forma de projetos.

2. Orientações Curriculares para a Educação Infantil – apresenta subsídios para o trabalho pedagógico com as crianças pequenas, considerações sobre o ensino e a aprendizagem nos diferentes eixos curriculares e um quadro de referências com objetivos, conteúdos e propostas de atividade, bem como sequências didáticas para o trabalho em cada um dos eixos.

3. Orientações Curriculares para o Ciclo I – Volume 1 – apresenta subsídios para a prática pedagógica com as crianças do 1º, 2º e 3º anos do Ensino Fundamental, considerações sobre o ensino e a aprendizagem nas diferentes áreas curriculares trabalhadas pelos professores polivalentes e um quadro de referências com objetivos, conteúdos e propostas de atividade (de ensino e de avaliação).

4. Orientações Curriculares para o Ciclo II – Volume 1 – apresenta subsídios para a prática pedagógica com as crianças do 4º e 5º anos do Ensino Fundamental, considerações sobre o ensino e a aprendizagem nas diferentes áreas curriculares trabalhadas pelos professores polivalentes e um quadro de referências com objetivos, conteúdos e propostas de atividade (de ensino e de avaliação).

5. Orientações Curriculares para o Ciclo I – Volume 2 – apresenta sugestões de sequências de atividade ou projetos em todas as áreas curriculares trabalhadas pelo professores polivalentes no Ciclo I.

6. Orientações Curriculares para o Ciclo II – Volume 2 – apresenta sugestões de sequências de atividade ou projetos em todas as áreas curriculares trabalhadas pelo professores polivalentes no Ciclo II.

7. Orientações Curriculares de Artes Visuais e Música – apresenta subsídios para a prática pedagógica com as crianças de 1º ao 5º ano, considerações sobre o ensino e a aprendizagem em Artes Visuais e Música e um quadro de referências curriculares com objetivos, conteúdos e propostas de atividade, bem como sequências didáticas para o trabalho nessas áreas.

8. Orientações Curriculares de Educação Física – apresenta subsídios para a prática pedagógica com as crianças de 1º ao 5º ano, considerações sobre o ensino e a aprendizagem em Educação Física e um quadro de referências curriculares com objetivos, conteúdos e propostas de atividade, bem como sequências didáticas para o trabalho nessa área.

9. Orientações Curriculares de Filosofia – apresenta subsídios para a prática pedagógica com as crianças de 1º ao 5º ano, considerações sobre o ensino e a aprendizagem em Filosofia e um quadro de referências curriculares com objetivos, conteúdos e propostas de atividade, bem como sequências didáticas para o trabalho nessa área.

No início de 2009, a Série Orientações Curriculares está sendo divulgada ainda em versão preliminar, com reprodução temporariamente proibida, e somente nos próximos meses se converterá em nove livros publicados na Rede Municipal de Ensino de Indaiatuba em versão oficial.

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Em relação a esse material, é importante não perder de vista que, por mais flexível que seja, toda proposta curricular estabelece, ainda que de modo geral, quais são as conquistas esperadas progressivamente a cada ano de escolaridade, tendo em conta o que foi estabelecido nos anos anteriores. Assim, tomar como referência o que preveem os quadros com as orientações curriculares desse material pressupõe avaliar os conhecimentos prévios e o processo de aprendizagem das crianças, tanto porque esse tipo de avaliação é um princípio pedagógico, como porque é condição para ajustar as expectativas, os conteúdos e as atividades especificadas. Considerar o que está indicado em cada quadro, de cada um dos eixos e áreas curriculares, implica considerar também o fato de que as crianças não necessariamente terão os saberes previstos se, nos anos anteriores, o trabalho pedagógico se orientou por outros pressupostos e por outros indicadores.

A iniciativa de, neste momento, apresentar esses subsídios para os professores da Rede Municipal de Ensino de Indaiatuba, como toda iniciativa na área educacional, é decorrente de uma análise da situação atual, dos desafios hoje colocados e de uma concepção sobre o papel do professor na educação escolar. A intenção é contribuir com a importante tarefa de ensinar todas as crianças.

Equipe de Elaboração da Série Orientações Curriculares

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Introdução1

A importância do conhecimento didático para a docência

A perspectiva que orientou a elaboração deste Caderno e das Propostas Curriculares das diferentes áreas de conhecimento é de que o professor é um profissional da educação e, como tal, sua atuação se desdobra em pelo menos três dimensões importantes: ele é, ao mesmo tempo, um profissional da sociedade (um cidadão), da escola (um integrante da instituição escolar) e da docência (um professor de fato).

Para atuar como profissional da sociedade e da escola, o professor precisa contar com uma série de conhecimentos relacionados à dimensão filosófica, social e política da educação, à cultura geral e profissional, às possibilidades de construir um projeto político-pedagógico que responda às necessidades identificadas no contexto específico da escola, entre outros.

E, se tomarmos como pressuposto que propostas pedagógicas de qualidade são aquelas que consideram as possibilidades e necessidades de aprendizagem dos sujeitos a que se destinam, para atuar como docente o professor terá que dominar um amplo repertório de conhecimentos sobre os conteúdos a serem trabalhados com as crianças, sobre os seus processos de desenvolvimento e de aprendizagem e sobre formas adequadas de estabelecer uma mediação didática que, de fato, as faça aprender.

Uma adequada mediação didática se constrói basicamente a partir do conhecimento teórico sobre o que é conteúdo do trabalho docente e sobre os processos de aprendizagem, mas requer também fundamentação a respeito de avaliação, planejamento e intervenção pedagógica. E e

mbora avaliar, planejar e intervir sejam procedimentos, isso não significa que são atos simples, mecânicos, automáticos, meramente técnicos. As ações que cabem a um professor desenvolver são orientadas por todo o conhecimento que ele dispõe e também por suas hipóteses do que é mais adequado fazer: é preciso ter ações refletidas, resultado da tomada de decisões em função do contexto, das demandas e dos problemas que surgem a cada momento, baseadas o tempo todo em saberes que permitem agir tanto situacionalmente (no ‘aqui-agora’) quanto prospectivamente (no ‘daqui por diante’).

O que é preciso avaliar? O conhecimento prévio das crianças sobre aquilo que a elas se pretende ensinar, o percurso de aprendizagem de cada uma, os resultados obtidos e a qualidade das propostas – atividades, agrupamentos, intervenções – para redirecioná-las quando os resultados não forem satisfatórios.

E o que é preciso planejar?

◦ o uso racional do tempo;◦ formas de organizar didaticamente os conteúdos (projetos, atividades permanentes,

sequenciadas, independentes e de sistematização);◦ possibilidades de articular objetivos pedagógicos e objetivos de realização dos alunos;◦ situações de ensino que não descaracterizem as práticas socioculturais tomadas como

conteúdos escolares;◦ atividades que favoreçam a autonomia intelectual dos alunos e mobilizem sua disponibilidade

para aprender;◦ a articulação de conteúdos de diferentes áreas do conhecimento;◦ o uso de materiais didáticos adequados;◦ os agrupamentos das crianças, para que sejam produtivos e elas trabalhem cooperativamente,

aprendendo umas com as outras;◦ alternativas de organização do espaço;

1 A abordagem feita nesta parte do Caderno é semelhante a que faz o Instituto Abaporu de Educação e Cultura em outras publicações das quais participa como parceiro, uma vez que representa o seu posicionamento em relação ao assunto aqui tratado.

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◦ formas de trabalhar com a heterogeneidade e atender a diversidade;◦ a gestão do trabalho e da turma;◦ a intervenção pedagógica em diferentes situações, dentre outros aspectos.

Como se vê, é muita coisa a fazer, a saber, a saber fazer. É ao planejar, avaliar e intervir que revelamos qual é o nosso conhecimento pedagógico.

O desafio é avaliar para planejar e planejar para intervir: portanto (embora nem sempre as coisas sejam compreendidas desta maneira), a avaliação é o ponto de partida para o planejamento contínuo de uma prática pedagógica que se pretende ajustada às necessidades e possibilidades de aprendizagem das crianças. E não há prática pedagógica de qualidade quando não se considera o que elas podem e quando não se responde ao que elas precisam do ponto de vista da aprendizagem – são as crianças, afinal, os sujeitos do processo de educação escolar. Isso significa que uma intervenção adequada, ou seja, uma ação ajustada a possibilidades e necessidades, só pode acontecer como resultado de um planejamento inteiramente apoiado na avaliação do que sabem ou não as crianças.

A Série ‘Orientações Curriculares’ tem o propósito de contribuir nesse sentido.

Como sabemos, hoje, a educação básica e a formação inicial dos profissionais da educação em nosso país, em geral, não garantem o conhecimento necessário para a docência – todos esses tipos de saberes, acima relacionados. Também em outros campos de atuação os profissionais não saem dos cursos de habilitação completamente preparados – e isso não é exatamente um problema – mas o fato é que, no caso da educação, há muitas lacunas deixadas pela formação inicial, que precisam depois ser resolvidas ou minimizadas de algum modo quando os educadores (professores e demais profissionais) já estão em exercício. Ou seja, a situação não é apenas de atualização, como em outras áreas, mas de aquisição de conhecimentos profissionais básicos, o que acaba ficando sob a responsabilidade das Secretarias de Educação.

O resultado da não-priorização da docência nos cursos de formação – a despeito de outros tantos conteúdos relevantes abordados – é que vivemos um quadro complexo: nossos alunos revelam a todo instante (na sala de aula e nas provas nacionais e internacionais) um péssimo desempenho, os professores não sabem – e admitem não saber – como fazer para ensinar adequadamente a todos e as instituições responsáveis pela formação profissional do Magistério não tomam o conhecimento didático como conteúdo central em seus currículos. Essa circunstância, na prática, prejudica os professores em um dos seus direitos profissionais mais relevantes: o direito de aprender a ensinar todos os alunos. E tudo indica que essa falta de priorização dos conteúdos específicos para a docência é fruto de um equívoco conceitual muito sério: a crença de que o domínio dos fundamentos relacionados à compreensão da sociedade, à educação, aos processos de aprendizagem e aos conteúdos do ensino serviria para subsidiar os professores em relação ao ‘como ensinar’. Entretanto, o conhecimento didático não é simplesmente uma decorrência natural de outros saberes, mas constitui um campo específico, que pressupõe teoria-e-prática.

Nesse contexto, toda Secretaria de Educação comprometida com a qualidade do ensino e da aprendizagem das crianças terá de assumir um conjunto de tarefas relacionadas à formação dos profissionais, no exercício do magistério, e o desafio de produzir subsídios para o trabalho pedagógico. Isso não significa, no entanto, que, do lugar de Secretaria da Educação, seja possível definir inteiramente o conjunto de propostas a serem desenvolvidas com as crianças, para suprir as eventuais dificuldades enfrentadas pelas equipes escolares. Não se pode definir, a priori, uma sequência completa de atividades e conteúdos para abordar na sala de aula: em cada escola, a discussão coletiva da equipe de educadores indicará os critérios mais adequados de seleção e as maneiras mais apropriadas de organizar e sequenciar o trabalho tendo em conta as prioridades colocadas no planejamento. As propostas e exemplos contidos neste Caderno e nos demais materiais são apenas referências que cabe a uma Secretaria de Educação sugerir.

Entendemos que é com decisões compartilhadas, e em favor da aprendizagem de todos, que se constrói uma educação escolar de qualidade. Tal como nos ensina o educador russo Anton Makarenko (1980):

Não imaginei nem imagino como se poderia educar um coletivo, pelo menos um coletivo infantil, se não houver um coletivo de educadores. Não restam dúvidas de que não se

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poderá fazê-lo se cada um dos educadores de uma escola realiza, separadamente, o seu trabalho educativo, segundo seu próprio entendimento e desejo.

Um processo de planejamento da ação educativa2, que se pretende adequado, precisa contemplar, de algum modo, quatro pressupostos: a recorrência dos conteúdos, a diversidade das propostas, a provisoriedade do que se planeja e o coletivo como instância privilegiada de discussão e construção do trabalho pedagógico.

A recorrência dos conteúdos tem a ver com a conquista dos objetivos propostos, pois sabemos que as capacidades a que eles se remetem não são desenvolvidas todas em um só tempo e de forma igual por todas as crianças. Portanto, é preciso que os conteúdos trabalhados estejam distribuídos no tempo de modo a, sempre que necessário, serem retomados e abordados em outros níveis de complexidade, em diferentes momentos durante o mesmo ano e/ou em diferentes anos de escolaridade, tanto na Educação Infantil como no Ensino Fundamental.

A diversidade das propostas diz respeito à heterogeneidade das crianças em uma mesma turma e entre as turmas. Muitas vezes, em uma mesma faixa etária, verificam-se conhecimentos, experiências e atitudes bem diferentes em relação a um determinado conteúdo, o que exige do professor encaminhamentos diferenciados.

A provisoriedade do planejamento refere-se à necessidade de reajustá-lo, de reformulá-lo à medida que, ao ser posto em prática, o professor consegue observar outros aspectos que antes não havia considerado.

E o coletivo como instância de discussão e construção do trabalho pedagógico expressa uma convicção importante sobre o processo de construção de conhecimento: tudo o que se pode alcançar coletivamente, em um grupo de fato colaborativo, é muito superior ao que se obtém sozinho. Nesse sentido, o trabalho coletivo é fundamental porque é uma contribuição não só para os próprios professores, que têm a chance de potencializar os conhecimentos uns dos outros, mas também para os alunos que, mesmo de modo indireto, são beneficiados duplamente. Primeiro, porque assim contarão com professores mais bem preparados, o que é sempre um ganho para todos e, depois, porque quando os professores têm uma experiência pessoal positiva de trabalho em colaboração, tendem a propor o mesmo para seus alunos e, a despeito das dificuldades iniciais, a insistir para que aprendam a trabalhar juntos de modo produtivo.

Não há, portanto, um planejamento que possa ser feito inteiramente ‘de fora’ da escola, pois assim se perderia o principal: a possibilidade de ser eficaz porque compatível e adequado à realidade. Essa clareza, no entanto, não pode ter como consequência deixar as escolas e os professores sem orientações para o trabalho pedagógico, com o argumento de que somente a realidade concreta de uma ‘dará o tom’ das propostas mais adequadas. A decisão de elaborar e publicar este conjunto de subsídios é fruto da convicção de que as propostas devem ser apresentadas como uma referência, mas precisarão de ajustes conforme a situação, conforme o caso, conforme os professores e conforme os alunos.

Sabemos muito bem que apenas materiais de subsídio jamais serão suficientes: eles devem sempre ser parte de um processo de formação continuada que tenha a prática pedagógica desenvolvida junto às crianças como eixo central. E aqui, para finalizar este início de conversa, resgatamos algumas das ideias do pesquisador português José Tavares (1997), que situa os tipos de abordagem da formação profissional:

As concepções de formação podem se reduzir a três tipos de abordagem. Aquelas em que predomina a transmissão de conhecimentos, mais ligadas aos modelos de educação em que a palavra de ordem é ensinar [...] e em que a memorização assume um papel preponderante [...]; aquelas em que predominam os processos de descoberta e pesquisa mais colaborativos e que se ligam a modelos como aprender a aprender, a investigar, a ser autônomo, mais voltados para a compreensão; e, por último, os modelos mistos, em que se articulam as duas orientações anteriores.

2 A abordagem das questões do planejamento educativo contida neste texto é baseada na que faz Rosana Dutoit em vários subsídios elaborados para professores.

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Na nossa perspectiva de formação como construção de conhecimento e produção de saberes, interessa-nos, sobretudo, as concepções de natureza interativa, colaborativa e mista que possibilitam o desenvolvimento progressivo e equilibrado dos sujeitos para a sua autonomia. Assim, parece-me razoável defender a tese de que, em princípio, todas as abordagens, os processos e estratégias são bons e poderão ter lugar em diferentes momentos dos percursos de formação, tendo em conta a natureza dos conteúdos, os estilos dos sujeitos e os seus níveis de formação ou de informação. É apenas uma questão de ênfase e de ritmos diferenciados. [...] Há momentos do processo em que deverá predominar a aquisição de informação; outros em que se atenderá mais ao estudo, à reflexão para a assimilação, acomodação, equilibração, adaptação e compreensão da informação adquirida; e outros, ainda, mais voltados para a construção de novos conhecimentos, para a criação, para a invenção, para a inovação.

Nossa intenção é que os processos formativos que incluem a discussão dos materiais ora publicados tenham a justa medida da necessidade dos professores para os quais foram especialmente elaborados. Ou seja, nossa pretensão é de que esses processos formativos sejam, também eles, ajustados às possibilidades e necessidades de aprendizagem dos sujeitos a quem se destinam: os professores do município de Indaiatuba.

Não há hoje quem não defenda a profissionalização do Magistério - entidades sindicais, associações profissionais, instituições educacionais, representantes da sociedade civil... Mas, como sabemos, o discurso do avanço não tem o mágico poder de produzir o avanço: só com o tempo e com muito trabalho é que se forjam as transformações mais radicais. E lentamente – o que é o pior para os que têm pressa ou para os que dependem dessas mudanças.

Os ambiciosos resultados que desejamos todos e a que têm direito as crianças, só poderão ser conquistados com um investimento concentrado e simultâneo na resolução dos diferentes problemas que, direta ou indiretamente, provocam o fracasso escolar. Isso implica desenvolver políticas eficazes que tenham como conteúdo a valorização profissional, a melhoria da infra-estrutura material das escolas, as condições institucionais necessárias para um trabalho educativo sério e a avaliação do sistema de ensino. Mas implica, também, acertar o passo das políticas e metodologias de formação de professores, bem como dos subsídios produzidos para apoiá-los na tarefa de ensinar, sem o que não se poderá impulsionar o desejado processo de profissionalização do Magistério e nem assegurar uma educação escolar de qualidade.

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Breves considerações sobre o novo período escolar que hoje temos

A iniciativa de implementar o Ensino Fundamental de 9 anos, que assegura um ano a mais de escolaridade às crianças brasileiras, teve como consequência a formalização de um ciclo inicial de dois anos – mesmo nos sistemas seriados – e a necessidade de definir um posicionamento claro em relação ao que fazer nesse ‘novo’ ano escolar, que nem é a antecipação da 1ª série ‘antiga’ e nem é, simplesmente, o equivalente ao que era antes o último ano da Educação Infantil.

Prevê a legislação que:

Com a aprovação da Lei no 11.274/2006, mais crianças serão incluídas no sistema educacional brasileiro, especialmente aquelas pertencentes aos setores populares, uma vez que as crianças de seis anos de idade das classes média e alta já se encontram, majoritariamente, incorporadas ao sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do ensino fundamental.A importância dessa decisão política relaciona-se, também, ao fato de recentes pesquisas mostrarem que 81,7% das crianças de seis anos estão na escola, sendo que 38,9% frequentam a educação infantil, 13,6% pertencem às classes de alfabetização e 29,6% estão no ensino fundamental (IBGE, Censo Demográfico 2000).Outro fator importante para a inclusão das crianças de seis anos na instituição escolar deve-se aos resultados de estudos demonstrarem que, quando as crianças ingressam na instituição escolar antes dos sete anos de idade, apresentam, em sua maioria, resultados superiores em relação àquelas que ingressam somente aos sete anos. A exemplo desses estudos, podemos citar o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) 2003. Tal sistema demonstra que crianças com histórico de experiência na pré-escola obtiveram maiores médias de proficiência em leitura: vinte pontos a mais nos resultados dos ‘testes’ de leitura (MEC: 2006).

Em relação à proposta pedagógica que seria adequada a esse ‘novo’ ano, entretanto, as opiniões não são consensuais. O que hoje se verifica em várias redes de ensino do país é que os profissionais vinculados mais diretamente ao Ensino Fundamental, de modo geral, tomam essa iniciativa como uma oportunidade importante das crianças, com um tempo maior nesse segmento, conquistarem mais sucesso em relação à aprendizagem. E outros profissionais, sobretudo da Educação Infantil, temem que, já aos seis anos de idade, as crianças sejam submetidas a exaustivos exercícios escolares, o que lhes roubaria a possibilidade desfrutar da infância, brincar e fazer amigos – um direito de todas as crianças.

Essas diferentes formas de olhar para o mesmo acontecimento expressam o compromisso necessário de todo educador com o pleno desenvolvimento das crianças e relacionam-se, por um lado, a posições historicamente conquistadas na Educação Infantil e, por outro, à justa preocupação com o sucesso escolar das crianças no Ensino Fundamental.

O fato é que essas opiniões produziram uma polarização equivocada (que não deve tardar a se resolver), especialmente em relação ao ensino da língua, com alguns defendendo que as crianças devem, necessariamente, ser alfabetizadas no 1º ano do Ensino Fundamental e outros defendendo que elas não devem ser alfabetizadas em hipótese alguma. Uma questão mal colocada, como se pode ver...

Mas não há questão mal colocada que não se possa resolver com uma análise mais cuidadosa, de diferentes perspectivas. Nem é o caso de organizar a rotina do primeiro ano privilegiando tão somente a alfabetização, na tentativa de ensinar a ler e escrever a qualquer preço, e nem é o caso de menosprezar o trabalho com a linguagem, retardando o acesso das crianças a situações significativas de uso da escrita e de reflexão sobre sua utilidade, sobre como funciona, como aparece nos textos. É possível uma alternativa consequente e ajustada ao direito das crianças: um

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trabalho significativo com a língua escrita que em nada prejudica o tempo e o espaço da brincadeira. Vejamos um exemplo ilustrativo3.

Vamos imaginar que o professor do 1º ano leia diariamente, por dez minutos, textos bem escolhidos, interessantes, de boa qualidade para os seus alunos. E que proponha diariamente, por vinte minutos, uma atividade bem planejada de reflexão sobre a escrita, para ser feita em duplas (a leitura de uma parlenda infantil, a ordenação de uma quadrinha do repertório da turma, o preenchimento de uma cruzadinha ou a resposta a uma adivinha com apoio de uma lista de respostas possíveis, a escrita de uma lista de brincadeiras, a escrita do nome dos amigos e outras desse tipo). E que deixe claro que está disponível para ajudar todos os que precisarem. Assim, ao término de um ano, as crianças terão ouvido a leitura de 200 textos e terão refletido sobre as regras de geração e o funcionamento da escrita por quase 70 horas, em situações lúdicas, bem ajustadas às suas necessidades e possibilidades de aprendizagem, contando com ajuda, interagindo com os colegas... Portanto, utilizando apenas meia hora por dia, o professor terá feito um trabalho extremamente significativo de letramento-alfabetização e ainda sobrarão três horas e meia diárias para tudo o mais que as crianças de seis anos merecem viver e aprender na escola, tendo em conta as demais áreas do conhecimento, de modo a poder desenvolver suas diferentes capacidades.

Ou seja, o que pode eventualmente parecer estranho e inadequado à primeira vista, não é – a menos que se imaginem situações de ensino e aprendizagem que são questionáveis mesmo para os alunos dos demais anos escolares, como submetê-los a longas atividades de cópia, de repetição exaustiva e de memorização de informações que não lhes fazem sentido. Mas não é isso, evidentemente, o que justifica a criação de um ano a mais de escolaridade no Ensino Fundamental.

Considerando a proposta já discutida amplamente na Rede Municipal de Indaiatuba e expressa neste Caderno e nas Orientações Curriculares, é possível, por exemplo, ter como expectativa, em relação à alfabetização inicial, que ao final do 1º ano do Ensino Fundamental as crianças produzam uma escrita alfabética. O que isso significa concretamente? Significa que elas podem ainda cometer falhas na representação do valor sonoro convencional das letras (isto é, trocar letras ao escrever), no registro de dígrafos e encontros consonantais e em outros aspectos ortográficos, bem como na separação de palavras – que são características próprias da escrita de quem se alfabetizou recentemente.

Mas a conquista desse tipo de resultado com a maioria das crianças depende de um trabalho diário, intencional e bem planejado, conforme os pressupostos que orientam a proposta sistematizada nas Orientações Curriculares. A experiência dos profissionais da Educação Infantil, que compartilham desses mesmos pressupostos, vem mostrando há muito tempo que esse é um resultado não só desejável, mas possível, sem qualquer prejuízo do direito à infância.

Nos últimos anos, vem se consolidando uma tendência entre estudiosos da linguagem e educadores de que o trabalho de alfabetização deve ocorrer no contexto de um trabalho muito mais amplo com os usos e formas da linguagem, no interior de um processo de ampliação progressiva dos níveis de letramento das crianças. A essa perspectiva temos chamado ‘alfabetização-letramento’, o que pressupõe garantir a participação das crianças em situações de leitura, produção e discussão sobre os textos antes, durante e depois da alfabetização – é isso o que permitirá que se ampliem tanto o repertório de conhecimentos quanto o seu processo de letramento.

Hoje não é nenhuma novidade para nós, educadores, que a prática pedagógica há anos predominante nas escolas não tem sido orientada para formar alunos letrados – quando são letrados, em geral, é por conta das experiências que trazem de casa, da família, dos grupos em que convivem. Em relação ao trabalho com a linguagem, especialmente no período de cinco a sete anos, a preocupação tem sido a alfabetização em seu sentido mais estrito, ou seja o ensino da correspondência letra-fonema4.

Mesmo assim, os dados disponíveis no IBGE e INEP5 revelam que desde a década de 1950 a escola não consegue alfabetizar as crianças no primeiro ano de escolaridade obrigatória: os percentuais

3 Esse exemplo tem sido amplamente utilizado pela equipe do Instituto Abaporu de Educação e Cultura e consta em documentos produzidos em parceria também com outras secretarias de educação.4 A formulação tecnicamente mais precisa seria correspondência grafema-fonema, uma vez que letra e grafema não são exatamente a mesma coisa, mas como a opção feita neste documento (por letra-fonema) não inviabiliza, mas favorece, a compreensão do que está sendo tratado, ela será mantida ao longo de todo o texto.

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de promoção (nos sistemas de ensino seriados) sempre estiveram na média dos 50% e, como sabemos, o principal critério de promoção nesse caso é a aprendizagem da correspondência letra-fonema.

A questão é que, quando o foco principal das práticas de ensino da língua é a alfabetização no sentido estrito, é enorme o risco de a escola ‘produzir’ analfabetos funcionais: alunos que ‘tecnicamente’ saberiam ler e escrever, porque conhecem a correspondência entre letras e sons, mas não conseguem compreender o que leem, tampouco se comunicar por escrito. E quando o foco das práticas de ensino é exclusivamente o uso da linguagem em diferentes contextos, corre-se o risco de formar alunos letrados, mas que demoram a se alfabetizar.

O ano a mais criado no Ensino Fundamental pode e deve ser uma contribuição efetiva em favor da aprendizagem das nossas crianças. Não só em relação à linguagem, evidentemente, mas a todas as áreas do conhecimento.

5 IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística / INEP: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais do Ministério da Educação.

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Parte 1 – A escola hoje

O papel da educação escolar na infância

Na abertura deste Caderno, está declarado um compromisso ético e pedagógico que, na escola, precisamos assumir com as crianças nestes tempos em que vivemos: abrir as portas para que elas conquistem o conhecimento sobre as ‘coisas do mundo’, interessá-las com propostas desafiadoras e significativas, deixar que sejam elas a procurar as primeiras respostas para suas próprias questões, mostrar que as suas descobertas intelectuais e suas ideias têm importância, encorajá-las a darem valor ao que pensam, potencializar a curiosidade em relação às diferentes áreas, familiarizando-as – desde pequenas e progressivamente - com as questões da linguagem, da matemática, da física, da biologia, da química, da tecnologia, da arte, da cultura, da filosofia, da vida social, do mundo complexo em que vivemos...

As pesquisas sobre como se constrói o conhecimento infantil e a observação de como as crianças procedem nas situações de ensino e aprendizagem têm mostrado que não são poucas e nem tolas as hipóteses que elas formulam, muito pelo contrário: são lógicas, inteligentes, interessantes, merecedoras de crédito.

Bem sabemos que não são recentes as contribuições de Piaget sobre as ideias infantis. Também há mais de duas décadas já foi possível conhecer que ideias constroem as crianças em relação à escrita alfabética – que vão desde um entendimento peculiar de que a escrita nada tem a ver com a fala, passando depois a crer que existe sim relação entre fala e escrita mas não compreendendo ainda de que tipo é, para somente por fim entender que na escrita alfabética o que cada letra representa (o fonema) é algo abstrato, que não se ouve de modo isolado. E agora há uma série de pesquisas sobre como se constrói o conhecimento matemático, que são da maior importância para a prática pedagógica.

Estudos recentes têm mostrado que as crianças têm hipóteses bastante curiosas e lógicas sobre as escritas numéricas a partir de seu contato com números familiares ou números frequentes6. Antes de aprenderem formalmente o sistema de numeração decimal, podem afirmar, por exemplo, que 845 é maior que 98 porque ‘tem mais números’. Nesse caso, elas conjecturam que ‘quanto maior é a quantidade de algarismos de um número, maior o número’ – e esse critério de comparação funciona mesmo quando nem conhecem ainda ‘o nome’ dos números que estão comparando. Ao comparar o número 68 e 86, não é raro afirmarem, por exemplo, que o 86 é maior porque o 8, que vem primeiro, é maior que 6, ou seja, se a ‘quantidade’ de algarismos é a mesma, o maior é aquele que começa com o número maior, pois ‘o primeiro é quem manda’. Embora não percebam o agrupamento, elas identificam que a posição do algarismo no número cumpre um papel importante no nosso sistema de numeração, isto é, o valor que um algarismo representa, apesar de ser sempre o mesmo, depende do lugar em que está localizado em relação aos outros algarismos desse número.

Além disso, muito frequentemente, as crianças recorrem à justaposição de escritas para escrever números e as organizam ‘de acordo com a fala’. Assim, para representar o 546, podem escrever 500406 (500 e 40 e 6) ou 50046 (500 e 46) e justificam que ‘escrevem do jeito que se fala’.

Hoje se sabe também que o pensamento geométrico envolve as relações e representações espaciais que as crianças desenvolvem, desde muito pequenas, inicialmente pela exploração dos objetos, das ações e deslocamentos que realizam no seu ambiente e da resolução de situações-problema que lhe são apresentadas.

O desafio, portanto, é propor boas situações de ensino e aprendizagem, ou seja, situações que de fato levam em conta as hipóteses e os conhecimentos prévios das crianças sobre o que pretendemos que elas aprendam (que, geralmente, são bem mais amplos do que suspeitamos) e 6 As considerações que se seguem em relação à aprendizagem da Matemática foram baseadas em textos escritos por Célia Maria Carolino Pires.

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que lhes colocam novos desafios sob a forma de problemas, considerando o que elas pensam, socializando ideias, sistematizando-as e trazendo novas informações. Assim estaremos cumprindo uma tarefa essencial da educação escolar: favorecer um contato amistoso das crianças com o conhecimento nas diferentes áreas desde que são ainda bem pequenas. Ou, em outras palavras, alimentar os alunos...

A esse respeito, é importante dizer que o professor e linguista Egon de Oliveira Rangel nos presenteou recentemente com uma explicação belíssima sobre o sentido da palavra ‘aluno’ e sobre essa condição, nem sempre bem-entendida, em que crianças, jovens e adultos são colocados na escola. Ao se referir à recente história da educação em nosso país, comentando duas perspectivas opostas (uma, a que chama de tradicional, dominada por preocupações praticamente exclusivas com o quê e como ensinar, e outra, muito diferente – e com a qual nos identificamos – em que a aprendizagem, ou melhor, o que já sabemos a respeito dela, comanda o ensino), recupera a história e desloca o aluno para o lugar de sujeito:

Circulou por muito tempo, entre os educadores, uma versão fantasiosa da etimologia de aluno que atribuía a essa palavra de origem latina a composição a-lumnus. O primeiro componente, a-, seria um prefixo com significado de ‘privação’; e o segundo seria uma das formas da palavra lumen/luminis (luz). Assim, alumnus significaria ‘sem-luzes’. Entretanto7, alumnus origina-se não de lumen, mas de um antigo particípio de alere (alimentar), e significava ‘criança de peito’, ‘criança que se dá para criar’ (RANGEL: 2000)8.

E, aliando-se aos que defendem a centralidade do aluno no processo pedagógico – que tem como metáfora e como razão de ser alimentar as crianças que foram adotadas pela escola – o autor acrescenta:

Atentos aos movimentos, estratégias e processos típicos do aprendiz numa determinada fase de sua trajetória e num certo contexto histórico e social, há os educadores que procuram organizar situações e estratégias de ensino o mais possível compatíveis e adequadas. Nesse sentido, o esforço empregado no planejamento do ensino e na seleção e desenvolvimento de estratégias didático-pedagógicas pertinentes acaba tomando o processo de aprendizagem como princípio metodológico de base.

Tal como indicam os propósitos que se seguem, nossa tarefa política e pedagógica, desde a Educação Infantil, é tornar a escola, de fato, um espaço de convívio fecundo entre as crianças, de desenvolvimento de suas capacidades e potencialidades, de múltiplas aprendizagens, de construção do conhecimento e de ampliação dos processos de letramento. Nossa tarefa é ‘alimentá-las’.

7 Tal como informam as professoras Maria Emília Barcellos da Silva e Maria Carlota Rosa, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que pesquisaram a fundo a etimologia da palavra.8 RANGEL, Egon de Oliveira. Para não Esquecer: de que se lembrar, na hora de escolher um livro do Guia? – Livro didático e sala de aula: cômodos de usar. Brasília: MEC/SEF, 2000. (36) f. BBE.

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Propósitos da escola nestes tempos em que vivemos

Os propósitos aqui apresentados são compromissos que toda instituição educativa precisará assumir para garantir que as aprendizagens previstas aconteçam, para criar as condições necessárias ao desenvolvimento das capacidades e dos saberes que se pretende que as crianças conquistem. Assim, considerando a proposta expressa na Série ‘Orientações Curriculares’,

São propósitos das escolas de Educação Infantil 9 :

◦ Constituir-se, para todas as crianças, em um espaço de desenvolvimento progressivo das possibilidades de expressão e da autonomia, onde podem exercer o direito de manifestar interesses, desejos, necessidades, sentimentos, vontades, pensamentos, ideias, desagrados...

◦ Contribuir para que todas as crianças tenham uma imagem positiva de si, ampliando sua autoconfiança, identificando cada vez mais suas limitações e possibilidades e agindo de acordo com elas.

◦ Criar condições para que todas as crianças se sintam pertencentes aos grupos dos quais participam, aprendendo a respeitar as regras básicas de convívio social, a diferenciá-las quando se trata de espaços públicos e privados e a considerar a diversidade própria de todo agrupamento humano.

◦ Garantir, para todas as crianças, múltiplas oportunidades de brincar e de se relacionar cada vez mais e melhor com o outro.

◦ Possibilitar o desenvolvimento de hábitos de autocuidado e valorização de atitudes relacionadas com a higiene, alimentação, conforto, segurança, proteção do corpo e cuidados com a aparência.

◦ Transformar todo espaço de convívio na escola em ambiente de trabalho colaborativo e solidário, para que as crianças possam enfrentar sem medo os desafios, sabendo que contam com apoio dos adultos e demais crianças para darem o melhor de si nas diferentes situações.

◦ Fazer da escola um lugar de respeito aos modos de falar que as crianças trazem de suas comunidades de origem e, ao mesmo tempo, de ampliação das possibilidades de uso da linguagem oral e de comunicação.

◦ Criar contextos – projetos, atividades de comunicação real, situações de publicação de materiais - que justifiquem a necessidade da escrita, da linguagem matemática e de outras linguagens.

◦ Organizar um amplo projeto de formação de leitores – que articule as ações voltadas para a ampliação da experiência de leitura dos profissionais, as diferentes propostas consideradas adequadas para envolver as crianças, o uso dos recursos disponíveis na comunidade e as práticas de incentivo aos familiares para que leiam também – de modo que a leitura possa tornar-se cada vez mais uma atividade valorizada e necessária para todos.

◦ Preservar o sentido que têm as práticas de leitura e escrita fora da escola, buscando a máxima coincidência possível entre os objetivos do trabalho pedagógico com as atividades de ler e escrever e os objetivos que essas atividades têm socialmente.

◦ Assegurar que as crianças possam exercer os seus direitos de leitores, escritores e aprendizes das diferentes áreas de conhecimento, ou seja, o direito de experimentarem possibilidades de ‘ler’ sem saber ainda ler convencionalmente, de escrever sem saber ainda escrever convencionalmente e de expressar suas hipóteses e seus saberes sobre qualquer assunto.

9 A formulação destes Propósitos teve como referência os seguintes documentos: Referencial Curricular Nacional de Educação Infantil (MEC, 1998), Diseño Curricular para la Escuela Primária de la Ciudad de Buenos Aires (2004), Matrizes de Referência em Língua Portuguesa para o 1º Ciclo da Secretaria Municipal de Educação de Campinas (2007) e Caderno de Orientações Para o Ensino de Língua Portuguesa e Matemática no Ciclo I (Secretaria Estadual do Acre e Secretaria Municipal de Rio Branco, 2008).

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◦ Priorizar metodologias pautadas no trabalho com hipóteses, conjecturas ou suposições que as crianças possam testar, validar ou refutar, experimentando diferentes formas de pensar, aprender e se expressar.

◦ Organizar uma rotina diária que viabilize o trabalho com as diferentes áreas do conhecimento, de modo a favorecer e potencializar o desenvolvimento de capacidades cognitivas, físicas, afetivas, éticas, estéticas, de inserção social e de relação interpessoal.

São propósitos das escolas de Ensino Fundamental nos anos iniciais 10 :

◦ Constituir-se, para todas as crianças, em um espaço de desenvolvimento progressivo das possibilidades de expressão e da autonomia, onde podem exercer o direito de manifestar interesses, desejos, necessidades, sentimentos, vontades, pensamentos, ideias, opiniões, desagrados...

◦ Contribuir para que todas as crianças tenham uma imagem positiva de si, ampliando sua autoconfiança, identificando cada vez mais suas limitações e possibilidades, e agindo de acordo com elas.

◦ Criar condições para que todas as crianças se sintam pertencentes aos grupos dos quais participam, aprendendo progressivamente a respeitar as regras básicas de convívio social, a diferenciá-las quando se trata de espaços públicos e privados e a considerar a diversidade própria de todo agrupamento humano.

◦ Garantir, especialmente para as crianças menores, múltiplas oportunidades de brincar e de se relacionar cada vez mais e melhor com o outro.

◦ Transformar todo espaço de convívio na escola em ambiente de trabalho colaborativo e solidário, para que as crianças possam enfrentar sem medo os desafios, sabendo que o erro faz parte do processo de aprendizagem e que contam com apoio dos adultos e demais crianças para darem o melhor de si nas diferentes situações.

◦ Fazer da escola um lugar de respeito aos modos de falar que as crianças trazem de suas comunidades de origem e, ao mesmo tempo, de ampliação das possibilidades de uso da linguagem oral para se comunicar, expressar o pensamento e as ideias (mesmo que divergentes das posições dos adultos e de outras crianças), escutar, acolher e considerar as opiniões dos outros, defender as próprias opiniões, discutir diferentes pontos de vista...

◦ Criar contextos – projetos, atividades de comunicação real, situações de publicação de materiais etc. - que justifiquem a necessidade da escrita, da linguagem matemática e de outras linguagens.

◦ Organizar um amplo projeto de formação de leitores (que articule as ações voltadas para a ampliação da experiência de leitura dos profissionais, as diferentes propostas consideradas adequadas para envolver as crianças, o uso dos recursos disponíveis na comunidade e as práticas de incentivo dos familiares para que leiam também), de modo que a leitura possa se tornar cada vez mais uma atividade valorizada e necessária para todos.

◦ Comprometer as crianças com propostas que extrapolem os limites da sala de aula e ‘ganhem a rua’: trabalho de campo, campanhas na comunidade, cartas aos meios de comunicação para opinar sobre problemas que lhes preocupam, solicitações a instituições, correspondência com outras escolas etc., sempre que possível fazendo uso da Internet.

◦ Garantir o acesso das crianças a diferentes portadores de textos, a textos de diferentes gêneros, a situações diversificadas de leitura e escrita com os diferentes propósitos que possuem essas práticas, sem ‘escolarizá-las’, ou seja, preservando o seu sentido social real e

10 A formulação destes propósitos teve como referência os seguintes documentos: Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa (MEC, 1997), Diseño Curricular para la Escuela Primária de la Ciudad de Buenos Aires (2004), Matrizes de Referência em Língua Portuguesa para o 1º Ciclo da Secretaria Municipal de Educação de Campinas (2007) e Caderno de Orientações Para o Ensino de Língua Portuguesa e Matemática no Ciclo I (Secretaria Estadual do Acre e Secretaria Municipal de Rio Branco, 2008).

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garantindo a máxima coincidência possível com as propostas pedagógicas desenvolvidas na escola.

◦ Assegurar que as crianças possam exercer os seus direitos de leitores, escritores e aprendizes das diferentes áreas do conhecimento. Ou seja, como leitores, podem fazer antecipações quando leem, formular interpretações próprias e verificar sua validade, perguntar o que não sabem, questionar as intenções do autor, emitir opinião sobre o assunto lido. Como escritores, devem produzir textos que façam sentido, em situações de comunicação real, com tempo suficiente para escrever e revisar conforme a necessidade, podendo solicitar ajuda quando preciso e elegendo leitores para analisar a qualidade dos próprios textos. Como aprendizes das diferentes áreas do conhecimento, podem expressar suas hipóteses e seus saberes sobre qualquer assunto, recebendo ajuda para fazê-lo e para avançar em seu processo de compreensão.

◦ Priorizar metodologias pautadas no trabalho com hipóteses, conjecturas ou suposições que as crianças possam testar, validar ou refutar, experimentando diferentes formas de pensar, aprender e se expressar.

◦ Organizar uma rotina diária que viabilize o trabalho com todas as áreas do conhecimento que se constituem em componentes curriculares na escola, de modo a favorecer e potencializar o desenvolvimento de capacidades cognitivas, físicas, afetivas, éticas, estéticas, de inserção social e de relação interpessoal.

◦ Destinar o tempo necessário na rotina para que as crianças possam alcançar o melhor desempenho possível em Língua Portuguesa e Matemática, o que significa aproveitar toda e qualquer situação potencialmente favorável como uma oportunidade de trabalho cotidiano com a leitura, a escrita e os conteúdos matemáticos.

◦ Considerar os indicadores das provas externas como uma demanda contextual necessária de se tomar como referência na organização do trabalho pedagógico, mas não como ‘a’ razão da educação escolar, porque a função social da escola não pode em hipótese alguma se confundir com a tarefa exclusiva de preparar os alunos para ‘irem bem’ nas provas externas.

Como alcançá-los?

Para que a escola possa se constituir e se consolidar como esse lugar de aprendizagem e de produção de conhecimento para todos11, é preciso que se converta em um contexto propício para relações interpessoais solidárias, trabalho coletivo e desenvolvimento profissional contínuo, apoiado no estudo, na reflexão sobre a prática, na discussão de situações-problema e na investigação de questões relevantes para a comunidade escolar.

O fato é que, tal como alimentação, saúde, convívio social e lazer, o conhecimento também é fundamental para a qualidade de vida das pessoas – alunos e profissionais. Quanto mais se sabe, mais se pode saber – o que sabemos nos faz melhores observadores, melhores intérpretes e, por certo, melhores cidadãos.

Nesse sentido, a escola é uma instituição poderosa, porque tanto pode dar à luz o conhecimento e o prazer de aprender para todos como, ao contrário, pode obscurecer. Se considerarmos que o magistério é a maior categoria profissional do país (são mais de um milhão e seiscentos mil professores!) e que mais de 95% das crianças brasileiras estão na escola e nela passam pelo menos quatro horas durante 200 dias letivos, por vários anos, veremos a sua potencialidade como instituição...

Utilizando como referência o conceito de professor reflexivo, hoje bastante difundido e aceito, Isabel Alarcão desenvolve12, por analogia, o conceito de escola reflexiva e apresenta dez ideias que

11 Há quem prefira chamar uma escola desse tipo de ‘reflexiva’, como é o caso de Isabel Alarcão (2001), há quem prefira chamá-la de ‘organização aprendente’, como Michael Fullan, Andy Hargreaves (2000) e outros tantos. Rui Canário (2000), por exemplo, afirma que esse sentido metafórico de ‘organização aprendente’, de ‘escola que aprende’ se coloca quando aprendem coletivamente os seus atores, os seus autores, os sujeitos que nela atuam.12 In Escola reflexiva e nova racionalidade. Porto Alegre: Artmed, 2001.

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traduzem o seu pensamento a esse respeito, aqui resgatadas no conteúdo, mas formuladas com algumas adaptações e apresentadas como desafios:

◦ Tomar como princípio que, em uma escola, o mais importante são as pessoas.

◦ Considerar que liderança, diálogo e reflexão-ação são fundamentais na gestão escolar.

◦ Construir e consolidar um projeto educativo próprio, explícito e compartilhado.

◦ Compatibilizar a dimensão local e universal da educação escolar.

◦ Garantir o exercício da cidadania no interior da própria escola.

◦ Articular as ações de natureza político-administrativa e curricular-pedagógica.

◦ Criar contextos que favoreçam o protagonismo e a profissionalidade dos professores.

◦ Incentivar o desenvolvimento profissional e a ação refletida de todos.

◦ Produzir conhecimento sobre a prática pedagógica e a vida da escola, buscando resposta para os desafios.

◦ Considerar que a escola e as pessoas são ‘sistemas abertos’, isto é, estão em permanente interação com o ambiente externo.

Esses são, segundo nos parece, os principais desafios da gestão de uma escola para fazê-la de qualidade, se entendermos que uma escola boa de fato é aquela que não só dá acesso ao conhecimento para todos que nela convivem, mas cria condições para que todos se desenvolvam.

E, se concentrarmos o foco, ‘colocando o zoom’ especificamente na gestão da sala de aula, podemos considerar que os desafios são semelhantes para os professores.

Seriam estes, de modo geral:

◦ Tomar como princípio que, em uma sala de aula, o mais importante são os alunos.

◦ Considerar que liderança, diálogo e reflexão-ação são fundamentais na gestão do trabalho pedagógico.

◦ Construir e consolidar, tanto quanto possível, projetos explícitos e compartilhados com os alunos.

◦ Compatibilizar, no trabalho pedagógico, a dimensão local – as necessidades específicas da turma – e a dimensão geral – as demandas do projeto educativo da escola.

◦ Garantir o exercício da cidadania no convívio cotidiano da sala de aula.

◦ Articular, na ação docente, a perspectiva do ensino e da gestão da classe.

◦ Criar contextos que favoreçam o protagonismo dos alunos.

◦ Incentivar o desenvolvimento de uma adequada postura de estudante pelos alunos e de compromisso com a própria aprendizagem.

◦ Produzir conhecimento sobre o que acontece no cotidiano, buscando respostas para os desafios – sempre que possível, coletivamente.

◦ Considerar a sala de aula e os alunos são ‘sistemas abertos’, isto é, estão em permanente interação com tudo o que está além da porta da classe.

Evidentemente nenhum educador conseguirá facilmente dar conta dessas tarefas sozinho. Para realizá-las é importante contar com o apoio de um coletivo forte e solidário. Mas para poder contar com o apoio de um grupo desse tipo, é preciso se empenhar em construí-lo cotidianamente: a força de um coletivo vem do envolvimento de cada um.

Esse investimento na construção de um verdadeiro espírito de equipe é fundamental por infinitas razões. Uma delas nos lembra Makarenko, citado anteriormente: é uma incoerência pretender educar um coletivo infantil sem ser, o educador, parte de um coletivo também.

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Parte 2 – Alguns pontos de partida

As considerações que se seguem representam, de certo modo, o marco conceitual em relação à abordagem da proposta curricular e do conhecimento didático: estão explicadas, nesta parte, as concepções de objetivo e conteúdo de ensino, de atividade para ensinar e avaliar, de planejamento e avaliação e de modalidades de organização didática dos conteúdos.

Do que falamos quando falamos em objetivos, conteúdos e atividades?

Os objetivos

A formulação dos objetivos indicados nos subsídios que, com este Caderno, compõe a Série ‘Orientações Curriculares’ apresenta as capacidades possíveis de serem desenvolvidas pelas crianças quando a proposta de ensino é organizada segundo os pressupostos e os desdobramentos pedagógicos defendidos nesses materiais. Se os propósitos da escola indicam algumas das principais tarefas das escolas para garantir o desenvolvimento das diferentes capacidades de seus alunos, nos objetivos contidos nos quadros curriculares das diferentes áreas de conhecimento (que compõem as publicações específicas), estão indicadas quais são essas capacidades – que coincidem com objetivos anuais, com expectativas de alcance, com o que se considera desejável e necessário que todas as crianças aprendam durante o período letivo. Dessa perspectiva, o desenvolvimento das diferentes capacidades das crianças é a razão de ser da educação escolar.

A definição dessas expectativas de alcance evidentemente não tem a intenção de padronizar as possibilidades das crianças: há aquelas que, com certeza, irão muito além do que está estabelecido como expectativa e há outras que, por razões várias, não terão condições de conquistar os saberes previstos.

Essa heterogeneidade se evidencia, por exemplo, pela comparação desses dois tipos de situações opostas13: uma criança que aprendeu a ler aos quatro ou cinco anos de idade e outra cuja família é analfabeta, sem escolaridade anterior e com um ritmo mais lento de aprendizagem. No primeiro caso, certamente a criança irá muito além do que está estabelecido como indicador de aprendizagem, porque já terá chegado à escola com um conhecimento mais avançado do que o previsto para o final do ano. E, no segundo caso, pode ocorrer, embora não necessariamente, de a criança não conseguir avançar conforme se espera, pois apresenta três características que, reunidas, tendem a tornar mais lento o processo de aprendizagem (o próprio ritmo de aprendizagem, a falta de escolaridade anterior e o fato de viver em um ambiente familiar pouco estimulante em relação à leitura e escrita, visto que a família é analfabeta).

O mesmo ocorre se o exemplo for relacionado ao conhecimento matemático: uma criança que desde pequena foi desafiada a pensar sobre a utilidade dos números, a explorá-los em situações de brincadeira ou em tarefas cotidianas, a explicar suas formas de pensar e a argumentar sobre suas opiniões, por certo será capaz de muito mais do que preveem os objetivos aqui propostos e tenderá a apresentar um desempenho superior ao de uma criança que não teve essas mesmas oportunidades e não contou com ajuda para ampliar suas possibilidades de pensar matematicamente.

E, com esse mesmo critério de análise, poderíamos considerar uma infinidade de exemplos dos demais componentes curriculares.

A clareza a respeito dessas diferenças, naturais e inevitáveis, não pode justificar, entretanto, a omissão por parte das Secretarias de Educação, que têm a responsabilidade institucional de zelar

13 Essa ilustração tem sido utilizada pela equipe do Instituto Abaporu de Educação e Cultura e consta em documentos produzidos em parceria também com outras secretarias de educação.

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pelo direito à melhor aprendizagem possível para todos os alunos e de apresentar indicadores de referência para o ensino.

Os conteúdos

Na tradição pedagógica, o termo ‘conteúdo escolar’ foi utilizado para referir-se aos ensinamentos clássicos das disciplinas, ou seja, sempre esteve muito relacionado aos principais conceitos das áreas de conhecimento. Porém, o que hoje se tem é uma ampliação da concepção de conteúdo escolar, tomado como o que se ensina explicitamente ou se favorece que os alunos aprendam a fim de desenvolver diferentes capacidades – não só as de natureza cognitiva, mas todas as demais: físicas, afetivas, éticas, estéticas, de inserção social e de relação interpessoal...

Sabemos que as capacidades humanas se inter-relacionam de alguma forma mas, a depender do tipo, um ou outro aspecto predomina mais: além daquelas em que o aspecto cognitivo é preponderante, como pensar, ler e calcular, há as capacidades físicas, como correr, dançar e saltar; afetivas, como desenvolver autoestima e demonstrar sentimentos; éticas, como respeitar o outro e conviver com as diferenças; estéticas, como desenhar e apreciar a arte; de inserção social e de relacionamento interpessoal, como participar de grupos e conviver solidariamente.

Tal como hoje defendem vários estudiosos, são quatro os principais tipos de conteúdo escolar. Cada tipo requer tratamento didático diferenciado, porque são aprendidos de modo diferente, tal como mostra a caracterização elaborada14 com base no que propõe Antoni Zabala em A prática educativa: como ensinar (1998), que segue abaixo.

Um primeiro tipo de conteúdo reúne fatos, acontecimentos, situações, dados e fenômenos concretos – que são informações de pouca ou nenhuma complexidade. Por exemplo: nomes de lugares, pessoas e objetos em geral, endereços, números de telefones, instruções simples... Esse tipo de conteúdo é aprendido basicamente mediante atividades de repetição e/ou cópia mais ou menos literal, a fim de serem memorizados – não requerem construção conceitual e são compatíveis com uma abordagem transmissiva, baseada no uso da linguagem verbal. De qualquer forma, para ensinar esse tipo de conteúdo é conveniente, sempre que possível, associá-los a um ou mais conceitos, para que a aprendizagem não seja exclusivamente mecânica e que se apoie em relações estabelecidas com outros conteúdos mais significativos.

Outro tipo de conteúdo reúne conceitos e princípios. Os conceitos se referem ao conjunto de fatos, objetos ou símbolos que têm características comuns e os princípios se referem às mudanças que se produzem em um fato, objeto ou situação em relação a outros fatos, objetos ou situações, em geral relações de causa-efeito ou correlações. Por exemplo: energia, fotossíntese, território, cultura, sistema alfabético de escrita, sistema de numeração decimal, divisão... Esse tipo de conteúdo15 implica, necessariamente, compreensão e é aprendido por um processo de elaboração e construção pessoal, por aproximações sucessivas, por ‘erros e acertos’ nas interpretações, que vão se depurando conforme avança o entendimento. São boas atividades, nesse caso, as que favoreçam que aquilo que é objeto de conhecimento dos alunos se relacione com seus conhecimentos prévios, que mobilizem e potencializem essas relações, que apresentem desafios ajustados às necessidades e possibilidades de aprendizagem, que confiram significado e funcionalidade ao que está sendo estudado, que requeiram o uso dos conceitos para descobrir, interpretar e verificar outras situações, construir outras ideias, adquirir outros saberes...

Esses dois tipos de conteúdo são os que a escola, ao longo da história, tem se ocupado em ensinar, embora cometendo o equívoco – geralmente de sérias consequências para a (não)aprendizagem dos alunos – de ensinar conceitos e princípios complexos com estratégias de repetição-fixação-memorização, ou seja, como se fossem informações simples, de fácil assimilação. Já os tipos de conteúdo descritos a seguir, também por um equívoco de efeitos semelhantes, em geral não têm sido tomados pela escola como ‘conteúdos em si’, mas como derivações do conhecimento de fatos e conceitos, o que, na prática, não se verifica...

14 Caracterização elaborada por Rosaura Soligo.15 Também as teorias - conjunto de regras ou leis, mais ou menos sistematizadas, aplicadas a uma área específica – podem ser incluídas nesse tipo de conteúdo.

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Procedimentos, métodos, técnicas, destrezas ou habilidades e estratégias configuram outro tipo de conteúdo. Em geral, envolvem um conjunto de ações ordenadas, não são necessariamente observáveis e, conforme a natureza e complexidade, dependem do conhecimento de conceitos que permitem proceder desta ou daquela forma. Alguns exemplos: ginástica, dança, leitura, escrita, reflexão, estudo, pesquisa, cálculo mental, comparação... Conteúdos dessa natureza só se aprendem pela prática (pois é fazendo que se aprende a fazer) e a qualidade do desempenho requer exercitação frequente, aplicação em contextos diferenciados e reflexão sobre a própria atividade, o que possibilita a tomada de consciência da ação desenvolvida: para poder proceder melhor é importante poder refletir sobre a maneira como procedemos. As atividades devem, então, funcionar como contextos favoráveis para o uso desses recursos e, portanto, as atividades permanentes são privilegiadas, porque se caracterizam pela constância e pela regularidade.

Por fim, o outro tipo de conteúdo reúne valores, atitudes e normas. Valores são princípios ou afirmações éticas que permitem às pessoas emitir juízo sobre condutas e seus respectivos sentidos. Atitudes são tendências ou predisposições relativamente estáveis para atuar de certo modo, de acordo com determinados valores. E normas são padrões ou regras de comportamento a serem seguidos em determinadas situações e que orientam a conduta de todos os membros de um grupo social, constituindo a forma pactuada de pôr em prática certos valores compartilhados por uma coletividade, que indicam o que pode/deve ou não ser feito. Alguns exemplos: solidariedade, cooperação, respeito, responsabilidade, liberdade, cuidado com o meio ambiente, gosto pela leitura... Os processos vinculados à compreensão de conteúdos associados a valores, em geral, exigem reflexão, tomada de posição e elaborações complexas de caráter pessoal. Ao mesmo tempo, a apropriação e a interiorização do que está sendo compreendido requer envolvimento afetivo, o que, por sua vez tem relação com necessidades individuais, com o ambiente, com o contexto. Nesse sentido, são situações adequadas de ensino e de aprendizagem aquelas que de fato contribuem para estimular esses processos e funcionam como situações exemplares, pois apenas o discurso do ‘dever ser’ é totalmente ineficaz nesse caso: a coerência na postura, na abordagem e nas eventuais ‘cobranças’ de conduta é essencial.

Mas o fato de poder identificar as características predominantes nos conteúdos, bem como as principais estratégias de aprendizagem e, em consequência, as abordagens metodológicas mais adequadas, não significa que as apropriações do sujeito que aprende se dão de maneira isolada em cada caso, muito pelo contrário.

Embora nas Orientações Curriculares os conteúdos não sejam apresentados separadamente, conforme os tipos indicados acima, é importante ressaltar que nos quadros das áreas específicas de conhecimento predominam os procedimentos. Isso acontece porque, embora os diferentes componentes curriculares contem com conteúdos de todos os tipos, é a capacidade de uso do conhecimento o que mais importa. Em relação aos conceitos, por exemplo, o ‘saber sobre’ está sempre a serviço do ‘saber fazer’, ou seja, tudo o que a criança aprende deve potencializar sua capacidade de proceder. Portanto, nas Orientações Curriculares não se verá os conteúdos relacionados na forma convencional: ao invés de breves listas com conceitos, temas e informações, a forma de apresentá-los já faz referência, ainda que nem sempre direta, a um certo modo de trabalhar com eles, ou seja, está explicitado o que exatamente ensinar. Vejamos alguns exemplos:

◦ relato de participação em jogos e brincadeiras;◦ análise das regularidades da escrita, com a ajuda do professor;◦ elaboração de desenhos e esquemas sobre componentes das paisagens conhecidas;◦ demonstração de curiosidade sobre uma observação direta ou indireta, fazendo perguntas ou

prestando atenção;◦ produção de escritas numéricas relativas a números familiares e frequentes, observando-se

regularidades;◦ disponibilidade para comentar e debater as situações de conflitos que possam surgir durante as

atividades corporais;◦ realização de trabalhos individuais a partir da pesquisa de diferentes formas e técnicas de

utilização expressiva dos materiais, com ajuda do professor;◦ reconhecimento das diferenças entre a voz falada e o canto;

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◦ explicação do próprio pensamento em situações de socialização de opiniões, ideias, desejos etc.

As atividades de ensino e aprendizagem

As atividades, tarefas ou situações de ensino e aprendizagem são as propostas feitas aos alunos para trabalhar um ou mais conteúdos. Há uma relação muito estreita entre objetivos, conteúdos e atividades porque os conteúdos, selecionados em função do tipo de capacidade que se espera dos alunos, são trabalhados a partir das propostas de atividade. Ou, dito de outro modo, é por meio das atividades que se tratam os conteúdos para que sejam desenvolvidas as capacidades indicadas como objetivos. Dessa perspectiva, o conteúdo ‘está’ potencialmente no objetivo, porque é este que define o que é preciso ensinar e ‘está’ potencialmente na atividade, à medida que ela é uma forma de abordá-lo.

As atividades de avaliação

Em relação às formas de avaliar, algumas considerações são necessárias.

A primeira delas é que nem sempre as atividades específicas para avaliar são as mais informativas sobre o processo de aprendizagem: a observação cuidadosa do professor e a análise do conjunto da produção escolar da criança, geralmente, são muito mais informativas sobre o seu nível de conhecimento.

Outra consideração importante é que qualquer atividade planejada especificamente para avaliar deve ser semelhante às que a criança conhece, isto é, não deve se diferenciar, na forma, das situações de ensino e aprendizagem propostas no cotidiano. Isso não significa, entretanto, que as atividades devam ser iguais, mas sim que a criança tenha familiaridade com a tarefa proposta e com a consigna (a forma de solicitar a tarefa). Se a tarefa nunca foi solicitada antes e o tipo de consigna é estranho ao que a criança está acostumada, não será possível saber ao certo se o desempenho apresentado é o ‘seu melhor’ ou se ele foi influenciado negativamente pelo desconhecimento daquele tipo de proposta. Esse é, inclusive, um dos principais problemas que podem surgir nas avaliações externas, quando elas se organizam de modo diferentes daquele proposto no cotidiano para as crianças.

E há atividades que são as melhores para a criança aprender, mas não servem para avaliar: uma situação de aprendizagem deve favorecer que a criança ponha em jogo o que já sabe, estabeleça relações, conecte o que está aprendendo ao seu conhecimento prévio e daí por diante; já uma situação de avaliação deve favorecer que ela explicite o que já sabe... Portanto, são tarefas bastante diferentes, que nem sempre são compatíveis no mesmo tipo de proposta. Se o objetivo é, por exemplo, desenvolver o gosto pela leitura e o interesse pelos livros e demais portadores textuais, uma excelente proposta será o professor ler em voz alta, diariamente, bons textos de diferentes gêneros e portadores para as crianças. Mas ler em voz alta para elas não permite avaliar se estão de fato desenvolvendo interesse pela leitura, pelos textos e portadores. Isso é algo que se poderá verificar observando como elas manuseiam os materiais, as escolhas que fazem, os seus comentários, as atitudes durante as rodas de leitura... Ou seja, nem tudo que é bom para ensinar, é bom para avaliar.

A avaliação da aprendizagem das crianças pressupõe ter em conta não só os resultados obtidos nos momentos específicos para avaliar, mas também (e principalmente) o conhecimento prévio que elas tinham sobre aquilo que se pretendia que aprendessem, o seu percurso de aquisição de conhecimento e a qualidade das propostas (atividades, agrupamentos, intervenções), para poder redimensioná-las quando os resultados não forem os esperados. Dessa perspectiva, o processo de avaliação deve apoiar-se em três tipos de proposta:

Observação sistemática - acompanhamento do percurso de aprendizagem da criança, utilizando instrumentos de registro das observações.

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Análise das produções – observação criteriosa do conjunto de produções da criança, para que, fruto de uma análise comparativa, se possa ter um quadro real das aprendizagens conquistadas.

Análise do desempenho em atividades específicas de avaliação: verificação de como a criança se sai nas situações planejadas especialmente para avaliar os seus conhecimentos prévios sobre o que se pretende ensinar e para avaliar o quanto aprendeu sobre o que já foi trabalhado.

Conforme o objetivo que se tenha, a proposta mais adequada será uma ou outra:

◦ a observação das crianças em atividade é essencial para avaliar atitudes e procedimentos;

◦ a análise comparativa de suas produções e dos registros das observações feitas é o que indicará o percurso de aprendizagem e a evolução do seu conhecimento;

◦ o uso de atividades específicas para avaliar determinados conteúdos é importante quando se pretende verificar se/o quanto esses foram aprendidos em um período de tempo.

Quando a proposta é esta última, de avaliação de desempenho, e a criança já sabe o que isso significa e para que serve, é importante então deixar claro o que se pretende avaliar (e por que razão), para que ela procure ‘dar o melhor de si’ nesses momentos. E devem ser atividades a serem realizadas individualmente e sem ajuda, a menos que o propósito seja analisar como a criança procede em parceria com os demais colegas ou com a ajuda da professora. A chamada ‘prova’ (uma atividade específica para avaliar os alunos conforme avança a escolaridade no Ensino Fundamental) é, portanto, apenas um dos instrumentos possíveis de avaliação, que não o único e nem o mais adequado, a depender do tipo de conteúdo. A prova, se bem planejada, é um recurso que pode ser oportuno para avaliar o conhecimento do aluno sobre fatos e conceitos, mas nem sempre servirá para avaliar atitudes e procedimentos, que são os conteúdos mais recorrentes nos anos iniciais.

O fato é que para avaliar adequadamente a aprendizagem, é preciso ter sempre como referência três parâmetros, tomados simultaneamente como critério geral: o aluno em relação a ele mesmo, em relação ao que se espera dele e em relação aos demais colegas que tiveram as mesmas oportunidades escolares.

Avaliar o aluno em relação a ele mesmo significa considerar o que ele sabia antes do trabalho pedagógico realizado pelo professor e comparar esse nível de conhecimento prévio com o que ele demonstra ter adquirido no processo.

Avaliar o aluno em relação ao que se espera dele pressupõe ter expectativas de aprendizagem previamente definidas (o que, nestas Orientações Curriculares, está indicado como objetivos e conteúdos) e utilizá-las como referência para orientar as propostas de ensino e de avaliação.

E avaliar o aluno em relação aos demais que tiveram as mesmas oportunidades escolares é apenas uma forma de complementar as informações obtidas a partir dos dois primeiros parâmetros: a comparação do desempenho das crianças só tem alguma utilidade se contribuir para entender melhor porque elas aprenderam ou não o que se pretendia ensinar.

Considerar ao mesmo tempo esses três parâmetros é condição para avaliar de maneira justa.

As capacidades, tomadas como objetivos em relação à aprendizagem, evidentemente são as referências não só para organizar o trabalho pedagógico, mas também para avaliar. Entretanto, com o avanço da escolaridade, nos anos em que é preciso decidir sobre a promoção ou retenção dos alunos, é necessário ter definidos, de forma clara, os critérios para essa finalidade. Esses critérios de avaliação, que orientam as decisões sobre promover ou reter os alunos em um determinado ciclo, são os ‘mínimos’ considerados razoáveis em relação aos objetivos propostos. Esses indicadores de aprendizagem estão especificados nas Orientações apenas dos componentes curriculares em que pode haver retenção no Ensino Fundamental: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Geografia e História. No caso dos demais componentes do Ensino Fundamental – Arte/Música, Filosofia e Educação Física –, bem como de todas as áreas de conhecimento da Educação Infantil, não há esse tipo de critério de avaliação indicado porque não há o dispositivo da promoção/retenção.

Não se pode supor, no entanto, que os alunos alcancem o desempenho descrito em cada um dos critérios de avaliação indicados se o professor não desenvolveu um trabalho pedagógico que

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permita minimamente esse resultado, ou seja, um trabalho pautado nos objetivos, conteúdos e orientações didáticas que compõem a proposta como um todo. Não terá nenhum sentido tomar como referência os critérios para avaliar os alunos no final do ciclo, se tudo o mais não foi desenvolvido conforme o previsto. Sabemos que os alunos aprendem muita coisa que não foi ensinada na escola, mas a escola só pode cobrar deles o que ensinou efetivamente, ainda mais quando se trata de decidir sobre sua promoção/retenção.

Algo mais sobre avaliação e aprendizagem

Por fim, uma última ponderação é ainda necessária.

Vivemos tempos em que a prática da avaliação externa nos sistemas de ensino tem se intensificado, provocando certos mal-entendidos em relação a algo nem sempre bem compreendido: a razão de ser, a real função da avaliação da aprendizagem dos alunos.

Em hipótese alguma o processo de avaliação de aprendizagem desenvolvido pelo professor pode se confundir com a proposta de avaliação externa que hoje se faz, baseada em alguns indicadores bastante específicos.

Vejamos por que.

Avaliação de aprendizagem é o processo de verificação do nível de conhecimento demonstrado pelo aluno e do nível de desenvolvimento das capacidades colocadas como objetivos do ensino, com a finalidade de subsidiar o trabalho pedagógico do professor, de possibilitar que ele ajuste as propostas de ensino às possibilidades e necessidades de aprendizagem de sua turma. Ou seja, a avaliação de aprendizagem está a serviço do planejamento do ensino. E dessa perspectiva, como dissemos, pressupõe avaliar o aluno em relação a si mesmo, ao que se espera dele e ao que conquistaram os demais alunos da turma. Isso é algo que somente o professor pode fazer.

Já a avaliação externa, que se realiza através de provas estruturadas com base em uma matriz de referência única (como as do SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica e Prova Brasil, realizadas pelo MEC, bem como as avaliações elaboradas e aplicadas pelas próprias Secretarias de Educação), tem a finalidade de identificar o nível de desempenho dos alunos em relação a alguns objetivos e conteúdos considerados relevantes em um determinado momento, para consequentemente poder identificar como estão se saindo os sistemas de ensino e suas escolas no que diz respeito ao trabalho com esses objetivos e conteúdos. A perspectiva central é orientar as políticas públicas e, em alguns casos, também a destinação de recursos para a educação.

Assim, esses dois tipos de avaliação não se coincidem e nem se excluem: com as provas externas se pretende avaliar exclusivamente o desempenho dos alunos em alguns aspectos e, dadas as suas características e os seus limites, as provas não “alcançam” o processo de aprendizagem como um todo, tanto porque se pautam em apenas uma parte dos objetivos/conteúdos do ensino como porque não incluem um dos principais parâmetros a considerar: a análise dos saberes conquistados pelo aluno por comparação ao próprio conhecimento, antes.

Confundir esses dos processos avaliativos – ou atribuir à avaliação externa maior importância – teria como consequência pelo menos três equívocos inaceitáveis, com efeitos desastrosos para os alunos:

◦ considerar como conteúdo relevante apenas o que é priorizado nas provas;

◦ usar como critérios de avaliação justamente os parâmetros que menos consideram o sujeito da aprendizagem (isto é, o desempenho do aluno em relação ao que dele se espera e em relação a como se saem os demais alunos do ano/série/turma);

◦ tomar como referência única para todos os alunos de uma escola ou de uma cidade indicadores que não levam em conta certas peculiaridades que, por vezes, justificam projetos e conteúdos específicos, ajustados às necessidades que se identifica.

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A cada uma o seu devido lugar, portanto: a avaliação externa é importante e necessária, mas não é ela a orientar o ensino no dia-a-dia da sala de aula. Como indicam os propósitos das escolas relacionados anteriormente, é preciso considerar os indicadores das provas externas como uma demanda contextual necessária, que devem, sim, ser tomados como referência na organização do trabalho pedagógico, mas não como “a” razão da educação escolar, porque a função social da escola não pode de forma alguma se confundir com a tarefa exclusiva de preparar os alunos para “irem bem” nas provas externas.

Nenhuma iniciativa concebida “de fora” pode substituir uma proposta de avaliação criteriosa, qualitativa, formativa, planejada e desenvolvida e pelo professor para iluminar suas escolhas pedagógicas.

O fato da avaliação externa se pautar em indicadores que não são fixos, que tendem a mudar com o tempo, recomenda que eles não sejam incluídos em documentos como este, que, por sua vez, tendem a uma permanência muito maior. Por esse motivo, a opção, neste momento, foi produzir um documento separado para abordar esse assunto tão em pauta atualmente.

Planejar para ensinar

A seguir, apresentamos uma breve reflexão sobre a questão do planejamento pedagógico, no que diz respeito a finalidades, dimensões, tipos e níveis.

Lamentavelmente, o planejamento ainda não tem ocupado o lugar que merece na prática de muitos professores e não são raras as reações negativas diante da necessidade de planejar, talvez pelo fato de, em geral, estar associada a uma exigência burocrática. Mas, na verdade, a razão de ser do planejamento é orientar o ensino (e, consequentemente, favorecer a aprendizagem), portanto, a sua principal finalidade é didática.

O ato de planejar é essencial porque permite:

• ter maior clareza de quais são as metas do trabalho pedagógico, ou seja, o que se pretende que as crianças saibam ao final de um período, que pode ser uma semana, um dia, um mês, um ano... ;

• pensar com antecedência as ações que se julga necessárias para o alcance dos resultados desejados e sequênciá-las considerando os diferentes níveis de desafio que colocam às crianças;

• avaliar o trabalho realizado, não apenas em relação aos resultados, mas também em relação às ações desenvolvidas ao longo do processo, o que pode contribuir para redirecioná-las (se o propósito for ajustar as propostas considerando as necessidades e possibilidades de aprendizagem das crianças);

• verificar a coerência entre o que se pretende alcançar com as crianças e o que realmente acontece na prática – isto é, entre o que se deseja obter em termos de resultado e o que efetivamente se faz para tanto.

Desse ponto de vista, a situação de planejamento do trabalho pedagógico é uma situação de formação dos professores, das mais importantes, porque exige a ampliação do conhecimento sobre a razão das propostas, a busca das condições mais adequadas para alcançar os objetivos que se tem, a antecipação das ações a serem desenvolvidas e a avaliação do trabalho realizado (só para citar alguns aspectos).

Em geral, a discussão sobre a importância do planejamento e a insistência para que se planeje o trabalho pedagógico ocorrem muito mais no início do ano letivo, porém essa deve ser uma prática contínua, assim como a avaliação, pois a qualidade do ensino e da aprendizagem dos alunos depende desses dois processos.

Uma prática pedagógica consequente pressupõe níveis diferenciados de planejamento e aqui eles estão desdobrados em quatro tipos: anual, periódico, quinzenal ou semanal (da rotina) e diário.

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Planejamento anual

É aquele em que são decididos os objetivos e conteúdos do ano ou ciclo em cada área de conhecimento / componente curricular, assim como as formas de avaliação e acompanhamento pedagógico das crianças durante o ano. É um trabalho que requer a discussão coletiva dos professores de forma a garantir o trabalho articulado na escola.

Nesse sentido, o conteúdo das Orientações Curriculares é um subsídio especialmente para esse tipo de planejamento.

Planejamento periódico

Acontece durante o processo de trabalho, em períodos mais curtos do que o ano letivo (semestres, trimestres, bimestres). É nessa instância que habitualmente são detalhados os projetos e as sequências de atividades que darão sustentação ao trabalho pedagógico, compatibilizando as propostas previstas no planejamento anual e as que se mostram fundamentais a partir da avaliação das necessidades específicas de aprendizagem do grupo de alunos.

As Sequências de Atividades que constam na parte final de cada volume das Orientações Curriculares são exemplos de como detalhar as propostas a serem desenvolvidas em um determinado período.

Planejamento da rotina

Também chamado de ‘organização do tempo pedagógico’, esse tipo de planejamento, que pode ser quinzenal ou semanal, é destinado a detalhar ainda mais as propostas, considerando: a organização do espaço, a formação dos agrupamentos das crianças, a distribuição das atividades a serem realizadas durante o período, o material necessário para desenvolvê-las, a melhor forma de dar as orientações para realização das tarefas etc.

A rotina pode ser parcialmente organizada em conjunto com os demais professores do mesmo ano de escolaridade, mas há uma parte que cabe ao professor que vai efetivamente trabalhar com sua turma.

Planejamento diário

Esse é o momento de detalhar o que ainda for necessário para a aula do dia. Ainda que seja de responsabilidade de cada professor, é fundamental que a escola garanta momentos de discussão dos alcances e limites do que é proposto e obtido em cada turma específica: a oportunidade de avaliar coletivamente o andamento do trabalho de cada um favorece a troca de informações e de experiências constituindo-se, assim, num importante espaço de construção do conhecimento pedagógico de todos.

Abaixo, um apanhado geral dos quatro tipos e do modo como os objetivos, os conteúdos e o respectivo tratamento didático ‘aparecem’ em cada caso.

PLANEJAMENTO ANUAL PLANEJAMENTO PLANEJAMENTO DA ROTINA PLANEJAMENTO

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PERIÓDICO (semanal ou quinzenal) DIÁRIO

OBJETIVO

S- POR QUÊ

Definição das capacidades que se pretende que as crianças desenvolvam ao longo do ano (os porquês dos conteúdos a serem propostos e do respectivo tratamento didático).

Detalhamento (se necessário) das capacidades que se pretende que as crianças desenvolvam, para períodos menores do que um ano – semestres, trimestres, bimestres...

Em geral, não são indicados os objetivos, pois o que mais importa, nesse caso, é definir quais as propostas de atividade mais apropriadas para abordar os conteúdos previstos.

Detalhamento das atividades, das intervenções, dos agrupamentos e de outros aspectos que se mostrem necessários, caso isso não tenha ainda sido feito no momento da organização da rotina.

CONTEÚDO

S- O QUÊ

Definição do que se pretende ensinar (ou favorecer que as crianças aprendam), em linhas gerais, para que as capacidades indicadas como objetivos possam ser desenvolvidas. Os conteúdos não são apenas fatos e conceitos, mas também procedimentos, valores, normas, atitudes...

Detalhamento, para períodos menores, do que se pretende ensinar (ou favorecer que as crianças aprendam): fatos, conceitos, procedimentos, valores, normas e atitudes.

Definição precisa das atividades necessárias para trabalhar os conteúdos pretendidos durante uma semana ou quinzena.

Em geral, não são indicados os conteúdos em separado, pois as atividades, de certo modo, os ‘contém’ – afinal, a razão de ser das propostas de atividade é justamente trabalhar os conteúdos.

TRATAMEN

TO DIDÁTICO DOS

CONTEÚDO

S-

COMO

Definição das formas mais adequadas de organizar os conteúdos a serem trabalhados – atividades permanentes, sequências de atividades, atividades de sistematização, projetos.

Detalhamento das formas mais adequadas de organizar os conteúdos nos diferentes períodos do ano e indicação de tipos de atividades importantes de serem garantidas na rotina.

O planejamento, como se pode ver, precisa ser muito bem cuidado, mas, conforme temos enfatizado, deve ter um caráter flexível também. Tal como nos ensina Carlos Matus16 (1997), “planejar não deve se confundir com a definição normativa do deve ser, mas englobar o pode ser e a vontade de fazer”.

Então, por que tanta ênfase na necessidade de planejamento se no final das contas é preciso flexibilizá-lo? Porque a ação pedagógica só é verdadeiramente pedagógica se for ‘ajustada’ aos alunos reais a que se destina: às suas possibilidades e necessidades de aprendizagem, às suas hipóteses sobre os conteúdos, às suas estratégias pessoais para resolver os problemas colocados pelas atividades e daí por diante.

É certo que o trabalho com as crianças deve sempre se orientar pelos objetivos estabelecidos anteriormente, para que se possam selecionar os conteúdos e as formas mais pertinentes para abordá-los, mas é certo também que a clareza a respeito desses objetivos (ou seja, das capacidades que se pretende desenvolver) é o que torna possível reorientar o trabalho a partir do que se avalia que as crianças podem e precisam aprender.

Um outro aspecto importante a considerar é que sempre dizemos – e é verdade – que o tempo que as crianças passam na escola é muito curto para tudo o que precisa ser trabalhado. Por isso, é importantíssimo utilizá-lo da melhor maneira possível, para que elas se ocupem com situações significativas, que favoreçam de fato a aprendizagem, e não com atividades que nada acrescentam por serem fáceis demais ou estarem muito além do que podem realizar.

O uso racional do tempo é uma competência profissional da maior importância para os professores. Uma competência que começa de questionamentos básicos, mas necessários: Como são organizadas as horas que os alunos permanecem na escola? O que é possível aprender durante esse tempo (800 horas por ano, considerando um período de quatro horas por dia)? Como dar conta de tudo o que se pretende ensinar durante o ano? Como organizar a prática pedagógica de forma a cumprir o planejamento e, ao mesmo tempo, atender às demandas das crianças?

16 Carlos Matus, chileno, é o criador do modelo de Planejamento Estratégico Situacional, bastante utilizado por administrações públicas progressistas e sobre o qual tem várias publicações em diversos países do mundo. Essa citação foi extraída do livro Adeus, senhor presidente – governantes governados, Edições Fundap, 1997.

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Assim, o tempo dedicado a cada componente curricular deve ser definido de forma muito criteriosa: é preciso garantir o trabalho com todas as áreas de conhecimento, considerar a natureza das propostas e distribuir o tempo de maneira justa. Às vezes, será necessário que as atividades sejam curtas para que as crianças não fiquem entediadas e, às vezes, será necessário que se prolonguem porque demandam um tempo maior para a realização do que é solicitado. Essa dosagem tem a ver com o tipo de proposta, mas também com a capacidade de observação do professor: quando as crianças estão dispersas ou inquietas, geralmente é hora de parar...

A seguir, como ilustração, alguns exemplos de rotina: para uma das semanas iniciais de aula em uma turma de quatro anos (Nível I) e de 5 anos (Nível II) da Educação Infantil e para uma turma de 1º ano do Ciclo I.

ROTINA SEMANAL – NÍVEL I

SEGUNDA-FEIRA TERÇA-FEIRA QUARTA-FEIRA QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA

Cantinhos Cantinhos Cantinhos Cantinhos Cantinhos

Roda de Conversa[2] Roda de leitura[3] Roda de Musica[4] Roda de Conversa Roda de leitura / Escolha do livro da biblioteca de classe[5]

Projeto de Natureza e Sociedade [6]

Projeto de Linguagem Oral e Escrita

Projeto de Linguagem Oral e Escrita

Projeto de Natureza e Sociedade

Cantinho de percurso[7]

Cantinhos de artes de livre escolha

Matemática / jogos[8] Desenho livre Desenho livre Matemática / Coleção [9]

Lanche / Pátio dirigido[10]

Lanche / Pátio livre Lanche / Pátio dirigido

Lanche / Pátio livre Lanche / Pátio dirigido

Roda de leitura Desenho livre com interferência [11]

Roda de leitura Roda de leitura Roda de Música

ROTINA SEMANAL – NÍVEL II

SEGUNDA-FEIRA TERÇA-FEIRA QUARTA-FEIRA QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA

Cantinhos Matemática / situação-problema

Cantinhos Linguagem Oral e Escrita – atividades permanentes de escrita [12]

Cantinhos

Roda de Conversa[2] Roda de leitura[3] Roda de Música[4] Roda de Conversa Roda de leitura / Escolha do livro da biblioteca de classe[5]

Projeto de Natureza e Sociedade [6]

Projeto de Linguagem Oral e Escrita

Projeto de Linguagem Oral e Escrita

Projeto de Natureza e Sociedade

Cantinho de percurso[7]

Cantinhos de artes de livre escolha

Matemática / jogos[8] Desenho livre Desenho livre Matemática / Coleção [9]

Lanche / Pátio dirigido[10]

Lanche / Pátio livre Lanche / Pátio dirigido

Lanche / Pátio livre Lanche / Pátio dirigido

Roda de leitura Desenho livre com interferência [11]

Roda de leitura Roda de leitura Roda de Música

OBSERVAÇÕES

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[1]. Cantinhos é uma proposta a ser desenvolvida com todas as crianças, cujo objetivo é a interação com pares de outras idades, compondo assim um único coletivo. Uma possibilidade é desenvolvê-la nas horas de entrada e saída da escola, pois desse modo os professores podem acompanhar mais de perto esses momentos. Com o espaço físico devidamente organizado, eles têm como receber as crianças e seus familiares de uma forma acolhedora, como também se despedir deles no final do dia. O trabalho nos cantos pressupõe a organização de diferentes propostas, nas quais as crianças se inserem conforme sua própria escolha: jogos, artes, brincadeira de faz-de-conta etc. Nesse momento, não cabe ao professor trabalhar com outros conteúdos que não sejam aqueles compatíveis com a construção de atitudes decorrentes da situação de interação: seu papel é incentivar as parcerias das crianças, para que possam trabalhar umas com as outras, ou seja, que possam cooperar.

Não é preciso um espaço físico fixo para montar os diferentes ‘cantos’ para cada proposta, nem tampouco devem ficar montados o tempo inteiro, mas é importante que estejam organizados de forma que as crianças visualizem todos eles para que possam escolher e se movimentar pelo espaço, uma vez que esse é um momento de tomarem decisões em relação ao que preferem fazer e por quanto tempo. Portanto, não tem sentido propor atividades que não possam ser concluídas: elas devem ter começo, meio e fim no mesmo dia.

Considerando o objetivo da proposta, o termo mais apropriado, na verdade, seria ‘espaços interativos’ e não exatamente ateliê, entretanto esse foi o nome com que a proposta ficou conhecida em algumas instituições de Educação Infantil.

[2]. A roda de conversa tem como objetivo favorecer o desenvolvimento da linguagem oral por meio de situações comunicativas significativas, que fazem sentido, que sejam interessantes para as crianças. A ideia é priorizar a dimensão comunicativa da língua, o seu uso, e não enfatizar situações repetitivas, por exemplo, em que a criança explica sempre, na segunda-feira, o que fez no domingo, ou responde perguntas sobre o que está fazendo ou recebe orientações como ‘não faça isso’, ‘cuidado com aquilo’ etc.

[3]. A roda de leitura é uma atividade permanente, de frequência diária, em que as crianças ouvem um texto lido pelo professor. O objetivo é que elas possam ampliar o repertório de conhecimento sobre gêneros e autores e desenvolver o gosto pela leitura. A preparação por parte do professor é fundamental, pois assim poderá comunicar mais intencionalmente os comportamentos típicos de um leitor proficiente.

[4]. A roda de música é um momento organizado para que as crianças apreciem e cantem cantigas e música popular brasileira de boa qualidade. Sempre que possível, o professor deve informar as crianças de dados contextuais sobre elas: o nome do autor, o gênero musical, a época em que foi composta, a região de origem, no caso das cantigas etc.

[5]. A troca de livros é uma situação didática organizada para que as crianças possam escolher livremente os livros que querem levar para casa. A proposta é que cada uma leve um livro e o traga na próxima semana, comentando sobre o que ‘leu’.

[6.] Projeto, conforme abordado em outros momentos neste Caderno, é uma forma privilegiada de organizar os conteúdos previstos pelos diferentes eixos de trabalho na Educação Infantil: Natureza e Sociedade, Linguagem Oral e Escrita, Matemática etc. Está previsto para essa faixa etária o estudo de quatro projetos anuais (dois por semestre) e a duração de cada um deles é variável. Os temas são definidos pelos professores em função dos objetivos que se pretende atingir no final do ano (na parte de Subsídios, adiante, há um roteiro metodológico que pode ser utilizado para o planejamento e desenvolvimento dos projetos na Educação Infantil).

[7]. O canto de artes de percurso ou livre escolha pressupõe atividades planejadas para que as crianças possam produzir desenhos, colagens, modelagens, pinturas e construções, utilizando diferentes linguagens para se expressar, usando a criatividade para solucionar eventuais problemas que surgirem ao produzir seus trabalhos. Essa atividade possibilita trabalhar com conteúdos como: escolha de materiais e suportes de acordo com o que vai ser feito, utilização de diferentes materiais e exploração de suas características, organização e limpeza dos espaços e materiais depois de utilizá-los...

[8]. A proposta de trabalho com jogos tem como finalidade criar situações em que as crianças construam estratégias para resolver as questões colocadas por diferentes tipos de jogos: de construção, de memória, de encaixe, com baralho, trilha etc. Cabe ao professor fazer as escolhas mais compatíveis com as capacidades que pretende que as crianças desenvolvam e interagir com elas enquanto jogam.

[9]. O trabalho com coleções possibilita que as crianças contem oralmente, estimem a quantidade de objetos, comparem escritas numéricas, registrem etc. As coleções podem ser de adesivos, chaveiros, pedras, folhas, papel de carta ou o que a turma preferir e for pertinente. A partir delas é possível gerar várias situações-problema.

[10]. Pátio livre ou dirigido é o momento organizado para que as crianças autonomamente escolham do que desejam brincar e ampliem o seu repertório de brincadeiras. Deve ser planejado pelo professor, mesmo quando é livre – nesse caso, é importante antecipar eventuais intervenções, aspectos a observar etc.

[11]. Desenho livre com interferência ou desenho de imaginação são situações planejadas para que as crianças desenhem de modo mais intencional, elaborando traços de acordo com a proposta, selecionando os materiais adequados ao que deseja produzir etc.

[12]. Linguagem Oral e Escrita – atividades permanentes de escrita são situações planejadas para que as crianças escrevam pequenos textos que saibam de cor ou textos curtos, com o objetivo de refletir sobre o sistema de escrita alfabético. Ao propor estas atividades, é importante que o professor varie os agrupamentos e instrumentos (lápis, letra móvel, giz...) e sempre que possível defina um destino para esta escrita. Neste caderno existem alguns exemplos que podem ser úteis.

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ROTINA SEMANAL

SEGUNDA-FEIRA TERÇA-FEIRA QUARTA-FEIRA QUINTA-FEIRA SEXTA-FEIRA

LÍNGUA PORTUGUESA

→ Atividade permanente17: Leitura de um conto pelo professor

→ Atividade permanente semanal: Roda de conversa

→ Sequência de atividades: ‘Confabulando’ (sugerida no Vol 2 das Orientações Curriculares)

→ Atividade permanente de alfabetização18: Escrita de uma lista de animais que aparecem nas fábulas

LÍNGUA PORTUGUESA

→ Atividade permanente: Leitura de um poema pelo professor

→ Atividade permanente de alfabetização: ‘Leitura’ de uma parlenda para encontrar palavras solicitadas pelo professor

LÍNGUA PORTUGUESA

→ Atividade permanente: Leitura de uma notícia pelo professor

→ Atividade permanente de alfabetização: ‘Leitura’ de uma lista para encontrar respostas de uma cruzadinha

LÍNGUA PORTUGUESA

→ Atividade permanente: Leitura de uma fábula pelo professor

→ Atividade permanente de alfabetização: ‘Leitura’ de respostas para adivinhas

LÍNGUA PORTUGUESA

→ Atividade permanente semanal: Roda de leitura (comentários sobre os livros emprestados)

→ Atividade permanente de alfabetização: Escrita de títulos de histórias conhecidas

→ Atividade permanente: Leitura, pelo professor, de curiosidades sobre ‘lugares interessantes’ da Terra

MATEMÁTICA

→ Sequência de atividades: Os números nas cantigas e brincadeiras infantis

HISTÓRIA

→ Atividade permanente: Questionamento e registro de cada dia da semana, do dia, do mês e do local, e identificação em calendário

MATEMÁTICA

→ Sequência de atividades: Situações-problemas para usar números

CIÊNCIAS/GEOGRAFIA

→ Atividade semanal: Roda de conversa sobre lugares conhecidos e que se deseja conhecer (explorando noções iniciais de perto, longe, distâncias, posições)

MATEMÁTICA

→ Sequência de atividades: ‘Os números da minha rua’ (a partir da observação dos tipos de números que existem e para que servem)

CIÊNCIAS

→ Sequência de atividades: Atividade de observação comparada de animais

MATEMÁTICA

→ Atividade permanente: Contagens de objetos de uma coleção e rodas de recitação numérica em ordem crescente e decrescente, de um em um, de dois em dois, de dez em dez, etc; iniciando do 1, iniciando de qualquer número (contagens e sobrecontagens)

MATEMÁTICA

→ Atividade permanente: Contagens de objetos de uma coleção e rodas de recitação numérica em ordem crescente e decrescente, de um em um, de dois em dois, de dez em dez, etc; iniciando do 1, iniciando de qualquer número (contagens e sobrecontagens)

EDUCAÇÃO FÍSICA

→ Construção em continuidade do percurso da aula anterior e ampliação dos desafios corporais a partir da continuidade da leitura – circuito

ARTE

→ Desenho "cego": crianças em duplas fazem um rabisco em uma folha de papel com os olhos fechados, depois trocam a folha com o colega e continuam o

EDUCAÇÃO FÍSICA

→ Construção de um percurso de atividades a partir de elemento de uma história – circuito

HISTÓRIA

→ Atividade permanente: Roda de conversa com relatos de vivências cotidianas diversas, como atividades do dia, passeios e

MÚSICA

→ Atividade permanente: Trabalho com a noção de altura dos sons de uma canção ouvida, seguido de conversa e jogo

MATEMÁTICA

→ Sequência de atividades: localização e movimentação de objetos ou pessoas no espaço da escola

17 Há outras possibilidades de leitura do professor para as crianças, por exemplo: às vezes, é mais interessante ler um livro em capítulos ou um mesmo gênero textual durante toda a semana, por conta de outros objetivos que se tenha ou de determinados projetos que estejam em andamento.18 Sendo esse tipo de rotina apropriado para o início do ano letivo de um 1º ano, as atividades permanentes de alfabetização têm como propósito especial familiarizar as crianças com os tipos de procedimentos necessários para realizar as tarefas propostas, que são de ‘ler’ sem ainda saber ler e de escrever sem ainda saber escrever.

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desenho (então de olhos abertos), trabalhando a partir dos rabiscos iniciais, repetindo o procedimento no tempo da aula

brincadeiras musical combinando diferentes alturas de som e a expressão corporal correspondente

Esses são apenas alguns exemplos para dar uma ideia de como é possível distribuir as atividades na semana de trabalho. Como bem sabemos, se não houver um planejamento criterioso do tempo, com certeza a sensação será sempre de que ‘o dia não rendeu’, pois são muitas coisas a fazer e, infelizmente, em nosso país, as crianças ainda permanecem poucas horas na escola. Nesse sentido, também é importante considerar que, às vezes, o que conta na definição da sequência das atividades do dia é a organização do espaço e não exatamente o bloco contínuo de propostas de uma mesma área. Isso significa que pode ser mais pertinente desenvolver todas as atividades coletivas primeiro (rodas de leitura, de conversa, discussões etc.) para somente depois propor duplas ou atividades individuais, de modo a otimizar o uso do espaço já organizado de uma determinada maneira. Tomando-se como exemplo a proposta de rotina do Ensino Fundamental, veremos que pode ser mais oportuno que a atividade de História, prevista para a quarta-feira, aconteça logo na sequência da leitura do professor para as crianças (e não, como sugere o quadro acima, após a atividade de encontrar respostas para a cruzadinha, que possivelmente será em dupla). Assim, não apenas se gasta menos tempo com a arrumação do espaço, como também fica favorecida a discussão ‘do tempo da notícia’ (o gênero sugerido para a leitura nesse dia), que tem a ver com o conteúdo da atividade de História.

Na verdade, a organização do tempo é necessária para a aprendizagem não só as crianças, mas também dos professores, em especial no que se refere à gestão do trabalho pedagógico e da classe. Essa é uma aprendizagem constante, pois a cada nova turma novos desafios são colocados, uma vez que nem sempre o que se aprende sobre a gestão do trabalho em um ano é transferível diretamente para o outro.

Da mesma forma que não há como desenvolver um mesmo plano de ensino ano após ano, não é possível organizar rotinas de trabalho que sejam idênticas para todas as turmas. Nesse sentido, podemos afirmar que as rotinas, ainda que tenham estruturas parecidas, são sempre diferentes: cada uma deve ter um ‘toque’ que evidencie as características do grupo específico para o qual foi elaborada e a história do trabalho realizado – uma história que é singular porque nunca se repete igualmente, por mais que se planeje o trabalho de modo semelhante.

O planejamento da rotina é algo a ser inventado periodicamente: uma invenção que depende da clareza do professor sobre os objetivos do ensino, sobre os critérios de seleção dos conteúdos, sobre as formas de trabalhar didaticamente com eles, sobre o conhecimento que têm (ou não) seus alunos. Uma rotina que é, ao mesmo tempo, um espaço de invenção pedagógica do professor e uma forma de organizar o tempo de aprender das crianças; ao contrário do que pode insinuar o sentido negativo da palavra (de ‘mesmice’), entendemos que rotina significa movimento, criação, produção de conhecimento.

Ao planejar suas rotinas, o professor percorre um caminho de elaboração teórica, de produção de teoria, da sua teoria sobre o próprio trabalho. Assim, o planejamento é recriado continuamente a partir de sua análise, ou seja, de um processo de avaliação docente que indica até onde as propostas, as intervenções já realizadas estão atendendo aos objetivos e até mesmo se estes estão ou não adequados.

Dessa perspectiva, ainda que pautado no que já aconteceu, o ato de planejar implica um tipo de reflexão que é anterior à ação. É o momento em que, com base em sua experiência prévia, o professor antecipa as atividades que julga serem mais adequadas para o seu grupo de alunos, as formas de desenvolvê-las, os recursos mais apropriados, os agrupamentos que podem ser mais produtivos... Assim, ‘planejar é refletir antes de agir’, como afirma Carlos Matus (1997).

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Outro aspecto importante a considerar é que a explicitação dos propósitos do trabalho para as crianças contribui para ‘engajá-las’ nas atividades, o que favorece o bom andamento das coisas e a otimização do tempo. Nesse sentido, a recomendação é:

• informar o que se pretende com as atividades, para que compreendam que as tarefas propostas respondem a algum tipo de objetivo/necessidade;

• prepará-las antes de introduzir qualquer mudança ou novidade na rotina, não só em relação às propostas de atividade, mas também à organização do espaço, à utilização dos materiais, às formas de agrupamento, ao tipo de intervenção etc. – tudo o que não é familiar causa estranhamento e tende a produzir uma agitação que, embora natural, pode prejudicar de algum modo o andamento do trabalho se as crianças não souberem as razões;

• apresentar as atividades de maneira a incentivá-las a dar o melhor de si mesmas e a acreditar que sua contribuição é relevante para todos;

• e criar um ambiente favorável à aprendizagem, bem como ao desenvolvimento de autoconceito positivo e da confiança em sua própria capacidade de enfrentar desafios (por exemplo, por meio de situações em que elas sejam incentivadas a se colocar, a fazer perguntas, a comentar o que aprenderam etc.).

Ainda sobre as propostas de atividade, uma última recomendação: sempre que possível, elas devem ser o mais simples possível para a criança realizar e o menos trabalhosas possível para o professor preparar. Propostas em que o professor precisa desenhar, fazer fichas e organizar muitos materiais alternativos e que as crianças precisam destacar, montar e gastar um tempo enorme para cumprir a tarefa, se puderem ser substituídas por alternativas mais simples, sem que haja prejuízo ao desafio colocado, devem ser simplificadas.

Para que uma atividade seja considerada de fato uma situação de aprendizagem é preciso que seja ‘ajustada’ às crianças para os quais ela se destina, é preciso que seja difícil e possível, que seja desafiadora. Como se vê, o que importa é a qualidade do desafio e não a quantidade de recursos e o tempo gasto com sua preparação.

Por trás do que se faz19

Para compreender melhor a ‘rede invisível’ que há por trás das atividades escolares cotidianas, quer dizer, daquilo que é apresentado como proposta aos alunos, é importante tematizar um exemplo – e aqui a opção foi por um exemplo da área da linguagem, pois em certa medida, inclui aspectos também de outras áreas.

A tendência que se consolidou nos últimos anos, seja na Educação Infantil ou no Ensino Fundamental, indica a necessidade inequívoca de trabalhar com os diferentes textos que circulam socialmente. Essa proposta está expressa em muitos documentos curriculares produzidos recentemente, inclusive no Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil e nos Parâmetros Curriculares Nacionais, ambos publicados pelo Ministério da Educação já no final da década de 1990.

A defesa do trabalho com a diversidade de gêneros textuais é justificada pela certeza de que é de responsabilidade da escola criar condições para que os alunos – sejam crianças, jovens ou adultos – desenvolvam progressivamente suas diferentes capacidades, entre elas ‘utilizar diferentes linguagens como meio para expressar e comunicar ideias, interpretar e usufruir das produções da cultura’ e ‘utilizar a língua para compreender e produzir mensagens orais e escritas, em contextos públicos e privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação.’20

19 O conteúdo deste item coincide parcialmente com um artigo de Rosaura Soligo, publicado originalmente em Cadernos da TV Escola (MEC/SEF,1999).20 Esses são objetivos expressos nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa: Primeiro e Segundo Ciclos do Ensino Fundamental (1997) e, com as devidas adequações à faixa etária, também defendidos no Referencial

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Esses objetivos amplos indicam os conteúdos a serem trabalhados: se, na escola, os alunos têm direito de aprender a utilizar diferentes linguagens em diferentes contextos, será então imprescindível desenvolver um intenso trabalho com a diversidade textual.

Isso implica levar em conta determinados critérios, ao selecionar os conteúdos: por exemplo, para favorecer o desenvolvimento da capacidade de uso proficiente da linguagem oral e escrita, objetivo principal do ensino da língua, é preciso trabalhar pedagogicamente com situações que demandem escutar, ler, falar e escrever. Portanto, escuta, leitura, fala e escrita são os conteúdos centrais durante toda a escolaridade. Mas será preciso também abordá-los de forma coerente com esse mesmo objetivo, o que significa organizá-los e sequenciá-los segundo determinados pressupostos metodológicos.

Dessa perspectiva, o critério uso-reflexão-uso parece ser o mais adequado para a organização desses conteúdos – tradução, para as situações de trabalho com a linguagem, da sabedoria do Professor Paulo Freire, que sempre defendeu o movimento metodológico de ação-reflexão-ação para as situações educativas. Assim, é possível tomar as possibilidades de utilizar a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e como meta do trabalho pedagógico. E o critério para sequenciar o que se deseja ensinar implica considerar, ao mesmo tempo, o nível de conhecimento prévio dos alunos e o grau de complexidade do que a eles se apresenta como conteúdo.

Ou seja, o tratamento didático das atividades de escuta, leitura, fala e escrita segundo esses pressupostos apoia-se na possibilidade de avaliar adequadamente o que sabem ou não as crianças; do contrário, não se poderá organizar e sequenciar as situações de ensino que se pretendem ajustadas às suas potencialidades e necessidades de aprendizagem.

Assim, a aparente simples proposta de trabalhar com a diversidade textual tem por trás uma série de propósitos e outros tantos desdobramentos como decorrência. Por exemplo, a depender do tipo de aprendizagem que se pretende favorecer, os conteúdos podem ser organizados em atividades permanentes, atividades sequenciadas, atividades de sistematização ou projetos21.

Hoje se fala muito na importância do trabalho com projetos, entre outras razões porque eles possibilitam:

• tomar a criança como protagonista da própria aprendizagem;

• elaborar conjuntamente com a turma algumas propostas a serem desenvolvidas;

• experimentar, na prática, a construção coletiva de um empreendimento, o que tende a fortalecer o ‘espírito de grupo’;

• construir algumas certezas compartilhadas e discutir incertezas;

• contextualizar as propostas, o que é sempre uma vantagem pedagógica;

• aproximar a ‘versão escolar’ e a ‘versão social’ de práticas e conhecimentos tomados como conteúdos e planejar situações didáticas que se assemelham ao que acontece fora da escola;

• responder ao mesmo tempo a objetivos didáticos e a objetivos de realização do aluno, nem sempre coincidentes22;

• trabalhar a favor de dois produtos ao mesmo tempo: o que é previamente definido por todos como tal e – o mais importante – o aprendizado decorrente do projeto.

Curricular Nacional de Educação Infantil (1998), documentos publicados pelo Ministério da Educação.21 Essas formas (ou modalidades) de organização dos conteúdos são defendidas por Delia Lerner e constam do texto É possível ler na escola?, presente no livro Ler e escrever na escola - o real, o possível e o necessário (Artmed, 2002).22 Os objetivos didáticos representam capacidades que se pretende que os alunos desenvolvam e os objetivos deles próprios relacionam-se a necessidades pessoais, quase sempre de realização imediata. Por exemplo, quando o professor lê diferentes textos para a classe todos os dias, cuidando da qualidade e da adequação ao interesse, certamente pretende que as crianças tenham contato com a diversidade textual, que se familiarizem com a linguagem, que se interessem pela leitura em função do que se pode ‘ganhar’ com ela, que compreendam algumas características dos diferentes gêneros... Para as crianças, entretanto, os objetivos já são de outra natureza: elas, com certeza, estarão muito mais interessadas nas novidades trazidas por essas leituras.

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Entretanto, projeto é apenas uma das formas possíveis de trabalhar didaticamente os conteúdos – a depender da natureza que eles têm e dos objetivos propostos, outras podem ser mais adequadas, conforme indica o quadro a seguir:

Formas de organizar os conteúdos escolares23

PROJETOSSEQUÊNCIAS DE ATIVIDADES [ou Atividades sequenciadas]

ATIVIDADES PERMANENTES

ATIVIDADES INDEPENDENTES

São situações didáticas que se articulam em função de uma finalidade e de um produto final compartilhados. Contextualizam as atividades e, embora não necessariamente, podem ser interdisciplinares.

São situações didáticas articuladas que possuem uma sequência de realização cujo critério principal são os níveis de dificuldade.

São situações didáticas cujo objetivo é constituir atitudes, desenvolver hábitos etc.

ATIVIDADES OCASIONAIS:

São situações em que algo significativo é trabalhado sem que tenha relação direta com o que foi planejado.

ATIVIDADES DE SISTEMATIZAÇÃO

São situações que não estão relacionadas com propósitos imediatos, mas com objetivos e conteúdos definidos para o ano, pois se destinam justamente à sistematização dos conhecimentos.

PERIODICIDADE: depende dos objetivos propostos - um projeto pode ser de dias ou meses. Quando de longa duração, os projetos permitem o planejamento de suas etapas e da distribuição do tempo com as crianças.

PERIODICIDADE: variável PERIODICIDADE: diária, semanal, quinzenal e até mesmo mensal... As atividades se repetem de forma sistemática e previsível.

CARACTERÍSTICA BÁSICA: Ter uma finalidade compartilhada por todos os envolvidos que se expressa em um produto final, resultado de uma sequência de atividades.

CARACTERÍSTICA BÁSICA: funcionam de forma parecida com os projetos, mas não têm produto final pré-determinado.

CARACTERÍSTICA BÁSICA: a marca principal dessas situações é a regularidade e, por isso, possibilitam contato intenso com um tipo de conteúdo.

Na Parte 3 deste Caderno, como subsídio, há um roteiro metodológico para organizar especificamente os projetos temáticos. E a seguir alguns exemplos de atividades permanentes24

que podem ser desenvolvidas na Educação infantil e no Ensino Fundamental e que mostram a importância desse tipo de proposta:

Leitura diária feita pelo professor – Momento em que se lê para as crianças: é hora do professor, leitor experiente, ajudar a ampliar o repertório dos leitores iniciantes. É possível, por exemplo, ler uma história longa em capítulos, histórias curtas do começo ao fim, poemas, cordéis, biografias, resenhas, outros textos informativos.

Roda semanal de leitura – Momento de socializar opiniões sobre os livros emprestados para levar para casa, de desenvolver e compartilhar ‘comportamento leitor’ – fazendo comentários, ouvindo e discutindo impressões, trocando opiniões, se interessando pelos livros comentados pelas outras crianças.

Você sabia? - Momento em que se discutem assuntos/temas de interesse das crianças. ‘Como viviam os dinossauros?’ ‘Por que a água do mar é salgada?’ ‘Como as crianças indígenas brincam?’. Cada criança ou grupo pode se encarregar de tentar descobrir respostas para as perguntas. O professor também pode trazer, para esse momento, suas observações sobre o que mais mobiliza sua turma, em termos de curiosidade científica. É uma excelente oportunidade de abordar temas das diferentes áreas do conhecimento com crianças de todas as idades.

Notícias da hora – Momento reservado às notícias que mais chamaram a atenção das crianças durante a semana, que permite exercitar o relato oral e a discussão de assuntos da atualidade.

23 Material de sistematização produzido por Rosaura Soligo, Rosângela Veliago e Rosa Maria Antunes de Barros a partir das contribuições de Delia Lerner em ‘É possível ler na escola?’, do livro Ler e escrever na escola - o real, o possível e o necessário (Artmed, 2002).24 Estas propostas foram adaptadas a partir das sugestões contidas em Ensino Fundamental de 9 anos - Orientações para a inclusão de crianças de seis anos de idade (Brasília: MEC/SEB, 2006).

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Vamos brincar? – Momento em que se ‘brinca por brincar’, em pequenos grupos, meninas com meninos, só meninas, só meninos, em duplas, em trios, sozinhos. É hora de o professor/a professora garantir a brincadeira, organizando, com as crianças, tempos, espaços e materiais para esse fim. É hora de observar as crianças em atividade e de registrar essas observações para planejar outras atividades.

Fazendo arte – Momento reservado para as crianças conhecerem um artista específico (músico, poeta, pintor, escultor...): sua obra, sua vida, seu estilo. Pode haver ainda a atividade de ‘fazer à moda de...’, em que as crianças tentam imitam o artista.

Cantando e se encantando – Momento em que se privilegiam as músicas que as crianças conhecem e gostam de cantar, sozinhas ou todas juntas. É hora também de ouvir músicas de estilos e compositores variados, como forma de ampliação de repertório e gosto musical.

Comunidade, muito prazer! – Momento (que pode ser quinzenal ou mensal) em que se convidam artistas da região ou profissionais especializados (bombeiros, eletricistas, engenheiros, professores, repentistas, contadores de histórias etc.) para irem à escola e fazerem uma apresentação/palestra/conversa. O evento demanda ação das crianças junto com o professor: elaborar o cronograma, selecionar as pessoas, fazer o convite, organizar a apresentação da pessoa, avaliar a atividade etc.

A família também ensina... – Momento (que pode ser quinzenal ou mensal) em que se convidam mãe, pai, avô, avó, tio, tia para contar histórias, fazer uma receita culinária, contar como se brincava em sua época, cantar com as crianças. É a família enriquecendo seus laços com a escola e com as crianças, compartilhando seus saberes.

Descobri na Internet – Para as crianças que têm acesso à Internet, em casa ou na comunidade, é possível reservar um momento para as descobertas que realizam. Aos poucos, o professor pode ajudá-las a selecionar informações e a ter uma visão mais crítica sobre o que circula na Internet.

Nossa semana foi assim... – Momento em que, de forma sucinta, se retoma o trabalho desenvolvido e se auxilia as crianças no relato e na síntese do que aprenderam; em que a memória de um é complementada com a fala do outro; em que o professor faz uma síntese escrita na lousa ou em cópias no papel ou de qualquer outro modo. Enfim, é hora de sistematizar, um pouco mais, as aprendizagens da semana: O que sabíamos? O que aprendemos? O que queremos aprender mais?

Diário da aula – Momento de cada criança registrar o que foi feito no dia, com a ajuda do professor – quando já sabem escrever, é o momento de exercitar a escrita, quando ainda não sabem, outros recursos de registro podem ser utilizados: tabela para preencher, lista para enumerar ou outros do tipo.

Como se pode ver, não são poucas as decisões que sustentam as proposta que fazemos cotidianamente às crianças: decisões que tem a ver com por que ensinar (os objetivos), o que (os conteúdos), como (o tratamento didático) e o quando (em que tempo).

Parte 3 – Subsídios

Sobre a aprendizagem inicial da matemática

Sobre a aprendizagem da língua oral e escrita

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Sobre os gêneros textuais

Sobre a organização de projetos temáticos

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SOBRE A APRENDIZAGEM INICIAL DA MATEMÁTICA

Rosângela Veliago

Como a numeração escrita existe não só dentro da escola, mas também fora dela, as crianças têm a oportunidade de elaborar conhecimentos acerca deste sistema de representação muito antes de ingressar no 1º ano. Produto cultural, objeto de uso social cotidiano, o sistema de numeração se oferece à indagação infantil desde as páginas dos livros, a listagem de preços, os calendários, as regras, as notas da padaria, os endereços das casas... 25

Delia Lerner

Precocemente, as crianças aproximam-se de inúmeras informações sobre os números e seus usos: ao ouvirem os pais conversarem sobre as contas que precisam ser pagas, ao marcarem os números de telefone, ao registrarem números de casas e apartamentos, ao anotarem a idade de um colega, ao se defrontarem com os preços de produtos de uma loja, com os números do controle remoto da televisão, com os dias no calendário, com os números das páginas de livros e revistas etc. Essas informações lhes permitem construir hipóteses sobre o número e o sistema de representação que utilizamos, o sistema decimal, muito antes de iniciarem a escolaridade.

Durante muito tempo, todo este conhecimento foi ignorado pela escola, pois, ao planejar o trabalho de Matemática, considerava-se que as crianças nada sabiam a respeito e, portanto, deveriam ser preparadas para compreenderem o funcionamento do sistema de numeração decimal. Em consequência disso, os conteúdos selecionados para a Educação Infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental restringiam-se a algumas atividades, denominadas pré-numéricas (seriação, classificação, correspondência biunívoca...), e à apresentação de pequenos intervalos da série numérica – até 9 na Educação Infantil e até 99 na 1ª série do Ensino Fundamental – resultando em descontextualização e fragmentação dos conteúdos matemáticos.

Hoje contamos com muitas contribuições das pesquisas na área da Educação Matemática, que apontam como fundamental, entre outros aspectos26:

◦ abordar a numeração escrita, considerando a sua complexidade;

◦ assumir que o sistema de numeração – enquanto objeto de conhecimento das crianças – passará por sucessivas definições e redefinições antes de chegar a ‘sua última versão’;

◦ introduzir na sala de aula a numeração escrita tal como ela é e trabalhar a partir dos problemas inerentes à sua utilização;

◦ trabalhar desde o começo e simultaneamente com diferentes intervalos da sequência numérica.

Algumas escolhas didáticas

25 LERNER, D. e SADOVSKY, P. O sistema de numeração: um problema didático. IN: PARRA, C. e SAIZ, I. (Orgs.). Didática da Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas: 1996. p. 74.

26 LERNER, D. e SADOVSKY, P. O sistema de numeração: um problema didático. IN: PARRA, C. e SAIZ, I. (Orgs.). Didática da Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas: 1996. p. 116 e 117.

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Considerando essas recomendações, decorrentes da pesquisa sobre a aprendizagem da matemática, ao planejar o trabalho pedagógico é importante garantir:

1. A resolução de situações-problema

A resolução de situações-problema muitas vezes é entendida como mero exercício de aplicação de conhecimento, em que basta usar o conhecimento sobre os conteúdos ensinados para obter determinado resultado. Entretanto, buscar respostas para problemas é muito mais do que exercitar o aprendido: muitas vezes, a situação é um problema a resolver justamente porque não se tem a priori todo o conhecimento para resolvê-la e, por isso, se constitui em um desafio. E desafio, como muitas vezes já se disse, é a produtiva combinação do difícil-e-possível. Vejamos um exemplo bastante esclarecedor: colocar uma criança para pensar em quanto é 2 + 3 pode ser uma situação-problema para ela? Sim, se ela não souber a resposta. Se ela souber a resposta, não.

Como em Matemática são comuns os clássicos problemas de aplicação de conhecimento sobre os conteúdos trabalhados (que também têm importância, do ponto de vista pedagógico), essa ideia acabou ficando muito misturada com a ideia de situação-problema... Mas uma situação de aplicação, desse tipo, só é uma situação-problema de fato se apresentar algum nível de desafio: quando se torna apenas um exercício, supostamente de ‘fixação de conhecimento trabalhado’, deixa de ser um bom problema a resolver.

A perspectiva, portanto, é de que as crianças possam construir soluções pessoais para situações que sejam efetivamente problemas para elas, que possam desenvolver estratégias para chegar às respostas que procuram a partir da reflexão e da interação com seus pares: elaborando procedimentos de resolução, comparando os resultados que obtiveram com os dos colegas e validando os procedimentos utilizados.

Nesse sentido, “propor às crianças que anotem de que maneira resolveram a operação é dar um passo importante para o progresso de todas, porque isso permite que cada uma delas tome consciência do procedimento que utilizou e porque a confrontação se vê favorecida ao abrir-se a possibilidade de comparar anotações”27.

2. O domínio da série numérica oral

As crianças elaboram hipóteses sobre a numeração escrita a partir do que conhecem da numeração falada, por isso é fundamental que possam dominar progressivamente a numeração oral. Cabe, então, planejar diferentes situações em que elas aprendam a numeração falada, inclusive de diferentes intervalos da série numérica – 10 em 10, 5 em 5, 2 em 2... Propor jogos, cantar músicas ou parlendas, organizar rodas de recitação de números são algumas das possibilidades para tanto.

3. O trabalho com quatro atividades básicas – operar, ordenar, produzir e interpretar escritas numéricas

Para construir conhecimento matemático, as crianças precisam usar os números, lê-los, escrevê-los, compará-los, pensar sobre eles, aproximando-se assim da compreensão das regularidades inerentes ao sistema de numeração. Isso só é possível se tiverem contato com o sistema de numeração tal como ele é e não apenas com pequenas partes, ‘em doses’, como ocorre, por exemplo, quando o trabalho se restringe a números compreendidos entre 1 e 9.

O fato é que a tradição pedagógica consolidou, no ensino da matemática, a crença na necessidade de apresentar os números às crianças, um por vez. Por isso, é ainda frequente que elas sejam submetidas a atividades sem sentido de cópia de números – páginas inteiras de um mesmo número, por exemplo, com o propósito de ‘fixá-los’, o que resulta improdutivo, porque as regularidades de um sistema só se evidenciam quando seus elementos são considerados uns em relação aos outros, e não isoladamente, como se tivessem existência por si...

27 LERNER, D. e SADOVSKY, P. O sistema de numeração: um problema didático. IN: PARRA, C. e SAIZ, I. (Orgs.). Didática da Matemática. Porto Alegre: Artes Médicas: 1996. p. 139.

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Como afirma Mabel Panizza28, trabalhar nessa perspectiva pedagógica pressupõe conhecer os conhecimentos prévios das crianças, incentivá-las na busca de novas estratégias, apoiar aquelas que precisam de mais ajuda para avançar, fazer circular as informações e os saberes... Ou, em outras palavras, possibilitar que as crianças descubram o prazer de fazer matemática.

Tal como se defende também nas Orientações Curriculares para o Ciclo I, o trabalho com a matemática na escola deve ancorar-se nas experiências que as crianças vivenciam cotidianamente, garantindo a ampliação de seu universo matemático:

Esse universo deve ser diversificado como diversificados são os contextos em que a matemática é utilizada: as crianças lidam com números em suas contagens, ordenações, medições e nos códigos presentes em sua vida; fazem operações e calculam; exploram o espaço e as formas que nele existem; lidam com grandezas e medidas e têm algum contato com tabelas e gráficos, com dados e informações. Desse modo, é importante que seus primeiros contatos com a matemática contemplem essa diversidade e que tenham oportunidades de refletir sobre as experiências matemáticas que vivenciam em seu contexto doméstico e social.Nessa perspectiva, com relação aos números, o ponto de partida das aprendizagens são os contextos familiares e frequentes em que as crianças vivem: as atividades precisam envolver o uso dos números no contexto social, como na identificação dos dias do mês, do ano, dos preços etc., mas é necessário também que, desde pequenas, realizem atividades matemáticas sem estarem inseridas em um contexto particular – com a finalidade de observarem padrões, regularidades e irem construindo um vocabulário próprio da matemática.Estudos recentes revelam que o trabalho com números deve se apoiar na reflexão sobre ‘para que servem os números’. As funções dos números (cardinal, ordinal, código, medida) podem aparecer em atividades em que a proposta é reconhecer e utilizar o número como memória de quantidade, ou ainda como memória de posição, ou ainda em situações em que o número aparece como código (número do telefone, placa de um carro).O que hoje se sabe é que as crianças observam a quantidade de algarismos presentes em sua escrita e muitas vezes afirmam, por exemplo, que 845 é maior que 98 porque tem mais ‘números’. Nesse caso, elas conjecturam que ‘quanto maior é a quantidade de algarismos de um número, maior o número’ – e esse critério de comparação funciona mesmo quando ainda não conhecem ‘o nome’ dos números que estão comparando. Ao comparar o número 68 e 86, não é raro as crianças afirmarem, por exemplo, que o 86 é maior porque o 8, que vem primeiro, é maior que 6, ou seja, se a ‘quantidade’ de algarismos é a mesma, ‘o maior é aquele que começa com o número maior, pois o primeiro é quem manda’. Embora não percebam o agrupamento, elas identificam que a posição do algarismo no número cumpre um papel importante no nosso sistema de numeração, isto é, o valor que um algarismo representa, apesar de ser sempre o mesmo, depende do lugar em que está localizado em relação aos outros algarismos desse número. Muito frequentemente, as crianças recorrem à justaposição de escritas para escrever números e as organizam ‘de acordo com a fala’. Assim, muitas vezes, para representar o 546, podem escrever 500406 (500 e 40 e 6) ou 50046 (500 e 46) e justificam que ‘escrevem do jeito que se fala’. Quando produzem a escrita numérica em correspondência com a numeração falada, elas podem escrever os números ainda de forma não-convencional. Mas, quando comparam suas escritas numéricas com as de outros colegas, por exemplo, passam a estabelecer novas relações, refletem sobre as respostas possíveis e os procedimentos utilizados, validando ou não determinadas escritas. É no decorrer desse processo que começam a observar as regularidades do sistema de numeração. [...] Da mesma forma que as crianças constroem hipóteses sobre as escritas numéricas e também procedimentos pessoais de resolução de problemas e de cálculos, elas também

28 PANIZZA, Mabel. Ensinar matemática na Educação Infantil e nas séries iniciais. Porto Alegre, Artmed, 2008. P. 74.

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constroem hipóteses sobre o espaço e as formas que as rodeiam. O espaço percebido – espaço perceptivo, em que o conhecimento dos objetos resulta de um contato direto com eles – lhes possibilitará a construção de um espaço representativo, o que só é possível se elas ampliarem suas experiências sobre o espaço e com os objetos. Hoje se sabe que o pensamento geométrico envolve as relações e representações espaciais que as crianças desenvolvem, desde muito pequenas, inicialmente pela exploração dos objetos, das ações e deslocamentos que realizam no seu ambiente e da resolução de problemas que lhe são apresentados. Em relação às figuras tridimensionais e bidimensionais, fazem representações de objetos, inicialmente pela visualização que têm deles e, aos poucos, buscando representar propriedades da forma desses objetos que vão descobrindo. Esse processo é potencializado à medida que o professor oferece situações em que elas podem explorar essas formas. [...] Selecionando e desenvolvendo boas situações de aprendizagem, ou seja, situações que de fato levam em conta os conhecimentos prévios das crianças – que, geralmente, são bem mais amplos do que suspeitamos – e que lhes colocam novos desafios sob a forma de problemas (considerando o que elas pensam, socializando ideias, sistematizando-as e trazendo novas informações), o professor certamente poderá cumprir uma tarefa essencial da escola: favorecer um contato amistoso das crianças com a matemática.29

Seja na Educação Infantil ou no Ensino Fundamental, é exatamente essa a perspectiva pedagógica: favorecer um contato amistoso das crianças com a matemática e possibilitar que elas descubram o prazer de fazer matemática.

29 Texto escrito por Célia Maria Carolino Pires, com a colaboração de Edda Curi e Ivan Cruz Rodrigues.

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SOBRE A APRENDIZAGEM DA LÍNGUA ORAL E ESCRITA30

Para cada criança, escrever e ler deveria tornar-se um prazer, uma descoberta, uma experiência existencial vivida e partilhada, uma tomada de poder sobre a língua.

Josette Jolibert

Não são poucos os problemas que hoje se verificam em relação ao ensino e aprendizagem da língua na escola.

Para entender melhor a dimensão desses problemas, basta verificar o que indica a importante pesquisa31 realizada no país, em 2001 e novamente em 2003, para aferir o Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional – INAF. Coordenada por Vera Mazagão, a pesquisa foi realizada nacionalmente em um universo de duas mil pessoas entre 15 e 67 anos, de diferentes classes sociais, em todas as regiões do país: tanto em 2001 quanto em 2003, o que se verificou é que, dentre os entrevistados, apenas 26% leem fluentemente – 9% são analfabetos e os demais foram classificados em três níveis de alfabetismo. No Nível 1 estão aqueles que conseguem localizar uma informação explícita apenas em textos muito curtos (31%); no Nível 2 estão os que conseguem também localizar uma informação não-explícita em textos de extensão um pouco maior (34%); e no Nível 3 estão os que são capazes de ler textos mais longos, localizar mais de uma informação e estabelecer relações entre diversos elementos do texto (26%).

Lamentavelmente, esses resultados indicam que menos de um terço dos cidadãos deste país leem com proficiência. E mostram que, de algum modo, o trabalho pedagógico que se faz nas escolas não tem contribuído para a formação de leitores... Porque, se 9% da população brasileira é totalmente analfabeta e só 26% lê com proficiência, dos 74% que não têm pleno domínio da leitura, certamente a grande maioria passou pela escola. Sendo assim, ainda que de forma um tanto simplificada, com base nesses dados podemos afirmar que (retirados os 9% de analfabetos totais, que talvez não tenham passado pela escola) a escola tem obtido 91% de sucesso no ensino da correspondência letra-som. Entretanto, a grande maioria das pessoas não consegue ler!

Ao que parece, se 74% da população deste país, entre 15 e 67 anos, tem níveis insuficientes de leitura, isso revela pelo menos três situações graves: a escola de fato não tem conseguido ensinar a ler; esse não é um fenômeno recente (uma vez que essa pesquisa é feita com pessoas de todas as idades, inclusive mais idosas); e é falsa a suposição de que “antigamente todo mundo aprendia”. Até porque, desde que são aferidos os percentuais de aprovação no país (a partir da metade do século passado), verifica-se que os índices de retenção na primeira série por muitas décadas permaneceram em torno de 50%, quando metade da população sequer tinha direito de estudar. Ou seja, tendo em conta que a promoção na primeira série esteve por décadas vinculada diretamente à alfabetização, isso significa que, por mais absurdos que sejam nossos números hoje, a situação é, por assim dizer, melhor do que a de um tempo em que metade das crianças não tinha direito à escola e, das que tinham, metade não se alfabetizava no primeiro ano de escolaridade.

Esse quadro dramático parece mostrar que o excesso de preocupação com o ensino da correspondência letra-som, que predomina na escola (seja no processo de alfabetização ou na ênfase exagerada na ortografia) não tem contribuído para a formação de usuários competentes da linguagem. Sim, porque, se há dificuldades relacionadas à leitura, há muito mais ainda relacionadas à produção de textos por escrito. Tudo indica que, a despeito de todas as inovações pedagógicas propostas para o ensino de Língua Portuguesa, a crença da escola de que o mais

30 Texto adaptado a partir do original escrito por Rosaura Soligo, como orientação para o trabalho dos professores alfabetizadores do Acre com o livro Para aprender a ler e escrever – livro didático de alfabetização produzido pelo Instituto Abaporu de Educação e Cultura e publicado em parceria pela Secretaria Estadual da Educação do Acre e pela Secretaria Municipal da Educação de Rio Branco em 2008.31 Publicada em ‘Letramento no Brasil’, pela Editora Global (2003) em parceria com o Instituto Paulo Montenegro e a Ong Ação Educativa, responsáveis pela pesquisa. Dados atualizados a esse respeito podem ser obtidos em http://nsae.acaoeducativa.org.br/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=1344

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importante, no final das contas, é ensinar a correspondência letra-som e a correta ortografia se manteve praticamente inabalada nas últimas décadas...

A perspectiva que fundamenta este Caderno e toda a Série Orientações Curriculares, como se pode verificar nos documentos específicos sobre o trabalho com a língua e a linguagem, vai na direção oposta a essa crença que em nada tem ajudado nossas crianças. Entretanto, como nesses documentos não são detalhados os encaminhamentos didáticos das atividades específicas de alfabetização, consideradas mais adequadas para o trabalho com as crianças, isso é feito detalhadamente a seguir. Ainda que o ensino da correspondência letra-som não deva ser a preocupação exclusiva no final da Educação Infantil e no início do Ensino Fundamental, ele é importante, necessário e deve ser planejado de modo intencional e articulado às situações de letramento e ampliação de conhecimento.

O que propor às crianças desde a Educação Infantil?

A alfabetização passa a ser uma tarefa interessante, que dá lugar a muita reflexão e a muita discussão em grupo. A língua escrita se converte num objeto de ação e não de contemplação. É possível aproximar-se dela sem medo, porque se pode agir sobre ela, transformá-la e recriá-la. É precisamente a transformação e a recriação que permite tal apropriação.

Emilia Ferreiro

Ao longo dos anos, a discussão sobre o que seria tarefa da Educação Infantil ensinar às crianças em relação à escrita esteve no centro da preocupação de diferentes especialistas e educadores. Durante muito tempo, a perspectiva foi garantir a chamada ‘prontidão’ para a alfabetização, entendida como execução de exercícios estereotipados, relacionados à coordenação motora e às diferentes discriminações (visuais, táteis, gustativas...). Em outros momentos, achou-se por bem alfabetizar as crianças desconsiderando seus conhecimentos prévios e oferecendo atividades totalmente descontextualizadas.

Hoje sabemos que a principal tarefa que se coloca para a Educação Infantil é aproximar as crianças dos usos sociais da linguagem oral e escrita e que a compreensão da escrita alfabética não deve constituir-se no foco principal do trabalho pedagógico.

Experiências bem sucedidas em relação à alfabetização têm apontado a importância de alguns pressupostos, quando o que se pretende é de fato a formação de leitores e escritores plenos32:

◦ Trabalhar com a língua escrita como um objeto sociocultural, sem descaracterizá-la dessa condição.

◦ Estimular a interação das crianças com a língua escrita nos mais variados contextos.

◦ Criar condições para que, desde os anos iniciais da Educação Infantil, todas as crianças possam produzir e interpretar escritas, cada qual em seu nível.

◦ Apresentar a escrita do próprio nome e incentivar as crianças a escrevê-lo.

◦ Tratar as crianças com respeito intelectual, sem supervalorizá-las supondo que de imediato aprenderão o que se espera e sem subestimá-las supondo que nada sabem até que o professor ensine.

Assim, a proposta na Educação Infantil é privilegiar o trabalho com projetos33, dentre outras razões porque favorecem práticas pautadas nesses pressupostos, e também com as atividades permanentes de reflexão sobre a escrita, porque, quando ajustadas às possibilidades e

32 FERREIRO, Emilia. Experiências Alternativas de Alfabetização. In Com todas as letras, São Paulo, Cortez Editora, 2003.33 Existem alguns exemplos de projetos na parte de Linguagem Oral e Escrita das Orientações Curriculares de Educação Infantil.

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necessidades de aprendizagem das crianças, potencializam a reflexão sobre os usos da linguagem e sobre a escrita alfabética.

Atividades permanentes de alfabetização34

As atividades permanentes de alfabetização são situações de ensino e aprendizagem propostas diariamente às crianças, até que elas se alfabetizem. São atividades orientadas pelo princípio metodológico da resolução de problemas, pelo propósito de favorecer a compreensão das regras de geração da escrita alfabética e pelo entendimento de que a alfabetização é resultado de um exercício permanente de análise e reflexão sobre a língua.

O princípio metodológico da resolução de problemas pressupõe que essas atividades sejam sempre situações desafiadoras, ou seja, ao mesmo tempo difíceis e possíveis de fazer. Para tanto, em se tratando da alfabetização, é condição o professor conhecer as hipóteses de escrita das crianças para adequar a tarefa ao que elas podem realizar e para agrupá-las de modo que possam trabalhar produtivamente, aprendendo umas com as outras, ajudando-se umas as outras, questionando-se...

Uma atividade uma situação de aprendizagem de fato quando35:

° as crianças precisam pôr em jogo tudo o que sabem e pensam sobre o conteúdo em torno do qual o professor organizou a tarefa;

° as crianças têm problemas a resolver e decisões a tomar em função do que se propõem a produzir;

° o conteúdo trabalhado mantém suas características de objeto sociocultural real sem transformar-se em objeto escolar vazio de significado social;

° a organização da tarefa pelo professor garante a máxima circulação de informação possível.

As atividades permanentes de alfabetização, tal como são aqui concebidas, são basicamente de seis tipos (e, sempre que possível, devem estar articuladas a outras propostas de trabalho e/ou situações cotidianas vivenciadas pelas crianças):

◦ escrever (como conseguir);

◦ encontrar palavras em versos de textos conhecidos;

◦ encontrar itens de listas, quando se sabe do que são as listas;

◦ encontrar respostas para adivinhas;

◦ preencher cruzadinhas;

◦ ordenar textos.

São situações de ‘ler sem saber ler’ e de ‘escrever sem saber escrever convencionalmente’, que exigem que a criança utilize diferentes procedimentos de análise e reflexão sobre a escrita:

° Para poder ‘ler’ textos quando ainda não sabe ler convencionalmente, é necessário que utilize o conhecimento de que dispõe sobre a escrita e tenha informações parciais acerca do conteúdo do texto, podendo assim fazer suposições a respeito do que pode estar escrito.

° Para poder escrever textos quando ainda não se sabe escrever, é preciso que escolha quantas e quais letras vai utilizar – e, se a proposta for trabalhar junto com um colega que faz outras opções de uso das letras, refletir a respeito de escolhas diferentes para as mesmas necessidades.

34 Os tipos de atividade aqui discutidos fazem sentido apenas quando a concepção de alfabetização coincide com a que é defendida neste texto: descontextualizadas, elas podem ser pouco úteis ou mesmo de difícil operacionalização. 35 Tal como formulou Telma Weisz e como se divulgou amplamente no Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (MEC/SEF, 2001).

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° Para poder interpretar a própria escrita quando ainda não sabe ler e escrever, é preciso justificar as escolhas feitas, para si mesma e para os outros, com todas as explicações que isso demanda: por que sobram letras, por que elas parecem estar fora de ordem, por que parece estar escrito errado conforme seu próprio critério etc.

Quando as crianças ainda não compreenderam como funciona a escrita alfabética, ou seja, não compreenderam a natureza da correspondência letra-som, algumas recomendações são importantes e, por isso, seguem abaixo. Elas vão desde propostas mais adequadas para crianças com hipótese pré-silábica até as recém-alfabéticas:

Se as crianças ainda não estabelecem relação entre fala e escrita é fundamental criar situações de aprendizagem para que:

° assistam muitos atos de leitura em que é mostrado onde está escrito o que se lê;

° ‘leiam’ textos cujo conteúdo sabem de cor, recebendo previamente a informação de qual texto é, para que possam tentar ajustar o que sabem que está escrito com a própria escrita;

° escrevam pequenos textos (que lhes façam sentido) e ‘leiam’ suas escritas para o professor, justificando suas escolhas;

° trabalhem com colegas que já compreenderam que há relação entre fala e escrita, mas que ainda não estejam alfabetizados;

° realizem atividades com o próprio nome e com os nomes de pessoas que gostem.

Se já estabeleceram relação entre fala e escrita, mas ainda não compreenderam a natureza da correspondência letra-som, é fundamental planejar situações de aprendizagem em que, além de procedimentos semelhantes aos descritos acima, as crianças:

° ‘leiam’ textos fazendo uso de outras estratégias de leitura além da decodificação (ou seja, estratégias de antecipação, inferência, seleção, verificação);

° sejam desafiadas a pensar no valor sonoro convencional das letras;

° interajam com colegas que dão soluções diferentes para os desafios colocados pelas atividades – por exemplo, quem já tem algum conhecimento do valor sonoro convencional das letras trabalhando com quem ainda não tem.

E, quando compreenderam muito recentemente a escrita alfabética, é fundamental planejar situações de aprendizagem para que as crianças:

° lleiam muitos textos de conteúdo parcialmente conhecido, de forma a se sentirem seguras para ler cada vez mais;

° realizem atividades que coloquem em questão a divisão do texto em palavras e a ortografia;

° trabalhem com colegas que já considerem a divisão do texto em palavras e a ortografia.

Assim, o trabalho com atividades permanentes de alfabetização deve começar pela familiarização das crianças em relação aos procedimentos necessários para ‘ler sem saber ler’ e ‘escrever sem saber escrever’. É fazendo esse tipo de atividade que elas vão compreendendo como é possível proceder... De início, com ajuda do professor, depois, com os colegas e depois sozinhas. É isso o que tem sido chamado de delegação progressiva de responsabilidade: à medida que as crianças vão se familiarizando com uma tarefa que não lhes é ainda conhecida, o professor vai passando da posição central para a de monitor – quando elas assumem gradualmente responsabilidade de execução da tarefa.

A seguir, a explicação dos seis tipos de atividade.

Detalhando as atividades

→ A partir da página 59, há alguns exemplos, com um nível de dificuldade baixo, para demonstrar as possibilidades de trabalho também com as crianças da Educação Infantil.

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ATIVIDADE O QUE O PROFESSOR PRECISA FAZER

O QUE AS CRIANÇAS PRECISAM SABER

O QUE AS CRIANÇAS PRECISAM FAZER

Escrever [Exemplo nas ps. 59 a 62]

◦ Garantir que as crianças conheçam, pelo menos através da escuta, o gênero textual que irão produzir;

◦ Agrupar as crianças ajustando o nível de desafio às suas possibilidades, para que tenham bons problemas a resolver (ver o Quadro AG [Agrupamentos], adiante);

◦ Propor a tarefa;

◦ Informar qual será o destino das produções, quando o destinatário for real;

◦ Solicitar que as crianças socializem as produções escritas.

◦ É preciso conhecer o gênero textual a ser produzido;

◦ É preciso conhecer o assunto a ser tratado;

◦ É preciso saber quem é o destinatário da escrita:

- um destinatário real (alunos da classe, pais, mural da escola...)

- um destinatário virtual (o Lobo, a Rapunzel, o Príncipe...)

- ou escrever como se fosse ler para alguém.

◦ Ouvir a leitura da proposta feita pelo professor;

◦ Discutir com o colega a escrita a ser feita;

◦ Escrever como souberem, mas da melhor forma possível;

◦ Reler o texto durante e após a produção;

◦ Compartilhar com os colegas a produção.

Encontrar palavras em versos de textos conhecidos

[Exemplo na p. 63]

◦ Agrupar as crianças adequando o nível de desafio às suas possibilidades de realização da tarefa, para que tenham bons problemas a resolver (ver o Quadro AG, adiante);

◦ Apresentar o texto lendo-o na integra;

◦ Propor a tarefa às crianças;

◦ Recitar/cantar o que está no texto, escolhendo algumas palavras a serem localizadas por elas;

◦ Solicitar que elas expliquem como procederam para encontrar as palavras solicitadas.

◦ É preciso apenas saber o texto de memória (parlenda, quadrinha, cantiga, poema etc.).

→ Importante: Para realizar esse tipo de atividade, as crianças devem saber o texto de memória (a parlenda, a quadrinha, a cantiga, o poema etc.), mas isso não significa ter decorado a escrita do texto, pois aí a atividades perderia todo o sentido.

◦ Ouvir o que pede o professor;

◦ Ajustar o que é dito/cantado/recitado ao que está escrito no texto (acompanhando com o dedo ou o lápis), para localizar a palavra indicada pelo professor, utilizando pistas que ajudem a descobrir o que está escrito e onde;

◦ Discutir com o colega para encontrar a palavra indicada;

◦ Compartilhar as respostas encontradas.

Encontrar palavras em listas

[Exemplo na p. 64]

◦ Agrupar as crianças ajustando o nível de desafio às suas possibilidades, para que tenham problemas a resolver (ver, adiante, o Quadro AG, adiante);

◦ Apresentar a lista dizendo do que ela é;

◦ Propor a tarefa às crianças;

◦ Solicitar que elas socializem as respostas dizendo como foram encontradas.

◦ O conteúdo das listas. ◦ Ouvir o que pede o professor;

◦ Ler na lista o que foi solicitado pelo professor;

◦ Discutir com o colega para encontrar a palavra/título/frase solicitada;

◦ Compartilhar com os colegas as respostas encontradas.

ATIVIDADE O QUE O PROFESSOR PRECISA FAZER

O QUE AS CRIANÇAS PRECISAM SABER

O QUE AS CRIANÇAS PRECISAM FAZER

Encontrar respostas para adivinhas

[Exemplo na p. 65]

◦ Agrupar as crianças ajustando o nível de desafio às suas possibilidades, para que tenham problemas a resolver (ver o Quadro AG, adiante);

◦ Ler a adivinha para as crianças;

◦ Propor a tarefa;

◦ Solicitar que as crianças socializem as respostas

◦ A resposta da adivinha. ◦ Ouvir a leitura feita pelo professor;

◦ Ler o que foi solicitado pelo professor;

◦ Discutir com o colega para encontrar a resposta da adivinha;

◦ Compartilhar com os colegas as respostas encontradas.

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dizendo como foram encontradas.

VARIAÇÕES PARA CRIANÇAS COM ESCRITA ALFABÉTICA OU SILÁBICO-

ALFABÉTICA

◦ Ler a adivinha e encontrar a resposta

OU

◦ Ler a adivinha (sem as respostas) e escrever a resposta.

Encontrar palavras em uma lista para preencher uma cruzadinha

[Exemplo na p.66]

◦ Agrupar as crianças ajustando o nível de desafio às suas possibilidades, para que tenham problemas a resolver (ver o Quadro AG, adiante);

◦ Propor a tarefa;

◦ Solicitar que as crianças socializem as respostas dizendo como foram encontradas.

◦ Que devem encontrar a palavra correta na lista dentre várias de mesma quantidade de letras (algumas que, inclusive, começam e terminam igual).

◦ Contar o número de quadradinhos correspondentes à figura escolhida, para iniciar (assim saberá quantas letras tem a palavra a ser procurada).

◦ Observar as palavras da lista, para procurar o nome equivalente à figura.

◦ Discutir com o colega, para encontrar o nome procurado.

◦ Copiar a palavra considerada correta.

◦ Compartilhar com os colegas as respostas encontradas.

VARIAÇÕES PARA CRIANÇAS COM ESCRITA ALFABÉTICA

OU SILÁBICO-ALFABÉTICA

◦ Preencher a mesma cruzadinha, mas sem a lista de palavras, como se fazem palavras cruzadas habitualmente.

Ordenar textos (músicas, parlendas, poemas e outros textos que favoreçam a ordenação)

[Exemplo na p. 67]

◦ Agrupar as crianças ajustando o nível de desafio às suas possibilidades, para que tenham problemas a resolver (ver o Quadro AG, adiante);

◦ Informar qual é o texto que será ordenado, solicitando que as crianças falem/recitem/cantem coletivamente;

◦ Ler a tarefa para as crianças;

◦ Solicitar que ao final da atividade elas socializem as respostas dizendo como foram encontradas.

◦ Saber o texto de memória.

→ Importante: Para realizar essas atividades as crianças devem saber o texto de memória, mas não precisam conhecer a escrita do texto. Se o texto fizer parte de algum material escrito (livro, cartaz, caderno de leitura...) utilizado pela classe, ele não deverá ser consultado quando da realização da atividade.

◦ Ouvir o que pede o professor;

◦ Discutir com o colega para encontrar o verso ou palavra;

◦ Ordenar o texto;

◦ Compartilhar com a classe a ordenação.

VARIAÇÃO PARA CRIANÇAS COM ESCRITA ALFABÉTICA E SILÁBICO-

ALFABÉTICA

◦ Com as letras móveis necessárias (nem mais e nem menos), ‘montar’ a música, poesia ou parlenda, (se forem curtinhas) ou apenas um trecho (se o texto for longo), sabendo que e que não deve sobrar (e nem faltará) nenhuma letra.

OU

◦ Escrever o texto.

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Quadro AG

CONSIDERANDO O CONHECIMENTO DAS CRIANÇASCrianças não-alfabetizadas:

◦ As crianças com escrita silábica, que já fazem uso do conhecimento sobre o valor sonoro convencional das letras, podem ser agrupadas com crianças de escrita silábica que fazem pouco uso desse conhecimento ou que desconhecem o valor sonoro ou com crianças de escrita pré-silábica.

◦ É fundamental que as crianças com escrita pré-silábica não sejam agrupadas entre si para realizarem esse tipo de atividades de leitura: para elas, é importante a interação com quem já sabe que a escrita representa a fala, o que elas ainda não descobriram.

Crianças com escrita silábico-alfabética ou alfabética:

◦ As atividades podem ser transformadas em atividade de escrita: nesse caso, a tarefa é escrever as palavras e não lê-las.

Aqui a opção foi por detalhar um pouco mais as atividades de ‘leitura’ porque as de escrita em geral são mais familiares aos professores.

O fato é que as atividades permanentes de alfabetização não variam muito, pois o mais importante nesse caso não é a novidade, mas sim a possibilidade de mobilizar os procedimentos que podem fazer com que as crianças analisem o funcionamento da escrita alfabética.

Seguem agora alguns comentários específicos sobre cada tipo de atividade. Para entender a lógica especialmente das propostas de ‘leitura’, basta nos imaginarmos fazendo as mesmas atividades em uma língua que não dominamos: assim é mais fácil compreender que tipo de informação e/ou ajuda é preciso. As eventuais dúvidas a respeito dessas atividades, em aspectos não explicados neste texto, podem ser resolvidas com esse exercício de se imaginar diante de uma língua estrangeira. Sim, porque nossa relação com uma língua estrangeira desconhecida é bastante parecida com a relação que as crianças não-alfabetizadas têm com a língua portuguesa escrita, que é, para elas, de certo modo, também uma língua estrangeira.

ALGO MAIS...

SOBRE AS ATIVIDADES DE ESCRITA

O mais importante é incentivar as crianças para que escrevam como sabem e, sempre que possível, que ‘leiam’ o que escreveram para o professor – não para serem corrigidas, mas para poderem refletir sobre a própria escrita e se colocarem problemas para pensar.

SOBRE AS ATIVIDADES DE ENCONTRAR PALAVRAS EM VERSOS DE TEXTOS CONHECIDOS

A princípio, vale a pena propor que as crianças encontrem principalmente substantivos e adjetivos, mas depois é necessário propor também preposições, conjunções, artigos, porque muitas delas supõem que essas unidades ‘menores’ não estão escritas – é como se elas estivessem ‘embutidas’ nas palavras mais carregadas de significado como os substantivos.

Assim, por exemplo, se a atividade for de cantar e acompanhar com o dedo a letra de ‘A galinha do vizinho’, pode-se parar de cantar em ‘vizinho’ ou ‘amarelinho’ e depois em alguns numerais, já que o ‘bota’ é mais evidente, porque se repete em quase todas as linhas. Se a situação for de ‘ler’ o poema ‘Ou isto ou aquilo’, de Cecília Meireles (abaixo), vale a pena pedir que as crianças encontrem ‘chuva’ e ‘sol’, que se repetem em posições invertidas no primeiro e no segundo verso, depois ‘luva’ e ‘anel’, ‘ares’ e ‘chão’, pela mesma razão. Em seguida, é importante pedir que achem ‘ou’, ‘se’, ‘e’, ‘o’, ‘a’ e que marquem de modo diferente das primeiras palavras, que são substantivos, para que o professor possa verificar se elas reconhecem essas últimas unidades.

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OU ISTO OU AQUILO

OU SE TEM CHUVA E NÃO SE TEM SOL,

OU SE TEM SOL E NÃO SE TEM CHUVA!

OU SE CALÇA A LUVA E NÃO SE PÕE O ANEL,

OU SE PÕE O ANEL E NÃO SE CALÇA A LUVA!

QUEM SOBE NOS ARES NÃO FICA NO CHÃO,

QUEM FICA NO CHÃO NÃO SOBE NOS ARES,

É UMA GRANDE PENA QUE NÃO SE POSSA

ESTAR AO MESMO TEMPO NOS DOIS LUGARES!

OU GUARDO O DINHEIRO E NÃO COMPRO O DOCE,

OU COMPRO O DOCE E GASTO O DINHEIRO.

OU ISTO OU AQUILO: OU ISTO OU AQUILO…

E VIVO ESCOLHENDO O DIA INTEIRO!

NÃO SEI SE BRINCO, NÃO SEI SE ESTUDO,

SE SAIO CORRENDO OU FICO TRANQUILO.

MAS NÃO CONSEGUI ENTENDER AINDA

QUAL É MELHOR: SE É ISTO OU AQUILO.

É importante considerar, entretanto, que uma atividade como esta, muito produtiva e adequada para as crianças com escritas pré-silábicas ou silábicas, não acrescenta absolutamente nada ao conhecimento das que já se alfabetizaram. Nesse caso, é apenas uma tarefa tola de achar palavras que elas já sabem há muito tempo que estão escritas ali...

SOBRE AS ATIVIDADES DE ENCONTRAR PALAVRAS/TÍTULOS EM LISTAS, QUANDO SE SABE DO QUE SÃO AS LISTAS

Conforme indicado anteriormente, esse tipo de atividade só faz sentido se as crianças souberem do que é a lista. Podem ser de cores, frutas, brincadeiras, títulos de histórias, ingredientes de receita etc.. A proposta comporta umas poucas variações: encontrar e pintar o que é pedido ou ditado, encontrar e copiar, encontrar e ligar, encontrar e numerar pela ordem. Em qualquer caso, é preciso saber do que é a lista, senão, para uma criança que ainda não aprendeu a ler, é impossível fazer antecipações e realizar a atividade.

Para que fique mais claro, em caso de dúvida a esse respeito, basta imaginar agora esta situação:

Você chega de avião a uma cidade da Alemanha (sendo o alemão um idioma desconhecido) e, ao entrar na alfândega, recebe um folhetinho que identifica como sendo uma lista de palavras, porque há duas colunas com escritas alinhadas uma embaixo da outra. Você olha para aquele folhetinho e não tem a menor noção do que pode estar ali escrito e para o que serviria (pois alguma razão deve haver para que aquilo lhe tenha sido entregue logo ao chegar ao país!). Já está ficando aflito/a com a situação, quando alguém diz em português que aquilo é a lista dos objetos e insumos que não podem entrar na Alemanha sem autorização do órgão fiscalizador. Como ao sair do Brasil você havia lido um cartaz semelhante no aeroporto, supõe então que o conteúdo seja exatamente o mesmo: carnes, laticínios, sementes, frutas, drogas, remédios sem receita médica, dentre outros. Daí por diante é possível tentar descobrir o significado das palavras, buscar aproximações com o português ou com o inglês ou com outra língua que conheça, antecipar algumas possibilidades.

É mais ou menos assim que funciona também com as crianças...

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SOBRE AS ATIVIDADES DE ENCONTRAR RESPOSTAS PARA ADIVINHAS

Em relação às adivinhas, é preciso considerar que, no momento de fazer a atividade da forma aqui proposta, o objetivo não é que as crianças adivinhem a resposta, mas sim que encontrem, entre três ou mais palavras parecidas, uma resposta que elas já conhecem. Portanto, a brincadeira de descobrir qual é a resposta deve ser feita, coletivamente, antes da atividade. Evidentemente, se as crianças ainda não sabem ler, a leitura da adivinha deve ser feita pelo professor.

SOBRE AS ATIVIDADES DE PREENCHER CRUZADINHAS

As cruzadinhas só são boas situações de aprendizagem para as crianças não-alfabetizadas se estiverem acompanhadas da lista de palavras. Sem a lista serão impossíveis para essas crianças. Assim como, para as que já estão alfabetizadas, a cruzadinha só é produtiva sem a lista de palavras (pois elas poderão refletir e fazer escolhas sobre a ortografia), do contrário será uma simples atividades de cópia.

Como se pode ver, em qualquer tipo de atividade, avaliar adequadamente o que as crianças já sabem ou ainda não sabem é condição para propor desafios compatíveis e não ocupar o tempo delas com tarefas que nada acrescentam aos seus conhecimentos.

Nas primeiras vezes, as cruzadinhas devem ser feitas coletivamente, na lousa, uma ou duas vezes, para que os procedimentos fiquem claros para as crianças. Ao contrário do que pode parecer, não se trata de uma atividade muito simples, porque é preciso:

◦ escolher uma figura para começar;

◦ contar o número de quadradinhos correspondentes ao nome da figura escolhida;

◦ procurar o nome da figura na lista de palavras;

◦ discutir a escolha considerada melhor com o colega;

◦ escrever a palavra escolhida, com uma letra em cada quadradinho, prestando atenção para não escrever duas letras onde as palavras ‘se cruzam’.

Crianças que não foram incentivadas a trabalhar com letra de forma ainda terão de ‘quebrar a cabeça’ para saber qual parte da letra fica em qual quadradinho...

Por tudo isso, copiar a cruzadinha na lousa, uma ou duas vezes, para ensinar os procedimentos e ir preenchendo junto com a turma, é fundamental.

SOBRE AS ATIVIDADES DE ORDENAR TEXTOS

As situações de ordenação pressupõem que o professor:

◦ leia ou informem qual texto será ordenado e, quando for um texto em versos, recitem (ou cantem) com as crianças antes da atividade;

◦ cuide para que elas não consultem o texto escrito, no momento da realização da atividade, caso ele faça parte de algum material disponível (livro, cartaz, Caderno de Leitura...): para realizar esse tipo de atividade, as crianças devem saber qual é o texto, mas não devem tê-lo à mão ou conhecer de cor a sua escrita, senão a proposta não oferecerá desafio algum.

Quanto às crianças, elas devem:

◦ ouvir a leitura do texto inteiro, na ordem certa, caso já não conheçam o seu conteúdo de cor;

◦ ouvir a segunda leitura do professor, na ordem certa, agora para encontrar cada parte lida por ele;

◦ acompanhar a leitura, com o dedo, até o fim;

◦ numerar as partes, seguindo as orientações do professor.

Tal como indicado no quadro, as crianças com escrita alfabética e também com escrita silábico-alfabética, nesse momento, em vez de ordenar o texto, podem escrevê-lo ou, então, com letras

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móveis recebidas em quantidade exata, montá-lo por inteiro (se for curto) ou apenas um trecho (se o texto for longo).

SOBRE OUTRAS ATIVIDADES

Além desses procedimentos explicitados acima, há outros dois igualmente importantes para a alfabetização:

◦ interpretar a própria escrita

◦ escrever junto com outra criança, alternando-se a vez de escolher qual letra colocar.

Interpretar a própria escrita, quando ainda não sabem ler e escrever (voltamos aqui a enfatizar), exige das crianças explicar as escolhas feitas, para si mesmas e para os outros: por que sobram letras, ou por que elas parecem estar fora de ordem, por que parece estar escrito errado conforme o próprio critério etc. É por essa razão que geralmente pedimos para que elas leiam o que acabaram de escrever (uma lista, um título, um verso, uma parlenda...), para que tenham a oportunidade de refletir sobre as escolhas que fizeram e/ou que poderiam ter feito.

E escrever em dupla, alternando-se a vez de escolher a letra a ser colocada, é uma atividade valiosa para potencializar a reflexão das crianças e pode ser feita com lápis e papel, com letras móveis (letras mesmo, e não sílabas) ou com giz na lousa. A situação é muito produtiva porque é preciso de fato escrever junto, discutir por que esta e não aquela letra, questionar escolhas feitas pelo outro que soam esquisitas ou erradas, rever as próprias ideias.

Na verdade, a proposta é muito simples: basta pedir a escrita do nome da fruta predileta, por exemplo, a uma dupla bem formada, ou seja, de crianças com hipóteses próximas, mas que se orientam por critérios diferentes (duas crianças com escritas silábicas, uma que faz uso do valor sonoro e a outra não; ou duas crianças com escritas silábicas, uma que usa consoantes e a outra, vogais; ou uma criança com escrita pré-silábica e outra com escrita silábica sem valor sonoro). A cada letra colocada, a criança “da vez” dirá o que já está escrito. Ao professor caberá instigar as duplas a discutir e negociar o que escrever, sabendo de antemão que, se não houver acordo, as duas letras pensadas devem permanecer e a escrita continuar. É o suficiente para muita aprendizagem em pouco tempo, ainda mais se essa proposta se repetir com frequência. As crianças não terminarão a atividade necessariamente com a escrita correta, mas é certo que dela levarão muitas questões para pensar.

Entretanto, conforme já se enfatizou, a dupla tem que ser equilibrada (quer dizer, um não pode ter muito mais conhecimento do que o outro) e as palavras solicitadas em uma tarefa desse tipo não podem ser conhecidas de memória, do contrário a atividade não oferece nenhum desafio.

É importante considerar que, embora com um componente lúdico, essas atividades são fundamentalmente oportunidades de reflexão e não brincadeiras ou passatempo: tudo deve ser planejado com muito critério, tendo em conta o que pode ser adequado para as crianças a partir do que hoje se sabe sobre como elas aprendem, com o propósito de criar bons problemas para pensar e evitar obstáculos desnecessários, que poderiam tomar uma parte preciosa do tempo sempre insuficiente para tudo o que pretendemos ensinar.

Uma palavrinha mais sobre os tipos de letra

A questão da ‘melhor letra’ a ser trabalhada na alfabetização tem preocupado os professores, já não é de hoje. Por que será que essa questão chama tanto a atenção? Por que se considera tão relevante ensinar a letra cursiva às crianças justamente quando estão se alfabetizando?

Os argumentos mais comuns: ‘Os pais querem que seus filhos aprendam a escrever com a letra cursiva’; ‘Nós, professores, fomos alfabetizados com essa letra e isso não nos atrapalhou, muito pelo contrário’; ‘Até para obter um emprego a qualidade da letra pode ser um diferencial’.

Se pararmos para pensar, veremos que essas razões são todas facilmente rebatíveis. Aos pais de alunos, por exemplo, podemos explicar que, há mais de vinte anos, já se sabe que, para a criança

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que ainda não se alfabetizou, a melhor opção é a letra de forma, especialmente a maiúscula (ou ‘bastão’).

Por quê? Porque torna possível observar as letras separadas umas das outras, o que permite refletir sobre quais e quantas letras tem uma palavra. Isso não é favorecido pelo tipo cursivo (ou ‘de mão’), porque é impossível identificar onde uma termina e a outra começa36 enquanto ainda não se adquiriu prática com as letras todas e com suas combinações. Além do que, a letra de forma está muito mais presente na vida cotidiana do que a letra cursiva, o que possibilita que a criança estabeleça relações interessantes entre o que aprende na escola e o que vê na televisão, no livro, na revista, no jornal, no painel da rua...

Qual é, afinal, a grande importância da letra cursiva? É o fato de permitir escrever rapidamente... Entretanto, a rapidez na escrita não é algo que faça sentido quando as crianças ainda nem se alfabetizaram! Para que elas precisariam escrever rápido a essa altura da vida escolar? Já é tão complexo aprender a ler e escrever... Por que ocupar as crianças com o traçado das letras e desviar sua atenção justamente do principal: as regularidades, as regras de geração, o funcionamento da escrita alfabética? Por que trazer, a quem está preocupado em descobrir o que a escrita representa e de que forma, a informação de que os sons da fala são representados por mais de cem letras (o alfabeto de forma e cursivo na versão maiúscula e minúscula) e não por pouco mais de vinte? Por que criar dificuldades desse tipo para as crianças, que não apenas são desnecessárias, mas atrapalham a maioria delas? Por que esse aprendizado, exclusivamente mecânico, que não requer qualquer esforço intelectual, que depende apenas de algum treino, não pode ficar para depois da alfabetização?

Pois bem, é isso o que o conhecimento pedagógico e o bom-senso vêm recomendando há algumas décadas: que o treino do traçado das letras tenha, sim, seu lugar no processo de alfabetização, mas que seja deslocado no tempo, ficando para quando as crianças já tiverem aprendido minimamente a ler. Claro que ainda há professores que duvidam da validade desse encaminhamento, mesmo observando que em geral os alunos que demoram a se alfabetizar não têm dificuldade no traçado correto e bem-feito da letra, o que mostra que a capacidade de grafar as letras com qualidade não os ajudou em nada. Mas é preciso ter esperança de que as crenças que se revertem em obstáculos para a aprendizagem das crianças não se sustentarão por muito mais tempo, até porque, não são poucos os estudos que comprovam os prejuízos dessas ideias equivocadas.

Alguns professores temem que as crianças se acostumem com a letra de forma e resistam a passar para a cursiva, mas o que a prática tem mostrado é que geralmente isso não acontece. Na maior parte dos casos, assim que as crianças se alfabetizam, elas demonstram espontaneamente necessidade de escrever com a letra cursiva, uma vez que esse tipo de letra é muito valorizado pela escola e pela família. Com algum treino, em pouco tempo, todas aprendem o traçado correto... E terão muito tempo para isso na escola, inclusive para ir definindo o seu estilo próprio de grafia.

O mais importante a considerar é que o uso da letra de forma no processo de alfabetização evita obstáculos desnecessários para quem está aprendendo a ler e escrever. Portanto, vale a pena utilizar o precioso tempo escolar com atividades que ajudem as crianças a avançar em seus conhecimentos sobre a escrita, deixando o treino do traçado correto da chamada letra de mão para depois.

Por fim, não será demais enfatizar que há muito mais a fazer para alfabetizar as crianças, além do que aqui está proposto: a intenção de detalhar esses seis tipos de atividades de reflexão sobre a escrita alfabética é apenas contribuir para o planejamento das tarefas mais difíceis e geralmente menos familiares aos professores.

36 Tente se colocar, você, no lugar de uma criança sem prática com as letras... Agora pense no caso do br ou do vr: as duas letras juntas (minúsculas, no tipo cursivo) viram outra coisa diferente do que são elas separadas. Depois pense no caso do h (minúsculo, no tipo cursivo) que parece ser duas letras, na dificuldade de saber se o m é uma letra só ou várias... Muitas vezes não entendemos as dificuldades das crianças porque julgamos que elas têm o conhecimento que já adquirimos há muito tempo e não nos lembramos de quando estávamos aprendendo a ler, das nossas próprias dificuldades, do que nos criava obstáculos.

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Não são poucas as possibilidades de trabalho com letras, como por exemplo: bingo de letras, uso da ordem alfabética nas brincadeiras do recreio, formação de nomes e outras palavras com letras móveis etc. Em qualquer caso são atividades para trabalhar com letras e não com sílabas.

Também não são poucas as possibilidades de trabalho com nome:

◦ copiar os nomes das meninas e dos meninos da classe, em duas listas separadas, uma do lado da outra, para consultar sempre que for preciso;

◦ encontrar os nomes das crianças que vão fazer uma determinada tarefa na lista de nomes de toda a turma;

◦ encontrar nomes parecidos;

◦ copiar ou escrever nomes de colegas e familiares;

◦ dentre muitos outros.

Hoje, há muitas propostas interessantes que os professores desenvolvem para trabalhar com letras e nomes próprios, uma vez que esse tipo de atividade tem sido bastante discutido nos últimos anos.

O fato é que as atividades, por si só, não produzem resultados ‘milagrosos’ na alfabetização das crianças: não há nada mais importante para a aprendizagem dos alunos do que os seus professores! Basta olharmos para a nossa história pessoal e veremos o quanto isso é verdade...

Somos profissionais da maior importância para a formação das crianças e nem sempre nos damos conta disso. Se considerarmos que a maior categoria profissional do país é o Magistério (mais de um milhão e seiscentos mil professores!) e que mais de 95% das crianças brasileiras estão na escola e nela passam pelo menos quatro horas durante 200 dias ao ano, fica evidente o enorme poder de formação e de informação que isso representa. No mundo atual, geralmente é com o professor que as crianças mais convivem: de segunda a sexta-feira, por pelo menos quatro horas diárias, anos e anos a fio. Hoje, poucos familiares gozam do privilégio de ficar tanto tempo com elas... Podemos ensinar muita coisa para os alunos ou negar a eles o direito de aprender. Tudo depende de acreditar na sua capacidade e nas suas possibilidades, porque para ensinar muito – e bem – é preciso de fato acreditar que toda criança é capaz e tem direito ao conhecimento. Essa crença é nossa maior virtude, como professores, pois é ela que orienta nossas ações.

A seguir, para finalizar esta parte, o detalhamento da proposta de Caderno de Leitura, que contribui significativamente para as propostas aqui discutidas – em especial as de encontrar palavras em versos/textos conhecidos – e logo depois um exemplo de cada tipo de atividade comentado anteriormente.

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O Caderno de Leitura37

- Um recurso importante em favor da alfabetização

Não há que se perder todas as esperanças: em certas condições, a instituição escolar pode converter-se em um ambiente propicio para a leitura. Essas condições devem ser criadas desde antes de as crianças aprenderem a ler no sentido convencional do termo – e uma delas, por exemplo, é que o professor assuma o papel de intérprete e os alunos possam ler ‘através dele’. O essencial é fazer da escola um ambiente propício para a leitura, é abrir para todos as portas dos mundos possíveis, é inaugurar um caminho que todos possam percorrer para se tornarem cidadãos da cultura escrita.

Delia Lerner

O Caderno de Leitura é um caderno comum onde são coladas cópias de textos conhecidos das crianças - músicas, poemas, listas de nomes de familiares e amigos e outros textos de conteúdo familiar. É possível organizá-lo com todos os textos reunidos ou, preferencialmente, em duas partes: uma com textos como parlendas, poemas, quadrinhas, músicas, listas e demais escritos que as crianças sabem de cor; e outra com textos pelos quais elas demonstrem interesse em ter disponíveis para compartilhar com familiares e amigos: fábulas, piadas, receitas etc.

Essa proposta é fruto da constatação de que muitas crianças se alfabetizam a partir da ‘leitura’ de materiais cujo conteúdo sabem de cor ou conhecem parcialmente. Desde sempre, aquelas que se alfabetizaram antes de entrar na escola, aprenderam a ler em seus livros prediletos de literatura, no hinário das igrejas ou na Bíblia, em materiais significativos em suas casas, tentando ajustar o que sabiam que ali estava escrito com a escrita que tentavam – e geralmente em bem pouco tempo conseguiam – desvendar. A ideia, portanto, é favorecer o uso desse tipo de procedimento, essencial para realizar as atividades comentadas nas páginas anteriores e necessário para aprender a ler adequadamente.

O Caderno de Leitura é um importante material de apoio à alfabetização, dentre outras razões, porque possibilita:

◦ trabalhar com textos reais, de diferentes gêneros;

◦ apresentar um repertório de textos conhecidos das crianças;

◦ organizar os textos trabalhados em classe;

◦ desenvolver atividades de leitura compartilhada;

◦ incentivar as crianças a lerem antes de saber fazê-lo de forma convencional;

◦ socializar com os familiares alguns dos textos que circulam na sala de aula;

◦ promover a leitura e consulta dos textos sempre que as crianças desejarem e/ou necessitarem;

◦ criar um referencial estável de textos/palavras que podem ser usados nos momentos de produzir outros textos.

Os propósitos principais são os seguintes:

◦ incentivar a prática da leitura e o desejo de ler;

◦ possibilitar o contato direto das crianças com textos reais;

◦ ampliar a diversidade de gêneros textuais conhecidos por elas;

37 Material organizado por Débora Vaz, Rosa Maria Antunes de Barros, Rosângela Veliago e Rosaura Soligo.

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◦ garantir um repertório de textos de boa qualidade que se constitua em um material de consulta para a escrita de outros textos;

◦ incentivar as crianças a lerem mesmo quando ainda não sabem ler convencionalmente;

◦ apresentar situações reais em que elas tenham que utilizar estratégias de leitura e ajustar o que sabem de cor ao que está escrito;

◦ desencadear atividades de leitura que exigem reflexão sobre a escrita convencional;

◦ favorecer algumas aprendizagens importantes: sobre o fato de que todo escrito poder ser lido, sobre a linguagem que se usa para escrever, sobre a disposição gráfica dos diferentes gêneros textuais, sobre o valor sonoro convencional das letras...;

◦ Ajudar as crianças a avançarem nos seus conhecimentos sobre a escrita.

O Caderno de Leitura pode ser organizado com as turmas de três anos em diante. Com as crianças de 3 a 5 anos, será uma oportunidade para que elas se reconheçam capazes de ler. A seleção dos textos deve sempre ter como critérios principais: as características, conhecimentos e preferências da turma e a qualidade do material (tanto do ponto de vista do conteúdo como da apresentação gráfica).

Nessa faixa etária, o caderno possibilita (principalmente) resgatar textos significativos da cultura popular, ampliar o repertório de textos conhecidos, aprender que tudo o que dizemos, cantamos, recitamos pode ser escrito, que os textos são diferentes e se organizam graficamente de modo diferente, que escrevemos com letras...

A partir dos 6 anos, além dessas vantagens, o caderno serve também como fonte de consulta para a escrita das crianças, em situações espontâneas ou orientadas pelo professor.

Alguns cuidados importantes com o Caderno de Leitura

◦ Garantir, na página inicial, uma breve apresentação do Caderno com os seus objetivos, para que os familiares saibam para que serve e como será utilizado em casa e na escola.

◦ Deixar, em seguida, um espaço para elaboração progressiva de um índice dos textos.

◦ Garantir uma boa apresentação do material (textos bem impressos, com letra legível e de tamanho adequado, recortados e colados com capricho pelo professor etc.).

◦ Incentivar as crianças a terem uma atitude de cuidado com o Caderno.

◦ Apresentar às crianças os portadores de origem, de onde são transcritos os textos.

◦ Manter a diagramação dos textos tal como é feita nos portadores de origem.

◦ Deixar claro que o Caderno deve ser mantido sempre junto com o material escolar, para que circule além da escola.

A proposta aqui detalhada se orienta pela convicção de que, tal como defende um importante estudioso da leitura, o psicolinguista Frank Smith, “a leitura e o seu aprendizado são atividades essencialmente significativas, não são passivas ou mecânicas: trata-se de dar sentido a partir da linguagem escrita, e não de decodificar a palavra impressa em sons”. Entendemos que o caminho que pode levar todas as crianças a se tornarem cidadãos da cultura escrita não poderia ter outro ponto de partida...

A seguir, uma ilustração dos tipos de atividades de reflexão sobre a escrita a que nos referimos anteriormente.

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EXEMPLOS DE ATIVIDADESEXEMPLO 1 – Escrever uma cantiga conhecida

NO CD ACALÂNTOS HÁ UMA CANÇÃO DE NINAR CHAMADA BOI DA CARA PRETA, QUE NOSSA TURMA CONHECE.

VOCÊ DEVE ESCREVÊ-LA, JUNTO COM UM COLEGA, COM LETRAS MÓVEIS.

NO FINAL, NÃO SE ESQUEÇA DE LER PARA SEU PROFESSOR.

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EXEMPLO 2 – Escrever uma lista de títulos de histórias preferidas

VOCÊ JÁ CONHECE MUITAS HISTÓRIAS.

ESCREVA O TÍTULO DAS 3 QUE VOCÊ MAIS GOSTA.

CAPRICHE, PORQUE DEPOIS VOCÊ VAI LER E COLOCAR NO MURAL DA NOSSA SALA, PARA QUE SEUS COLEGAS CONHEÇAM SUAS PREFERÊNCIAS.

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EXEMPLO 3 – Escrever uma lista de ingredientes necessários para preparar uma receita

VOCÊ SABE QUE AS BRUXAS ADORAM COMEMORAÇÕES...

POIS ELAS ESTÃO ORGANIZANDO UMA FESTA DE ANIVERSÁRIO.

SUA TAREFA É AJUDÁ-LAS NA ORGANIZAÇÃO DA LISTA DE INGREDIENTES.

O PROFESSOR LERÁ OS 2 PRIMEIROS, QUE ELAS JÁ LISTARAM, E EM DUPLA VOCÊ DEVERÁ ESCREVER MAIS 3.

DEPOIS VOCÊ VAI LER PARA A CLASSE.

OLHO DE LARGATIXA

ASAS DE MORCEGO

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EXEMPLO 4 – Escrever um bilhete para um personagem de um conto de fada

A BRUXA DESCOBRIU QUE A RAPUNZEL SE ENCONTRA ÀS ESCONDIDAS COM O PRÍNCIPE.

ESCREVA UM BILHETE AVISANDO-A DO PERIGO QUE ESTÁ CORRENDO.

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EXEMPLO 5 – Escrever uma lista de frutas para preparar uma salada de frutas

AMANHÃ, FAREMOS UMA SALADA DE FRUTAS.

LISTE 4 FRUTAS QUE VOCÊ MAIS GOSTA.

DEPOIS, VOCÊ DEVE DITÁ-LAS AO PROFESSOR, PARA QUE A CLASSE DECIDA QUAIS IRÃO COMPOR A SALADA.

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EXEMPLO 6 – Escrever um trecho de um conto

BRANCA DE NEVE É UMA DAS HISTÓRIAS PREFERIDAS DE NOSSA TURMA.

ESCREVA, COM LETRAS MÓVEIS, O DIÁLOGO DA MADRASTA COM O ESPELHO.

DEPOIS, LEIA-O PARA O SEU PROFESSOR.

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EXEMPLO 7 – Escrever respostas

Você já conhece muitas histórias e sabe os nomes de seus personagens, não é?

Pois então escreva a resposta, assim que o professor terminar a leitura de cada pergunta abaixo.

1) QUEM PERDEU O SAPATINHO AO SAIR DO BAILE?

___________________________________________________________________________________________________________________________

2) QUEM TINHA TRANÇAS E FICAVA PRESA NA TORRE?

___________________________________________________________________________________________________________________________

3) QUEM ERA BONECO E VIROU MENINO?

___________________________________________________________________________________________________________________________

4) QUEM ERA MAIS LINDA DO QUE A MADRASTA QUE CONVERSAVA COM O ESPELHO?

___________________________________________________________________________________________________________________________

5) QUEM ERA A MENINA QUE FOI COMIDA PELO LOBO MAU?

___________________________________________________________________________________________________________________________

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EXEMPLO 8 – Encontrar palavras em versos conhecidos

Você já conhece esta música?

Então, cante com o professor e com os seus colegas!

Acompanhe com o dedo e, quando o professor parar de cantar,

circule a última palavra que ele disser.

Vamos lá?

A GALINHA DO VIZINHO

BOTA OVO AMARELINHO

BOTA UM

BOTA DOIS

BOTA TRÊS

BOTA QUATRO

BOTA CINCO

BOTA SEIS

BOTA SETE

BOTA OITO

BOTA NOVE

BOTA DEZ

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EXEMPLO 9 – Encontrar palavras em listas

Você já conhece todas as cores?

Encontre cada cor ditada pelo professor e numere na ordem do ditado.

Depois você pode pintar o quadrinho ao lado do nome com a própria cor.

AMARELO

AZUL

MARROM

VERDE

VERMELHO

ROSA

ROXO

BRANCO

PRETO

CINZA

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EXEMPLO 10 – Encontrar respostas para adivinhas

ADIVINHE SE FOR CAPAZVocê já sabe: assim que o professor ler cada adivinha, lembre ou descubra primeiro qual é a resposta.

Depois procure onde a resposta está escrita e circule a palavra.

Atenção: esta é só de coisas do nosso corpo!

O QUE É, O QUE É?VIRA A CABEÇA DO HOMEM.

PERNA PESCOÇO PERNILONGO

DORME EM PÉ E ANDA DEITADO?

PÓ PÁ PÉ

QUANDO SE MEXE ALCANÇA O CÉU.

LUA LIMA LÍNGUA

É ÁGUA E NÃO VEM DO MAR, NEM NA TERRA NÃO NASCEU,

DO CÉU NÃO CAIU, TODO MUNDO JÁ LAMBEU.

LÁGRIMA LARANJA LATINHA

UMA PARTE SEM SERVENTIA, NÃO EXISTE QUEM NÃO TEM,

HOMEM TEM, MULHER TEM, VELHO E CRIANÇA TAMBÉM.

UMBIGO UNHA URUBU

SÃO DUAS IRMÃS GÊMEAS, MORAM JUNTAS E NUNCA SE VIRAM ANTES.

ONÇAS OVELHAS ORELHAS

QUANDO PARTE UMA, PARTE OUTRA; QUANDO CHEGA UMA, CHEGA OUTRA.

PERUA PERNA PENA

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EXEMPLO 11 – Encontrar palavras em uma lista para preencher cruzadinha

Você já sabe fazer cruzadinhas e a de hoje é de brinquedos.

Preste atenção nas dicas que o professor vai ler

e peça a ajuda, se precisar.

DICAS

1. OLHE TODAS AS FIGURAS.

2. ESCOLHA UMA PARA COMEÇAR.

3. CONTE O NÚMERO DE QUADRADINHOS DA FIGURA ESCOLHIDA PARA SABER QUANTAS LETRAS TEM A PALAVRA.

4. LEIA A LISTA DE PALAVRAS COM ESSE NÚMERO DE LETRAS PARA DESCOBRIR QUAL É A CERTA.

LISTA DE CONSULTA

PARA ENCONTRAR AS PALAVRAS E PREENCHER A CRUZADINHA

4 5 6 7 8 9

BOLA

BULE

PIÃO

PNEU

CORDA

CESTA

APITO

ARARA

PETECA

PATETA

BELEZA

BONECA

CORNETA

BOLINHA

BOLICHE

RAQUETE

CHOCALHO

CARRINHO

CARAMUJO

CARTEIRO

BICICLETA

BORBOLETA

BANQUINHO

BALADEIRA

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EXEMPLO 12 – Ordenar textos [músicas, parlendas, poemas e outros textos que favoreçam a ordenação]

Esta trova, do poeta Manuel Bandeira, está fora de ordem.

Que tal acertar isso?

Pois então numere as linhas de 1 a 4, na ordem certa.

...... QUE SONO AS MULHERES TÊM!

...... NA JANELA DE MEU BEM:

...... ATIREI UM LIMÃO DOCE

...... QUANDO AS MULHERES NÃO AMAM,

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SOBRE OS GÊNEROS TEXTUAIS38

Rosaura Soligo

Uma palavrinha inicial

Este texto tem o propósito de ampliar o conhecimento linguístico sobre os gêneros textuais, apresentando uma breve caracterização de alguns mais trabalhados na escola. A perspectiva não é, em hipótese alguma, incentivar o ensino explícito para os alunos de como cada gênero se organiza, porque com certeza não será assim que eles aprenderão a escrever seus textos.

A informação detalhada sobre as características específicas dos gêneros é imprescindível somente para o professor – para apoiar pedagogicamente os alunos no processo de produção de textos. Esse tipo de conhecimento não deve se converter em aulas específicas porque não é dele que depende a possibilidade de escrever bem. Se fosse simples assim, qualquer aluno que faz cursinho pré-vestibular escreveria excelentes redações nas provas de português, pois não há cursinho ou apostila que não trabalhe insistentemente com o ‘ensino’ dos gêneros textuais prováveis de ‘caírem na prova’. E todo ano há inúmeras reportagens de jornais e revistas de educação, publicados após os resultados dos exames vestibulares, que mostram o quanto os candidatos não sabem se expressar por escrito, a despeito do conhecimento que certamente possuem sobre o formato dos textos.

O fato é que saber como é um determinado gênero geralmente tem pouca utilidade: aprender que os tratados científicos ou os sonetos têm as informações organizadas de um determinado modo com certeza não é o que nos habilitará a produzi-los com qualidade. Vejam que as crianças contam histórias desde pequenas sem que nunca lhes tenham ensinado que elas se organizam dessa ou daquela forma, sem que nunca lhes tenham ensinado como devem proceder para contá-las...

É importante, sim, conversar com as crianças sobre as características dos diferentes gêneros textuais, mas não se pode imaginar que isso vá fazê-las escrever bem os textos ‘ensinados’ só porque sabem como eles se estruturam. Há algum tempo, criou-se uma visão equivocada de que é preciso mostrar como são as características dos diferentes textos porque desse conhecimento dependeria o resultado da produção dos alunos. Claro que essa informação contribui de alguma maneira, mas não se pode imaginar que basta o aluno saber como um texto se caracteriza para produzi-lo com qualidade.

Para que os alunos venham a se constituir em bons escritores, é imprescindível:

◦ uma prática contínua de produção de textos;◦ um trabalho intensivo de leitura de muitos textos do mesmo gênero e de muitos gêneros diferentes;◦ situações de análise de textos bem escritos;◦ situações de reflexão sobre formas adequadas de redigir e sobre a qualidade da linguagem utilizada

para escrever;◦ ajuda efetiva de parceiros experientes.

E é importante que as condições de produção estejam sempre garantidas:

◦ a existência de um destinatário real;◦ conhecimento razoável do gênero (pela experiência de escuta e leitura);◦ domínio do assunto a ser tratado;◦ tempo suficiente para escrever;◦ possibilidade de consultar materiais e pessoas, dentre outras...

Conhecer o gênero é, portanto, uma das condições apenas. Há ainda tudo o mais a ser garantido do ponto de vista pedagógico. Não há melhor ajuda para um aluno aprender a escrever seus próprios textos do que muita leitura desde pequeno e o apoio de um professor que também escreve regularmente, que gosta desse desafio, 38 Este texto contou com a imprescindível colaboração de Tereza Cristina Barreiros e com subsídios escritos por Antonia Terra.

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que sabe das dificuldades inerentes à situação de se expressar por escrito e tem conhecimento suficiente sobre os textos para poder fazer intervenções adequadas durante e após as atividades de produção.

A seguir, são apresentados, de modo breve, os conceitos de texto e gênero, e as razões das escolhas relacionadas ao modo de classificar os gêneros textuais neste material.

Texto

Texto é tudo o que foi dito por alguém a uma ou mais pessoas, pela fala ou por escrito. Pode ter muitas palavras – como as histórias longas, as cartas, os poemas – ou pode até mesmo ser de apenas uma ou duas palavras. Quando, por exemplo, vemos na estrada uma placa onde está escrito “CUIDADO! ESCOLA”, isso é um texto. Porque é um escrito feito por alguém que quer informar aos motoristas que passarem na estrada que é preciso ter atenção, pois onde há escola, há crianças e onde há crianças, deve-se dirigir com cuidado.

Para ser texto, o que é dito pela fala ou por escrito precisa ter um propósito comunicativo: informar, explicar, orientar, alertar, convencer, ensinar, entreter, divertir, expressar sentimentos, contar coisas. Se for só uma porção de palavras sem qualquer desses motivos ou outros semelhantes, não é texto. Por exemplo, a mesma palavra escrita cinco ou dez vezes não é um texto, uma porção de palavras que começam com a mesma letra também não é. Um texto precisa sempre comunicar alguma coisa a alguém.

Gênero textual

Definir exatamente o que é um gênero não é algo muito simples, mas, grosso modo, podemos dizer que os gêneros textuais são as diferentes ‘espécies’ de textos orais e escritos que existem no mundo. Eles se constituem a partir de intenções comunicativas e necessidades de interação humana que se colocam em um dado momento: por exemplo, a mensagem de e-mail é um gênero que nasceu a partir do uso da Internet; assim como ‘antigamente’ nasceu a carta, fruto da necessidade de comunicação a distância; como nasceram o conto, a lenda, o mito, a fábula e o romance como resposta à necessidade de compartilhar crenças e histórias; a notícia, para informar acontecimentos; os artigos de divulgação científica, para socializar informações consideradas relevantes... A essas produções alguns autores preferem chamar de tipo de texto; outros, gênero de discurso; outros, gênero de texto ou gênero textual – que é o nosso caso.

Essa opção tem a ver com duas razões principais.

Uma é que ‘gênero do discurso’, que seria também uma escolha pertinente, tornaria a abordagem bem mais complexa e não é esse o objetivo aqui.

A outra razão é que, embora ‘tipo’ e ‘gênero’ possam à primeira vista parecer sinônimos, não são poucos os estudiosos da linguagem a afirmar (e com eles concordamos) que ‘tipo de texto’ – ou ‘tipo de discurso’ – diz respeito a categorias como narração, argumentação, exposição e descrição, quase nunca encontradas socialmente de forma ‘pura’: a narração, por exemplo, acontece e predomina no interior de contos, fábulas, lendas, mitos, causos, cordéis, relatos de experiência pessoal, cartas, crônicas etc. – estes, sim, os gêneros.

Também a descrição acontece no interior desses gêneros todos (quando se caracterizam lugares, pessoas, cenas, objetos...), mas não predomina, o que já acontece em outros: receitas, instruções, definições, relatos de experimentos... E alguns desses mesmos gêneros também pressupõem exposição – de ideias, conceitos, explicações, conclusões.

São gêneros expositivos aqueles que pretendem fazer compreender um assunto, apresentar um tema novo, expor um conceito ou conclusão; neles o autor compartilha informações sobre um assunto que supõe desconhecido ou pouco familiar aos leitores, com as explicações necessárias para favorecer o entendimento do que é tratado. Os textos que nos habituamos a chamar de textos teóricos e a maioria dos que estão nos livros didáticos de História, Geografia e Ciências são textos predominantemente expositivos. Este subsídio é um texto expositivo. Outros exemplos são: verbete de enciclopédia, resumo de textos explicativos, relato de experimento, resenha etc.

E a argumentação – que é condição para discutir questões complexas, problemáticas ou controversas, para abordar temas polêmicos, para se posicionar em relação a um determinado ponto de vista – tem existência no interior de artigos de opinião, editoriais de jornal, propaganda eleitoral, cartas de solicitação, provérbios, monografias, dissertações etc.

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Ou seja, narração, descrição, argumentação e exposição não existem ‘em si’, fora dos gêneros textuais, tampouco coincidem completamente com eles – um conto, por exemplo, é um texto em que predomina a narração, mas também há descrição, argumentação e, a depender do caso, até mesmo algum nível de exposição. Por isso, do ponto de vista pedagógico, o que faz sentido é o trabalho com os gêneros, com as formas textuais que têm existência e circulam em diversas esferas da vida social: cotidiana, escolar, jornalística, literária.

Os textos que respondem a necessidades do cotidiano, da vida prática, são os mais simples, mas têm grande importância no início da escolaridade porque, além de sensibilizar as crianças para os usos da linguagem presentes em seu dia-a-dia, podem funcionar como uma porta de acesso a outros gêneros, mais complexos, todos fundamentais para a formação de usuários proficientes da linguagem.

Quanto aos gêneros veiculados no jornal e em outros mídias, são importantes porque dão acesso à informação sobre os temas relevantes do ponto de vista social; os gêneros valorizados na escola são importantes porque favorecem a ampliação do conhecimento e da capacidade de estudo; os gêneros literários são imprescindíveis porque esses textos em verso e em prosa possibilitam a apreciação estética, a viagem por mundos imaginários criados intencionalmente, a reflexão sobre as experiências e os sentimentos humanos, a análise dos efeitos produzidos pelo uso de recursos da linguagem literária, a familiarização com a ambiguidade de sentidos, dentre outras conquistas.

Apesar das diferenças em relação à complexidade, aos propósitos comunicativos e ao predomínio deste ou daquele modo de dizer, cada gênero tem três componentes que o caracterizam: tema, formato e estilo. O tema é aquilo de que o texto trata (um recorte de determinado assunto), o formato é o modo de organização global e o estilo diz respeito à seleção mais usual de palavras, expressões, construção de frases...

Quadro de gêneros textuais

Para favorecer uma melhor compreensão dessas informações, a seguir há um quadro que foi adaptado a partir do que propõem Ana María Kaufman e María Helena Rodríguez, em Escola, leitura e produção de textos (Artmed, 1995) e de contribuições trazidas por Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, em Gêneros orais e escritos na escola (Mercado de Letras, 2004). São quatro importantes pesquisadores do ensino da língua, que vêm produzindo subsídios sobre o trabalho com os diferentes gêneros textuais na escola.

As duas autoras tomam como referência, por um lado, as principais funções da linguagem – informativa, expressiva, literária ou apelativa – e, por outro, os principais tipos de trama – descritiva, argumentativa, narrativa ou conversacional –, de modo a criar cruzamentos em que podemos então situar os textos. Porém, em razão de algumas das proposições de Schneuwly e Dolz, foram feitas alterações no quadro original criado por elas. Além disso, convém destacar que estão relacionados textos das diversas esferas (cotidiana, escolar, jornalística e literária), mas só os escritos39 – neste momento a opção não foi tematizar os textos orais.

Alguns gêneros – como quadrinhas, parlendas, adivinhas, anedotas – que hoje existem na versão escrita, mas que são heranças da tradição oral, foram incluídos no quadro como textos literários porque de algum modo ‘brincam’ com a linguagem, revelando uma certa intenção estética no uso das palavras, não propriamente porque, a rigor, sejam gêneros literários escritos.

O fato é que nem sempre é possível acomodar adequadamente, nas categorias e nos instrumentos que temos disponíveis, o que queremos classificar de algum modo: tal como alertam as autoras que criaram o quadro em que nos baseamos, podemos usar, sim, exemplos úteis para a nossa análise, mas por certo eles têm limitações que nos obrigam a explicações como estas. E esse tipo de dificuldade é bastante compreensível, porque não há nenhuma construção feita para ‘enquadrar’ o real, qualquer que seja ela, que dê conta de sua complexidade...

No primeiro capítulo do livro ‘O demônio da teoria: literatura e senso comum’ (Ed. UFMG, 1999), por exemplo, ao problematizar o que pode ser ou não considerado literatura, o autor Antoine Compagnon comenta que nas livrarias britânicas encontra-se, de um lado, a estante Literatura e, de outro, a estante Ficção; de um lado, livros para a escola e, de outro, livros para o lazer, como se a Literatura fosse a ficção entediante, e a Ficção, a literatura divertida. Diz também que, no sentido mais amplo, literatura é tudo o que é impresso (ou mesmo manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral). E que, no sentido restrito, a literatura, ou seja, a fronteira entre o literário e o não-literário varia consideravelmente segundo as épocas e as culturas. O autor afirma ainda que, evidentemente, identificar a

39 Por isso, foi eliminada do quadro a trama conversacional, própria da interlocução pela fala, que predomina, também, em entrevistas, textos de teatro e roteiros de cinema e televisão – gêneros escritos que não foi possível ‘enquadrar’ neste instrumento, mas que devem ser abordados com as crianças, quando fizer sentido.

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literatura com o valor literário (os grandes escritores) é, ao mesmo tempo, negar o valor do resto dos romances, dramas e poemas, e, de modo mais geral, de outros gêneros de verso e de prosa, uma vez que ‘todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão’. Acaba por concluir que o termo literatura tem uma extensão mais ou menos vasta segundo os autores, dos clássicos escolares às histórias em quadrinhos, e é difícil justificar sua ampliação contemporânea: literatura é literatura – aquilo que as autoridades (os professores, os editores) incluem na literatura.

Feitas essas observações, segue-se o quadro e, logo mais, a caracterização de alguns gêneros principais.

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GÊNEROS TEXTUAIS ESCRITOSFUNÇÃO PREDOMINANTE DA LINGUAGEM

TRAMA – FORMA

PREDOMINANTE DO TEXTO

Informativa

Textos que fazem saber, que informam, com uma

linguagem precisa e concisa.

Expressiva

Textos que expressam a atitude (estados de

ânimo, afetos, emoções) do autor em relação àquilo de que está

tratando

Literária

Textos em que o autor utiliza recursos da linguagem a fim de

produzir efeitos estéticos.

Apelativa / Injuntiva40

Textos que orientam a ação e/ou pretendem modificar

comportamentos.

Descritiva

Textos que apresentam especificações, caracterizações de objetos, pessoas ou processos por meio de seus traços distintivos.

◦ Lista de compras, de afazeres, de objetos etc

◦ Roteiro de viagem, de fala pública etc

◦ Cardápio◦ Programação de

atividades, de tevê etc

◦ Congratulações ◦ Poema◦ Quadrinha◦ Parlenda ◦ Adivinha◦ Canção (letra de

música)

◦ Aviso◦ Anúncio◦ Receita◦ Instrução◦ Regra de jogo◦ Regulamento ◦ Consigna (enunciado)

de atividade◦ Problema matemático

Argumentativa

Textos em que há explicações, comentários, apresentação ou confronto de ideias, conhecimentos, opiniões, crenças, valores.

◦ Artigo de opinião/ Editorial

◦ Carta de leitor◦ Carta aberta◦ Reportagem◦ Monografia◦ Dissertação◦ Ensaio◦ Resenha

◦ Provérbio ◦ Aviso◦ Anúncio◦ Slogan◦ Carta de solicitação/

Requerimento◦ Carta de reclamação◦ Convite◦ Convocação

Expositiva

Textos que se organizam de modo a ensinar algo sobre determinado assunto, por meio de explicações, definições e outros recursos que favorecem a compreensão de conteúdos desconhecidos ou pouco familiares.

◦ Verbete de dicionário

◦ Verbete de enciclopédia

◦ Verbete de curiosidade científica

◦ Definição◦ Relato de

experimento◦ Relatório de

pesquisa◦ Ensaio ◦ Resumo de

explicações e de textos expositivos

◦ Resenha ◦ Artigo de

divulgação cientifica

◦ Monografia◦ Entrevista de

especialista◦ Reportagem

◦ Estatuto

Narrativa

Textos que apresentam fatos, acontecimentos, ações em uma sequência temporal e causal.

◦ Notícia◦ Biografia◦ Perfil◦ Relato histórico◦ Sinopse de filme etc◦ Bilhete◦ Mensagem de e-

mail◦ Relato/Diário de

viagem◦ Carta

◦ Carta de amor, de despedida etc

◦ Bilhete◦ Mensagem de e-

mail◦ Diário pessoal ◦ Relato de

experiência de vida◦ Depoimento◦ Memorial◦ Autobiografia

◦ Conto ◦ Lenda◦ Mito◦ Fábula◦ Causo◦ Crônica◦ Novela◦ Cordel◦ Quadrinha◦ Parlenda◦ Anedota/piada◦ Poema◦ Letra de música◦ História em

Quadrinhos

◦ Aviso◦ História em

quadrinhos

40 Também chamada de instrucional.

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Alguns gêneros poéticos

PoemaSegundo Ana Maria Kaufman e Maria Helena Rodríguez41, “poema é um texto literário, geralmente escrito em verso, com uma distribuição espacial muito particular: as linhas curtas e os agrupamentos em estrofes dão relevância aos espaços em branco; então, o texto emerge da página com uma silhueta especial que nos prepara para sermos introduzidos nos misteriosos labirintos da linguagem figurada. Nesse caso, pede uma leitura em voz alta, para captar o ritmo dos versos, e uma abordagem que permita extrair a significação dos recursos estilísticos empregados pelo poeta, quer seja para expressar seus sentimentos, suas emoções, sua versão da realidade, ou para criar atmosferas de mistério, de surrealismo, relatar epopeias (como nos romances tradicionais), ou, ainda, apresentar lições (como nas fábulas)”.

Na verdade, há poemas ainda mais ‘visuais’ do que os desse tipo – de linhas curtas e agrupamentos em estrofes – descrito acima, em que o autor busca produzir um efeito para se ver e não para se ouvir.

Eis alguns exemplos:

41 Todas as referências feitas a essas autoras são pautadas nas contribuições contidas em Escola, Leitura e Produção de Textos. Porto Alegre: Artmed, 1995. Por essa razão, daqui por diante não mais especificaremos que se trata desse livro, para evitar uma redundância desnecessária.

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Augusto de Campos

Embora frequentemente se use ‘poesia’ como sinônimo de ‘poema’, na verdade, poesia é o tipo de linguagem e poema é o texto produzido com esse tipo de linguagem (apesar de também existir a prosa poética). Em sua origem, a poesia está ligada à transmissão oral e, portanto, supõe-se que seus recursos, antes de reforçarem uma intenção estética, tenham sido criados com o intuito prático de facilitar a memorização – nesse caso, a sonoridade e o ritmo têm muita importância. O verso, unidade que de modo geral constitui os poemas, e o lirismo, que evoca sentimentos subjetivos, são características da linguagem poética mais tradicional.

A relevância dos aspectos formais que caracterizam a linguagem poética faz com que um de seus traços mais marcantes seja a literalidade, ou seja, o fato de que ela deve sempre ser reproduzida da maneira como foi escrita. Se não há necessidade de reproduzir uma conversa entre duas pessoas exatamente como ocorreu, e o mesmo se pode dizer de uma palestra ou artigo sobre um tema científico, dos quais o que importa é a reprodução do conteúdo, já não se pode dizer o mesmo em se tratando de um poema: nesse caso, alterar a forma significa descaracterizar completamente o texto. Nesse sentido, também as canções – as letras de músicas – são aqui consideradas poemas.

Para se ter a dimensão da importância da forma, no texto poético, basta imaginar o que aconteceria se os poemas acima transcritos fossem escritos ‘em outras palavras’ ou de modo convencional, simplesmente colocando umas palavras após as outras... Seriam praticamente incompreensíveis...

E já que o assunto é a linguagem poética, não será excessivo registrar o que certamente não é novidade mas convém afirmar:

Verso é o nome que se dá à linha de um poema: cada linha é um verso.

Estrofe é um grupo de versos que se separa de outro pelo espaço equivalente a uma linha em branco.

Refrão é uma estrofe que aparece repetidas vezes em um poema.

Rima é a repetição de um som, em geral, no fim do verso. A rigor, não há rima sem verso, mas há verso sem rima: os chamados versos brancos.

Aliteração é repetição de fonemas idênticos ou parecidos, utilizada como um recurso de estilo em poemas (e mesmo em textos escritos em prosa). Quando o mesmo som se repete no inicio de sucessivas palavras é o caso de aliteração inicial e no meio de sucessivas palavras, de aliteração interna – já quando é no final, trata-se de rima.

Abaixo, dois trava-línguas (um provérbio e uma parlenda) e dois poemas (de Cecília Meireles e de Fernando Pessoa), que trazem exemplos de aliteração.Quem com ferro fere, com ferro será ferido..................................................................Olha o sapo dentro do saco, o saco com o sapo dentro, o sapo batendo papo e o papo soltando vento..................................................................

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Havia a viola da vila,a viola e o violão.Do vilão era a viola,e da Olívia o violão. [Cecília Meireles].................................................................

Em horas inda louras, lindasClorindas e Belindas, brandasBrincam nos tempos das BerlindasAs vindas vendo das varandas.

[Fernando Pessoa]

De modo geral, há três tipos de poema considerados mais importantes: o lírico, o narrativo e o dramático. No poema lírico, o autor expressa sua reação pessoal diante do que vê, ouve, pensa e sente. No poema narrativo, o autor conta uma história e o texto tende a ser mais extenso – é o caso, por exemplo, do cordel, dentre outros. E, no poema dramático, o texto se assemelha ao poema narrativo, porque também conta uma história e é relativamente longo, mas, nesse caso, a história é contada por meio das falas dos personagens – desse ponto de vista, as peças de teatro escritas em verso são formas de poema dramático.

Como os poemas líricos e dramáticos são mais familiares para todos, ilustraremos aqui apenas o poema narrativo, com essa preciosidade de Manuel Bandeira:

Balada do Rei das Sereias1

O rei atirouSeu anel ao marE disse às sereias: - Ide-o lá buscar,Que se o não trouxerdesVirareis espumaDas ondas do mar!

Foram as sereias,Não tardou, voltaramCom o perdido anelMaldito o caprichoDe rei tão cruel!

O rei atirouGrãos de arroz ao marE disse às sereias: - Ide-os lá buscar,Que se os não trouxerdesVirareis espumaDas ondas do mar!

Foram as sereiasNão tardou, voltaram,Não faltava um grão.Maldito caprichoDe mau coração!

O rei atirouSua filha ao marE disse às sereias:- Ide-a lá buscar,Que se a não trouxerdesVirareis espuma

1 Poema de Manuel Bandeira publicado em Belo Belo e outros poemas, São Paulo: José Olympio, 2008.

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Das ondas do mar!

Foram as sereias...Quem as viu voltar?...Não voltaram nunca!Viraram espumaDas ondas do mar.

Cordel2

A literatura de cordel tem suas origens em diversas formas de poesia popular impressa que havia na Europa e foi trazida ao Brasil pelos portugueses. Tornou-se muito popular no Nordeste, adquirindo características próprias e hoje já se espalhou por vários cantos do país.

O folheto de cordel brasileiro é um livro pequeno (geralmente 16 cm X 10 cm) e muito fino (a maioria tem 8, 16 ou 32 páginas). Por muito tempo foi impresso somente em papel bem barato, tendo geralmente capas ilustradas com xilogravuras (uma técnica de entalhar a madeira, para depois imprimir em papel), reproduções de cartões-postais antigos, ou fotos mostrando cenas de filmes. O cordel atual, entretanto, já se modificou bastante e hoje nem sempre é assim – os poetas atualmente utilizam recursos gráficos sofisticados para a impressão dos seus folhetos. Em geral, os cordéis são narrados em ‘sextilhas’, que são estrofes de seis versos em que a segunda, a quarta e a sexta linha rimam entre si, e as demais não. Mas há também textos organizados em setilha, oitava, décima e muitas outras modalidades.

Os folhetos de cordel nordestinos geralmente contam histórias de cangaceiros (como Lampião e Antonio Silvino), de pelejas ou desafios de repentistas, das vidas de santos (como o Padre Cícero ou Frei Damião), de fatos da atualidade, dentre outras. Os mais populares são os que contam histórias maravilhosas. Nesse caso, os temas se assemelham com os temas da literatura infantil: as histórias são de fadas, príncipes, bruxas, dragões. É o caso, por exemplo, de João Valente e o Dragão da Montanha, que é uma versão de João e Maria transportada para o contexto do sertão:Entraram no mato adentro,Porém João não cochilava:Uma porção de pipocasEle escondido levavaNos dois bolsinhos da velhaCalça suja que trajava.

O velho, puxando a frenteCom o machado era o guiaSeguido pela menina,E João, atrás da Maria,Marcava com as pipocasA trilha que o pai abria.

Maria não entendiaComo sair do deserto,Porém seguiu o irmãoAcompanhando de perto;João, avistando as pipocasSeguia o caminho certo.

A bruxa do cordel morre da mesma forma que a do conto escrito pelos irmãos Grimm, mas é aí que começa a parte mais fantástica:

Quando ela subir à tábua,Que for começando o jogo,Um de vocês se aproxima2 Texto baseado em As crianças e o universo dos cordéis, de Silvana Augusto, escrito para a Revista Avisa Lá, em A Pedra do Meio-Dia ou Artur e Isadora – Literatura de Cordel, de Bráulio Tavares (São Paulo: Editora 34, 1998) e em contribuições do cordelista César Obeid, que publica informações sobre cordel no site www.teatrodecordel.com.br

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Empurra a velha no fogo;deixe que se vire em cinza,Não atendam nenhum rogo.

Surgirão da cinza delaDois cachorros vigilantes(duas feras verdadeiras),Além de grandes, possantes,Que servirão a vocêsSempre em todos os instantes.

Cada cachorro teráPara si mesmo um critérioNo nome em que cumpriráO seu compromisso sério,Um será CONTRAVENENOE o outro QUEBRA-MISTÉRIO.

Uma curiosidade interessante, contada por Bráulio Tavares (1998), que escreve sobre cordel é a seguinte: como nesse meio acabou se tornando comum a apropriação dos textos alheios, imprimindo-se o folheto sem o nome do verdadeiro autor, mas com o nome daquele que o tomava para si ou com nomes inventados, os autores de cordel desenvolveram, ao longo dos anos, uma maneira interessante de assinar os seus textos. Passaram a usar as últimas estrofes do poema para inserir seus nomes de forma disfarçada: para isso, faziam no final um acróstico, ou seja, versos em que as primeiras letras, lidas verticalmente, formam uma palavra – no caso, o nome do autor.

Com o tempo, esse recurso passou a ser de conhecimento público, e os ‘ladrões’ de folhetos passaram a modificar e até mesmo cortar as estrofes que traziam a ‘assinatura’ cifrada – mas esse modo de ‘assinar’ tornou-se uma tradição do cordel, embora nem todos os escritores o utilizem.

AcrósticoE já que surgiu o assunto, o acróstico3 é uma composição poética disposta em uma sequência de maneira que não só as letras iniciais, mas às vezes as do meio ou do fim dos versos, observadas na vertical formem uma ideia, um nome ou uma frase. Já era praticado na Antiguidade pelos escritores gregos e latinos e, na Idade Média, pelos monges. Abaixo, como ilustração, um acróstico bem conhecido – o poema de Ofélia Queirós dedicado ao poeta Fernando Pessoa:

Fazia bem em me dizerE grata lhe ficariaRazão porque em verso me diziaNão ser o bom-bom para si...A não ser que na pastelariaNão lho queiram fornecerD’outro motivo não viIr tal levá-lo a crer.Não sei mesmo o que pensarHá fastio para o comer?Ou não tem massa pr’o comprar?!

Peço porém me desculpeEste incorrecto poemaSeja bom e não me culpeSou estúpida, e tenho penaO Sr. é muito amávelAturando esta... pequena...A seguir, em razão da importância que podem assumir no trabalho pedagógico, são abordados dois gêneros menos conhecidos – o haicai e o limerique – e, por fim, um bastante conhecido: a parlenda.

3 Adaptado de http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/acrostico.htm

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Haicai4

O haicai é um poema de origem japonesa, conciso, sem necessidade de rima ou título e que originalmente obedece a quatro regras:

◦ tem 17 sílabas japonesas, divididas em três versos: o primeiro com 5, o segundo com 7 e o terceiro com 5 sílabas;

◦ contém alguma referência à natureza;◦ refere-se a um evento particular (ou seja, não é uma generalização);◦ apresenta esse evento particular como acontecendo no presente e não no passado.

O haicai nasce da experiência do poeta, através da observação da natureza e da vida diária. A ausência de metáforas o faz um texto fácil de ser entendido.

Alguns haicais tradicionais:

Já é primavera – Uma colina sem nome

Sob a névoa da manhã. [Bashô5]

Neve que ambos contemplamos. Vê-la-emos juntos

Cair uma vez mais? [Bashô]

Quando o outono entardece A estrada é só silêncio

E a noite já suspira. [Bashô]

Chuva de primavera – todas as coisas

parecem mais bonitas. [Chiyo]

Quando contemplamos a lua até os vestidos flutuam:

como somos belas! [Chiyo]

Na transferência do haicai para outros países, houve uma certa flexibilização das regras originais, de modo que algumas são seguidas com maior ou menor fidelidade e outras às vezes são mesmo ignoradas, dependendo de cada poeta ou da linha seguida. Por exemplo, embora se tenha como referência o número de 17 sílabas, há variações para menos ou para mais (sem contudo ultrapassar 21). E embora expresse um momento vivenciado no presente, trate de coisas concretas, com existência física, e tradicionalmente se reporte à natureza, há poetas que intencionalmente abordam outras temáticas ou fazem referência de modo muito indireto às coisas da natureza, como é o caso de Carlos Seabra6, de quem destacamos alguns haicais:

deu no jornal:economia vai bemo povo vai mal.................................................................cerveja geladaamigos no botecopalavra molhada.................................................................

4 Informações baseadas em http://www.kakinet.com/caqui/nyumon.htm, e http://haicaisequetais.blogspot.com/.5 Bashô é um dos autores mais antigos e mais importantes e Chyo, uma autora também importantes.6 In Haicais e Que Tais. Massao Ohno Editor, 2005 e em http://haicaisequetais.blogspot.com/.

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era uma vezum sapo que beijadopoeta se fez.................................................................

chora poeta -musa obesa pensasó em dieta.................................................................

casa quieta –cochila o avô edorme a neta.................................................................

homem e mulhertudo pode serse você quiser.................................................................

sexto sentidogesto delicadoabre vestido

Importantes poetas brasileiros, como Paulo Leminski, Alice Ruiz e Ângela Leite (dentre outros), são também escritores de haicais:

a estrela cadente me caiu ainda quente na palma da mão [Paulo Leminski]

Voltando com amigos O mesmo caminho É mais curto [Alice Ruiz]

No Japão (e também em outros países) o haicai é chamado de haiku. Esse tipo de poema surgiu no Século XVI e se disseminou pelo mundo no século XX, quando chegou ao Brasil – hoje conta com muitos praticantes e estudiosos brasileiros.

Alguns haicais infantis7: Dentre os arvoredosApenas algumas réstias.Sol aprisionado.

[Franciela Silva]

Profundo silêncio.Na escuridão da florestaDançam vagalumes.

[Eusébio S. Sanguini]

Chuva cai lá foraNo batuque das goteiras,Eu durmo tranquilo.

[Natacha L. Batistão]

7 Textos das três crianças vencedoras da etapa infantil do I Concurso Brasileiro de Haicai, instituído pela Biblioteca Pública do Paraná em 1998, da cidade de Bandeirantes, que integram o Grupo Haicai Araucária, que vem se destacando na formação de pequenos poetas, e é orientado pela haicaísta Neide Rocha. São respectivamente o 1º, 2º e 3º lugar do concurso.

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O poeta Izacyl Guimarães Ferreira afirma que ‘o haicai estaria para a poesia oriental como o soneto para a nossa – valha esta insólita comparação que nada mais quer que ressaltar duas características das duas formas: o rigor e a densidade’. E o poeta Paulo Franchetti, que também escreve haicais, pondera sabiamente: ‘Haicai não é síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo de palavras. É antes a arte de, com o mínimo, obter o suficiente’.

Limerique

Limerique é um poema curto, de origem inglesa, que se popularizou quando um inglês chamado Edward Lear passou a escrever esse gênero, ilustrando os textos com seus próprios desenhos. Tatiana Belinky8 é uma escritora talentosa na produção de limeriques e tem livros publicados com vários dele – sobre amigos, amor, natureza, comidas gostosas, brinquedos...

O limerique tem cinco versos: o primeiro, o segundo e o quinto terminam com a mesma rima – já o terceiro e o quarto são mais curtos e rimam entre si (não com os demais). É um texto geralmente cômico, sem um sentido sério, por vezes absurdo mesmo, e que, por essa razão, vai sempre muito bem com ilustrações complementares.

Eis um exemplo de Edward Lear, traduzido por José Paulo Paes (o primeiro, abaixo) e outros, a seguir, de Tatiana Belinky:

Havia uma moça cujo olhotinha o tamanho de um repolhoQuando ela o arregalava,todo mundo se espantava.E dizia: ‘Nossa, que trambolho!’..................................................................

Quem pensa que eu sou uma ograNo seu pensamento malogra.Língua bifurcada?Só quando enfezada.Porque eu sou mesmo é sogra...................................................................

Um cara chamado Marizestava com dor no narizvou jogá-lo forafalou – e na horafez isso e vive feliz. .................................................................

Ao ver uma velha corocafritando um filé de minhocao Zé minhocãofalou pro irmão“não achas melhor ir pra toca?” .................................................................

De volta da festa de arrombasoltando fumaça da trombaum gordo elefantemarchava importantepensando que era uma bomba. .................................................................

Um moço chamado Hipólitoachou seu nome insólitopensou, repensou

8 Alguns livros de Tatiana Belinky: Limeriques da Cocanha, Cia das Letrinhas, 2008; Limeriques das causas e efeitos, Editora 34, 2008; Limeriques da Coroa implicante, Edições Paulinas, 2006; Limeriques de um bípede apaixonado, Editora 34, 2005; Limeriques dos tremeliques, Editora Biruta 2006; Limeriques para pintura da paz, Editora Noovha America; Limeriques, Editora FTD, 1987, Limeriques das coisas boas, Editora Formato.

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e o nome mudoupra Tripodeglutifrutólito.

ParlendaParlenda é uma brincadeira verbal de criança, em forma de versos não necessariamente rimados, caracterizada por uma arrumação rítmica de palavras. Em geral, sua finalidade é entreter a criança ou lhe ensinar alguma coisa.

Tal como informa a professora de música Monique Andries Nogueira (2000), trata-se de uma brincadeira comum em várias partes do mundo – é chamada lengalenga em Portugal, rimes populaires na França, filastrocca na Itália e folk rhymes nos países de língua inglesa. E segundo Veríssimo de Melo (1985)9, elas podem ser divididas em três tipos:

◦ brincos – as recitadas pelos adultos para as crianças como forma de entretenimento (Serra, serra serrador...);

◦ mnemônicas – as propostas para as crianças recitarem com a finalidade de memorizar e aprender algo (Um, dois, feijão com arroz...);

◦ parlendas propriamente ditas – as mais complexas (como as duas abaixo), que incluem, por exemplo, os trava-línguas.

Hoje é domingo Pé de cachimbo Cachimbo é de barro Bate no jarro O jarro é de ouro Bate no touro O touro é valente Chifra a gente A gente é fraco Cai no buraco Buraco é fundo Acabou o mundo

...........................

Cadê o toicinho daqui? O gato comeu. Cadê o gato? Foi pro mato. Cadê o mato? O fogo queimou. Cadê o fogo? A água apagou. Cadê a água? O boi bebeu. Cadê o boi? Foi amassar trigo. Cadê o trigo? A galinha espalhou. Cadê a galinha? Foi botar ovo. Cadê o ovo? O padre bebeu. Cadê o padre? Foi rezar a missa. Cadê a missa? Já se acabou!

O aspecto rítmico é evidente e é essa a graça do brinquedo: é praticamente impossível a simples fala da parlenda sem respeitar o desenho rítmico proposto.

Quando se trata de trava-língua, o desafio é maior, ao recitar, porque além de haver um ou mais versos com grande concentração de sílabas difíceis de pronunciar, ou formadas com os mesmos sons mas em ordem diferente, a proposta é sempre falar rapidamente e sem errar:

No meio do trigo tinha três tigres...........................................................Uma aranha dentro da jarra. Nem a jarra arranha a aranha

9 In Folclore Infantil. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1985.

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nem a aranha arranha a jarra. ..........................................................No cume daquele morro,tem uma cobra enrodilhada. Quem a cobra desenrodilhar, bom desenrodilhador será.

A parlenda tem sua origem na tradição oral e, como muitos outros gêneros nascidos na oralidade, com o tempo ganhou também seu registro escrito. Parlendas e trava-línguas pertencem ao patrimônio cultural da infância e, se tomado como critério o fato de possuírem versos, podem ser então consideradas textos poéticos, muito embora, a rigor, com base nos critérios que em geral definem os gêneros poéticos escritos, não seriam... O mesmo ocorre em relação a considerá-los textos literários: são jogos verbais próprios da comunicação oral, possíveis de se considerar literários somente porque expressam, em sua composição, uma intenção estética no uso da linguagem – que evidentemente será sempre mais consonante com sua condição de jogo verbal oral do que de gênero literário escrito.

Esses textos têm muita importância para o trabalho pedagógico no início da escolaridade, por serem facilmente memorizáveis e favorecerem o uso de estratégias antecipatórias de leitura pelas crianças que estão se alfabetizando ou estão recém-alfabetizadas.

Alguns gêneros narrativos

Conto

A capacidade humana “de reter na memória tudo o que é enunciado pela voz já representou, para as civilizações que não conheciam a escrita, a mais alta tecnologia de preservação da cultura”.10 Pode-se dizer que a narrativa literária escrita nasceu do relato oral. Antigamente “as histórias eram contadas em voz alta por um narrador a um grupo de pessoas, estabelecendo-se uma interação direta entre ele e seus ouvintes. A fala do narrador transformava-se em uma espécie de escritura invisível que se fixava na memória do ouvinte, garantindo a reprodução futura. Durante a Idade Média, as histórias, muitas vezes de autores desconhecidos, eram divulgadas oralmente pelos contadores que percorriam longas distâncias para realizar suas apresentações. A composição oral sempre foi caracterizada como um texto de muitas vozes, de muitos autores. O próprio ouvinte, no momento da escuta, já elabora o seu modo de interpretar o que ouve, tornando-se também um possível criador. Tudo isso é uma das mais importantes heranças que a literatura recebeu.”11

Com a invenção da escrita, as histórias da tradição oral puderam ser registradas e ganharam outro tipo de permanência. Além disso, as fórmulas de composição dessas histórias modalizaram as outras que foram sendo criadas e recriadas por escrito. Uma fórmula bastante característica e bem definida é a do conto.

Tal como afirmam Ana Maria Kaufman e Maria Helena Rodriguez, o conto tradicional é um relato em prosa de fatos fictícios, com três momentos diferenciados: começa com um estado inicial de equilíbrio, segue com a ocorrência de um obstáculo/conflito que gera uma série de episódios e encerra com a resolução desse conflito, o que restabelece o equilíbrio perdido. De modo geral, o conto tradicional tem como características:

◦ um tempo difuso indicado no primeiro parágrafo (Era uma vez..., Certa vez..., Há muito tempo..., Houve um tempo em que

◦ elementos descritivos na apresentação de cenas, personagens e respectivas características;

◦ relação causal entre os acontecimentos/ações;

◦ elementos ‘de recheio’ desses acontecimentos/ações para criar e manter um certo suspense;

◦ diálogo entre os personagens, apresentado com os sinais gráficos correspondentes (os travessões – ou aspas12 – para indicar a mudança de interlocutor);

10 Segundo Irene A. Machado, em Literatura e Redação, São Paulo: Editora Scipione, 1994. Como todas as referências feitas a autora são pautadas nas contribuições contidas nesse mesmo livro, daqui por diante não mais especificaremos o livro, para evitar uma redundância desnecessária.11 Idem.12 Ou, como prefere o escritor português José Saramago, apenas letra maiúscula.

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◦ tempos verbais com uma função importante tanto para a criação como para o entendimento do texto: o tempo passado – pretérito imperfeito e pretérito perfeito – predomina na narração e o tempo presente, nos diálogos;

◦ um narrador criado pelo autor para apresentar a história – a voz do narrador pode ser de um personagem, de uma testemunha que relata os acontecimentos em primeira pessoa ou de uma figura que não intervém na história. Há diferentes pontos de vista do narrador: ele pode conhecer somente o que está acontecendo (o que os personagens estão fazendo) ou saber de tudo (os chamados ‘narradores oniscientes’) o que fazem, o que pensam e sentem os personagens, o que lhes aconteceu e o que lhes acontecerá.

Um conto pode configurar uma narrativa longa ou breve. Os que costumam nos ser mais familiares são os contos tradicionais, que não são textos muito curtos e que coincidem com a caracterização acima. Mas há vários, como os dois transcritos abaixo, que em poucas linhas contam uma história, geralmente para comunicar um ensinamento – são os chamados “contos de ensinamento”13, muito comuns nas culturas orientais. A intenção de comunicar um ensinamento quase sempre dispensa o uso de recursos característicos de um conto tradicional, como a definição do tempo cronológico e a descrição do cenário e dos personagens, a menos que tenham relevância para o que a história pretende transmitir. Isso faz com que, em certos casos, os contos de ensinamento sejam curtos, o que não é uma regra geral: podem também configurar um texto extenso, se o que se pretende comunicar por meio deles requer uma história longa.

Roubado

Um homem levava seu carneiro por um caminho, puxando-o por uma rédea. Alguns ladrões, chegando por trás, cortaram a rédea e levaram o animal. Quando deu-se conta do sumiço, o homem pôs-se a procurar por toda a parte. Na margem de um poço, encontrou outro homem, que se lamentava.– O que aconteceu? – perguntou-lhe.– Minha bolsa, cheia de ouro, acaba de cair no poço. Se conseguires recuperá-la, darei a ti a quinta parte dela: vinte moedas de ouro.

O dono do carneiro roubado disse então:– Esta soma é exatamente o valor do carneiro que acabo de perder. Aceito tua proposta.

Despiu-se e mergulhou no poço.

E o outro partiu levando suas roupas.

O valor de um tesouro escondido

Vivia na China um sacerdote rico e avarento. Amava joias e as colecionava, acrescentando constantemente novas peças ao seu maravilhoso tesouro escondido, que guardava a sete chaves, ocultos de olhos que não fossem os seus.

O sacerdote tinha um amigo, que um dia o visitou e manifestou interesse em ver as joias.

– Seria um prazer tirá-las do esconderijo, e assim eu poderia olhá-las também.

– A coleção foi trazida, e os dois deleitaram os olhos com o tesouro maravilhoso por longo tempo, perdidos em admiração.

Quando chegou o momento de partir, o convidado disse:

– Obrigado por me dar o tesouro.

– Não me agradeça por uma coisa que você não recebeu – disse o sacerdote. – Como não lhe dei as joias, elas não são suas, absolutamente.

– Como você sabe – respondeu o amigo – senti tanto prazer admirando os tesouros quanto você, por isso não há essa diferença entre nós como pensa. Só que os gastos e o problema de encontrar, comprar e cuidar das joias são seus.

“Histórias da Tradição Sufi”, Edições Dervish/1993.

13 Conforme o prefácio de Histórias da Tradição Sufi. Edições Dervish/1993.

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Conto de fadas

É uma narrativa ficcional que compõe a família dos chamados contos maravilhosos – aquelas histórias que, mesmo situadas fora do mundo da realidade, narram acontecimentos ocorridos em um mundo imaginável, num passado cronologicamente indeterminado (nosso famoso Era uma vez). O narrador é onisciente e apresenta seu relato de tal forma que não há espaço para questionar sua história, coerente em si mesma. Os contos de fadas figuram entre as primeiras manifestações literárias não escritas. Uma das compilações mais importantes desse tipo de relato é atribuída aos Irmãos Grimm – o livro Kinder und Hasmärchen (Contos das crianças e da casa, 1812-1822). Os Irmãos Grimm recolheram grande número de narrativas da tradição oral popular alemã, muitas das quais, como as histórias de Chapeuzinho Vermelho e da Gata Borralheira, se tornaram mundialmente famosas. Os temas dos contos de fada, em geral, estão ligados à invisibilidade, à transformação, ao dualismo e à luta entre o bem e o mal. Isso gera uma grande quantidade de motivos recorrentes, como bruxas, fadas, sombras, masmorras, feras, objetos animados ou mágicos, animais falantes etc.

Irene A. Machado14 define o conto de fadas tradicional como um conto maravilhoso em que a ação de um ser sobrenatural intervém no destino do herói e transforma a sua vida – o poder de produzir essas transformações é privilégio de alguns seres encantados, dotados de poderes mágicos. A peculiaridade que distingue o conto de fadas dos demais gêneros de narrativa literária é exatamente essa, por isso os seres mágicos são tão importantes tanto para o desenvolvimento da história quanto para o comportamento do herói.

A mesma autora diz queTodo conto de fadas apresenta histórias de heróis que vivem problemas terríveis criados por seres malévolos – geralmente bruxas –, mas felizmente conta com a ajuda de seres mágicos: fadas, magos, anões... Por isso, os conflitos são provocados por uma intenção maldosa contra uma pessoa de bem e só se resolvem pelo encantamento. O herói sofre a perseguição do mal, o que faz aumentar o conflito até o final, quando a virtude triunfa e o ser malévolo é impiedosamente castigado. Assim, tudo termina com final feliz.

[...] Ainda que não se possa localizar no tempo a origem das fadas, a nossa tradição cultural se encarregou de defini-las como seres simbólicos, dotados de virtudes positivas e poderes sobrenaturais, concentrados em suas varinhas mágicas. Por isso, elas sempre aparecem nos momentos dos grandes conflitos, quando os personagens protagonistas pensam que seu destino está tomado por uma fatalidade da qual é impossível fugir. Assim sendo, o conto de fadas tornou-se uma manifestação valiosa na representação dos sonhos e dos desejos humanos, os mais profundos e significativos.

E para afirmar nossa defesa do inalienável direito das crianças aos contos de fadas, encerramos esta parte com as brilhantes considerações de P. J. Stahl, autor do prefácio de Contos de Perrault, publicado em 1883 – tempo marcado pelo esforço de alguns em salvar a todos do suposto perigo provocado pela ficção, pelas histórias maravilhosas:

Na verdade, as pessoas que temem o maravilhoso devem sentir-se bastante embaraçadas, pois, afinal, a vida e as coisas estão inteiramente imbuídas dele. Será que tudo o que existe de bom no mundo não tem, de um lado, um pouco de milagre e de outro um pouco de superstição? Será preciso ocultar também o prodígio do amor, de todos os belos e nobres amores, os quais têm todos os seus heróis, os seus mártires e, em consequência, suas lendas – lendas verdadeiras e por isso mesmo, por seu heroísmo, fabulosas?

Quereis suprimir as fadas, a primeira poesia da primeira infância!...

Pois nada, absolutamente nada podereis revelar às crianças, se pretendeis ocultar-lhes o maravilhoso, o inexplicado, o inexplicável, o impossível, que são encontrados no real tanto quanto no imaginário. A História é cheia de inverossimilhanças, a ciência, de prodígios; a realidade é fértil em milagres, e nem todos os seus milagres são bem-vindos, infelizmente! O real é um abismo recheado com o desconhecido. Perguntai aos verdadeiros sábios. A ciência explica o relógio, mas ainda não conseguiu explicar o relojoeiro. A derrota da razão está no final, no topo de todo o saber – e vós mesmo, vós sois um mistério.

Às crianças, portanto, o que é patrimônio da infância: o maravilhoso, o inexplicado, o inexplicável, o impossível...

14 Como todas as referências feitas à Irene A. Machado, são do livro Literatura e Redação (Editora Scipione, 1994), daqui por diante não mais especificaremos o livro, para evitar uma redundância desnecessária.

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Conto de aventura

O conto de aventura tem traços característicos dos demais contos e é marcado também por recursos de suspense. Compõe-se de pequenas situações de perigo, mistério ou curiosidade que, por algum tempo, além de prender a atenção do leitor, deve levá-lo a fazer certas deduções e a experimentar uma atitude de ‘torcida’, geralmente pela vitória do bem contra o mal, ou a favor de um personagem central, que muitas vezes é o narrador da trama.

Monteiro Lobato15 é, no Brasil, um escritor considerado importante como autor de histórias de aventuras para crianças. Entre seus livros mais conhecidos estão: Reinações de Narizinho (1921), O saci (1921), O Marquês de Rabicó (1922), A caçada da onça (1924), Viagem ao céu (1932), Novas reinações de Narizinho (1933) e O Pica-Pau Amarelo (1939). Nessas histórias, Lobato criou uma encantadora galeria de tipos e uma geografia imaginária – a do sítio do Pica-Pau Amarelo. Emília, Narizinho, Visconde de Sabugosa, Marquês de Rabicó, Tia Anastácia e Dona Benta são alguns dos principais personagens que marcaram a história da literatura infanto-juvenil do nosso país.

Conto de assombração

O conto de assombração tem as mesmas características dos contos de um modo geral, mas o seu conteúdo pressupõe situações cuja intenção é fazer de algum modo o leitor/ouvinte aderir emocionalmente à atmosfera angustiante ou sobrenatural sugerida pelo autor. Um conto de assombração bem narrado produz inquietação e suspense. Por tratar do sobrenatural e do medo, contribui de algum modo para que as crianças trabalhem suas questões a esse respeito, através do fantástico e inusitado.

Do Clic Educação16, algumas informações complementares:Sustos, fantasmas, seres misteriosos, casas abandonadas, arrastar de correntes, portas que rangem. Estes são os componentes recorrentes nos contos de assombração. Cenários perfeitos para produzir medo.

A narrativa lança mão de cenários sombrios, descrições detalhadas, suspense, suores frios, mistérios, situações estranhas, personagens ora corajosas, ora medrosas, criaturas e seres fantásticos, e até uma pitada de humor, para compor histórias que nos fazem suspender a respiração, gelar o sangue, levar muitos sustos e, é claro, sentir uma pontinha de terror. Mas, ao invés de deixar as crianças apavoradas, essas histórias podem até servir para exorcizar o medo, pois ao ouvir ou ler esse tipo de narrativa elas aprendem que tudo se dá no plano do ‘Era uma vez’, ou seja, da ficção.

Há personagens de contos de assombração que se tornaram famosos e hoje são clássicos da literatura, do teatro e do cinema, como Drácula, Frankenstein, Corcunda da Notre Dame e Lobisomem. Há também muitas lendas do folclore brasileiro, como Comadre Florzinha, Saci-pererê, Mula-sem-cabeça, Curupira e Cabra-cabriola, que são meio bichos, meios monstros e, ao mesmo tempo, seres fantásticos.

Causo

O causo é originalmente uma narrativa oral, uma história contada em rodas de conversa e que, portanto, pressupõe um ou mais ouvintes. É uma narrativa curta, conservada e transmitida pelas pessoas de uma determinada região, caracterizada por episódios de medo, realização de façanhas e heroísmo diante do perigo ou dos desafios enfrentados. O heroísmo, característica comum às narrativas ficcionais, não poderia estar ausente dos causos. O contador ou é o protagonista, herói da história, ou ‘assistiu ao acontecido’. Em situação de eventual derrota ou fracasso, os motivos com certeza dirão respeito a circunstâncias que estiveram fora de seu controle...

15 In http://www.coladaweb.com/perso/monteiro_lobato.htm 16 http://www.klickeducacao.com.br. Acesso em: 15 de dezembro de 2007.

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Nos causos tradicionais, os ‘acontecidos’ quase sempre dizem respeito a experiências vividas na zona rural – por caçadores, pescadores, tropeiros, vaqueiros, peões de fazenda, sertanejos, pantaneiros, seringueiros... Muitas vezes, o episódio tem a ver com o cotidiano, mas as histórias ganham proporções maiores que as experiências vivenciadas e acabam se mesclando com representações imaginárias, míticas, lendárias.

Tendo como referência o que pesquisou Ricardo Pieretti Câmara17, podemos afirmar que, de certo modo, o causo legitima um ‘universo paralelo’: a ocorrência do ‘acontecido’ naquela determinada região ou naquela comunidade passa a ser garantia de veracidade até mesmo para acontecimentos em princípio suspeitosos. Imagina-se que o ouvinte não questionará algo que se passou em lugar e em circunstâncias que lhe são desconhecidos e, não raro, revestidos de um certo clima de mistério... As crenças ancestrais se somam à inventividade do contador e se mesclam com informações sabidas pela tradição oral, vindas dos mais velhos, e com as informações trazidas pelos novos tempos. As histórias narradas nos causos mais tradicionais se reportam a um universo que é predominantemente masculino, uma vez que em geral os contadores são homens que narram suas façanhas.

Como se sabe, no imaginário dos povos da floresta, há muitos personagens fantásticos e eles protagonizam histórias de todo tipo. Eis abaixo, por exemplo, um causo do Mapinguari, conhecido personagem no Acre e em outros estados da Amazônia:

No primeiro ano que fui cortar seringa, eu não me assombrei não. Tinha uma estrada lá e eu só saia fora de hora para cortar. Ih! Até nove e meia, eu cansei de sair. Nesse tempo eu tinha dez anos de idade. Foi quando apareceu um ‘gritador’, um Mapinguari, no meio do verão.

Ele veio tentar apagar minha poronga e eu só escutava o grito. Quando eu ia chegando lá num canto, perto do topo de uma madeira grossa, ele gritava e eu respondia – para mim o grito era do cara que cortava a outra estrada.

Mas aí ele disse:

– Rapaz, corta aí e não responde, porque esse grito não é de gente desse mundo. Eu conheço o grito...

Ele era mais velho, sabia mais ou menos andar na mata e eu não tinha ainda costume...

O grito era do mesmo jeito de grito da gente, de quando a gente grita na mata. O Mapinguari começava a gritar e quando eu ia chegando lá, perto da posição, perto do roçado, faltando seis madeiras para o ‘rodo da estrada’, quando eu chegava lá, que a minha estrada passava perto da do cara, eu gritava e o cara respondia:

– Êêêêêêêêê – quase cantando...

Ele, o cara, o vizinho, de lá responde, quem vem na estrada também. Aquilo ali para o seringueiro é a alegria que ele tem, principalmente de madrugada, sozinho na mata, destreinado. Ele grita. Um grita pra um canto e o outro grita para o outro.

Pois não é que o Mapinguari gritava do mesmo jeito?! Para mim era só um companheiro, mas o vizinho disse que não era.

E quando foi lá para o meio do verão em diante, ele foi na frente e, quando eu ia chegando, lá estava ele, o gritador, o Mapinguari!!!

Vinha um vento de cima, mas nas folhas tudo era silêncio. Acho que era mais ou menos umas duas horas da madrugada, aí o cabra ‘arrastou pela boca’ que eu escutei até o assopro. A poronga tem um pavio grande, um fogo que chega a clarear de um lado a outro, mas o cabra só deu um assopro curto, que apagou todo o pavio.

Puxei o isqueiro do bolso, acendi novamente.

Ele deu outro assopro. Apagou.

Eu disse logo uns nomes feios e acendi de novo. Ele deu outro assopro. Apagou outra vez. Mas eu não tive medo!!! Me deu foi raiva. Falei um bocado de más palavras.

E pronto. Acabou-se.

Nunca mais!!!Francisco Marinho de Araújo, 33 anos, Seringal Japurá

17 Os causos: uma poética pantaneira. Tese de Doutorado. Universidade Autônoma de Barcelona-ES, 2007.

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Como muitos causos desse tipo são narrativas orais características de uma região ou comunidade, o registro escrito dessas histórias dependerá sempre de iniciativas locais. Não se poderá tê-los documentados se não houver projetos que os valorizem – e aos seus contadores – e que lhes deem a condição de textos escritos. Não teria sido possível conhecer esse causo do Mapinguari, contado pelo seringueiro Francisco Marinho de Araújo, se não tivesse sido gravado por duas pesquisadoras18 e transcrito posteriormente junto com outros tantos.

Por fim, ainda sobre os causos, duas outras observações. Uma é que, sendo o contador de causo participante da história, os relatos são em primeira pessoa – e não em terceira pessoa, como nos contos mais tradicionais. E outra é que talvez possamos considerar a existência hoje de um ‘causo moderno’, que é aquele tipo de história sobre as coisas mais corriqueiras do dia-a-dia, que se conta à moda dos causos ‘de verdade’ – uma espécie de crônica do cotidiano em que o narrador é personagem. Na verdade, não há uma fronteira muito precisa demarcando o território das narrativas que, em linhas gerais, podem ser incluídas na grande família do conto – vamos considerar de um ou de outro modo a depender de para onde olhamos: se mais para a forma, mais para o conteúdo ou mais para o estilo.

Lenda

A lenda é um tipo de história que apresenta uma explicação, um exemplo. Para caracterizá-la, Irene A. Machado comenta:

A busca de explicações para as coisas e os fenômenos do mundo foi o que tornou possível o surgimento de muitas narrativas – histórias contadas pelas pessoas comuns, pelos poetas, pelos escritores, enfim, histórias que valem muito, porque enchem de sentido muitas coisas cujas explicações, se existem, ou são muito complicadas ou estão muito longe da capacidade de entendimento das pessoas comuns. Mas como todo homem tem uma necessidade muito grande de produzir conhecimento, essas histórias mostram a sabedoria dos povos e a identidade das civilizações. O aspecto principal desse tipo de narrativa é a explicação das coisas complicadas de modo simples. Há muita coisa no universo cuja explicação aparece em forma de lenda: fenômenos da natureza, origem dos povos, formação de cidades, fatos históricos, heróis nacionais.

[...] Todos os povos criam suas lendas, que podem surgir em qualquer época e apresentam uma relação direta com o momento histórico do povo que a cria. As lendas oferecem um caminho para os fatos culturais de um povo, que permitem conhecer o seu modo de pensar num dado momento.

[...]A lenda tem sua origem na tradição oral e narra episódios referentes a grupos sociais e não a indivíduos.

As lendas combinam fatos reais e históricos com explicações que são produto da imaginação – explicações criadas na tentativa de compreender o desconhecido.

Mito19

O mito é fruto da rica experiência humana de explicar o porquê das coisas com histórias sobre deuses e fenômenos naturais, é fruto do esforço de explicar ‘como tudo começou’. As histórias são narrativas que se reportam aos fenômenos inaugurais de tudo: a genealogia dos deuses, a criação do mundo, o surgimento do homem, a explicação mágica das forças da natureza. Uma das diferenças em relação às lendas é que os personagens dos mitos são deuses, divindades ou heróis.

Os mitos são construções coletivas – ninguém sabe quando foram criados, só que são contados pelos mais velhos. Os povos guardam os mitos na memória, ao longo de gerações, em forma de poemas cantados, narrativas ou de lendas.

18 Márcia Verônica Macêdo e Meyrelene R. Macêdo, que publicaram um livro de causos de seringueiros chamado As Lendas da Floresta - contadas por seringueiros acreanos. Rio Branco: Gráfica e Editora Printac, 2007.19 A caracterização dos gêneros ‘mito’ e ‘relato de viagem’ foi feita por Antonia Terra com contribuições de Rosaura Soligo.

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Vejamos o mito do povo Kadiwéu, por exemplo, que é remanescente, no Brasil atual, dos índios de língua Guaikuru. Os Kadiwéus descendem da subtribo Cagiguegodis, que pertence à tribo Mbayá-Guaikurus, ou índios Cavaleiros, que viviam distribuídas no Grande Chaco, nas barrancas do Rio Paraguai. Em 1948, segundo o relato do antropólogo Darcy Ribeiro, os Kadiwéus, que não chegavam a três centenas de pessoas, viviam principalmente da caça ao cervo e ao veado e da coleta de cocos e palmitos, no sul do Pantanal mato-grossense, na margem esquerda do Rio Paraguai.

Gô-Noêno-Hôdi e o Caracará

Quando Gô-Noêno-Hôdi estava fazendo as coisas, Caracará andava com ele. Viu os pés de algodão que já davam novelo de linha feito e falou pro Gô-Noêno-Hôdi:

– Ó, o senhor não deve deixar isto assim não, senão estes safados dos Kadiwéus não fazem nada, senão as mulheres ficam à toa; deixa só o algodão no pé, prá elas terem que fiar a linha.

Gô-Noêno-Hôdi fez assim.

Quando o Caracará viu o mel que já dava numas cabaças grandes, era só levantar a mão para ter mel, ele disse pro Gô-Noêno-Hôdi:

– Não senhor, não é bom, não faça assim não, põe o mel bem no meio do pau que é para eles terem que cortar, senão estes safados não trabalham.

Gô-Noêno-Hôdi achou bom.

Antigamente, quando as roupas ficavam velhas, rasgadas e sujas, era só a gente balançar para ficarem novas outra vez. Mas o Caracará não gostou disso e falou pro Gô-Noêno-Hôdi:

– Não é bom, assim este safado não trabalha e a mulher dele também fica sem ter o que fazer. Quando uma roupa ficar velha, deixa acabar prá eles terem coragem de trabalhar e comprar roupa nova.

Quando Gô-Noêno-Hôdi fez a mandioca, a gente plantava e podia tirar as raízes para comer no outro dia, elas já estavam boas. Mas o Caracará disse pro Gô-Noêno-Hôdi que assim a gente não teria nada prá fazer, que era melhor a mandioca ficar na terra muito tempo para poder ser tirada. A bananeira também, a gente plantava e daí a dois ou três dias já tinha um cacho grande de banana para comer.

Mas o Caracará falou pro Gô-Noêno-Hôdi fazer diferente e agora a gente planta bananeira e tem que esperar muito tempo para ter banana.

Antigamente quando a gente morria tornava a viver dois dias depois, era como se tivesse dormido.

Mas este Caracará vendo isso disse a Gô-Noêno-Hôdi:

– Não é bom, não pode ser assim, quem morre tem que morrer mesmo, não deve tornar a viver daí a três dias, o mundo já está cheio de gente que não cabe mais.

Gô-Noêno-Hôdi disse que estava bem e fez assim.

Aí morreu a mãe do Caracará, ele foi logo procurar Gô-Noêno-Hôdi chorando muito e pediu que desse vida a ela outra vez.

Gô-Noêno-Hôdi ensinou que prá mãe dele viver, bastava levar à sua sepultura um lírio vermelho (Awá-timbá) que tem um talo liso e dá muito no Pantanal. Fazer a velha segurar na ponta do talo e puxar, aí ela levantaria já viva.

Assim fez Caracará, trouxe a flor, firmou bem as mãos de sua mãe no talo e puxou. Mas o talo era muito fraco e partiu com o peso da velha.

Caracará voltou chorando muito e contou a Gô-Noêno-Hôdi o que tinha acontecido, pedindo outro recurso. Gô-Noêno-Hôdi aí disse:

– Então não tem jeito, Caracará, sua mãe tem que ficar morta mesmo.Darcy Ribeiro. Kadiwéu - Ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza

Esse mito Kadiwéu fala do paraíso original e da imortalidade, onde Gô-Noêno-Hôdi, o criador de todos os povos e desprovido de malícia, bom e simples, tinha a intenção de criar um mundo com uma vida fácil para os homens e assim fez: o algodoeiro já dava novelos prontos; o mel crescia em cabaças nas árvores etc.. Mas Caracará, o seu oposto, com qualidades humanas e amarga experiência do homem na luta pela vida, não se agradou e fez ver a Gô-Noêno-Hôdi que ele não estava certo, porque, assim, não se poderia saber quem era

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trabalhador. Gô-Noêno-Hôdi concordou com os argumentos e transformou aquela ordem perfeita e bela na atual, onde os homens são mortais e têm que trabalhar por seu sustento.

Nos mitos sempre há uma ou mais mensagens, ensinamentos, que atravessam gerações. Estas mensagens ficam preservadas na estrutura do mito, como um código, apesar das modificações e das adaptações que sofre, através do tempo.

Nos mitos, não há localização precisa dos acontecimentos no tempo. Tudo acontece ‘há muito tempo atrás’ ou no começo do mundo. Nele nunca está especificada a data onde ocorreram os acontecimentos.

Quando Gô-Noêno-Hôdi estava tirando as nações do buraco (ô-begi), tirou os paraguaios e disse:

– Agora chega, já tem bastante nação.

Mas Caracará lembrou que faltava tirar seus aparentados, os brasileiros. Gô-Noêno-Hôdi achou certo e tirou os brasileiros do mesmo buraco. Por isso paraguaio e brasileiro parecem muito um com o outro. As outras nações já são diferentes, uns não entendem as línguas dos outros, porque cada um foi tirado de um buraco diferente.

Darcy Ribeiro. Kadiwéu - Ensaios etnológicos sobre o saber, o azar e a beleza

Os mais famosos mitos são os dos gregos antigos. O poeta grego Hesíodo (700 anos Antes de Cristo) foi o primeiro a registrar por escrito, em forma de poemas, os mitos gregos que antes eram guardados na memória e cantados pelas musas dos templos. Ele narra assim o mito da criação do mundo, em seu poema Teogonia:

Sim bem primeiro nasceu Caos, depois tambémTerra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,dos mortais que têm a cabeça do Olimpo nevadoe Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,e Eros: o mais belo entre os Deuses imortais,solta-membros dos Deuses todos e dos homens todosele doma no peito o espírito e a prudente vontade.

Do Caos Érebo e Noite negra nasceram.Da Noite aliás Éter e Dia nasceram,gerou-os fecundada unida a Érebo em amor.Terra primeiro pariu igual a si mesmaCéu constelado, para cercá-la toda ao redore ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre.Pariu altas montanhas, belos abrigos das Deusasninfas que moram nas montanhas frondosas.E pariu a infecunda planície impetuosa de ondaso Mar, sem o desejoso amor. Depois pariudo coito com o Céu: Oceano de fundos remoinhose Coios e Crios e Hipérion e Jápetoe Téia e Réia e Têmis e Memória e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa.E após com ótimas armas Cronos de curvo pensar,filho o mais terrível: detestou o florescente pai.

Pariu ainda os Cíclopes de soberbo coração:trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo que a Zeus deram o Trovão e forjaram o raio.Eles no mais eram comparáveis aos Deuses,único olho bem no meio repousa na fronte.Cíclopes denominava-os o nome, porque nelescircular olho sozinho repousava na fronte.Vigor, violência e engenho possuíam na ação.

Outros ainda da Terra e do Céu nasceram,três filhos enormes, violentos, não nomeáveis.Cotos, Briareu e Ginges, assombrosos filhos.Deles, eram cem braços que saltavam dos ombros,improximáveis; cabeças de cada um cinquenta

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brotavam dos ombros, sobre os grossos membros.Vigor sem limite, poderosos na enorme forma.

Hesíodo - Teogonia

No mito grego há quatro elementos que são a origem: Caos, Terra, Tártaro e Eros. Cada um carrega uma simbolização: Caos a separação, a divisão das coisas; Terra, o local seguro que abriga todos os homens e deuses; Tártaro, o fundo da Terra, as trevas escuras e nevoentas, um vasto abismo, o lado negativo das coisas; Eros, a união do par de elementos masculino e feminino e a sua procriação, o amor. Estes elementos são, ao mesmo tempo, distintos e também complementares. Terra tem semelhanças com Eros pela ideia de multiplicação da Vida, enquanto que Tártaro tem semelhanças com Caos por sua descendência tenebrosa e mortífera.

Há na Teogonia duas formas de procriação: por união amorosa e onde a Divindade biparte-se, permanecendo ela própria, ao mesmo tempo em que dela surge uma outra Divindade. Assim Ébero e Noite nasceram de Caos. Assim a Terra deu origem ao Céu constelado, às altas Montanhas e ao Mar infértil. Da união de amor entre a Noite e Ébero nasceu Éter e Dia. Da união entre Terra e Céu nasceram Oceano, Téia, Réia, Têmis, Memória, Febe, Tétis, Cronos, os Cíclopes (Trovão, Relâmpago e Arges) e muitos outros.

Na continuação dos versos de Hesíodo, na Teogonia, há o nascimento de muitos outros deuses e as lutas e os conflitos entre eles, criando tudo o que há no mundo, inclusive os homens.

Na mitologia, as coisas do mundo são como são, não há a possibilidade de modificar o que já existe e o já foi criado no início dos tempos. Os homens só participam, quando recriam, através de ritos e de cerimônias, o momento mítico, o drama sagrado do Cosmo. Através dos ritos os homens repetem ‘aqueles momentos’, imitando os comportamentos dos Deuses e dos Heróis através de gestos e danças. Nessas cerimônias eles sentem que estão vivendo o princípio dos tempos, dando novas forças à natureza, que estão recriando a vida. A vida, assim, sempre recomeça e se esgota. Nesse começar e acabar não há continuação entre uma época e outra.

Os mitos se ocupam de questões da condição humana.

Irene A. Machado comenta em seu livro o que conta Aristófanes no ‘Banquete’, do filósofo Platão: ‘No início, havia criaturas compostas de partes correspondentes, agora, às duas espécies do gênero humano. Essas criaturas eram de três tipos: macho-fêmea, macho-macho e fêmea-fêmea. Os deuses então dividiram a todos em dois. Uma vez separados, tudo o que pensaram fazer foi abraçar-se uns aos outros, de novo, a fim de reconstituir as unidades originais. Por isso passamos nossas vidas tentando encontrar, para abraçar, nossas metades.’ Como se vê, essa é uma explicação para a necessidade humana de se relacionar intimamente com alguém...

Como a mesma autora afirma, ‘os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano’. Eles narram basicamente acontecimentos supostos, relativos a épocas primordiais, ocorridos antes do surgimento dos homens (história dos deuses) ou com os ‘primeiros’ homens (história ancestral). O tema nuclear do mito, entretanto, não são os deuses nem os ancestrais, mas a apresentação de um conjunto de ocorrências fabulosas com que se procura dar sentido ao mundo e à condição humana.

De modo geral, os tipos de mitos são os seguintes: os mitos de origem (os cosmogônicos, sobre a origem do universo e dos fenômenos naturais, e os teogônicos, sobre a origem dos deuses); os mitos épicos, que trazem histórias da convivência de homens, deuses e semideuses, em um espaço-tempo totalmente diferente do que conhecemos; e os mitos religiosos, que se baseiam no poder de um único Deus.

Fábula20

De origem muito antiga, a fábula era escrita em verso até o século XVIII, passando posteriormente a ser expressa principalmente em prosa. Era cultivada na Antiguidade Clássica por Esopo – um escravo grego do Século IV a.C. – e por Fedro – um escritor latino do Século I. A partir de 1668 tornaram-se conhecidas as fábulas de La Fontaine, considerado o mais importante fabulista dos últimos tempos.

20 Serviram de fonte bibliográfica para esta definição os autores Massaud Moisés e Irene A. Machado, cujas definições encontram-se respectivamente nas seguintes publicações: Aprender e ensinar com textos - Vol. 2 – da Trilogia coordenada por Lígia Chiappini, São Paulo: Editora Cortez (1997) e Literatura e Redação, São Paulo: Scipione (1994).

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A fábula é uma narrativa alegórica curta que, assim como o conto, possui uma fórmula de composição que, na essência, sobreviveu ao longo do tempo. Tem duas características importantes, herdadas da cultura popular: um componente moral – implícito ou explícito – e uma construção simbólica do enredo – em que geralmente os personagens são animais que agem, sentem e pensam à semelhança dos seres humanos. Trata-se de um texto:

◦ com um formato que se repete – situação inicial, obstáculo, tentativa de solução, resultado final e moral –, quase sempre com diálogos;

◦ produzido atualmente mais em prosa, mas que se encontra também em verso;

◦ escrito em linguagem formal ou coloquial, dependendo da intenção do autor;

◦ com tempo e lugar pouco especificados e com personagens pouco complexos;

◦ finalizado tradicionalmente com uma moral, cujo propósito é transmitir um ensinamento e/ou produzir uma reflexão.

A seguir, duas fábulas muito conhecidas, uma em prosa e outra em verso. As duas são atribuídas a Esopo e recontadas por La Fontaine.

A Raposa e as uvas21

Uma raposa que vinha pela estrada encontrou uma parreira com uvas madurinhas. Passou horas pulando tentando pegá-las, mas sem sucesso algum... Saiu murmurando, dizendo que não as queria mesmo, porque estavam verdes. Quando já estava indo, um pouco mais à frente, escutou um barulho como se alguma coisa tivesse caído no chão... voltou correndo pensando ser as uvas, mas quando chegou lá, para sua decepção, era apenas uma folha que havia caído da parreira. A raposa decepcionada virou as costas e foi-se embora.

Quem desdenha quer comprar.

A Cigarra e a Formiga22

Tendo a cigarra em cantigas Passado todo o verão Achou-se em penúria extrema Na tormentosa estação. Não lhe restando migalha Que trincasse, a tagarela Foi valer-se da formiga, Que morava perto dela. Rogou-lhe que lhe emprestasse, Pois tinha riqueza e brilho, Algum grão com que manter-se Até voltar o aceso estio. – “Amiga”, diz a cigarra, – “Prometo, à fé d'animal, Pagar-vos antes d'agosto Os juros e o principal”. A formiga nunca empresta, Nunca dá, por isso junta. – “No verão em que lidavas?” À pedinte ela pergunta. Responde a outra: – “Eu cantava Noite e dia, a toda a hora”. – “Oh! bravo!”, torna a formiga. – “Cantavas? Pois dança agora!”

Os que não pensam no dia de amanhã, pagam sempre um alto preço por sua imprevidência.

21 In http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Raposa_e_as_Uvas 22 Transcrita de Projeto Gutenberg, Tradução: Bocage, In http://pt.wikipedia.org/wiki/A_Cigarra_e_a_Formiga

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Como se vê, essas não são histórias sobre o mundo dos animais, embora os personagens sejam uma raposa, uma cigarra e uma formiga. Nas fábulas, a semelhança entre os animais e os seres humanos tem a finalidade de nos convencer a concordar com a moral da história.

A moral costuma referir-se a comportamentos humanos genéricos ou experiências vividas por todos os seres humanos: por essa razão, os personagens das fábulas não têm nomes, não são individualizados. A moral geralmente reproduz um provérbio, o que revela o parentesco da fábula com a tradição oral. O provérbio – também chamado de ditado popular – é uma criação anônima da cultura oral, sucinta, que encerra uma experiência e tem característica literária; trata-se de uma fala sem sujeito, sem autor nem tempo, porque não é criação de um indivíduo, mas de uma comunidade – frase curta, expressa crenças, valores, conceitos e também preconceitos.

Acredita-se que muitos dos provérbios têm origem nas fábulas, das quais foram se ‘despregando’, adquirindo existência própria como lições em si... São textos facilmente memorizados porque apresentam construções verbais propícias a essa finalidade: frases curtas com um mesmo tipo de estrutura sintática, linguagem figurada, trocadilhos, rimas, ritmo melodioso... Alguns mais conhecidos: Diga-me com quem andas, que te direi quem és; Quem não tem cão, caça com gato; Casa de ferreiro, espeto de pau; Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come; Mais vale um pássaro na mão do que dois voando; Cada cabeça, uma sentença.

O fato é que, com o tempo, o que é natural, algumas modificações foram acontecendo nas fábulas, que hoje já têm versões bem transgressivas em conteúdo e forma (como a que segue abaixo), mas a presença da moral nunca desapareceu: explicitada ao final ou implícita no corpo da narrativa, é a moralidade que diferencia a fábula de outras formas narrativas próximas, como o mito, a lenda e o conto popular.

Fopos de Esábula23

UMA TENTATIVA DE CONTAR AS HISTÓRIAS COMO NO TEMPO EM QUE OS ANIMAIS FALAVAM

O macorvo e o cacoAndesta na florando um enaco macorme avistorvo um cou com um beço pedalo de quico no beijo. “Ver comou aqueijo quele ou não me chaco macamo”, vangloriaco o macou-se de sara pigo consi. E berrorvo para o cou: “Oládre compá! Voça este bonoje hito! Loso, maravilhindo! Jami o vais tem bão! Nante, brilhio, luzidegro! Poje que enso, se quisasse canter, sua vém tamboz serela a mais bia de testa a floroda. Gostari-lo de ouvia, comporvo cadre, per podara dizodo a tundo mer que vocé ê o “Rássaros dos Pei”. Caorvo na cantida o cado abico o briu a far de cantim sor melhão cansua. Naturalmeijo o quente caão no chiu e fente imediatamoi devoraco pelo astado macuto. “Obriqueijo pelo gado!”, gritiz o felaco macou. “E a far de provim o mento agradecimeu var lhe delho um consou”:

MORAL: JAMIE CONFAIS EM PACOS-SUXA.

Alguns escritores, como Millôr Fernandes, ‘brincam’ com as fábulas, subvertem alguns de seus elementos mais convencionais, mantendo outros e criando, a partir delas, novas possibilidades de textos.

Agora, prosseguindo a caracterização dos gêneros narrativos ficcionais, trataremos de dois não muito conhecidos – o conto acumulativo ou história-sem-fim e o microconto – e outros dois bem familiares – a piada e a história em quadrinhos.

Conto acumulativo

O deslumbramento do conto, tal como nos lembra Irene A. Machado, “está presente em vários níveis da narrativa: na construção do enredo, na escolha e na atuação dos personagens, na apresentação dos objetos

23 In Novas Fábulas Fabulosas, Millôr Fernandes, Rio de Janeiro: Editoral Nórdica, 1978.

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mágicos e também em alguns recursos expressivos da linguagem. Assim, existem alguns tipos de contos em que o absurdo está na forma narrativa e não na história em si. Isto acontece nos contos acumulativos ou histórias-sem-fim, por exemplo. Nessas narrativas, conta-se uma história curta através de um jogo intensivo de palavras, que aparecem encadeadas numa sequência, cujo desenvolvimento depende tão somente da inventividade de quem narra. As histórias-sem-fim são formas populares de se contar uma determinada ação. Por exemplo, os animais que nunca acabam de atravessar um riacho ou uma ponte e, por mais que caminhem, não conseguem sair do mesmo lugar. É possível criar inúmeras situações, simplesmente justapondo uma a outra. A continuidade é dada pelo que se acrescenta, mas não há aquela progressão de situações, típicas das histórias que narram um conflito.”

Também denominados ‘lengalenga’ ou ‘contos de nunca mais acabar’, como acrescenta Nilza B. Megale24, “os contos acumulativos são contos nos quais os episódios são sucessivamente encadeados, com ações e gestos que se articulam em longa seriação. Eles têm característica de uma longa parlenda, contada e recontada para divertir as crianças. Um exemplo é o que tem o título de Papai comprou um cabrito por cinco mil réis. Começa assim: Um cabrito, um cabrito que meu pai comprou por duas moedas. Conta depois, que veio o gato e comeu o cabrito, que veio o cão e mordeu o gato; assim até terminar e então diz: ‘Veio aquele que é santo e matou o anjo da morte, que matou o magarefe, que matou o boi, que bebeu a água, que apagou o fogo, que queimou o pau, que bateu no cão, que mordeu o gato, que comeu o cabrito’”.

E eis agora um deles, inteirinho:

O macaco e o rabo25

Uma ocasião achavam-se na beira da estrada um macaco e uma cotia e vinha passando na mesma estrada um carro de bois cantando. O macaco disse para a cotia:– Tira o teu rabo da estrada, senão o carro passa e corta.Embebido nesta conversa, não reparou o macaco que ele é que corria o maior risco, e veio o carro e passou em riba do rabo dele e cortou. Estava um gato escondido dentro de uma moita, saltou no pedaço do rabo do macaco e correu. Correu também o macaco atrás, pedindo o seu pedaço de rabo. O gato disse:– Só te dou, se me deres leite.– Onde tiro leite? – disse o macaco.Respondeu o gato:– Pede à vaca.O macaco foi à vaca e disse:– Vaca, dá-me leite para dar ao gato, para o gato dar-me o meu rabo.– Não dou; só se me deres capim. – disse a vaca.– Donde tiro capim?– Pede à velha.– Velha, dá-me capim, para eu dar à vaca, para a vaca dar-me leite, o leite para o gato me dar o meu rabo.– Não dou; só se me deres uns sapatos.– Donde tiro sapatos?– Pede ao sapateiro.– Sapateiro, dá-me sapatos, para eu dar à velha, para a velha me dar capim, para eu dar à vaca, para a vaca me dar leite, para eu dar ao gato, para o gato me dar o meu rabo.– Não dou; só se me deres cerda.– Donde tiro cerda?– Pede ao porco.– Porco, dá-me cerda, para eu dar ao sapateiro, para me dar sapatos, para eu dar à velha, para me dar capim, para eu dar à vaca, para me dar leite, para eu dar ao gato, para me dar o meu rabo.– Não dou; só se me deres chuva.– Donde tiro chuva?– Pede às nuvens.– Nuvens, dai-me chuva, para o porco, para dar-me cerda para o sapateiro, para dar-me sapatos para dar à velha, para me dar capim para dar à vaca, para dar-me leite para dar ao gato, para dar meu rabo…– Não dou; só se me deres fogo.– Donde tiro fogo?– Pede às pedras.

24 In Folclore Brasileiro. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.25 Recolhido por Sílvio Romero em Pernambuco e publicado em Contos Populares do Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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– Pedras, dai-me fogo, para as nuvens, para a chuva para o porco, para cerda para o sapateiro, para sapatos para a velha, para capim para a vaca, para leite para o gato, para me dar meu rabo.– Não dou; só se me deres rios.– Donde tiro rios?– Pede às fontes– Fontes, dai-me rios, os rios ser para as pedras, as pedras me dar fogo, o fogo ser para as nuvens, as nuvens me dar chuvas, as chuvas ser para o porco, o porco me dar cerda, a cerda ser para o sapateiro, o sapateiro fazer os sapatos, os sapatos ser para a velha, a velha me dar capim, o capim ser para a vaca, a vaca me dar o leite, o leite ser para o gato, o gato me dar meu rabo.Alcançou o macaco todos os seus pedidos. O gato bebeu o leite, entregou o rabo. O macaco não quis mais, porque o rabo estava podre.

Microconto

Um microconto é uma história em prosa contada em cinquenta letras ou menos. Fazer um microconto é um desafio literário, uma tentativa extremamente econômica de contar ou sugerir uma história inteira. Um microconto exemplar, e possivelmente o mais famoso de todos, é do escritor guatemalteco Augusto Monterroso: ‘Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá’.26

Foi demitido, esvaziou as gavetas e encheu a cara. [Victor Del Franco]

Alice na Terra do Nunca, Peter Pan no País das Maravilhas. [Paulo Bicarato]

Sonhou a noite inteira com seus 15 anos. Acordou com 39. [Maray Furnari]

Teve um sonho erótico com a esposa e acordou com medo. [Eduardo Junqueira Ferreira]

Era um conto muito velho, que só queria acabar. [Herbert Farias]

Casal se beija. Mar por trás. Ele, de quepe. [Marina W]

Nasceu em berço de ouro, mas o pai apostava em cavalos. [Diego Paiva]

Em crise de identidade, questionou as próprias digitais. [Markus Entelmann]

Suas últimas palavras ficaram famosas: Eu vou, não tenho medo. [Cora Ronai]

Era triste: o melhor lugar do mundo seria longe dele mesmo. [Ana Roberta Richter]

Piada

Piada ou anedota é um breve relato de uma aventura ou episódio, contada de modo a fazer rir. É uma história que rompe com a expectativa de um fim lógico; esse rompimento inesperado da lógica, numa direção absurda, é que provoca o riso. Por isso, explicação da piada e do desfecho faz com que ela perca completamente a graça.

Um exemplo:

O delegado, acompanhando um caso muito difícil, pergunta ao investigador:– E então, nenhuma pista do criminoso?– Não chefe, nada!– Nem um fio de cabelo?– Nem um fio de cabelo.– Ok! Então vá até lá e prenda o careca!

[Armazém do Folclore – Ricardo Azevedo – Editora Ática]

História em Quadrinhos27

26 Há um site com essas publicações chamado A casa das mil portas: http://www.nemonox.com/1000portas/ 27 A caracterização que aqui se segue é baseada na que fazem Ana Maria Kaufman e Maria Helena Rodríguez.

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A história em quadrinhos é um gênero narrativo que combina imagem com texto escrito e tem outras peculiaridades que, no conjunto, contribuem para a compreensão do leitor:

◦ ícones convencionais para expressar sentimentos (um coração para o amor, por exemplo), emoções violentas (raios, cobras e caveiras para insultos), efeitos de ações (estrelas para socos e chutes) etc.;

◦ balões que contêm os discursos diretos dos personagens – o que eles dizem, pensam, murmuram, gritam;

◦ tipo/tamanho das letras que tem a ver com a ênfase que os personagens atribuem ao que dizem;

◦ sequência convencional de apresentação dos quadrinhos e dos balões;

◦ lugar que ocupa o texto ou a imagem dentro do quadrinho como elemento significativo, dentre outros aspectos.

Existem diversos tipos de história em quadrinhos, publicados em três portadores textuais principais: jornal, revista e livro. As que lemos nos jornais se caracterizam por sua intencionalidade apelativa e por seu conteúdo humorístico. As que lemos nas revistas específicas de história em quadrinhos – e ocasionalmente em livros – narram episódios vividos por personagens de um grupo em geral conhecido dos leitores (como a Turma da Mônica, do Mauricio de Sousa), aventuras de guerra, histórias policiais, de amor, de ficção científica etc.

E há as histórias em quadrinhos que veiculam mensagens relacionadas à saúde: são aquelas, por exemplo, que expressam instruções para melhorar a higiene e prevenir as doenças, orientam a população para o uso de determinados medicamentos etc.

O uso dos quadrinhos para veicular mensagens sobre saúde e também o uso pedagógico na alfabetização têm sido recorrentes porque esse gênero reúne características que favorecem a leitura, inclusive, daqueles que ainda não são leitores proficientes, uma vez que possibilitam o uso bem-sucedido de estratégias de antecipação e de inferência e oferecem uma certa segurança em relação ao entendimento do texto. O fato de história e frases serem curtas, a combinação de texto e imagem, a existência de poucos personagens, a recorrência de expressões típicas (de um ou mais personagens) que logo são ‘adivinhadas’, tudo isso repercute em favor da leitura.

Para encerrar esta parte, das narrativas, tratamos a seguir da crônica e do relato histórico – gêneros que se ocupam de acontecimentos da realidade mas de modos tão distintos que resultam em textos completamente diferentes.

Crônica

Para compreender melhor a natureza da crônica brasileira é preciso conhecer o contexto em que ela nasceu. Em meados do Século XIX, muitos escritores só tinham oportunidade de publicar suas criações literárias em jornais (na ocasião, muitos romances foram publicados em capítulos nos folhetins28) e vários deles acabavam desenvolvendo outras atividades na imprensa da época. Essa circunstância, em que se misturava notícia e literatura, talvez tenha sido a maior responsável pelo surgimento da crônica em nosso país.

Assim, a crônica surgiu no Brasil (na verdade, no Rio de Janeiro), como um gênero jornalístico, na segunda metade do século XIX, à época do romantismo e do desenvolvimento da imprensa.

A princípio, com o nome de folhetim, designava um artigo de rodapé sobre assuntos do dia – políticos, sociais, artísticos, literários. Aos poucos foi encurtando e se afastando da intenção de informar e comentar. Sua linguagem tornou-se mais poética, ao mesmo tempo em que ganhou uma certa gratuidade, pois parecia desvinculada dos interesses práticos e das informações que caracterizam as demais partes de um jornal. Do folhetim para cá, a crônica ganhou prestígio entre nós e pode-se até dizer que constitui um gênero brasileiro, tal a naturalidade e originalidade com que aqui se desenvolveu.

[...] A crônica é “um gênero híbrido que oscila entre a literatura e o jornalismo [...], resultado da visão pessoal, subjetiva do cronista diante de um fato qualquer, colhido no noticiário do jornal ou no cotidiano. É uma

28 Folhetim era um espaço livre no rodapé dos jornais do Século XIX, destinado a entreter o leitor e a dar-lhe uma pausa de descanso em meio a enxurrada de notícias graves e pesadas que ocupavam as páginas dos jornais. Com o tempo, a acolhida do público com relação a esse espaço foi aumentando e o folhetim passou a ser um chamariz para atrair leitores (Ilka Laurito in Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993).

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produção curta, apressada, redigida numa linguagem descompromissada, coloquial, muito próxima do leitor. Registrando o circunstancial do nosso cotidiano mais simples, acrescentando, aqui e ali, fortes doses de humor, sensibilidade, ironia, crítica e poesia, o cronista, com graça e leveza, proporciona ao leitor uma visão mais abrangente que vai muito além do fato; mostra-lhe, de outros ângulos, os sinais de vida que diariamente deixamos escapar”.29

Como gênero que pertence tanto ao jornalismo como à literatura, a crônica tem uma característica difícil de encontrar em outros gêneros: a diversidade de formas – diferente dos contos e fábulas, não possui uma estrutura textual própria, característica. A crônica tanto pode ser um conto, como um poema em prosa, um pequeno ensaio, como as três coisas simultaneamente. Os gêneros literários não se excluem: incluem-se.” E acrescenta Flora Bender: “a crônica permite ao prosador que seja também poeta, ao jornalista que seja filósofo ou místico, ao contador de casos que seja um historiador do cotidiano...”30

Já Irene Machado salienta que “um gênero tão aberto à experimentação da linguagem não poderia de modo algum reprimir as expressões da linguagem popular cotidiana como palavrões, gírias, xingamentos e alguns tipos de expressões grosseiras. Contudo, é importante lembrar que a crônica é uma elaboração literária: o material linguístico usado pelo autor tem que contribuir para ampliar o campo de significação da palavra e da ideia e não apenas chocar o leitor.”31

Algumas características mais: o foco narrativo pode ser de primeira ou terceira pessoa (e até mesmo segunda, dependendo do caso). Pode acontecer de o sujeito ser indeterminado ao longo de todo o texto. Pode ter vocativos que se referem ao ‘leitor’ ou que se dirijam a um destinatário especificamente – como em um tipo carta-resposta, por exemplo. Pode ser um texto com ou sem diálogo. Pode ter os acontecimentos narrados em tempo presente ou em tempo passado. Qualquer lugar pode ser cenário dos acontecimentos (mas o predomínio é do espaço urbano). Pode remeter-se a outros textos ou fazer uso deles: títulos, manchetes, notícias, slogans, jargões, provérbios, frases infelizes ditas por políticos etc. Os elementos descritivos lhe caem bem pois são um recurso privilegiado para tornar grandioso o até então despercebido. Também lhe cai bem um tom intimista, que cria cumplicidade com o leitor (um recurso característico, inclusive). De um modo geral, pode-se dizer que são características desse gênero o pitoresco, a crítica, o humor, o lirismo, a paródia; e que, nesse caso, os grandes heróis – quando existem – são os seres humanos comuns (os reles mortais), que vivem episódios casuais do cotidiano.

Vejamos dois textos de importantes cronistas brasileiros que contam o que eles pensam sobre o gênero. O primeiro é uma crônica sobre a crônica. O segundo, um depoimento comovente sobre o quanto esses textos revelam sobre o autor.

A discussão sobre o que é, exatamente, a crônica é tão antiga quanto aquela sobre a genealogia da galinha. Se um texto é crônica, conto ou outra coisa interessa aos estudiosos da literatura, assim como se o que nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha interessa a zoólogos, geneticistas, historiadores e (suponho) o galo, mas não deve preocupar nem o produtor nem o consumidor. Nem a mim nem a você.

Eu me coloco na posição de galinha. Sem piadas, por favor. Duvido que a galinha tenha uma teoria sobre o ovo, ou, na hora de botá-lo, qualquer tipo de hesitação filosófica. Se tivesse, provavelmente não botaria o ovo. É da sua natureza botar ovos, ela jamais se pergunta “Meu Deus, o que eu estou fazendo?”. Da mesma forma, o escritor diante do papel em branco (ou, hoje em dia, diante do computador) não pode ficar se policiando só para “botar” textos que se enquadrem em alguma definição técnica de “crônica”. O que aparecer é crônica.

Há uma diferença entre o cronista e a galinha, além das óbvias (a galinha é menor e mais nervosa). Por uma questão funcional, o ovo tem sempre o mesmo formato, coincidentemente oval. O cronista também precisa respeitar certas convenções e limites mas está livre para produzir seus ovos em qualquer formato. (...) Ao contrário da galinha, podemos decidir se o ovo do dia será listado, fosforescente ou quadrado.

Você, que é o consumidor do ovo e do texto, só tem que saboreá-lo e decidir se é bom ou ruim, não se é crônica ou não é. Os textos estão na mesa: fritos, estrelados, quentes, mexidos... Você só precisa de um bom apetite.

Luís Fernando VeríssimoApresentação de ‘O nariz e outras crônicas”/Para gostar de ler, Editora Ática

[...] Crônicas – gênero literário que quase se poderia dizer que é peculiar à literatura brasileira. Pelo menos é voz geral que a crônica, tal como a fazemos aqui, é realmente coisa nossa.

29 William R. Cereja e Thereza A. C. Magalhães in Português: linguagens - literatura, gramática e redação. São Paulo: Editora Atual: 1998.30 In Crônica: história, teoria e prática. São Paulo: Scipione, 1993.31 In Literatura e Redação. São Paulo: Scipione, 1994.

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[...] Será talvez a crônica o gênero literário mais confessional do mundo. Pois o cronista, quase invariavelmente, tira o tema dos comentários que faz do seu próprio cotidiano, ou do assunto do dia no país, na cidade, no seu bairro. Até da sua casa, da sua estante de livros. Quando vêm me importunar com a exigência (que eu detesto) de escrever minhas memórias, a resposta que dou é sempre a mesma: quem quiser me saber a biografia, leia as minhas crônicas. Pela data e o local de cada uma, já há uma informação. E tudo que comento, que conto e que exploro, foi tirado de meu dia-a-dia: o menino que me trouxe uma flor, o espetáculo de teatro a que assisti, as memórias de infância, as lembranças e apelos do Ceará, sempre me cantando no sangue. E os fatos políticos, já que sou essencialmente um animal político, sempre me interesso apaixonadamente por tudo que acontece nessa área, seja na minha província, no meu município, no país ou no resto do mundo.

Também os sentimentos, angústias e esperanças, alvoroços do coração, saudades, perdas, promessas, e alegrias, tudo isso aparece na crônica, aberta ou disfarçadamente – compete ao leitor inteligente desvendar nas entrelinhas. Ou constatar na frase aberta...

Raquel de QueirozApresentação de “Cenas Brasileiras”/ Para gostar de ler, Vol. 17 Editora Ática

Talvez tenha sido a obrigação de escrever para o jornal, aliada à eventual falta de assunto atraente para o cronista, que tenha feito surgir um tipo peculiar e muito interessante de crônica: a que trata dela própria – a crônica da crônica. Aquela em que o autor realiza um exercício de metalinguagem: reflete sobre o ato de escrever, analisa criticamente o gênero, sua relação com o leitor, a própria criação... Como estas que acabamos de ler.

Relato Histórico

O relato histórico é uma narrativa sobre acontecimentos passados.

A respeito desse gênero, Ana María Kaufman e Maria Helena Rodríguez nos chamam a atenção para o seguinte:

A reflexão teórica sobre os estudos históricos nestas últimas décadas enfatizou a importância do narrativo na compreensão da ciência da História, enfatizando a correlação existente entre a atividade de relatar um acontecimento e o caráter temporal da experiência humana, objeto da História.

O relato histórico estabelece relações de continuidade entre fatos comprováveis que, ao aparecerem intrinsecamente vinculados entre si pelo fio da narração, constituem um todo inteligível. A explicação disso reside na própria estrutura narrativa, isto é, no modo como aparecem conectados os fatos. A compreensão consiste em aprender estes fatos inter-relacionados como constituintes necessários de um conjunto significativo, cujo sentido se encontra nas conexões articuladas pelo relato.

A História responde à pergunta sobre como se constituiu um acontecimento, relatando seus antecedentes; a progressão temática do texto permite-nos tanto conhecer os laços que vinculam as condições necessárias para realização de fatos concretos quanto estabelecer as distintas etapas de uma sequência de acontecimentos.

A continuidade está garantida no texto seja pela permanência do mesmo agente ou dos mesmos agentes em toda uma série de ações, seja pela conexão temporal e causal dos fatos através dos quais se realizam os propósitos ou as políticas.

A fontes do relato são documentos reinterpretados pelo historiador, que não se inclui na narração, para deixar que os fatos falem por si, criando, desse modo, um efeito de realidade, pois o relato histórico, ao contrário do conto, evita a presença explicita de elementos subjetivos.

É necessário ressaltar que o narrador, a partir de um paradigma, ao qual são associados dados de um período do passado instituído como objeto de estudo, organiza o relato através de um processo individual, e sem dúvida, arbitrário, de seleção e de combinação de fatos e enfoques. Sua ótica, então, aparece no relato, mesmo que tenha pretendido que o mesmo fosse o mais impessoal possível.

Os conteúdos do relato podem ser submetidos à confirmação da veracidade mediante a confrontação de fontes. Esses textos são regidos pelo princípio da veracidade, ao contrário do conto...

Tendo em vista os aspectos abordados pelas autoras, podemos, também nós, refletir sobre o quanto é importante ancorar o trabalho com os conteúdos de História no texto narrativo, uma vez que dessa maneira é possível ‘aproveitar’ a familiaridade que os alunos têm com o modo de organização das histórias ficcionais em favor da compreensão de conceitos da História real. Sem dúvida, essa é uma contribuição relevante porque o modo de

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organização do discurso expositivo, predominante nos textos sobre temas de estudo na escola, é bem diferente, mais complexo, pouco familiar, quase nunca trabalhado... Assim, a dificuldade evidentemente acaba sendo dupla: além de desconhecerem os conteúdos, os alunos não dominam a forma como são apresentados no texto em que estudam.

Sabendo disso tudo, é possível minimizar essa dificuldade, seja utilizando os relatos históricos, quando isso fizer sentido, seja ensinando os alunos a trabalharem adequadamente com os textos expositivos.

Relato de viagem1

Não se trata de apresentar as obras literárias no contexto de seu tempo, mas de apresentar, no tempo em que elas nasceram, o tempo que as revela e conhece: o nosso.

Walter Benjamim

Os relatos de viagens têm sido escritos por padres, colonos, viajantes e aventureiros, que narram geralmente suas impressões sobre a flora, da fauna, a geografia, a história e os usos e costumes de povos e certos locais visitados.

Como afirma Lévi-Strauss, existe um gênero de narrativa de viagem.

Odeio as viagens e os exploradores. E aqui estou disposto a relatar as minhas expedições. Mas quanto tempo para me decidir! Quinze anos passaram desde a data em que deixei o Brasil pela última vez, e durante todos esses anos, muitas vezes acalentei o projeto de começar este livro; a cada vez, era detido por uma espécie de vergonha e de repulsa, pois será mesmo necessário contar minuciosamente tantos pormenores insípidos, tantos acontecimentos insignificantes?...

E, no entanto, esse gênero de narrativa goza de uma aceitação que para mim, continua inexplicável.

Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70, 1993

Entre os textos de viajantes é possível afirmar que, com algumas diferenças de um autor para o outro, a estrutura do texto acompanha um itinerário de viagem, com uma cronologia de acontecimentos e de descrição de lugares, feito por um olhar de estrangeiro, no sentido de que, aquele que escreve, está ali de visita ou de passagem. Pode assumir, na sua ordenação estrutural, o formato de um diário de bordo, como de um capitão de navio, ou de um caderno de campo de um etnólogo. E, no seu conteúdo, geralmente tem o formato de uma aventura, com o autor falando de lugares distantes e diferentes, muitas vezes exóticos.

Lévi-Strauss, referindo-se aos relatos de viagem, escreveu:A Amazônia, o Tibet e a África invadem as lojas, sob a forma de livros de viagens, relatórios de expedições e álbuns de fotografias em que a preocupação do efeito é demasiado predominante para que o leitor possa apreciar convenientemente o valor testemunhal que encerram... Ser explorador é agora uma profissão a qual não consiste, ao contrário do que poderia parecer, em encontrar, ao final de anos e anos de estudo, fatos até então ocultos, mas sim em percorrer um grande número de quilômetros, juntando dispositivos e filmes, de preferência coloridos, que permitirão lotar uma sala, durante vários dias seguidos, como uma multidão de ouvintes para os quais frases ocas e banalidades irão se transmutar em revelações, pelo simples fato de o autor, em vez de situá-las em local próximo, tê-las santificado com um percurso de 20.000 quilômetros.

O que é que ouvimos nessas conferências ou lemos nesses livros? A lista dos caixotes transportados, as travessuras do cãozinho de bordo, e, misturados a anedotas, fragmentos desbotados de informação encontrados há séculos em todos os manuais e que uma dose de falta de pudor pouco comum, ainda que proporcional à ingenuidade e ignorância dos consumidores, ousa apresentar como um testemunho ou uma descoberta original.

Claude Lévi-Strauss. Tristes Trópicos. Lisboa: Edições 70, 1993

1 A caracterização deste gênero, diário de viagem, foi feita por Antonia Terra.

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Em quase todos os textos escritos por viajantes, o diário ou o caderno de campo parecem ter sido o material original para ordenar as lembranças. Mas, em vez do autor registrar apenas informações concentradas em datas e horas – como faziam os antigos capitães –, os textos, ao longo dos séculos, ganharam uma narrativa contínua, mantendo o seu caráter de narrar no tom do calor da hora e no sabor das emoções. Na realidade, apesar de terem como referência anotações, os textos foram elaborados, na maioria das vezes, só anos depois, tendo sido os fatos analisados, relembrados inúmeras vezes, acrescidos por informações não disponíveis na época do acontecido.

Podemos supor que esse tipo de literatura desenvolveu-se ao longo dos séculos, ganhando uma elaboração mais sofisticada. Alguns viajantes passaram a redigir seus relatos em tom de aventura, outros passaram a optar por modelos de tratados científicos e descritivos e outros por textos mais impressionistas.

Os primeiros navegadores, dos séculos XV e XVI, tinham o costume de registrar suas viagens em forma de diário, reservando espaços para as informações que colhiam nas terras por onde passavam, como o de Antonio Pigaffeta, que registrou a viagem de Fernão de Magalhães. Pigafetta organizou seu relato, por exemplo, seguindo a ordenação dos dias, como faziam os capitães dos navios, nos seus diários de bordo. O texto, assim, é estruturado pelas datas que se sucedem. Entretanto, já entremeia suas descrições das terras e dos povos com explicações sobre os costumes das populações. No dia 13 de dezembro de 1519, assim, depois de informar que entraram nas terras brasileiras, abre um item para explicar quem eram os seus habitantes, outro para falar dos antropófagos, outro para falar das pinturas dos corpos dos indígenas etc...

Um outro tipo de literatura das terras descobertas era estruturado como tratados históricos ou tratados descritivos, como o de Magalhães Gandavo e o de Gabriel Soares de Souza. O primeiro preocupou-se em reconstituir a história do descobrimento do Brasil, em localizar as terras com referências geográficas, em especificar as capitanias e seus dirigentes, em falar da natureza e dos povos. Seu texto é norteado pela preocupação de sintetizar informações sobre as novas terras, sem contudo narrar diretamente os acontecimentos aqui vivenciados. O texto pretendia ser informativo.

Hans Staden, por sua vez, é bem original, por estruturar seu texto, seguindo uma ordenação dos acontecimentos, sem contudo se sustentar em uma marcação cronológica sistemática. Teve a preocupação de contar suas vivências, intercalando-as com as informações que colheu e observou nas terras do Brasil. Assim, a estrutura de seu texto é o que mais se aproxima, de um modo geral, dos relatos dos viajantes do século XIX.

O texto de Lévi-Strauss – Tristes Trópicos –, em pleno século XX, tem um tom mais impressionista. Seu registro é claramente uma recomposição da memória, que reorganiza as impressões mais fortes e significativas. As enumerações de lugares e de detalhes emergem no texto para exemplificar ideias e análises, tornando oportuno o relato sobre a paisagem que, pouco a pouco, permite o reconhecimento dos lugares. Seu relato, de narrativa envolvente, delata o olhar de estrangeiro e de cidadão apaixonado por sua terra natal, que é seu parâmetro para adjetivar os novos espaços urbanos com que se defronta nas terras da América. Por vezes, assume a ordenação dos cronistas de séculos anteriores, especificando os meses de sua estadia em lugares, nomeando regiões e cidades, desabafando os dissabores da caminhada, detalhando os augúrios dos que dependem de transportes e abrigos improvisados. Como etnólogo, interrompe suas impressões, para registrar os costumes dos indígenas, seus afazeres, seus parentescos, e fazer análises antropológicas. Entremeando os acontecimentos, registra dados sobre as populações, fornecendo informações de campo e de pesquisas.

A análise dos textos de viajantes pode contribuir para que os alunos reflitam sobre as construções históricas dos textos, seus autores, os valores de épocas, as transformações históricas e, também, a história desse gênero literário – e possam, eles mesmos, criar seus textos de viagens.

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Outros gêneros

A seguir, estão caracterizados, de forma muito breve, outros gêneros com diferentes tramas e funções. São apenas alguns, dentre vários. Nosso propósito é não deixar de dizer algo sobre eles.

Os textos expositivos1

Os gêneros textuais predominantemente expositivos são aqueles que expressam a intenção explícita ou implícita de ensinar algo a quem sabe pouco ou nada sobre o assunto que abordam: textos sobre temas em estudo2, textos de divulgação científica3, verbete de curiosidade científica, verbete de dicionário, verbete de enciclopédia, relato de experimento, relatório de pesquisa, monografia, ensaio, resumo de explicações, resenha etc. Muitos deles subsidiam as aulas de vários componentes curriculares, cobra-se dos alunos a compreensão desses textos, são eles os que mais aparecem nos livros didáticos e, no entanto, contraditoriamente não são trabalhados para que os alunos aprendam a lidar com eles...

De modo geral, podemos dizer que os gêneros expositivos:

◦ têm como função essencial apresentar de forma inteligível ao leitor informação sobre temas, teorias, conceitos, personagens, fatos, generalizações, conclusões1;

◦ contêm definições e/ou explicações a respeito do que é abordado;

◦ possuem um modo de organizar e apresentar as informações que pretende favorecer a compreensão do leitor e que é variável a depender do caso – introdução, resumo, comentários, títulos, subtítulos, tópicos ressaltados, destaque no tipo de letra de letra etc.;

◦ e têm marcadamente as informações organizadas com os verbos no tempo presente, densidade sintática, elementos de ligação (conjunções, advérbios, preposições) característicos de uma apresentação hierarquizada.

Gêneros como artigo de divulgação científica ou ensaio, por exemplo, muitas vezes contêm elementos narrativos: relatos, fragmentos de histórias, anedotas que ilustram determinados pontos, para tornar a informação mais compreensível e interessante, de forma que atraia o leitor. É por isso que dizemos que nos textos predomina uma ou outra trama: os gêneros expositivos são aqueles em que o tipo de discurso expositivo é preponderante, mas neles também se encontrarão trechos argumentativos, descritivos e/ou narrativos.

Se no caso dos gêneros literários o leitor tem a possibilidade e a liberdade de atribuir diferentes sentidos aos textos, o mesmo não ocorre com os gêneros expositivos, por conta da função que eles têm. Nesse caso, o que vale é a tentativa de procurar a máxima aproximação possível entre o que se pretende dizer, o que é efetivamente dito e o que poderá ser compreendido. A situação de escrita e de leitura dos gêneros expositivos coloca em jogo vários aspectos: a circunstância comunicativa em que o texto é produzido/lido (quem escreve, para quem, por que, com que finalidade...), o nível de conhecimento do autor e do leitor sobre o assunto tratado, além da relação com os recursos linguísticos próprios de cada gênero (o uso que o autor faz e a familiaridade ou não do leitor com eles).

O autor tem um papel decisivo nos gêneros expositivos: ainda que tenda a reduzir as marcas diretas de sua presença e evitar comentários subjetivos, para garantir a aparência de validade geral da informação, é ele que organiza a informação da forma que julga mais pertinente para o leitor compreender o que ele deseja comunicar. Nessa circunstância, trata-se de alguém com um determinado conhecimento (o autor), que busca se comunicar com um destinatário que ele supõe (ou sabe) desconhecer total ou parcialmente o que é abordado (o

1 Fontes consultadas: El texto expositivo – estratégias para su comprensión, organizado por Denise Muth. Buenos Aires-AR: Editora AIQUE, 1990;

Cómo mejorar la comprensíon de textos em el aula. Emílio Sánchez, José Orrantia y Javier Rosales. CL&E,1992; Sobre la didáctica del texto expositivo: algunas propuestas para la clase de lengua. Ana Martinez y Carmen Rodríguez. CL&E,1989.2 Embora não configurem exatamente um gênero textual específico, assim estamos chamando os textos que predominam nos livros didáticos e que têm como finalidade ‘ensinar’ conteúdos escolares das diferentes áreas do conhecimento.3 Esses artigos são tanto os habitualmente chamados de ‘textos teóricos’ (que estudamos na faculdade, por exemplo) como os que existem em revistas especializadas (ou até mesmo no jornal) e que tratam de temas das diferentes áreas de conhecimento. Em geral são produzidos por especialistas ou adaptados por professores ou jornalistas para traduzir a um público não especializado assuntos de natureza técnica ou científica. Às vezes, são escritos especialmente para as crianças.1 Este texto que você está lendo é um texto expositivo.

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leitor) e que estará interessado em seu texto por alguma razão – o que o fará ser concretamente um leitor do texto. Essas ideias orientam a forma de organizar as informações e as escolhas do autor (vocabulário, nível de aprofundamento das explicações, tipos de exemplos...), considerando o que supõe ser o conhecimento prévio de seus futuros leitores. Por exemplo, é diferente o verbete de um dicionário convencional e o de um dicionário específico para criança, assim como é diferente um artigo de divulgação científica sobre as novas descobertas astronômicas em uma revista para especialistas ou em um jornal lido por gente leiga em astronomia. Se o autor tem de fato intenção de se fazer entender, terá necessariamente que formar uma imagem virtual do leitor e o tempo todo “escrever para ele”. Isso foi feito na escrita deste texto para vocês...

Para encerrar esta parte, vale um breve destaque sobre a resenha. A resenha reúne comentários em relação ao todo ou a aspectos relevantes de um trabalho: livro, filme, peça teatral... É uma espécie de texto de divulgação em que se dá uma ideia da obra por meio de um resumo do seu conteúdo, seguido de uma análise crítica sobre sua qualidade, com considerações quanto a conceitos, valores, objetivos ou o que mais se evidencia, a depender de qual seja o tipo ou a natureza do trabalho analisado. Ainda que um texto breve, deve conter pelo menos resumo e apreciação.

A seguir, alguns exemplos de gêneros expositivos (além deste que você está lendo):

RESENHA

Dicionário HouaissVictor Burton, 2001

Existe livro mais importante do que o dicionário de uma língua? Embora, como diz Umberto Eco, os dicionários tendam a se tornar serviços digitais, ao contrário dos romances ou dos livros de estudos, o projeto da forma tridimensional do Houaiss, de autoria de Victor Burton, é um grande marco no design editorial de língua portuguesa. Dá gosto tê-lo e manuseá-lo, apesar das facilidades do serviço on-line do dicionário. Nada ali foi irrefletido. Da escolha do papel, fundamental para reduzir o peso do livro, uma das principais características que nos afastam dos dicionários e enciclopédias de forma geral; ao acabamento solidamente costurado, que evita o vexame de tantos dicionários, cujas lombadas se soltam, deixando o volume mambembe; à paginação e à maneira de dispor as informações cifradas que todo dicionário tem; à facilidade da consulta e à excelente legibilidade proporcionada pelo alfabeto, especialmente desenhado pelo tipógrafo Rodolfo Capeto e que foi batizado de Houaiss.

Por Ethel Leon In http://www.itaucultural.org.br

TEXTO DE DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA

A Fotossíntese e a sua Importância

A fotossíntese significa etimologicamente síntese pela luz. Excetuando as formas de energia nuclear, todas as outras formas de energia utilizadas pelo homem moderno proveem do sol. A fotossíntese pode ser considerada como um dos processos biológicos mais importantes na Terra. Por liberar oxigênio e consumir dióxido de carbono, a fotossíntese transformou o mundo no ambiente habitável que conhecemos hoje. De uma forma direta ou indireta, a fotossíntese supre todas as nossas necessidades alimentares e nos fornece um sem-número de fibras e materiais de construção. A energia armazenada no petróleo, gás natural, carvão e lenha, que são utilizados como combustíveis em várias partes do mundo, veio a partir do sol via fotossíntese. Assim sendo, a pesquisa científica da fotossíntese possui uma importância vital. Se pudermos entender e controlar o processo fotossintético, saberemos como aumentar a produtividade de alimentos, fibras, madeira e combustível, além de aproveitar melhor as áreas cultiváveis. Os segredos da coleta de energia pelas plantas podem ser adaptados aos sistemas humanos para fornecer modos eficientes de aproveitamento da energia solar. Essas mesmas tecnologias podem auxiliar-nos a desenvolver novos computadores mais rápidos e compactos, ou ainda, a desenvolver novos medicamentos. Uma vez que a fotossíntese afeta a composição atmosférica, o seu entendimento é essencial para compreendermos como o ciclo do CO2 e outros gases, que causam o efeito estufa, afetam o clima global do planeta.

In http://server2.iq.ufrj.br/~almenara/fotossintese.htm

VERBETE DE ENCICLOPÉDIA

Território: A palavra território refere-se a uma área delimitada sob a posse de um animal, de uma pessoa (ou grupo de pessoas), de uma organização ou de uma instituição. O termo é empregado na política (referente ao Estado Nação, por exemplo), na biologia (área de vivência de uma espécie animal) e na psicologia (ações de

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animais ou indivíduos para a defesa de um espaço, por exemplo). Há vários sentidos figurados para a palavra território, mas todos compartilham da ideia de apropriação de uma parcela geográfica por um indivíduo ou uma coletividade.

In http://pt.wikipedia.org/

VERBETES DE CURIOSIDADE CIENTÍFICA

Por que chove?

Nuvens são aglomerados de microgotículas de água surgidos por condensação − passagem do estado gasoso para o líquido − de vapor na atmosfera. Por serem muito leves, essas gotículas, cujo diâmetro é da ordem de milésimos de centímetros, flutuam como poeira em suspensão. Somente quando se juntam devido a choques e formam gotas maiores, de pelo menos 2 milímetros de diâmetro, é que adquirem peso suficiente para cair. É quando chove.

Qual a origem da pipoca?

A origem exata da pipoca é desconhecida. O que se sabe é que, muito antes de Colombo descobrir a América, os índios do Norte do continente já comiam pipoca. Eles começaram a fazer pipoca com a espiga inteira colocada num espeto e levada ao fogo. Depois, passaram a jogar os grãos soltos diretamente em fogo baixo. Havia um terceiro método, mais sofisticado, que consistia em cozinhar a pipoca numa panela de barro cheia de areia quente. O resultado é sempre o mesmo: os grãos de milho explodem. Isso acontece porque o grão contém água em seu interior. A explosão da pipoca, portanto, nada mais é que a expansão do vapor de água dentro do grão.

In Revista Super Interessante

VERBETE DE DICIONÁRIO

Professor

{verbete}DataçãosXV cf. FichIVPMAcepções■ substantivo masculino 1 aquele que professa uma crença, uma religião 2 aquele cuja profissão é dar aulas em escola, colégio ou universidade; docente, mestre Ex.: p. de matemática 2.1 aquele que dá aulas sobre algum assunto Ex.: <p. de dança> <p. de violão> 2.2 Derivação: por extensão de sentido. aquele que transmite algum ensinamento a outra pessoa Ex.: peça-lhe para ensinar seu filho a andar de bicicleta, que ele é bom p. 3 aquele que tem diploma de algum curso que forma professores (como o normal, alguns cursos universitários, o curso de licenciatura etc.) 4 Derivação: sentido figurado. indivíduo muito versado ou perito em (alguma coisa) ■ adjetivo 5 que professa; profitente 6 que exerce a função de ensinar ou tem diploma ou título de professor

In http://houaiss.uol.com.br/

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Mais alguns1

DAS PÁGINAS DE JORNAIS E REVISTAS...

Notícia

Conforme Ana María Kaufman e María Helena Rodríguez, As notícias transmitem informação nova sobre acontecimentos, objetos, pessoas. Apresentam-se como unidades informativas completas que contêm todos os dados necessários para que o leitor compreenda a informação, sem necessidade ou de recorrer a textos anteriores (por exemplo, não é necessário ter lido os jornais do dia anterior para interpretá-la) ou de relacioná-la a outros textos contidos na mesma publicação ou em publicações similares.

É comum, nesse gênero, a chamada técnica da ‘pirâmide invertida’: começar pelo fato mais importante para finalizar com os detalhes. Consta de três partes claramente diferenciadas: o título, a introdução e o desenvolvimento. O título cumpre uma dupla função: sintetizar o tema central e atrair a atenção do leitor. Os manuais de estilo dos jornais sugerem geralmente que os títulos não excedam a treze palavras. A introdução contém o principal da informação, sem chegar a um resumo de toda notícia e no desenvolvimento incluem-se os detalhes que não aparecem na introdução.

A notícia é redigida na terceira pessoa. O redator deve manter-se à margem do que conta, razão pela qual não é permitido o emprego da primeira pessoa do singular nem do plural. Isso implica que, além de omitir o ‘eu’ ou o ‘nós’, também não deve recorrer aos possessivos [por exemplo, não se referirá ao Brasil ou a Indaiatuba com expressões tais como nosso país ou minha cidade].

Esse texto se caracteriza por sua exigência de objetividade e veracidade: somente apresenta os dados. Quando o jornalista não consegue comprovar de forma fidedigna os dados apresentados, costuma recorrer a certas fórmulas para ‘salvar sua responsabilidade’: parece que... / não está descartado que / tudo indica que... Quando o redator menciona o que foi dito por alguma fonte, recorre ao discurso direto, como, por exemplo: O ministro afirmou: "O tema dos aposentados será tratado na Câmara dos Deputados durante a próxima semana.”

O estilo usado nas notícias é formal. São empregadas, principalmente, orações enunciativas, breves, que respeitam a ordem sintática canônica. Apesar das notícias preferencialmente utilizarem os verbos na voz ativa também é frequente o uso da voz passiva: Os delinquentes foram perseguidos pela polícia; e de formas impessoais: A perseguição aos delinquentes foi feita por um patrulheiro.

A progressão temática das notícias gira em torno das perguntas o quê? quem? como? quando? por quê e para quê?

Outras considerações sobre esse gênero são as seguintes:

Outras considerações sobre esse gênero são as seguintes:

◦ olho da notícia é um breve resumo, que vem logo abaixo da manchete e comunica o que é central no assunto tratado a seguir;

◦ lead é o primeiro parágrafo da notícia, que deve conter as informações básicas, em geral respondendo a cinco perguntas fundamentais, consagradas na fórmula americana dos ‘cinco W’: Who (quem)? What (o quê)? Where (onde)? When (quando)? Why (por quê)? Nos parágrafos seguintes são acrescentados pormenores, por ordem decrescente de importância. É esse tipo de organização da informação que recebe o nome de ‘pirâmide invertida’.

A notícia, embora escrita de modo a parecer imparcial, é um texto que não só informa, mas forma opinião. A maneira de dispor as informações, a escolha das palavras e/ou do que aparecerá primeiro ou depois, o tipo de uso que se faz de dados numéricos e outros dispositivos para produzir o efeito de ‘verdade incontestável’ são apenas alguns dos recursos utilizados na produção de notícias. Há ainda a representação que muita gente tem de que ‘se deu no jornal, na televisão ou na Internet, então é porque é verdade’ – e é comum os meios de comunicação manipularem essa crença para ‘produzirem opiniões’ em quem não analisa criticamente o que acontece e é veiculado na mídia. Fala-se tanto na necessidade de garantir a formação crítica dos alunos... Entre

1 A caracterização que se segue até o tópico de Anúncio é baseada na que fazem Ana Maria Kaufman e Maria Helena Rodríguez em Escola, Leitura e Produção de Textos. Porto Alegre: Artmed, 1995.

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outras boas razões, é também para que não sejam pessoas assim, que acreditam no que leem e no que ouvem sem qualquer estranhamento ou sem a possibilidade de questionar.

Entrevista

Entrevista é um gênero que pressupõe, quando produzido para uma publicação escrita, uma conversa de um entrevistador e um convidado, geralmente pautada em uma discussão sobre algum assunto relevante o suficiente para justificá-la. Por tratar-se de um texto jornalístico, centra-se necessariamente em um tema ou acontecimento atual. Assim, vai além da fórmula pergunta-resposta, incluindo uma caracterização do entrevistado e, por vezes, uma introdução extensa com os aspectos mais significativos da conversa, comentários e dados de confirmação ou refutação das declarações feitas.

Artigo de opinião

Por artigo de opinião estamos chamando os editoriais, artigos de análise e as colunas de jornais e revistas que levam o nome de seu autor. Os editoriais expressam a posição adotada pelo jornal/revista em concordância com sua ideologia, enquanto que os textos assinados transmitem as opiniões de seus autores, o que pode nos levar a encontrar, muitas vezes, opiniões divergentes e até antagônicas em uma mesma página.

Esses textos analisam temas da atualidade que, por sua transcendência, no plano nacional ou internacional, são considerados merecedores de atenção e debate. Embora tenham formato variável, em geral se organizam seguindo uma linha argumentativa que se inicia com a identificação do tema em questão, acompanhado de seus antecedentes e respectivo alcance, a que se sucede uma tomada de posição (a formulação de uma tese) devidamente justificada e sustentada em argumentos (teóricos, políticos ou fundamentados na própria experiência) e, por fim, a reafirmação do posicionamento anunciado no inicio do texto.

A eficácia do texto – no sentido de produzir o efeito de convencimento pretendido – depende não só da pertinência dos argumentos expostos como também das estratégias discursivas utilizadas para persuadir o leitor. Nesse sentido, dependendo da natureza do texto, as estratégias podem ser: crítica aberta a pessoas e/ou instituições que estão no centro da análise, ironia, insinuação, digressão, apelo à sensibilidade... Ou, ao contrário, para sugerir objetividade e consenso em relação à analise feita, a opção pode ser a produção de um efeito de distanciamento por meio do uso das construções impessoais. Em outros textos, serão úteis recursos como: descrição minuciosa, enumeração de fontes de informação, inventário de dados, detalhamento de certos aspectos, ou um relato que especifique diferentes etapas de um determinado processo. Essas são alternativas utilizadas para fundamentar os argumentos que pretendem validar uma opinião, uma tese. Entretanto, em um artigo de opinião, qualquer que seja o tipo, o mais importante mesmo é o autor ter de fato uma opinião que considere relevante e que valha a pena defender...

Anúncio

Tal como indica o Dicionário Houaiss, trata-se de uma mensagem de propaganda criada com objetivos comerciais, institucionais, políticos, culturais, religiosos etc., uma mensagem que procura transmitir ao público, por meio de recursos técnicos e através dos veículos de comunicação, as qualidades e eventuais benefícios de determinada marca, produto, serviço ou instituição.

O anúncio é um texto publicitário que aparece em jornais, revistas, cartazes, folhetos de publicidade etc. A depender do tipo de anúncio e do efeito pretendido, a trama predominante varia: pode ser narrativa, argumentativa, descritiva, expositiva. Em qualquer caso, esses textos são sempre resultados de um trabalho de síntese: através de relatos resumidos, descrições precisas, diálogos breves, argumentações econômicas, transmitem a mensagem de ‘sedução’ do leitor.

Na estrutura profunda de todo anúncio estão mensagens imperativas como ‘Compre tal coisa’, ‘Faça isso’, mas que aparecem travestidas, na superfície do texto, pelo ocultamento dos verbos comprar e fazer por outros

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aparentemente menos imperativos. Frequentemente combinam-se texto e imagem em uma relação de complementaridade para potencializar o efeito pretendido e são comuns também recursos como jogos de palavras, metáforas, repetições sistemáticas, insinuações, onomatopeias, renovação ou ‘releitura’ de títulos conhecidos, hipérboles ou exageros, uso de estereótipos, transcrições de testemunhos em estilo direto etc.

DAS PÁGINAS DA VIDA PRIVADA

Todos somos atores de nossa vida, mas nem sempre podemos ter sua autoria. O pensar [e o escrever] favorece a autoria da existência.

Dulce Critelli, 2006

Não por acaso, este breve mapeamento de gêneros textuais é finalizado com dois dos mais relevantes, porque são ferramentas em favor do registro das páginas (algumas pelo menos...) da nossa história pessoal. São eles: a carta e o diário.

Carta

O que aqui chamamos de carta não é o escrito, fechado em envelope, que se dirige a alguém, tal como aparece numa das definições do dicionário, mas sim o texto – aquele que escrevemos uns aos outros, quando queremos falar sobre o que estamos fazendo, o que estamos pensando, o que estamos vivendo. Se chega ao destino por correio, fax ou Internet é apenas uma circunstância do destino.

A carta é um gênero epistolar. Conforme Ana María Kaufman e María Helena Rodríguez, os textos epistolares procuram estabelecer uma comunicação por escrito com alguém ausente, em que o grau de familiaridade entre autor e destinatário é o princípio que orienta a escolha do estilo – se informal ou formal. Respeitada a fórmula geral – com local, data, saudação ao destinatário, mensagem escrita em primeira pessoa do singular (e eventualmente do plural), despedida e assinatura do remetente – tudo é possível na carta.

Assim como a crônica, a carta é um gênero dos mais democráticos e flexíveis. Ela pode ser construída com diferentes tramas, tendo em conta as diferentes funções da linguagem e lhe cai bem tudo o que venha a enriquecer, ilustrar ou esclarecer o que estamos dizendo: epígrafes, poemas, anedotas, fofocas, trechos de outras cartas, textos outros, de diferentes gêneros. E tem ainda a opção do PS2, esse excelente recurso...

Embora não se converta em carta só porque nela foi inserida ou anexada, por se alojar em suas páginas, essa diversidade toda acaba se misturando com ela e assim, de certa forma, constituindo-a. Esse fenômeno passa a ser mais recorrente e mais evidente a partir do momento em que se tornam disponíveis os recursos de edição – possíveis com a popularização do uso do computador para redigir –, que permitem inserir no corpo do texto o que antes, em tempos de cartas manuscritas ou mesmo já quando datilografadas, por certo permaneceria na condição de anexos (ou sequer fariam sentido).

Quando são informais, aparece de algum modo a subjetividade do autor, que justifica, por exemplo, o uso de diminutivos e aumentativos, a presença frequente de adjetivos qualificativos, a ambiguidade lexical e sintática, as repetições, as interjeições, a pontuação mais enfática... Se somos nós a escrever, a carta nos permite compartilhar, lamentar, aconselhar, informar, orientar, ensinar, relembrar, opinar, esclarecer, perdoar, pensar melhor, pedir ajuda... Se somos nós os destinatários, recebemos tudo isso substantivamente.

O filósofo Michel Foucault3 – ao comentar o que dizia o escritor e também filósofo Sêneca sobre a correspondência via carta – diz que:

A carta enviada atua, em virtude do próprio gesto da escrita, sobre aquele que a envia, assim como atua, pela leitura e a releitura, sobre aquele que a recebe. [...] Faz o escritor presente àquele a quem a dirige. E presente

2 Postscriptum [do latim, 1899]: Aquilo que se acrescenta a uma carta depois de assinada [abrev.: P.S.] - http://houaiss.uol.com.br/ 3 In O que é um autor? Portugal: Veja/Passagens, 1992.

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não apenas pelas informações que lhe dá acerca de sua vida, das suas atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas e infortúnios; presente de uma espécie de presença imediata e quase física.

Escrever é mostrar-se, dar-se a ver, fazer aparecer o rosto próprio junto ao outro. [...] A carta é simultaneamente um olhar que se volta para o destinatário (por meio da carta que recebe ele se sente olhado) e uma maneira de o remetente se oferecer ao seu olhar pelo que de si mesmo lhe diz. De certo modo, a carta proporciona um face-a-face. [...] A carta que, na sua qualidade de exercício, trabalha no sentido da subjetivação do discurso verdadeiro, da sua assimilação e da sua elaboração como bem próprio, constitui também e ao mesmo tempo uma objetivação da alma.

Trata-se, como se pode ver, de um gênero de muito valor, embora nem sempre devidamente valorizado... Tanto as cartas pessoais quanto as que se tornam públicas são documentos que atestam a biografia de seus autores e o tempo em que viviam ao escrevê-las.

A seguir, uma delas, de Fernanda Montenegro4 para Clarice Lispector, nos duros anos de 1960:

Clarice,é com emoção que lhe escrevo pois tudo o que você propõe tem sempre essa explosão dolorosa. É uma angústia terrivelmente feminina, dolorosa, abafada, educada, desesperada e guardada.Ao ler meu nome, escrito por você, recebi um choque não por vaidade mas por comunhão. Ando muito deprimida, o que não é comum. Atualmente em São Paulo se representa de arma no bolso. Polícia nas portas dos teatros. Telefonemas ameaçam o terror para cada um de nós em nossas casas de gente de teatro. É o nosso mundo.E o nosso mundo, Clarice?Não este, pelas circunstâncias obrigatoriamente político, polêmico, contundente. Mas aquele mundo de que nos fala Tchecov: onde repousaremos, onde nos descontrairemos? Ai, Clarice, a nossa geração não o verá. Quando eu tinha quinze anos pensava alucinadamente que minha geração desfaria o nó. Nossa geração falhou, numa melancolia de ‘canção sem palavra’, tão comum no século XIX. O amor no século XXI é a justiça social. E Cristo que nos entenda.Estamos aprendendo a lição seguinte: amor é ter. Na miséria não está a salvação.... Nossa geração sofre da frustração do repouso. É isso, Clarice? A luta que fizermos, não a faremos pra nós. E temos uma pena enorme de nós por isso. É assim que explico pra mim estas frases que você põe no seu artigo: ‘Eu que dei pra mentir. E com isso estou dizendo uma verdade. Mas mentir já não era sem tempo. Engano a quem devo enganar, e, como sei que estou enganando, digo por dentro verdades duras’. A luta, a que me refiro lá no alto, seria aquela luta bíblica, a grande luta, a que engloba tudo.... Dê-me a calma e a luz de um momento de repouso interior, só um momento.Com intensa comoção.

Fernanda

E seguem algumas breves considerações5 sobre a correspondência como uma ‘modalidade’ de formação profissional.

Esse é um recurso ainda pouco utilizado, porém fundamental, pois, além de todos os benefícios trazidos pela comunicação por escrito, tem a vantagem adicional de poder ocorrer a distância, a qualquer distância. Evidentemente a comunicação por escrito não substitui a relação interpessoal direta, mas quando não é possível contar com a presença física de parceiros, essa é uma alternativa que não se pode desprezar.

A correspondência é uma forma valiosa de exercitar o registro, a reflexão por escrito, a comunicação e a leitura. Além disso, permite estreitar os vínculos afetivos, sistematizar os saberes construídos e socializá-los. E, de certa forma, acaba por representar um agrado, um cuidado com o outro, revelado ‘em atos’. Porque, quando escrevemos, deixamos de lado todos os demais afazeres e priorizamos o contato com o nosso interlocutor – que, ao receber o texto, recebe junto a mensagem implícita ‘Ele/ela dedicou seu tempo a me escrever!’.

Quando é possível contar com a Internet, então, esse tipo de comunicação – seja por e-mail ou on line – ganha ainda mais relevância, por conta não só da rapidez, mas do custo praticamente irrelevante. A interlocução on line, permite a combinação de duas das principais propriedades da linguagem oral e da linguagem escrita, respectivamente – a ‘presença’ do interlocutor e a possibilidade de ‘voltar ao texto’ para pensar sobre o conteúdo da mensagem. Essa circunstância possibilita um exercício da escrita que só é possível nesse contexto.

4 Texto publicado em A descoberta do mundo, de Clarice Lispector, Editora Rocco, 1999. 5 Publicado em Formação dos educadores: uma ação estratégica e transversal às políticas públicas para a educação. São Luís, 2004 e em Porque escrever é fazer história. Campinas: Editora Alínea, 2005 e 2007.

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O fato é que, neste tempo em que estamos vivendo, quando os momentos de formação parecem sempre insuficientes, a correspondência pode adquirir um papel fundamental – o de recurso complementar ao trabalho e à interlocução entre seus autores. Sem contar que as cartas convencionais ou mensagens de e-mail trocadas pelos educadores não são textos meramente informativos: têm a potência dos escritos que acionam não só a reflexão, mas as bem-vindas emoções que atravessam qualquer processo educativo. E, espera-se, as ações que podem tornar esse processo mais humano, mais democrático, mais eficaz.

Diário

Nada melhor para iniciar os comentários sobre o diário que um texto de Contardo Calligaris6.Considerem estes dois parágrafos, para começar:

- Diários íntimos (e autobiografias) são escritos por motivos variados: respondem a necessidades de confissão, de justificação ou de invenção de um novo sentido. Frequentemente, aliás, esses três aspectos se combinam.

- Várias vezes na minha vida fui tomado pelo impulso de começar um diário. E várias vezes comecei. Não tanto para marcar eventos memoráveis de meu cotidiano quanto por estar em alguma encruzilhada, íntima ou não, em que me parecia necessário forçar-me a confessar alguma verdade que, de outra forma, não ousaria dizer. Ou então, precisava levar meus argumentos frente a um tribunal que me entendesse. Ou ainda, queria interpretar minha vida para lhe prometer um futuro ou dar sentido a um presente moroso.

Para isso tudo serve um diário. E muito mais...

O diário é um texto em que o autor relata experiências vividas no presente e o que pensa a respeito delas. O leitor em geral é o próprio autor, ainda que tenhamos exemplos famosos na história de diários que foram publicados e deram a ver a vida privada de muitas celebridades.

Em ‘O diário de Susan Sontag’, publicado recentemente7, a autora diz o seguinte:

31 de dezembro de 1958

Sobre manter um diário. É superficial entender o diário como apenas um receptáculo para seus pensamentos particulares, secretos - como uma confidente surda, muda e analfabeta. No diário não apenas eu me expresso mais abertamente do que poderia com qualquer pessoa, eu me crio.

O diário é um veículo para meu sentido de individualidade. Ele me representa como emocional e espiritualmente independente. Portanto (infelizmente) ele não apenas registra minha vida diária real, como - em muitos casos - oferece uma alternativa a ela.

É comum haver uma contradição entre o significado de nossos atos para com uma pessoa e o que dizemos sentir sobre essa pessoa num diário.

Mas isso não significa que o que fazemos é raso, e só o que confessamos a nós mesmos é profundo. As confissões – quero dizer confissões sinceras – é claro, podem ser mais rasas que os atos.

Como diz a escritora, escrever um diário é uma oportunidade não só de nos expressarmos do modo como julgamos melhor, mas também uma possibilidade de ‘nos inventarmos’. Isso se confirma, no caso também de uma mulher muito pobre, moradora de favela em São Paulo, e escritora também: Carolina Maria de Jesus.

Sobre ela, disse o historiador e escritor Joel Rufino dos Santos em sua coluna na Revista Almanaque Brasil8:

Ela escrevia, de fato, um diário em seu barraco, atulhado do lixo que não pudera vender no mesmo dia. Publicado, ‘Quarto de despejo - Diário de uma favelada’ vendeu cerca de 100 mil cópias em um ano; 10 mil em três dias, equiparando-se a Jorge Amado e Paulo Coelho. Foi talvez o mais traduzido dos livros brasileiros. Carolina Maria de Jesus (1914-1977) teve ainda publicado, com sucesso declinante, Casa de alvenaria - Diário de uma ex-favelada (1961), Provérbios de Carolina Maria de Jesus (1969), Pedaços da fome (s/data) e, postumamente, Diário de Bitita.

6 In Verdades de autobiografias e diários íntimos. Estudos históricos. RJ: Cpdoc/FGV, no 21, 1998 e http://www2.cpdoc.fgv.br/revista/arq/236.pdf

7 Disponível em espanhol no endereço http://www.granta.es/pdfs/diario_sontag.pdf 8 In http://www.almanaquebrasil.com.br/almanaque93/historia.asp

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Grafomaníaca, deixou perto de 140 cadernos, folhas avulsas, pedaços de jornal e papelão anotados que os filhos guardam com orgulho até hoje. Antes de catar papel foi empregada, faxineira de hotel, auxiliar de enfermagem, vendedora de cerveja e artista de circo.

‘Quarto de despejo’ se abre assim:

15 de julho de 1955.

Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.

Carolina foi pobre soberba. ‘Crioula metida’, diziam os vizinhos, que a apedrejaram quando o caminhão da sua mudança saiu. Com o filho nas costas, enfiando papéis e restos de comida num saco, mantinha ares de mulher bonita, ‘que sabe ler e escrever’, capaz de dialogar com polícia e autoridades. Só namorava brancos, de preferência estrangeiros.

Saiu da pobreza e retornou a ela em menos de 10 anos. Foi a época da agitação política (Ligas Camponesas, Reformas de Base etc.) que o golpe de 1964 cortou. De Adhemar de Barros, Jânio e Jango.

O sucesso de Carolina se deveu, em parte, ao Movimento Universitário de Desfavelamento, que a levou para fazer conferências pelo País. Mas não era de esquerda. Nunca aceitou o papel de ‘pobre injustiçada’, politicamente correta. Gostava de ser pobre sozinha.

‘Quarto de despejo’ termina assim:

31 de dezembro...

Levantei às 3 e meia e fui carregar água.[...] Espero que 1960 seja melhor do que 1959.Sofremos tanto no 1959, que dá para a gente dizer:Vai, vai mesmo! Eu não quero você mais,Nunca mais!

1 de janeiro de 1960

Levantei às 5 horas e fui carregar água.

Como se pode ver, um diário é um importante registro autobiográfico e, de certo modo, um retrato, ainda que parcial, de uma época – de autoria daquele/a que documenta por escrito sua ‘leitura do mundo’, expressa nas ideias, impressões, opiniões, esperanças ou desilusões que são suas. Além disso, pode ser um ponto apoio, uma âncora para aquele que escreve, tal como nos alerta a escritora Anaïs Nin: ‘Começando um diário, já concordava com a ideia de que a vida seria mais suportável se eu a olhasse como uma aventura e um conto. Eu me contaria a história de uma vida, e isso transmuta em uma aventura os percalços que nos sacodem.’

O filme ‘Escritores da liberdade’ mostra que esse efeito a que a escritora se refere pode ser benéfico para muita gente e atesta a potencialidade do diário como um gênero da maior importância no trabalho também com os alunos.

No artigo escrito pelo psicólogo Raymundo Lima9, se pode ler a seguinte resenha do filme:

Há muitos filmes americanos sobre escola, mas não como ‘Escritores da Liberdade’. (Freedom Writers, EUA, 2007). Porque é o único filme dessa categoria que incentiva os alunos a lerem literatura, ponto de partida para testar a possibilidade de cada um escrever desde um diário sobre o cotidiano trágico de suas vidas até uma poesia hip hop ou um livro de ficção. O valor desse filme também está na ousadia da linguagem cinematográfica mostrando os problemas psico-sócio-culturais que atingem a escola contemporânea; também porque ele dá visibilidade à diversidade dos grupos, com seu rígido código de honra, cada um no seu território, o narcisismo da recusa e da intolerância para com ‘os outros’, o boicote às aulas, a prontidão para aumentar os índices de violência entre os jovens e transformar a escola no seu avesso, isto é, uma comunidade bem próxima da barbárie, o que de fato vai acontecer em 1992, em Los Angeles, EUA.O filme é baseado na história real de Erin (interpretada por Hilary Swank), uma professora novata interessada em lecionar Língua Inglesa e Literatura para uma turma de adolescentes resistentes ao ensino convencional; alguns estão ali cumprindo pena judicial, e todos são reféns das gangues avessas ao convívio pacífico com os diferentes.

9 In http://www.espacoacademico.com.br/082/82lima.htm

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Como em outros filmes sobre turmas problemáticas, a professora Erin toma sua tarefa como um grande desafio: educar e civilizar aquela turma esquizofrenizada e estigmatizada como ‘os sem-futuro’ pelos demais professores. Percebe que seu trabalho deve ir para além da sala de aula, por exemplo, visitando o museu do holocausto, possibilitando aos jovens saber os efeitos traumáticos da ideologia da ‘grande gangue’ nazista, que provocou a 2ª. Guerra Mundial e o holocausto, e também reconhecer as semelhanças com suas ‘pequenas gangues’ da escola. O método da jovem professora consistiu em entregar para cada aluno um caderno para que escrevessem, diariamente, sobre aspectos de suas próprias vidas, desde conflitos internos até problemas familiares e sociais. Também instigou-os a ler livros como ‘O Diário de Anne Frank’ com o propósito de despertar alguma identificação e empatia, ainda que os personagens vivam em épocas diferentes; a partir de eventuais encontros imaginários cada aluno poderia desenvolver uma atitude especial de tolerância para com o ‘outro’. Na vida real, os diários foram reunidos em um livro publicado nos Estados Unidos, em 1999, e terminaram inspirando o diretor Richard LaGravenese para fazer esse filme.

O filme – imperdível! – é uma lição para todos nós, educadores, e uma prova de que não só os professores são fundamentais na vida dos alunos mas que a escrita pode ser de fato uma redenção. Além da importância dessa dimensão pessoal, há outra, relacionada ao uso do diário também em contexto profissional ou de pesquisa. Defendendo-o nesse âmbito, diz o professor e pesquisador francês Remi Hess10:

Diferente da história de vida ou das memórias, o diário é um escrito pessoal que acontece no presente. Mesmo com uma pequena diferença de tempo, escreve-se no momento mesmo onde se vive e se pensa. Não é um escrito posterior, mas um escrito do momento. Aceita-se, então, a espontaneidade e eventualmente a força dos sentimentos, a parcialidade de um julgamento, enfim, a falta de distanciamento – este é um ponto comum com a correspondência. Quando se escreve uma carta, ela é inscrita no presente da escrita, como o diário. A única diferença é que, num primeiro momento, o diário é escrito para si mesmo, enquanto a carta tem um destinatário bem identificado.

O autor é o sujeito do diário...

A redação do diário é científica? Ora, o diário é apenas um instrumento. A arqueologia se interroga para saber se o martelo é científico? Não. Ela o utiliza inteligentemente ou não, no seu trabalho de escavação. Em matéria de diário, a ciência se encontra numa relação adequada com essa técnica de coleta de dados. E uma dimensão dessa relação encontra-se na distância com que se constrói o diário quando da releitura, e na exploração que se faz nos dados recolhidos nos escritos mais elaborados.

Tomar distância... Nessa prática de redação, se aceita que o ‘recuo’, o distanciamento venha somente depois.

O fato é que, seja na vida pessoal ou profissional, o diário favorece a documentação da própria história. Tal como nos lembra Calligaris11, embora atropelados pelo barulho, pela fúria e pelo pouco sentido da História, há indivíduos que conseguem inventar sua vida.

E isso podemos fazer todos nós!

10 HESS, Remi. Momento do diário e diário do momento. In Tempos, narrativas e ficções – a invenção de si. SOUZA. Elizeu. C. & ABRAÃO Maria Helena M. B. Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, 2006.11

Olimpíada e diários de guerra. Folha de S. Paulo, São Paulo, 28 ago.2008. Caderno Ilustrada, p. E10.

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SOBRE A ORGANIZAÇÃO DE PROJETOS TEMÁTICOS

Rosaura Soligo

Para aprender, jamais é supérfluo compreender o sentido daquilo que se aprende. Para tanto, não basta que o saber seja inteligível, assimilável. É necessário que esteja ligado a outras atividades humanas, que se compreenda por que foi desenvolvido, transmitido, por que é conveniente apropriar-se dele. O sentido não é necessariamente utilitarista; pode dizer respeito à estética, à ética, ao desejo filosófico de compreender o mundo ou de partilhar uma cultura.

Perrenoud, 1999

Conforme já foi dito anteriormente neste Caderno,

“Hoje se fala muito na importância do trabalho com projetos, entre outras razões porque eles possibilitam:

• tomar a criança como protagonista da própria aprendizagem (e também o professor);

• elaborar conjuntamente com a turma algumas propostas a serem desenvolvidas;

• experimentar, na prática, a construção coletiva de um empreendimento, o que tende a fortalecer o ‘espírito de grupo’;

• construir algumas certezas compartilhadas, discutir encaminhamentos e refletir sobre as incertezas;

• contextualizar as propostas, o que é sempre uma vantagem pedagógica;

• aproximar a ‘versão escolar’ e a ‘versão social’ de práticas e conhecimentos tomados como conteúdos1 e planejar situações didáticas que se assemelham ao que acontece fora da escola;

• responder ao mesmo tempo a objetivos didáticos e a objetivos de realização do aluno, nem sempre coincidentes;

• trabalhar a favor de dois produtos ao mesmo tempo: o que é previamente definido por todos como tal e – o mais importante – o aprendizado decorrente do projeto.

Entretanto, projeto é apenas uma das formas possíveis de trabalhar didaticamente os conteúdos – a depender da natureza que eles têm e dos objetivos propostos, outras podem ser mais adequadas: atividades permanentes, atividades sequenciadas e atividades independentes – ocasionais ou de sistematização”.

1 A concepção defendida neste texto é de que conteúdo é tudo o que é objeto de trabalho intencional na escola, seja o que se pode comunicar diretamente ou o que só é possível criar contextos favoráveis para que os alunos desenvolvam por si mesmos – como atitudes (interesse, respeito ou empenho, por exemplo) e certos tipos de procedimento (como compreensão, reflexão, inferência ou generalização, por exemplo).

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Um tipo específico de projeto

O texto que se segue2 é um roteiro metodológico para a organização de projetos temáticos, isto é, projetos de pesquisa articulados em torno de um tema central. Feitos os devidos ajustes, tendo em conta o repertório e a faixa etária das crianças, este roteiro pode ser utilizado em qualquer ano da escolaridade, desde a Educação Infantil, entretanto a possibilidade de tomá-lo de fato como um subsídio pressupõe o entendimento e a opção pelo tipo de metodologia que ele traduz e que aqui se busca explicitar.

Em geral, esta proposta não é muito compatível com projetos cuja finalidade principal não é o estudo de um tema específico, mas sim o conhecimento de um determinado gênero textual e consequente produção de um livro, varal ou mural; o trabalho com procedimentos que permitam a elaboração de maquetes, plantas ou mapas; a experimentação de como se prepara uma mostra de trabalhos, uma apresentação cultural, uma festa ou uma roda de histórias, dentre outros exemplos. Nem sempre a proposta será adequada, portanto, para áreas como Língua, Matemática e outras que não tenham como objetivo aprofundar o estudo de um tema, o que também não significa que não possa ser utilizado nesses casos: com as devidas adaptações, certamente servirá como um guia importante para o planejamento em qualquer componente curricular.

Talvez não seja demais fazer aqui uma distinção: há projetos que envolvem mais do que uma área curricular, mas são organizados de modo diferente a depender de onde ‘nascem’. Para que fique mais claro, vamos considerar o exemplo de um mesmo projeto, que pode incluir Ciências Naturais e Língua – Animais da fauna brasileira, que pode ser desenvolvido tanto na Educação Infantil como nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esse é um tipo de projeto que pode ‘nascer’ primeiro na área de Ciências ou de Língua e então o objetivo principal e o enfoque seriam, em princípio, diferentes. Se ele surge como necessidade em Ciências, os textos a serem utilizados para trabalhar os conteúdos previstos serão selecionados à medida que servem para abordar adequadamente como é a vida dos diferentes animais em seus ecossistemas nativos. Nesse caso, do ponto de vista didático, a preocupação com a escolha dos gêneros textuais é secundária em relação ao tema, sendo mais importante a observação e comparação dos animais que os livros proporcionem. Mas se o projeto surge como uma necessidade da área de Língua, de tomar um tema de interesse das crianças para aprofundar o conhecimento sobre os gêneros textuais expositivos, do ponto de vista didático o tema de estudo é secundário em relação aos gêneros que se pretende trabalhar.

Portanto, o projeto apenas se concretizará como interdisciplinar se for pautado por objetivos de mais do que uma área – no caso, Ciências Naturais e Língua Portuguesa – e seus respectivos desdobramentos didáticos. O fato de ler livros sobre animais não significa, a priori, um trabalho de Ciências só porque os animais são tema dos livros – pode-se ler vários textos cuja temática se relacione à natureza sem que, com isso, sejam trabalhados conteúdos propriamente da área de Ciências, ainda que se amplie o repertório das crianças em relação a fatos e fenômenos. Como sabemos, os fenômenos naturais existem no mundo de forma independente e anterior às ciências que os explicam...

Uma das maiores vantagens dos projetos interdisciplinares, ainda mais quando desenvolvidos por um único professor, é exatamente a possibilidade de compatibilizar as prioridades específicas de mais do que uma área, equilibrando o tratamento de conteúdos relevantes (como ilustrado acima) e favorecendo, dessa forma, a articulação dos conhecimentos e a otimização do tempo. Entretanto, os projetos não precisam ser necessariamente interdisciplinares. A questão didática de fundo, que deve orientar as escolhas todas a serem feitas em relação a o que e como ensinar, é sempre a mesma: qual o objetivo em relação à aprendizagem das crianças. Isso significa dizer, de outro modo, que os conteúdos (o que vai ser trabalhado) e as metodologias (de que forma) são desdobramentos da razão principal de qualquer proposta consequente de ensino: aquilo que se

2 Este material foi produzido em fevereiro de 1995 considerando algumas idéias de Gordon Wells e Fernando Hernández, abordadas em cursos ministrados em São Paulo no ano de 1994, no Centro de Estudos da Escola da Vila. Foi reformulado em 1998 a partir da reflexão sobre a metodologia de projetos utilizada na Escola Cooperativa de São Paulo; depois passou por uma revisão em 2003 e agora foi redimensionado e compatibilizado com o conteúdo deste Caderno do Professor, contando, para tanto, com a leitura crítica de Rosângela Veliago, Cecília Condeixa, Antonia Terra, Sueli Furlan, Guilherme do Val Toledo Prado, Cláudia Roberta Ferreira, Carla Helena Fernandes, Renata Barrichelo Cunha, Adriana Pierini, Adriana Alves Vicentini, Natalina Farias, Tereza Cristina Barreiros, Tamara Abrão Pina Lopretti e Wilson Queiroz.

110considera necessário ou importante de aprender. Assim, um projeto interdisciplinar será uma proposta melhor do que qualquer outra se contribuir para a aprendizagem que se pretende garantir. Um projeto de uma única área curricular poderá ser mais oportuno se, específico, contribuir de maneira mais efetiva para a aprendizagem. Há conteúdos que são vinculados a uma única área e querer relacioná-los a qualquer preço com outras pode ter duas consequências muito negativas: a incoerência (ao produzir didaticamente relações artificiais) e o desperdício de tempo (nesse caso utilizado com propostas artificializadas e desnecessárias).

Outra consideração importante diz respeito a uma certa perspectiva espontaneísta, que se constituiu nos últimos tempos, em relação aos projetos: a de que eles devem ‘surgir naturalmente’ a partir do interesse das crianças ou devem ser ‘escolhidos’ por elas. Não é essa a perspectiva aqui defendida, seja pelas razões apresentadas anteriormente, seja pela convicção de que a seleção dos principais temas de estudo em um determinado ano da escolaridade é uma prerrogativa do professor e não do aluno. Nesse sentido, é importante ressaltar que, embora algumas ideias de Fernando Hernández tenham servido de referência para a elaboração deste roteiro, há duas das principais propostas feitas pelo autor e publicadas nas obras da década de 1990 que, por discordância, não foram aqui consideradas: uma é a de que todos os conteúdos escolares sejam organizados na modalidade de projetos e a outra é esta, de que as crianças escolham por si mesmas os projetos a serem desenvolvidos. Isso não significa que elas não possam escolher temas de estudos de seu interesse (e a esse respeito há considerações a seguir) ou que não possa ter sentido e se fazer necessário um determinado projeto que não foi a princípio planejado pelo professor. Significa, isso sim, que a escolha do que é melhor para todos os alunos é uma decisão que cabe aos professores, a partir do que supõem ser mais pertinente para a aprendizagem da turma a partir de seus conhecimentos prévios e dos objetivos colocados naquele ano escolar. Até mesmo as propostas que possam vir a ‘surgir naturalmente’ ou ser do interesse da turma precisam estar condicionadas a esse critério.

O roteiro está estruturado em tópicos sucintos, uma vez que a finalidade principal é subsidiar o planejamento de projetos temáticos (embora possam, é claro, ser também planejados conforme outras metodologias e outros critérios, diferentes dos que aqui se apresentam).

As dimensões a que os tópicos se referem são as seguintes: critérios de seleção dos temas; identificação da questão central a ser respondida pelo projeto; planejamento; elaboração de índices que representam os assuntos de interesse e os assuntos de fato estudados; aspectos relacionados mais especificamente ao desenvolvimento do trabalho – investigação/pesquisa, análise/interpretação, apresentação/socialização; reflexão sobre o aprendido; e documentação.

Consideradas as especificidades de um projeto didático de pesquisa, como é o caso, podemos identificar pontos de convergência entre essa proposta e o que defende Dario Fiorentini (2004), ao tratar da pesquisa acadêmica na universidade (e também de profissionais nas escolas). Diz ele que pesquisa implica um trabalho intencional, planejado e constituído em torno de um foco ou questão central; metódico (que passa por algum processo de produção/organização e análise escrita de informações); e que resulta em um produto final (texto escrito ou relato oral) que traga novas formas de compreensão.

Na mesma linha, Cunha e Prado (2007) acrescentam alguns elementos e afirmam que pesquisa pressupõe:

◦ uma questão para a qual intencionalmente buscamos respostas, soluções, alternativas;◦ o ‘diálogo’ com interlocutores, ‘outros significativos’, que trazem contribuições para a

compreensão da questão que se investiga: autores que estudaram o assunto, pessoas com as quais se discute e que ajudam a pensar etc.;

◦ organização e análise das informações disponíveis para compreender e encontrar respostas, soluções, alternativas para a questão e, de preferência, uma reflexão sobre o percurso que vai desde a definição do que se pretendia investigar até esses resultados, ainda que provisórios ou parciais;

◦ algum tipo de registro que documente isso tudo, com vistas à socialização, por se tratar de assunto de interesse de outras pessoas.

111Embora nessas proposições os autores não estejam tratando de projetos a serem desenvolvidos com as crianças na escola, como se vê, os pressupostos se assemelham...

A seguir, estão relacionados alguns aspectos que podem contribuir para o planejamento dos projetos temáticos.

I – PLANEJAMENTO PRÉVIO3

1. Seleção do tema

Os critérios de seleção de um tema para os projetos derivam, ao mesmo tempo:

◦ dos objetivos definidos para uma ou mais áreas curriculares;◦ da concepção de ensino e aprendizagem4;◦ da possibilidade de adequação à faixa etária.

Ou seja, é preciso considerar:

◦ o que se pretende que as crianças aprendam;◦ a potencialidade do tema para favorecer a articulação dos conteúdos definidos para o ano e a

possibilidade de ser significativo e interessante;◦ a articulação horizontal e vertical (levando-se em conta a programação de conteúdos e

propostas no próprio ano e em relação aos demais anos de escolaridade);◦ a possibilidade de favorecer relações, inferências, generalizações...

2. Previsão da questão central a ser ‘respondida’ pelo projeto5

Prever a questão central significa identificar a que tipo de questão o conhecimento adquirido com o projeto poderia dar resposta. Trata-se de identificar um aspecto amplo, um princípio geral, um procedimento complexo, uma atitude importante, quer dizer, aquilo que funcionará como um eixo norteador de todo o projeto, que deve orientar o conjunto das propostas e servirá, portanto, de critério geral de seleção de conteúdos e tipos de atividade.

Para tanto, é importante que o professor tenha clareza em relação:

◦ aos objetivos didáticos (o que se pretende alcançar com o projeto);◦ ao potencial do tema (o que se pode ‘extrair’ do tema, o que ele favorece);◦ à capacidade cognitiva das crianças (o que é adequado considerando o que elas podem

aprender);◦ aos conhecimentos prévios que elas têm (o que já sabem e a própria experiência com esse tipo

de metodologia).

Alguns exemplos ilustrativos de temas e possíveis questões a eles relacionadas:

TEMA DO PROJETO QUESTÃO CENTRAL (possibilidades)

No Tempo da Vovó Como era um tempo diferente do vivido

Bichinhos de Jardim Conhecer seres vivos que nem sempre se percebe

Animais da Fauna Brasileira Necessidade de cuidado com os animais e noções de biodiversidade

3 Embora este roteiro tenha sido a princípio elaborado para o planejamento de projetos pelos próprios professores que os realizariam, nada impede que outros profissionais, que tenham maior experiência com esse tipo de proposta, se ocupem de organizar uma versão preliminar do que está sugerido nesta parte de planejamento (até o item 5) – já a parte de desenvolvimento caberá a cada professor e sua turma de alunos, evidentemente.4 A concepção geral que permeia este texto é de que as crianças (e todas as pessoas) são sujeitos de seu processo de construção de conhecimento e que, portanto, as propostas de ensino devem se pautar por uma perspectiva de resolução de situações-problema que sejam compatíveis, desafiadoras, ajustadas aos seus conhecimentos prévios.5 Esse aspecto não é para ser compartilhado com as crianças, pois é de natureza didática, portanto, de ‘uso exclusivo’ do professor.

112Biomas Brasileiros:

Parte 1 - Mata Atlântica e AmazôniaUso sustentável de recursos naturais

Civilizações Pré-colombianas Conhecer para respeitar a pluralidade cultural

Origem do Universo Provisoriedade do conhecimento científico

Marcos do Século XX Processos de permanência-mudança

A Semana de Arte Moderna Como se constitui uma tendência nas artes

A questão central em geral é implícita e transversal ao projeto, não é tratada como um conteúdo ‘em si’.

3. Levantamento dos conteúdos

A partir dos objetivos previstos, e tendo como referência a questão considerada como central, é preciso então listar os diferentes tipos de conteúdos que se pretende trabalhar – fatos, conceitos, procedimentos, valores, normas, atitudes...

4. Preparação da atividade de ‘lançamento’ do projeto

O planejamento de uma atividade inicial, que inaugura o projeto e desencadeia o trabalho de pesquisa, deve ser muito bem cuidado para potencializar o engajamento das crianças com o processo de estudo/pesquisa.

Em primeiro lugar, é necessário considerar a importância de essa atividade inicial ser pensada de fato como um desdobramento de tudo o que já foi definido até então (tema, objetivos, conteúdos e questão central), de modo a remeter as crianças para o conjunto do trabalho e não para um ou outro aspecto apenas. Depois, a proposta é que essa situação inicial seja, ao mesmo tempo, diagnóstica e desencadeadora de uma sequência de atividades, pois tudo que vier a seguir, de certa forma, tem relação com o que foi desenvolvido a princípio.

Algumas possibilidades de propostas/recursos que podem ser utilizados nas atividades de lançamento: imagens, filmes, trabalho de campo, experimentos, textos com potencial ‘desencadeador’, questões, situações-problema, afirmações para serem discutidas/contra-argumentadas, dentre outros. A escolha da melhor alternativa dependerá sempre do tipo de assunto, do que se pretende com o projeto e das características da turma.

Uma proposta de estudo da história do lugar onde as crianças moram pode, por exemplo, iniciar com uma música, uma pintura ou uma poesia, para ser apreciada, e que expressa elementos específicos do lugar. Assim, a atividade pode sugerir, na sequência, pesquisas de outras produções e registros (textos, imagens, sons...) e favorecer uma conversa sobre procedimentos de pesquisa, identificação de fontes documentais, análise de paisagem, problematização da realidade vivida e organização das informações coletadas em textos históricos.

5. Elaboração de um instrumento de registro do projeto

Até aqui, os tópicos dizem respeito ao planejamento do trabalho, anterior ao seu desenvolvimento com as crianças, e terão, de alguma maneira, que se converter em um plano que documente o projeto, tanto em relação às projeções quanto à sua realização posterior. Portanto, é necessário organizar um instrumento de registro com tudo o que foi até então pensado e que comporte as informações relacionadas aos tópicos seguintes, que dizem respeito agora à concretização do plano.

É importante elaborar dossiês que contenham registros interessantes sobre tudo o que valer a pena documentar além do plano inicial: observações das crianças em ação na atividade de lançamento; registro de suas falas/respostas durante o projeto em situações que revelam as

113concepções/opiniões/ideias que elas têm; sistematização dessas falas/respostas (quando for o caso); os índices elaborados; as atividades interessantes propostas para investigação, interpretação, apresentação e avaliação; os principais textos produzidos; a reflexão do professor sobre o trabalho como um todo...

Além desse tipo de documentação específica do professor, cabe também uma proposta de registro também para as crianças, uma espécie de ‘diário do projeto’, onde vai sendo registrado todo o percurso do trabalho. Dependendo da turma e da faixa etária, o diário pode ser individual ou coletivo e, de certo modo, pode se constituir em um outro projeto – bem mais simples, de aprendizagem de como se organiza esse gênero textual.

II – DESENVOLVIMENTO

6. ‘Lançamento’ do projeto

Esse é um momento essencial porque é a primeira oportunidade de ‘sedução’ das crianças para o trabalho a ser desenvolvido – hora de apresentar o tema a ser estudado, encaminhar a atividade inicial e discutir o produto final.

A definição do produto é especialmente importante e deve ser de fato compartilhada com todos: não basta, em algum momento, comunicar as crianças qual é o mais adequado ao projeto. Caso elas sejam muito pequenas ou ainda inexperientes nesse tipo de proposta, é necessário que o professor apresente algumas possibilidades para enriquecer a discussão e contribuir para a definição da alternativa mais adequada. Quando o produto for ‘material’, é preciso que as crianças conheçam e analisem modelos semelhantes àquilo que se pretende fazer. O papel do professor nessa situação é o de orientar a discussão, sendo propositivo, mas não impositivo – é o caso de argumentar a respeito das propostas que considerar mais pertinentes e mostrar as desvantagens das outras, para que o produto final definido seja resultado do cruzamento de propósitos comunicativos, didáticos e de realização pessoal dos alunos.

7. Elaboração de um 1o índice (síntese das questões que as crianças gostariam de aprender) sobre o tema do projeto

O que aqui é chamado de 1º índice é a síntese do que as crianças demonstraram interesse em saber sobre o tema do projeto a partir da atividade de lançamento. Dependendo da faixa etária e/ou do tipo de assunto, esse interesse pode ser identificado em uma roda de conversa com toda a turma, quando as crianças fazem suas perguntas e manifestam suas opiniões, ou em atividades individuais – por exemplo, quando formulam perguntas por escrito ou completam uma questão do tipo ‘eu gostaria de saber...’. A sistematização desses dados que resultarão no 1º índice pode ser feita junto com as crianças ou não, a depender do caso, e é apenas uma síntese do que surgiu – não tem interferência do professor a não ser para agrupar as questões em categorias, se necessário.

A seguir, um exemplo, para que fique mais claro o que compreende este 1º índice.

PROJETO ‘MARCOS DO SÉCULO XX’

1o Índice

Síntese das perguntas formuladas por crianças do 5º ano, após a atividade de lançamento do projeto – observação atenta de um grande painel de imagens de alguns dos acontecimentos mais relevantes do Século XX.

114O século XX foi muito importante para a Humanidade. Aconteceram muitas invenções e descobertas, guerras, mudanças nos costumes, na educação etc. Escreva uma pergunta sobre quais os acontecimentos você gostaria de estudar, relacionados com o Brasil no Século XX.

1. O que mudou desde o começo do século XX até hoje (avião, costumes, fotografia, roupas e construções)?2. Quando surgiu o relógio de pulso?3. Como eram os carros antigamente?4. Quem inventou o carro e como ele chegou ao Brasil?5. Quem inventou o avião? Quando isso aconteceu?6. Que tipo de comunicação existia nas décadas passadas?7. Existia telefone no começo do século?8. Como surgiu o teatro e o cinema?9. Quando surgiu a televisão?10. O que quer dizer ‘A era do rádio’?11. Como era a música, a dança, a escola e a escrita antigamente?12. Como se escrevia antigamente?13. Como eram as escolas?14. O que as crianças faziam na escola?15. As crianças faziam os mesmos esportes de hoje?16. Qual era a rotina das crianças antigamente?17. Por que surgiram as guerras?18. Por que no começo do século as mulheres não saíam sozinhas?19. Como era a moda?20. Quando surgiram os bonés e os tênis?21. Por que as mulheres magras eram consideradas feias?22. Como era a moeda dos tempos antigos?23. Como era a indústria?24. No início do século já existia cesariana?25. O que foi o movimento hippie?26. Como surgiram os bares?27. Como eram construídas as casas?28. No começo do século, quais eram as profissões?29. Que acontecimentos políticos importantes aconteceram no Brasil?

Como se pode ver, pelas perguntas apresentadas, é possível inferir quais foram algumas das imagens selecionadas pelo painel... Por isso, não se pode perder de vista que, por suscitar o interesse e colocar questões para as crianças, a atividade inicial e o modo de solicitar o posicionamento delas em relação ao que gostariam de saber têm grande importância nos rumos posteriores do trabalho.

A análise dessa síntese de assuntos de interesse (e de outras falas das crianças) pode indicar para o professor que é o caso de redimensionar a questão considerada central no momento de projetar o trabalho, buscando agora um enfoque mais compatível com o que pode mobilizá-las mais. Evidentemente, em uma proposta didática, qualquer que seja ela, há que se considerar, sim, o que instiga as crianças e, como temos enfatizado, é fundamental buscar aproximar o máximo possível o que pretendemos do que elas pretendem, mas isso não significa que o critério de seleção das propostas e dos conteúdos é o interesse delas. Se for necessário escolher, são os objetivos de ensino os que contam mais – e também por isso é preciso defini-los de forma cuidadosa.

8. Composição de um 2º índice, apresentação e discussão com as crianças

O que chamamos de 2º índice é resultado da reorganização do 1º, considerando todo o planejamento prévio do trabalho. Essa reorganização é importantíssima, porque a perspectiva é que o projeto ‘dê conta’ do que for previsto neste 2º índice, que funciona como uma referência para o monitoramento das crianças do que estão aprendendo e para avaliação do professor sobre o que foi planejado. A ideia é que elas analisem com o professor essa nova síntese dos conhecimentos a serem adquiridos e, nesse momento, vale a pena retomar inclusive a proposta de produto final pensada de início, para discutir coletivamente se está adequada ao agora previsto.

Um exemplo:

115

PROJETO ‘MARCOS DO SÉCULO XX’

2o Índice

O QUE VAMOS ESTUDAR

[Seleção pautada na questão central prevista para o projeto: Processos de permanência-mudança]

◦ Quais as principais invenções do Século XX não só no Brasil?◦ Quais as principais mudanças que aconteceram no século XX (transportes, construções, indústrias, profissões,

moda, moeda, costumes, artes, diversão, escola, rotina das crianças)?◦ Como e quando surgiu a escrita, fotografia, o teatro, o cinema, o rádio e a televisão?

◦ Por que surgiram as guerras?◦ Que acontecimentos políticos importantes aconteceram no Brasil?◦ O que foi o movimento hippie?

◦ Por que no começo do século as mulheres não saíam sozinhas?◦ Por que as mulheres magras eram consideradas feias?◦ No início do século já existia cesariana?

Esta é apenas uma possibilidade: se as perguntas das crianças fossem outras, se os objetivos do projeto fossem outros, se a questão central proposta fosse outra, o 2º índice teria outro formato. Os tópicos procuram ser suficientemente inclusores para abarcar os diferentes assuntos de interesse de toda a turma, porém, alguns, considerados principais em função dos objetivos, merecerão um tratamento mais investigativo, outros, secundários, um tratamento mais informativo. Não é possível abordar em igual profundidade todos os tópicos do 1º e do 2º índice, nem neste caso, nem nos projetos em geral, porque as crianças costumam demonstrar curiosidade sobre muitos assuntos.

9. Desenvolvimento do processo de pesquisa

Após essa fase de definição do que vai ser feito, em parte compartilhada com as crianças, a realização de um projeto desse tipo6 se caracteriza por três momentos que compõem todo o processo de pesquisa: investigação-análise-apresentação (ou, dito de outro modo, pesquisa-interpretação-socialização).

O primeiro momento é de exploração inicial do tema e do que a ele se relaciona; o segundo – de análise/interpretação – é de um certo distanciamento que permitirá avaliar o que já se conhece e, dependendo do que está em estudo, formular conclusões parciais; e o momento final é de compartilhar o que foi aprendido, as conclusões finais, as lições trazidas pelo projeto.

Cada uma dessas fases, ainda que em diferentes níveis, envolve planejamento, realização e avaliação.

a) Investigação/Pesquisa

É o momento de definir exatamente o que se quer descobrir/estudar/aprender, planejar como se vai proceder (identificação de fontes, previsão de tempo, formas de organização, levantamento de recursos e materiais necessários, priorização/sequenciação do que vai ser pesquisado...) e pôr em prática o plano, sempre avaliando o andamento das coisas para verificar se estão acontecendo de modo a favorecer a conquista dos conhecimentos que se deseja. Para tanto, o 2º índice e o registro dos combinados em relação aos demais aspectos são fundamentais.

Que recursos se pode usar nesta fase de pesquisa?

6 Como dissemos anteriormente, esta não é a única forma de organizar um projeto temático – e os projetos não-temáticos geralmente não se encaixam em um formato como este.

116Dentre os que seguem abaixo, aqueles que têm mais a ver com a natureza do assunto estudado e com o formato definido para o projeto:

◦ observação e registro do que se observou;◦ entrevista;◦ consulta em obras de referência (em materiais pré-selecionados pelo professor, em bibliotecas

ou na Internet);◦ outras formas de buscar informação, como experimento, visita, estudo do meio...

Esses e outros recursos permitem conhecer parcialmente o que há disponível sobre o tema estudado, o que já foi produzido e escrito, o que as pessoas que sabem a respeito têm a dizer. É o momento de ‘diálogo’ com as teorias, os saberes, e com ‘outros significativos’, ou seja com interlocutores tomados como referência para opinar ou informar sobre o assunto.

Algumas atividades que contribuem para o planejamento e subsídio à pesquisa que tem lugar nessa fase do projeto:

◦ elaboração de roteiro de atuação (isto é, o que se vai fazer, como, com quais recursos, em que sequência);

◦ definição dos tipos de instrumento mais adequados para obter e registrar informações: tabelas, diagramas, protocolos, esquema para anotações etc.

◦ leitura de instruções, discussão monitorada pelo professor e/ou produção coletiva de um rol de procedimentos necessários para pesquisar (em revistas, livros, enciclopédias, Internet, DVD/vídeos ou outros registros) e utilizar outros recursos, se for o caso: tomar depoimentos, entrevistar pessoas, observar, registrar, trabalhar em grupo sem monitoramento do adulto etc.

◦ discussão/definição de critérios para classificar, tabular, sistematizar informações, resultados, conclusões...

Essas atividades são necessárias, pois permitem que as crianças aprendam procedimentos essenciais em qualquer pesquisa, que geralmente não são ensinados na escola – uma enorme contradição. Essas são situações em que o professor deve atuar como parceiro mais experiente que orienta, monitora, problematiza, coordena a discussão e as conclusões das crianças: não tem sentido elaborar sozinho todos os instrumentos e propostas e apresentar tudo pronto à classe (para ‘ir mais depressa’ ou para ‘ficar melhor’), pois assim ninguém terá oportunidade de adquirir esses saberes que são importantes para toda a escolaridade, para a vida acadêmica e para a condição de pesquisador.

As próprias crianças podem produzir bons materiais documentais: para o estudo em um trabalho de campo com a finalidade de identificar mudanças ocorridas com o tempo na paisagem, por exemplo, se entre os documentos já pesquisados houver fotos, é interessante escolher uma ou duas como referência, para comparação entre o presente e o passado. Então o desafio será encontrar o mesmo ângulo de visão do fotógrafo autor da foto antiga, para tirar outra semelhante, de agora. Com as respectivas fotos em mãos, as duas paisagens podem ser então analisadas e comparadas, no próprio local ou na escola – uma forma importante de identificar, pelas imagens, as permanências e mudanças que aconteceram.

b) Análise/interpretação

Esse é o momento de avançar das constatações mais simples para procedimentos de maior complexidade: estabelecer relações, interpretar evidências, analisar um mesmo fenômeno a partir de diferentes pontos de vista, generalizar, elaborar conclusões e novas hipóteses, experimentar uma perspectiva globalizadora...

Apesar do processo de interpretação ir se constituindo enquanto a criança pesquisa (por se tratar de uma construção pessoal dela, como sujeito da própria aprendizagem), é preciso prever situações didáticas para discutir, sistematizar e socializar as interpretações ou conclusões parciais que a classe vai produzindo durante o projeto, que essas são formas de contribuir para a ampliação das possibilidades de análise de cada um.

117Nesse sentido, conforme a natureza do projeto e a idade das crianças, o uso de alguns instrumentos de sistematização deve ser conteúdo de ensino: lista de argumentos, tabela de dupla entrada, esquema, mapa conceitual e outros tipos de diagrama. Tomar o uso desses recursos como conteúdo não significa apenas ‘mostrar como eles são’, mas principalmente utilizá-los coletivamente com as crianças, familiarizá-las com os modos de proceder, construir com elas.

O fato é que o trabalho didático com procedimentos deve sempre começar pela familiarização das crianças. É fazendo esse tipo de atividade que elas vão compreendendo o que deve ser feito... A princípio coletivamente, com ajuda do professor, depois, com os colegas (de início ainda apoiados pelo professor) e somente depois sozinhas. Como já foi dito, é isso o que tem sido chamado de delegação progressiva de responsabilidade: à medida que as crianças vão se familiarizando com uma tarefa que não lhes é ainda conhecida, o professor vai passando da posição central para a de monitor – quando elas assumem gradualmente responsabilidade de realização da tarefa.

c) Apresentação/Socialização

Esse é um momento dos mais relevantes em um projeto porque é quando são socializados os saberes construídos, as respostas, os resultados obtidos para as questões pesquisadas.

Sempre que possível, devem ocorrer apresentações parciais durante o desenvolvimento do trabalho, ao invés de apenas uma apresentação final: isso dependerá das características e da extensão do projeto.

Nessas ocasiões, é preciso prever espaços para que as crianças, ao assistirem à apresentação dos colegas, possam perguntar, comentar e debater de forma organizada e no momento adequado, como é de se esperar em uma comunicação de trabalho, tal como ocorre também fora da escola. E, para tanto, será então o caso de prepará-las para procederem tal como a situação requer: para formular previamente questões sobre o assunto, perguntar o que suscitar dúvidas na hora da apresentação, fazer registros etc.

As atividades de apresentação podem ser variadas e a escolha de quais são mais pertinentes tem a ver com o tipo de assunto e de pesquisa e também com a idade das crianças e o que já conseguem fazer. Algumas delas: seminários, aulas, demonstrações práticas, apresentações comentadas de vídeo, dramatizações, relatos, simulações de programas de rádio/tevê, painéis...

Quanto aos recursos de apoio a essas atividades, podem ser vídeos, mapas, gráficos, obras de referência, cd rom ... e podem ser produzidos pelos próprios alunos – roteiro da fala, pauta de tópicos, cartazes ilustrativos, desenhos, gráficos, relatórios, explicações, esquema das conclusões ou da síntese final. Quanto se tem a possibilidade de usar o computador, esses recursos de apoio então se ampliam ainda mais.

Produto final

O que se convencionou chamar de produto final dos projetos está diretamente relacionado com esse movimento de ‘tornar público’ o aprendido, portanto, com a apresentação/socialização dos saberes. Mas a proposta é também combinar outro tipo de produto, ‘material’, uma vez que os ‘objetos concretos’ construídos, mostrados, compartilhados costumam produzir um efeito mais mobilizador nas crianças. Para cumprir com o papel de potencializar o interesse e o empenho delas, é claro, devem ser combinados desde o início do trabalho.

Sendo assim, usando os mesmos exemplos de projetos já apresentados, eis algumas ilustrações desse tipo:

TEMA DO PROJETO PRODUTO FINAL (possibilidades)

No Tempo da Vovó Mostra de objetos antigos enviados pelas famílias

Bichinhos de Jardim Terrário7

118Animais da Fauna Brasileira Minienciclopédia de animais

Biomas Brasileiros: Parte 1 - Mata Atlântica e Amazônia

Revista de Ecologia ou um miniatlas ilustrado

Civilizações Pré-colombianas Painel comparativo das características de maias, incas e astecas

Origem do Universo Caderno de Notas de um estudioso das teorias sobre o assunto

Marcos do Século XX Almanaque

A Semana de Arte Moderna Mostra à moda da Semana

UMA BREVE ILUSTRAÇÃO DOS TRÊS MOMENTOS

Com o propósito de debater experiências históricas e culturais de acesso à água, por exemplo, é possível tomar como ponto de partida a música ‘Lata d’água na cabeça' [Luís Antonio e J. Júnior], desenvolver atividades que coloquem em pauta as mudanças do acesso à água pela população e questões sobre o sistema de abastecimento de água encanada no local onde as crianças moram. Assim, o tema pode ser inicialmente discutido após ouvir a música, ler a letra, comentar o conteúdo e compartilhar os conhecimentos sobre o assunto.

Para aprofundar o trabalho, será o caso então de pesquisar, ler e debater textos que abordam a dificuldade de acesso à água em diferentes lugares; investigar como se deu o sistema de abastecimento de água do bairro onde as crianças moram; identificar antigas bicas, fontes, poços e colher lembranças dos pais, avós e antigos moradores; conversar sobre a cultura do desperdício que tem relação com o advento da água encanada...

E, para apresentar o que foi estudado, uma boa alternativa é montar exposição sobre a história da água no bairro, incluindo memórias, desenhos e fotos antigas e recentes sobre o sistema de abastecimento local.

10. Reflexão sobre o percurso e sobre os resultados

A metacognição não é um negócio complicado! É fazer um retorno sobre seu próprio processo de aprendizagem e interrogar, de alguma maneira externa, com a ajuda de seus pares, de seus mestres e dos seus suportes culturais necessários, a própria dinâmica da transferência de conhecimento. É uma maneira de trabalhar essa transferência deixando de estar no processo, mas ficando diante do processo. Um modo de separar o interior e o exterior, de passar pelo crivo da regulação coletiva e da verbalização racional a relação que se estabeleceu entre os conhecimentos que se aprendeu e o mundo no qual se vive. [...] “Não controlo tudo, é verdade. Porém, por meio de meu pensamento, elevo-me acima das situações escolares e das situações sociais ao mesmo tempo. Não domino completamente tudo isso e, sem dúvida, jamais dominarei, mas compreendo a relação mantida entre meus conhecimentos e minhas experiências. E faço do domínio dessa relação entre meus conhecimentos e minhas experiências um dos desafios essenciais de minha existência”.

Philippe Meirieu, 19968

O processo de reflexão sobre o percurso de aprendizagem (também chamado de metacognição ou reflexão metacognitiva) e sobre os resultados obtidos com a pesquisa pressupõe tomar consciência do que foi possível aprender em relação ao que se tinha projetado. Trata-se de um momento 7 Nesse caso, o terrário pode ser tanto o produto final, construído a partir de uma pesquisa justamente para poder montá-lo, como pode ser um dos principais recursos de apoio ao projeto, construído no início, para que as crianças possam observar o que acontece ao longo do tempo – então o produto final podem ser, por exemplo, um painel de fotos sobre os fenômenos observados.8 PERRENOUD, Philippe. Pedagogia diferenciada. Porto Alegre, Artmed, 1999.

119privilegiado de avaliação, tanto para as crianças como para o professor e, conforme a extensão e o tipo do projeto, pode ocorrer durante o trabalho e não somente ao final, o que, do ponto de vista didático, permitirá redirecionar os seus rumos se necessário e, do ponto de vista das crianças, monitorar o andamento das coisas em relação ao plano inicial.

Assim, nesse tipo de projeto, as situações de reflexão implicam retomar o que foi feito e aprendido tendo sempre como referência o 2º índice, para que as crianças possam comparar o que estava previsto com o que de fato se conseguiu estudar, verificar se há questões não respondidas e que vale a pena continuar estudando, analisar as razões que explicam porque foi ou não possível cumprir com a proposta combinada inicialmente. Esses procedimentos são conteúdos da maior importância no trabalho, porque nesta metodologia a perspectiva não é apenas estudar um tema, mas aprender a planejar, desenvolver e avaliar projetos de pesquisa. Claro que isso será muito diferente com alunos de quatro anos, de dez, de catorze ou dezoito. Mas a metodologia de base é a mesma em qualquer caso.

Seguem algumas propostas importantes:

◦ Elaboração coletiva de um 3º índice, que representa o que realmente se estudou, a ser incluído no diário de pesquisa.

◦ Avaliação da aprendizagem através de instrumentos/atividades que indiquem: o que as crianças aprenderam em relação aos diferentes tipos de conteúdo; a capacidade de utilizar os conhecimentos adquiridos; o tipo de relações que estabelecem; o tipo de generalizações que já conseguem fazer; como justificam respostas/resultados (se for o caso), dentre outros. Nesse caso, é preciso ter muito claro o que realmente vale a pena avaliar em relação à aprendizagem, e quais as melhores propostas para tanto, de modo a não perder tempo com atividades que não trazem nenhuma informação nova sobre os saberes das crianças.

A reflexão específica do professor, a compor o seu dossiê do projeto, implica uma avaliação crítica, por escrito, principalmente em relação aos seguintes pontos:

◦ qualidade da proposta como um todo – se de fato favoreceu a investigação, se mobilizou os alunos, se é adequada à faixa etária etc.;

◦ projeção de objetivos e conteúdos;◦ nível de aproximação/distanciamento entre 1º, 2º e 3º índices;◦ eventuais mudanças no percurso previstos e as respectivas razões;◦ questão central a que o projeto se propunha responder/investigar;◦ qualidade dos encaminhamentos nos diferentes momentos do trabalho;◦ qualidade da intervenção pedagógica;◦ estimativa e uso do tempo;◦ adequação dos recursos didáticos e materiais (vídeos, textos, imagens...);◦ eventuais/necessárias modificações para poder realizá-lo novamente◦ dificuldades etc.

Esses registros são importantíssimos não apenas para o professor que encaminhou o trabalho, mas para outros professores, que, muito mais do que conhecer os projetos desenvolvidos pelos colegas, poderão aprender, cada vez mais, a desenvolver projetos também. A produção de conhecimento pedagógico se dá exatamente dessa forma: a partir das propostas planejadas, desenvolvidas, avaliadas, refletidas, documentadas e socializadas.

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Considerações finais

O que me deu a ideia de escrever este livrinho foi uma mistura de cansaço e indignação. Sim, cansei-me de ver Júlia, minha filha mais velha, ficar em pânico ao chegar em casa dizendo que tem um ‘Trabalho de Pesquisa’ para fazer. Geralmente é um trabalho em grupo, e quando ela e os colegas se reúnem para fazê-lo, fico indignado com a atitude de um professor que não sente a menor piedade dos alunos e os submete a um estresse emocional injusto e desnecessário. Acabo me vendo obrigado, junto com minha mulher, a preencher o vazio que deveria ser ocupado pelo profissional a quem confiamos a tarefa de ensinar nossos filhos.Quando pergunto a Júlia e aos colegas qual foi realmente o ‘comando’ da professora, eles me mostram o caderno onde está anotado, laconicamente: ‘Trabalho de Pesquisa. Tema: X. Entregar até dia X’. E nada mais. É ou não é para a gente se indignar?

Marcos Bagno,1998

Tal como está dito no início deste roteiro, a metodologia de pesquisa aqui abordada não é a única possível e nem é compatível com certos tipos de projeto, a menos que passe por alguns ajustes. Entretanto, não será a faixa etária uma restrição para desenvolvê-la. Ainda que estejam relacionados exemplos de procedimentos, atividades e recursos que fazem mais sentido com alunos dos anos mais avançados, essa escolha foi intencional, pois é bem mais fácil ajustar as propostas para os menores, simplificando-as, do que o contrário.

Outro aspecto importante a destacar é que, nessa metodologia, cabem alternativas variadas: todas as crianças podem estudar os mesmos tópicos, pequenos grupos podem estudar diferentes tópicos e eventualmente as crianças podem desenvolver pesquisas paralelas de temas de interesse, como trabalho individual ou em parceria com um colega... Tudo depende de quem são as crianças, que experiência e repertório anterior elas têm, que interesses demonstram além do que será estudado por toda a turma, bem como os objetivos que se tem em relação à aprendizagem delas.

Por fim, uma breve reflexão sobre o modo como a pesquisa em geral é (mal) tratada na escola, especialmente nos anos mais avançados da escolaridade, cujos efeitos são apontados pelo linguista e pai indignado, Carlos Bagno9, na epígrafe acima. Tradicionalmente as escolas solicitam que os alunos ‘façam trabalhos’ sobre determinados temas, o que em geral exige pesquisa bibliográfica. Os objetivos desse tipo de solicitação variam bastante: há casos, por exemplo, em que isso é feito para que eles melhorem suas notas ou se ocupem em casa, estudando algum assunto...

A pesquisa, entretanto, envolve um conjunto de procedimentos cuja aprendizagem não decorre automaticamente do conhecimento sobre o que deve ser feito. Vejamos, por exemplo, alguns dos procedimentos envolvidos numa pesquisa bibliográfica em grupo:

EM RELAÇÃO AO TRABALHO DE GRUPO

◦ dividir tarefas;◦ trabalhar coordenadamente e em colaboração;◦ planejar e replanejar coletivamente o que deve ser feito.

EM RELAÇÃO À PESQUISA PROPRIAMENTE

◦ encontrar o material necessário ou as fontes principais;◦ elaborar critérios de relevância;◦ encontrado todo material, selecionar o que é relevante segundo os critérios;◦ re-selecionar as informações eliminando redundâncias;9 De tanto ver sua filha sofrer por falta de orientação, Marcos Bagno escreveu o livro Pesquisa na escola – O que é e como se faz. São Paulo: Edições Loyola. 1998.

121◦ escolher, entre dois ou mais materiais que tratem do mesmo assunto, qual o de melhor

qualidade etc.

EM RELAÇÃO À ESCRITA DE TEXTOS (quando for o caso)

◦ compor textos a partir de vários trechos encontrados sem perder a coerência;◦ fazer resumos, garantindo apenas o que é relevante e mantendo a lógica do texto, dentre

outros.

Como se vê, fazer pesquisa não é algo simples. E não deve ser à toa que a maioria dos estudantes sai da escola sem saber, a despeito de todos os trabalhos realizados e entregues... Por ser um aprendizado complexo, requer um tempo de construção e um ensino planejado; por ser um procedimento, só pode ser adquirido através da própria prática e da discussão sobre as dificuldades encontradas, buscando-se coletivamente soluções.

Assim, é fundamental trabalhar com pesquisa desde o início da escolaridade: a complexidade das propostas e a delegação de responsabilidade variam em cada ano, segundo o que é possível para as crianças. Dessa forma, na Educação Infantil e 1º ano, por exemplo, as crianças basicamente trazem material sobre o assunto estudado e o professor seleciona, enquanto no 5º, elas já poderão selecionar, ficando o professor com a tarefa de monitorar o trabalho – oferecendo ajuda em função das dificuldades que elas explicitam e dos problemas que percebe. Nesse sentido, é preciso incentivar as crianças a socializarem suas dificuldades porque a ajuda do professor só é possível quando ele sabe quais são elas.

A metodologia de projetos defendida neste texto tem como propósito não só desenvolver uma atitude favorável frente à pesquisa mas também procedimentos eficazes: de nada adianta gostar e não saber fazer. Se é importante um produto final de boa qualidade – nos casos em que, por exemplo, a pesquisa bibliográfica reverte para um trabalho escrito, suporte de um seminário – muito mais importante é que as crianças aprendam progressivamente a fazer suas pesquisas com autonomia e a trabalhar em grupo, quando a situação for essa. Afinal, como diz Marcos Bagno em seu livro, ensinar a aprender é criar possibilidades para que uma criança possa, com o tempo, chegar sozinha às fontes de conhecimento que estão à disposição da sociedade.

Por fim, não podemos deixar de considerar um aspecto da maior relevância nesse tipo de trabalho com projetos: trata-se de um dispositivo fundamental de formação dos professores. Porque essa proposta representa uma oportunidade ímpar para cada professor aprender o que pretende abordar com as crianças e não teve ainda a possibilidade de saber, não só sobre os temas e as formas de abordá-los, mas sobre os instrumentos mais pertinentes para sistematizar os dados produzidos pela pesquisa, como resposta às perguntas das crianças e à questão tomada como central do ponto de vista didático.

Desse modo, não seria demais afirmar que o principal produto que os projetos favorecem é a aprendizagem de alunos e professores, que vai muito mais além do que se pode observar nos produtos concretos apresentados ao final. Para que possamos chegar todos às fontes de conhecimento que estão aí à disposição da sociedade, mas nem sempre sabemos como nos servir delas.

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Documento elaborado de acordo com edital de nº 12123/2008 de 17/06/2008