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CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA N 7 - 1996

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PROCESSO MUSEOLGICO E EDUCAO: construindo um museu didtico-comunitrio.

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CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA N 7 - 1996 MARIA CLIA TEIXEIRA MOURA SANTOS

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PROCESSO MUSEOLGICO E EDUCAO: construindo um museu didtico-comunitrio.

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ESTE TRABALHO CONTOU COM O APOIO DAS SEGUINTES INSTITUIES: SECRETARIA DE EDUCAO DO ESTADO DA BAHIA: INSTITUTO ANSIO TEIXEIRA: Diretora: Profa Silvia Ganem Assmar. Gerncia de Projetos e Experimentaes:Maria Jos Mariano Cortizo. Vera Mendes da Costa Neves. Glria Maria do Carmo R. de Oliveira. COLGIO ESTADUAL GOVERNADOR LOMANTO JNIOR: Diretora: Profa. Alba Pedreira Lapa. UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA: PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM EDUCAO: Coordenador: Prof. Dr. Robert E. Verhine. DEPARTAMENTO DE MUSEOLOGIA: Chefe do Departamento: Prof. Antnio Oliveira Rios. COLEGIADO DO CURSO DE MUSEOLOGIA: Coordenadora: Profa. Rosana Nascimento.

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A William, Vinicius e Isadora.

Aos professores, alunos e funcionrios do Colgio Estadual Governador Lomanto Jnior, aos moradores do Bairro de Itapu, aos alunos e professores do Curso de Museologia da UFBA, que atuaram neste processo.

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SUMRIO

CAPTULO 1 ........................................................................................................... INTRODUO.................................................................................................... CAPTULO 2 ........................................................................................................... POLTICA CULTURAL E MUSEUS NO BRASIL: buscando desvelar e entender para estabelecer um novo ponto de partida. ............................................ 2.1 Apresentao.................................................................................................... 2.2 Uma Abordagem Contextual ........................................................................... 2.3 Buscando Uma Identidade Nacional: a organizao em sistemas.................................................................................................................. 2.4 O Papel dos Museus na Construo de uma Identidade Nacional ............................................................................................................... 2.5 Da Identidade Nacional s Vrias Identidades. ...............................................

CAPTULO 3 ........................................................................................................... A CONSTRUO DO CONHECIMENTO NA MUSEOLOGIA: reconstruindo um percurso histrico e demarcando posies................................ 3.1 Apresentao.................................................................................................... 3.2 Reconstituindo Um Percurso Histrico. .......................................................... 3.3 Definindo uma Metodologia para a Museologia.............................................. 3.4 Demarcando Posies ...................................................................................... CAPTULO 4 ........................................................................................................... CONSTRUINDO UM PROCESSO METODOLGICO ................................ 4.1 Optando pela Metodologia da Pesquisa-Ao: ................................................ 4.2 Justificando uma Escolha:................................................................................ 4.3 Concepo Bsica Inicial.................................................................................

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CAPTULO 5 ........................................................................................................... DO CAMINHO PENSADO E PROPOSTO AOS CAMINHOS PERCORRIDOS: processos de ao e reflexo ........................... 5.1 Mobilizando o Colgio, Integrando o Curso de Museologia, Conquistando Espao, Buscando Apoio Financeiro e Institucional .................................................................................................. 5.1.1 A Exposio .................................................................................................. 5.2 Treinamento, Desenvolvimento e Capacitao da Equipe Ncleo Bsico do Museu ........................................................................ 5.2.1 O workshop ................................................................................................... 5.2.2 Seminrios Sobre Temas e Pesquisas Relacionados ao Projeto ................................................................................................................... 5.3. Discutindo e Definindo a Proposta Documental............................................. 5.4 Realizando o Seminrio de Tese no Colgio Estadual Governador Lomanto Jnior........................................................................ o 5.5 Participando do Estgio Curricular/93 com o 3 Ano do Curso de Magistrio. ....................................................................................................... 5.5.1 Seminrio Interno ......................................................................................... 5.6 Analisando as Aes de 1993 e Estabelecendo as Metas para 1994. ...................................................................................................................... 5.7 Motivando os Professores, Propondo Aes Integradas.................................. 5.8 Integrando as Ex-Alunas do Magistrio ao Ncleo Bsico do Museu : preparando o seminrio sobre o estgio curricular. ........................ 5.8.1 Montando a Exposio : O Estgio Curricular/94 .................................. 5.8.2 Realizando o Seminrio Sobre o Estgio Curricular .................................. 5.8.3 Divulgando a Exposio sobre o Estgio Curricular e as Aes do Museu em 1993........................................................................... 5.9 Narrando a Formao do Ncleo Bsico ........................................................ 5.10 Planejando e Executando Aes com os Professores das Diversas reas de Ensino........................................................................... 5.10.1 Atividades com o 1o Grau ........................................................................... 5.10.2 Dando Continuidade s Aes Com o Curso de Magistrio/1994.....................................................................................................

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5. 11 Ampliando o Acervo e o Espao Fsico........................................................ 5.12 Organizando o MDCI ................................................................................... 5.13 Ampliando a Ao Documental e o uso do Acervo..................................... 5.14 Definindo e Executando Procedimentos de Conservao.............................. 5.15 Institucionalizando o museu .......................................................................... 5.16 Divulgando o MDCI ...................................................................................... 5.17 Analisando as Aes/94 e Estabelecendo as Metas Para 95 .......................... CAPTULO 6 ........................................................................................................... PROCESSO MUSEOLGICO E EDUCAO: contribuies e perspectivas............................................................................................................ 7 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ..................................................................... Error! Bookmark not defined.

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CAPTULO 1

INTRODUO

As aes que temos desenvolvido nos diversos programas que vimos executando com professores e estudantes de 1o e 2o graus e com os estudantes do Curso de Museologia da UFBA tm-nos conduzido a vrias reflexes sobre a preservao do nosso patrimnio cultural e seu relacionamento com o processo educacional. Constatamos de perto que no tem havido uma integrao entre educao e cultura no sentido de realizar, atravs da prtica pedaggica no cotidiano da escola, aes efetivas objetivando utilizar o patrimnio cultural como um referencial capaz de suscitar a criatividade, o questionamento, a reflexo e a busca de um novo fazer. Vrios so os fatores que tm contribudo para essa desintegrao, tanto na rea cultural como na rea educacional. No campo da poltica cultural e preservacionista adotada no Pas, at o presente momento, as aes tm se dado de forma imposta, de cima para baixo, sendo o cidado excludo do processo de preservao do seu patrimnio; a seleo dos bens a serem preservados tem sido efetivada dando-se nfase aos bens culturais produzidos pela Igreja Catlica e pela aristocracia rural, desprezando-se toda a produo cultural de mbito antropolgico e social e a participao efetiva das comunidades na tentativa conjunta de preservar todos os signos culturais. Jeudy (1990, p.2) salienta que: ... a busca das identidades culturais, em vrios pases do mundo, acaba motivando e dinamizando as prticas e polticas de conservao. Desde ento, conservar no quer dizer preservar ou

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CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA N 7 - 1996 salvaguardar, mas primeiramente restituir, reabilitar ou reapropriar-se. A prpria vida social e efetiva parece ser cada vez mais o objeto da conservao.

A poltica de preservao de pedra e cal (monumentos arquitetnicos), adotada no Brasil ao longo de todos esses anos, tem concorrido para a adoo de uma viso distorcida do que seja o nosso patrimnio, contribuindo para que deixemos de reconhecer como bem cultural toda uma gama de bens produzidos pelas camadas populares. Alm dessa viso distorcida, que tem influenciado na seleo dos acervos, a preservao tem sido realizada de forma saudosista, romntica e extica. algo que est relacionado a um passado distante e no nossa realidade prxima. Em geral, todo esse acervo preservado - monumentos, stios arqueolgicos e histricos, colees expostas nos museus etc. - apresentado como a produo de um passado remoto, que no diz respeito vida no momento presente. A utilizao do referencial do passado, como embasamento para uma reflexo crtica e entendimento do presente, explorando todo o seu potencial com o objetivo de provocar as mudanas necessrias, no tem sido uma prtica utilizada. A poltica cultural brasileira no s tem incorporado como reproduzido um conjunto amplo de processos polticos e culturais, refletindo seus antagonismos. Mesmo quando surgem frentes de renovao cultural, estas esto sujeitas s frentes de renovao poltica. Mota (1990, p. 285), destaca que: ... a um momento de mobilizao da cultura popular que apontava para um processo de socializao correspondeu a montagem de um aparato de alto poder repressivo que, adaptando as tcnicas da experincia frustrada criou uma rede ampla de comunicao em que o potencial crtico da cultura popular foi neutralizado e mobilizado para os quadros

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da massificao - realizada agora, em escala massiva, sombra da ideologia da cultura brasileira. Observa-se que, recentemente, a incorporao de objetivos que visam participao comunitria nas instituies educativas e culturais tem sido constante. Entretanto, na prtica, essas iniciativas no tm passado de mais uma forma de controlar, apesar do Estado estar sempre se colocando como elemento neutro. Segundo Ortiz (1985b, p.125): ... a direo para a qual aponta o desenvolvimento do capitalismo brasileiro nos leva a pensar que ao estatal e privada caminhariam no sentido da instaurao de uma hegemonia cultural. As telenovelas, assim como o consumo de produtos distribudos e financiados pelo Estado, contribuem para que as relaes de poder se reproduzam no interior da prpria cultura. Da seleo inadequada e imposta e do uso inadequado dos acervos preservados, assistimos agora expanso do poderio econmico dos meios de comunicao, que tm reduzido a cultura popular em manifestaes para turista ver. Comentando sobre a expanso e a penetrao dos meios de comunicao nas classes populares, Bosi (1987, p.126) destaca que: A cultura de massa entra na casa do caboclo e do trabalhador da periferia ocupando-lhe as horas de lazer em que poderia desenvolver uma forma criativa de auto-expresso: eis o seu primeiro tento. Em outro plano, a cultura de massa aproveita-se dos aspectos diferenciados da vida popular e os explora sob a categoria de reportagem popularesca e de turismo. O vampirismo assim duplo e crescente: destri-se por dentro o tempo prprio da cultura popular e exibe-se

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CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA N 7 - 1996 para consumo do telespectador o que restou desse tempo, no artesanato, nas festas, nos ritos.

Assim como a preservao no tem sido efetivada com o objetivo de transformar a realidade, a partir das reflexes dos dados do passado, a educao, em geral, tambm tem sido conduzida para o conformismo, para a conduo de currculos impostos de cima para baixo, com contedos dissociados da realidade em que as escolas esto inseridas, praticando-se a erudio em aulas expositivas, nas quais o professor deposita o seu conhecimento, valorizando muito mais a memria do que a inteligncia. A burocratizao, cada vez mais praticada e imposta aos educadores, faz com que os mesmos fiquem distante da escolha dos contedos que devero ser ministrados, da avaliao da prtica pedaggica por eles exercida e da anlise do papel que a escola exerce na sociedade. A relao entre a burocratizao da escola e a estruturao dos conhecimentos foi bem explicitada por Wake (1988, p.16), quando registra que: As maiores exigncias colocadas sobre as estruturas do conhecimento pela escola burocratizada so: que o conhecimento seja dividido em componentes ou em componentes relativamente limitados; que as unidades de conhecimento sejam ordenadas em seqncia; que o conhecimento seja transmissvel de uma pessoa a outra por meios convencionais de comunicao; que o sucesso na aquisio de parte, se no de todo conhecimento, seja passvel de registro em uma forma quantificvel; que o conhecimento seja objetivado no sentido de ter uma existncia independente de suas origens humanas; que o conhecimento seja estratificado em vrios nveis de status ou prestgio; que o conhecimento baseado na experincia concreta seja tratado como de menor status, mas que o conhecimento expresso em princpios

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abstratos e generalizados seja, considerado como tendo alto status. A escola burocratizada tem ignorado os problemas relacionados com as especificidades culturais, a anlise dos professores e a histria de vida dos seus alunos. Da a grande dificuldade de se tentar, na prtica, uma ao que no esteja relacionada com o modelo estabelecido. A anlise da realidade educativo-cultural no Brasil deve-nos conduzir a uma ao transformadora da realidade, pois, conforme destaca Severino (1986, p.62): O acesso ao saber, aos bens culturais em geral, de fundamental importncia para as classes subalternas. Ele lhes dar instrumentos e recursos de luta contra a dominao. Por isso, a escola pblica, aberta e igualitria, uma necessidade para essas classes, mesmo enquanto estiverem organizadas e orientadas pelas classes dominantes hegemnicas. Estas reflexes tm-nos levado a acreditar, cada vez mais, que a relao entre museu e educao intrnseca, uma vez que a instituio museu no tem como fim ltimo apenas o armazenamento e a conservao, mas, sobretudo, o entendimento e o uso do acervo preservado pela sociedade para que, atravs da memria preservada, seja entendida e modificada a realidade do presente. Nesse sentido, a prpria concepo do museu educativa, pois o seu objetivo maior ser contribuir para o exerccio da cidadania, colaborando para que o cidado possa apropriar-se do seu patrimnio e preserv-lo, assim ele dever ser a base para toda a transformao que vir no processo de construo e reconstruo da sociedade, sem a qual esse novo fazer ser construdo de forma alienante. necessrio, entretanto, chamar a ateno para o fato de que, no Brasil, so poucas as experincias no campo museolgico voltadas para o registro do fazer cultural de forma mais abrangente,

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envolvendo os diversos segmentos da sociedade, preocupando-se em assinalar as mudanas e as contradies. Ainda no conseguimos soltar as amarras que nos mantm atados ao colecionismo, aceitao passiva e submissa de formas e coisas de um passado que no relacionado com a vida no presente. A transformao desejada, a nosso ver, passa pelo questionamento do modelo de sociedade que possumos, entendendo que a anlise das relaes entre determinantes sociais e a atuao dos museus no nos devem conduzir ao imobilismo, mas devem-nos incentivar a superar as deficincias. Neste sentido, importante considerar que, na nsia de buscar uma prtica mais participativa, comprometida com o desenvolvimento social e com a transformao, preciso evitar o perigo de usar a comunidade como cobaia para simples coleta de informao e para a pesquisa que se esgota em si mesma. A conscincia de que devemos buscar esse novo fazer museolgico deve-nos motivar a sair do imobilismo, a construir a nossa prtica e a registr-la de forma sistemtica, para que possamos democratizar as informaes e fornecer dados coletados em nossa realidade, pois a bibliografia existente escassa e contempla o modelo de museu tradicional. Torna-se necessrio, portanto, que muselogos e educadores continuem planejando e executando aes integradas, visando a utilizao dos bens culturais como instrumento para o entendimento da vida no passado e no momento presente, destacando que indispensvel a ao articulada com as demais prticas sociais globais, dando prioridade participao conjunta. Acreditamos que os caminhos sero apontados na medida que nos distanciarmos mais dos nossos gabinetes e nos aproximarmos mais da vida cotidiana fora do museu e do espao da Universidade. Este tem sido um fato constatado nos programas de ao cultural por ns desenvolvidos, nos quais o crescimento tem se dado atravs do dilogo e da integrao com os diversos grupos com que temos trabalhado, o que justifica continuar atuando nesta linha.

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Temos dirigido as nossas aes no Curso de Museologia da Universidade Federal da Bahia para uma prtica efetiva, em que professores e estudantes de 1o, 2o e 3o graus tm atuado de forma integrada, tornando vivel a prtica do ensino e da aprendizagem, por meio da observao e da anlise de aspectos importantes do nosso patrimnio cultural, relacionando-o com a vida no presente e entendendo-o como produto do homem, sujeito da Histria e, portanto, como resultado das relaes sociais e polticas. Aps termos atuado durante dois anos e meio no Colgio Estadual Azevedo Fernandes, situado no Centro Histrico da Cidade do Salvador, fomos convidados pelo Instituto Ansio Teixeira a desenvolver projeto semelhante no Colgio Euricles de Matos, situado no Bairro do Rio Vermelho, na Cidade do Salvador. O projeto sofreu adaptaes para atender realidade dos alunos, dos professores e da comunidade local. Entretanto, as aes desenvolvidas entre os museus e as escolas, bem como os projetos por ns desenvolvidos, na maioria das vezes, no passvam de eventos espordicos, em que professores e alunos participam de forma pouco comprometida e, no raro, como meros observadores. No momento presente, com base na experincia vivida na execuo dos diversos projetos acima referidos, constatamos que era de fundamental importncia trabalhar a formao do professor para que este viesse a ser um agente ativo, no sentido de usar a memria preservada, testemunho da Histria, entendida como forma de existncia social nos seus diversos aspectos - econmico, poltico e cultural -, bem como o seu processo de transformao, contribuindo, deste modo, para a formao dos cidados. Por outro lado, era necessrio continuar repensando os contedos programticos das diversas disciplinas oferecidas no ensino bsico, procurando resgatar o acervo cultural dos estudantes e das comunidades onde as escolas esto inseridas, proporcionando a oportunidade para que o jovem, desde a sua formao, perceba o sentido da preservao e da identidade cultural. Como esperar que a comunidade seja responsvel pelo seu patrimnio se desconhece o seu contedo, o seu valor e a

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relao desse patrimnio com a sua histria de vida no passado e no presente? Em relao ao Curso de Museologia da UFBA, era necessrio realizar uma prtica efetiva, capaz de proporcionar aos alunos e professores a oportunidade de vivenciar a construo de um novo fazer museolgico, com base na apropriao do patrimnio cultural, contribuindo, assim, para que a identidade seja vivida na pluralidade e na dinmica do processo social entendendo-se que o patrimnio cultural no deve ser uma aquisio por parte de um organismo, mas sim uma apropriao social. Essa nova postura iria permitir tambm a execuo de atividades com temas e acervos at ento pouco trabalhados, exercitando novos mtodos e assimilando novos conceitos. Infelizmente, a Museologia que vem sendo aplicada na maioria das instituies museais do Pas, como na Cidade do Salvador, no tem permitido avanos neste sentido, o que dificulta o entendimento por parte dos alunos, por no existirem exemplos concretos que possam servir de parmetros, no momento em que so colocadas, em sala de aula, as reflexes tericas que embasam a necessidade de evoluo do processo museolgico. Compreendendo que no podemos dissociar a atuao do professor universitrio de uma prtica efetiva na comunidade e acreditando que essa prtica s se concretiza no momento em que professor, aluno e grupos comunitrios passam a atuar de forma integrada e participativa, questionando, construindo e analisando conjuntamente, buscamos realizar uma tese de doutorado, que permitisse a realizao de uma atuao integrada entre o Curso de Museologia, Doutorado em Educao da UFBA, Secretaria de Educao-Instituto Ansio Teixeira, 10 Grau e Curso de Magistrio do Colgio Estadual Governador Lomanto Jnior e dos moradores do Bairro de Itapu, pretendendo alcanar os seguintes objetivos: a) integrar a Universidade Federal da Bahia - Curso de Museologia e Doutorado em Educao - comunidade na qual est inserida, tornando-a centro de ao-reflexo, contribuindo efetivamente para a produo do conhecimento e,

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conseqentemente, para o enriquecimento do processo museolgico e para uma nova prxis pedaggica; b) repensar os contedos programticos, o material didtico utilizado e as atividades pedaggicas, tomando como referencial o acervo cultural dos estudantes, professores e funcionrios do Colgio Estadual Governador Lomanto Jnior e dos membros da comunidade do Bairro de Itapu envolvidos no projeto, buscando o entendimento e a reflexo sobre o patrimnio cultural, dentro da dinmica do processo social; tornar possvel a utilizao dos bens culturais e da memria social local para a compreenso do processo de surgimento dos acontecimentos, no como evento, mas incorporada prtica pedaggica e ao fazer cotidiano da escola; proporcionar ao estudante de Museologia a oportunidade de vivenciar uma nova prtica museolgica, trabalhando a memria social, seu registro, a interpretao e a utilizao consciente por parte daqueles que a produzem, por meio de uma ao integrada entre os tcnicos e os sujeitos envolvidos no processo; implantar um museu didtico-comunitrio no Colgio Estadual Governador Lomanto Jnior, desenvolvendo uma ao conjunta com professores, alunos, funcionrios e membros da comunidade envolvidos no processo e de estagirios e professores do Curso de Museologia e demais grupos interdisciplinares que viessem a compor a equipe executora do projeto.

c)

d)

e)

A presente publicao apresenta todo o processo construdo ao longo do nosso caminhar, no Doutorado em Educao, resultado das constantes reflexes realizadas, a partir da relao teoria-prtica. Nos captulos 2 e 3 apresentamos uma anlise sobre a poltica

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cultural e a atuao dos museus no Brasil, e uma abordagem sobre a construodo conhecimento na museologia, situando-a em uma anlise de processo; portanto, em constante transformao. Essas reflexes forneceram a base necessria para o desenvolvimento do processo metodolgico, explicitado no captulo 4 e para a realizao da ao com a participao dos demais membros atuantes no processo, por mim considerados como coautores na construo do Museu Didtico-Comunitrio de Itapu, cujo desenvolvimento narrado no captulo 5. Por fim, no captulo 6, destacamos os resultados das reflexes realizadas ao longo do caminhar e que consideramos possam contribuir para a construo do conhecimento nas reas da museologia e da educao, podendo auxiliar, tambm, na estruturao e reestruturao de Cursos de Museologia e de Pedagogia, na atuao dos museus e das escolas, melhorando, consequentemente, os processos de ensino e da aprendizagem, nos diversos nveis de ensino.

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CAPTULO 2

POLTICA CULTURAL E MUSEUS NO BRASIL: tentando desvelar e entender para estabelecer um novo ponto de partida.

A reelaborao da memria se d no presente e para responder a solicitao do presente. do presente, sim, que a rememorao recebe incentivo, tanto quanto as condies para se efetivar. Ulpiano Meneses (1992, p. 3)

2.1 Apresentao No presente tpico, enfocaremos o tema poltica cultural com o objetivo de ampliar a discusso em torno da relao MUSEU X ESTADO, tentando apontar alguns indicadores que caracterizam a poltica cultural no Brasil. Nesse contexto, os museus se inserem como suportes significativos na tentativa de construo de uma identidade nacional. Assim, para o desenvolvimento do tema, optamos por apresentar, inicialmente, uma abordagem contextual, situando-o no interior de uma concepo monista, de uma razo absolutizadora e no surgimento do Estado Nacional Moderno. Em seguida, procuramos

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pontuar algumas aes levadas a efeito no bojo da poltica cultural adotada, no Pas, em vrios momentos, aes estas pautadas em uma concepo de cultura de carter unitrio e globalizador que apontam para a busca de uma identidade nacional. Finalmente, tentamos situar os museus no contexto da poltica oficial de cultura do Pas, destacando algumas aes documentadas em atos oficiais, bem como registros de profissionais da rea, no intuito de buscar indicadores que possam identificar prticas e propostas museolgicas reveladoras de aes que se baseiam em uma concepo de memria e de tradio, como um corpo consolidado de crenas, normas e valores definidos no passado e que funcionam, para o Estado, como um suporte necessrio para sua afirmao. Com esta abordagem ampla, no pretendemos falar em nome do todo social. Como afirma Morais (1989, p.13), no h discurso demirgico sobre a realidade; tudo bem humano e relativizvel. O que pretendemos com a anlise aqui realizada alcanar melhor compreenso da realidade relacionada com nosso campo de atuao e, situando-a no contexto das demais prticas sociais globais, tornar as nossas aes mais claras - compreender, para estabelecer um novo ponto de partida, pois acreditamos que na rea da poltica oficial de cultura no Brasil, h espaos para reproduo e produo. 2.2 Uma Abordagem Contextual A anlise sobre a Poltica Oficial de Cultura no Brasil e seus espaos de reproduo e produo, talvez no seja possvel de ser efetuada sem uma abordagem mais ampla que a situe no interior de uma concepo monista - de uma razo absolutizadora, que visa a substituio da multiplicidade da doxa pela unidade da cincia da episteme - e no surgimento do Estado Nacional Moderno associado idia representativa de estado do bem comum, neutro em relao s classes, mediador dos conflitos e civilizador dos instintos agressivos e gananciosos dos homens. Descobrir a unidade por trs da multiplicidade fenomnica; dissolver a pluralidade inerente ao sensvel e s opinies numa

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soberana Unidade, estabelecida pela viso certeira e integradora da razo; o logos filosfico seria, ento, fundamentalmente ligador, unificador - objetivo do racionalismo clssico, perseguido por Descartes e descrito por Pessanha (1987, p.61): Como conhecimento absolutamente verdadeiro, indubitvel e universal, a respeito de tudo que pudesse ser perfeitamente enquadrado pela tica de uma razo fatalmente absolutizadora, posto que Razo Absoluta, razo do Absoluto, viso coincidente com o Olhar Eterno (de Deus). Fora desse territrio de necessrio consenso entre todos os espritos aclarados pela cincia nica, ficaria o sombrio reino das impresses instveis e inconsistentes, das idias falsas e obscuras, da no-verdade. Tentando elucidar a postura da histria da filosofia ocidental que, freqentemente, tem como base a colocao de verdades absolutas, Perelman (citado por Pessanha, 1987, p.70) destaca o papel desempenhado pelo monotesmo judaico-cristo na formao da conscincia ocidental, encorajando o monismo axiolgico no que concerne aos valores, notadamente no campo da tica, enfatizando, tambm, a sua adoo nos campos metodolgico e sociolgico. No campo metodolgico, destaca a existncia de um nico mtodo a ser seguido para se atingir a verdade - o mtodo demonstrativo dos matemticos, que deveria fornecer, em todas as reas do conhecimento, o mesmo tipo de certeza que nos proporcionado pelo conhecimento matemtico. Em relao sua adoo no campo sociolgico, ressalta o monismo sociolgico que encara as relaes entre indivduos e sociedade semelhana de suas relaes com um Deus nico, como em Durkheim, e destaca: ... essas vrias faces do monismo ontolgico, axiolgico, metodolgico, sociolgico apresentam-se em grande fora no campo das idias

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CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA N 7 - 1996 filosficas, no apenas pelo respaldo teolgico do monotesmo, mas tambm pela vantagem que indiscutivelmente oferecem: A vantagem do monismo fornecer, em cada campo, uma concepo sistematizada e racionalizada do universo, sob todos os aspectos, permitindo encontrar uma soluo nica e verdadeira para todos os conflitos de opinies e todas as divergncias.

necessrio ressaltar os inconvenientes destacados por Perelman no que concerne adoo do monismo, sobretudo porque so bastante esclarecedores em relao ao tema que estamos discutindo neste captulo, ou seja: Poltica Cultural e Museus no Brasil. O inconveniente das ideologias monistas de favorecer um reducionismo por vezes dificilmente tolervel. Quando no chegam a fazer prevalecer seu ponto de vista, podem justificar - em nome de Deus, da razo, da verdade, do interesse do Estado ou do partido o recurso coao, ao uso da fora em relao aos recalcitrantes. Aqueles que resistem deveriam ser reeducados e, se no se deixam convencer, devero ser punidos por sua obstinao ou por sua m vontade. Deve-se relacionar o monismo ao do Estado para compreender a sua atuao nos mbitos da cultura e da educao no Brasil, entretanto, necessrio se faz que o Estado Brasileiro seja enfocado a partir de alguns vetores que foram fundamentais para a sua constituio, entendendo-o no apenas como um conceito, mas como fenmeno histrico, resultado de situaes especficas e mutveis. Neves (1987, p.22) destaca que o absolutismo correspondeu montagem e ao entrosamento das engrenagens que caracterizam o Estado contemporneo. Salienta que as idias mercantilistas

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passaram a intervir na produo, com o objetivo de reforar o prprio poder. Adotando uma legislao complexa, e s vezes catica, procurou-se ordenar a sociedade de acordo com certos princpios e valores. O poder deixou de ser encarado como o guardio de uma ordem imutvel, estabelecida transcendentemente, para ser considerado o demiurgo de um mundo novo, medida e semelhana de um homem, a quem cumpria dar luz. O referido autor salienta que: ... esse recuo da tradio face liberdade de pensamento, gerava uma pulverizao de valores e comportamentos, que comprometia as pretenses do Estado em erigir-se como rbitro da sociedade (Neves, 1987, p.22). Citando Fuest e Ozonf, Neves destaca que a lei deve ser inculcada, apreendida, interiorizada para tornar-se efetiva. Esclarece que o absolutismo ilustrado, no sc. XVIII, trouxe, como grande novidade, o aproveitamento dos mecanismos de catequizao da Igreja em seu prprio proveito. Nesse perodo, a preocupao com a ... escola e com a cultura escrita significou o reconhecimento do papel que ambas poderiam desempenhar, no sentido de uniformizar contingentes de indivduos, dotando-os de um conjunto de valores e normas afinados com os interesses dominantes na condio do Estado, sob a forma de um pensamento secular sobre o Homem e a Sociedade; sob a forma de uma ideologia, que gradualmente integrasse aqueles setores sociais, cuja posio e atitudes houvessem libertado da liturgia de uma tradio transcendente, ao novo mundo imanente das leis humanas (Neves, 1987, p.22).

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A Revoluo Francesa traz uma concepo laicizada do poder. O que caracterizava o povo-nao era o fato de que ele representava o interesse comum contra os privilgios do Antigo Regime. Assim, o significado mais freqente e mais forte desta concepo equiparava o povo ao Estado e atribua nao a caracterstica de um ente uno e indivisvel, por ser constituda pelo corpo de cidados que tinham no Estado sua expresso poltica (Cunha, 1992, p.32). Comentando sobre a ao da representao moderna de Estado, Chau (1990, p.6) diz que, se fizermos um pequeno retorno histria, verificaremos que no houve uma laicizao da poltica, mas apenas um deslocamento do lugar ocupado pela imagem de Deus como poder uno e transcendente: Deus baixou do cu terra, abandonou conventos e plpitos e foi alojar-se numa imagem nova, isto , no Estado. No quero com isso referir-me ao direito divino dos reis. Refiro-me representao moderna do Estado como poder uno, separado, homogneo e dotado de fora para unificar, pelo menos de direito, uma sociedade cuja natureza prpria a diviso de classes. a esta figura do Estado que designo como nova morada de Deus. Abordando as dificuldades encontradas pelo Estado moderno em conciliar em uma mesma e nica ideologia valores capazes de reger o comportamento de uma populao que, alm de suas individualidades, se encontrava dividida por tradies locais diversas, por situaes sociais diferenciadas, por interesses distintos, seno antagnicos, como era o caso dos Estados Ocidentais, Neves (1987, p.23) destaca que a soluo encontrada mantm algumas semelhanas com as prticas desenvolvidas pelos Jesutas em seus colgios para formar as elites do Antigo Regime. Citando G. Snyders, enfatiza que as doses macias de cultura clssica a ministradas destinavam-se a transportar o aluno, j previamente

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isolado da realidade pelo prprio colgio, para o mundo de uma antiguidade idealizada, cujos discursos falavam precisamente a lngua dos valores e normas que os inacianos pretendiam transmitir. O autor destaca que, no sc. XIX, foi a nao que ocupou o lugar da Antiguidade dos Jesutas, e d nfase ao papel, obra dos historiadores que, ao revelarem os gestos dos antepassados, dotavam o passado de um sentido capaz de forjar aquelas solidariedades que se mostravam impossveis no presente. E atribui esse papel ao historiador, por duas razes: de um lado, os feitos memorveis do passado no podiam ser vividos, mas apenas imaginados e, por conseguinte, reconstitudos semelhana da viso de mundo do prprio historiador; de outro, a Histria, agora plenamente secularizada, dispunha, a partir dos philosophes, de reconhecimento social e, a partir de Ranke, de um mtodo com a possibilidade de equipar-la, em presumida segurana dos resultados, ao novo modelo vigente de conhecimento, ou seja, s cincias fsicas. Comentando sobre a eficcia das formas nacionais de organizao das sociedades humanas, Cunha (1992, p.34) destaca dois aspectos fundamentais: o primeiro diz respeito aos mecanismos da economia, existncia de Estados com finanas pblicas e monoplio da moeda - portanto, atividades polticas e fsicas. Salienta que ... era mais que um dado da realidade, uma contingncia inevitvel e desejada. A existncia de naes autnomas era um fenmeno essencialmente econmico: o Estado garantia, afinal de contas, a segurana da propriedade e dos negcios. nao implicou uma economia nacional e sua sistemtica promoo pelo Estado, alavanca da acumulao de capitais e condio de sua defesa.

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Outro aspecto significativo, relacionado ao tema que estamos discutindo, enfatizado por Cunha, quando destaca que argumentos como a etnicidade, a lngua ou a Histria foram utilizados para fundamentar as ideologias nacionais, e que era necessrio convencer disso homens e mulheres que constituam esse povo. Hobsbawm (citado por Cunha, 1992, p.34) intitula esse processo de a inveno das tradies e o descreve como um processo de formalizao e ritualizao, caracterizado por referir-se ao passado, mesmo que apenas pela imposio da repetio. Nesse contexto, com o objetivo de construir uma identidade e uma coeso nacional, foi realizado um grande investimento simblico, procurando-se construir uma idia de nao acima das diferenas e das diversidades. Os smbolos como bandeiras, hinos, monumentos de carter oficial ou extra-oficial, so exemplos desse esforo. Cunha (1992, p.34) destaca que: A construo de uma memria do Estado e de uma historiografia centrada na idia de nacionalidade engendram uma viso do passado calcada em grandes vultos e acontecimentos encadeados de forma a fazer da histria uma biografia nacional em seus temas, em suas nfases, em seus recortes. As naes que se vestem com a roupagem da modernidade e do progresso necessitam aparente paradoxo - de legitimar-se atravs de um passado no qual encontrariam suas razes e sua justificao. Inculcam padres e valores, justificam a autoridade e o poder atravs destas prticas simblicas que adquirem carter de compulsoriedade: a histria aprendida desde os bancos escolares, as cerimnias pblicas e os costumes cvicos so algo de que dificilmente se pode escapar. Podemos, assim, inferir que a questo nacional envolve a cultura sob vrios aspectos e, em suas caractersticas principais, diz

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respeito revoluo burguesa. Segundo Ianni (1983, p.43), nessa poca, as diversas formas de organizao da produo, as culturas, lnguas, raas e religies articulam-se no mbito de uma sociedade nacional, ou seja: o espao de um povo. A acumulao primitiva desenvolve-se com as foras produtivas e as relaes capitalistas de produo. Apesar das diversidades e antagonismos culturais, regionais e raciais, formam-se o povo, a nao, a sociedade nacional, um Estado Soberano. A ideologia do Estado moderno conduz, assim, ao ocultamento, dissimulao do real. Segundo Chau (1990, p.3), a ideologia um corpo sistemtico de representaes e de normas que nos ensinam a conhecer e a agir. O discurso ideolgico aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferena entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lgica que unifique pensamento, linguagem e realidade para, atravs dessa lgica, obter a identificao de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto , a imagem da classe dominante. A negao da alteridade , ento, institucionalizada, uma vez que o alter passa a ser um desafio ameaante, pois no habita o interior do Estado - que tomado pela insegurana perante o competidor que, mesmo no-intencionalmente, parece propor a desestruturao das suas verdades. Para o centro do poder se voltam tudo e todos os que desejam significar, mais uma vez, que o marco central, no caso o Estado, tido como doador de sentido. Comentando sobre o etnocentrismo e a negao da alteridade, Morais (1989, p.23) destaca que: ... a condio excntrica do outro o situa em zonas obscuras compreenso de um dado ego, sendo que da desdobra-se todo um processo de sinais e mensagens que transmitem do centro (ego) periferia (alter) e viceversa, um processo exploratrio de aproximaes e distanciamentos sutis que pode at conduzir a entrosamentos culturais.

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Entretanto, o autor chama a ateno para o fato de que esse movimento humano complicado, visto que, em algumas vezes, o centro reconhecido por sua concentrao de poder poltico. Os que se situam ou so situados politicamente na periferia so, para si mesmos, centros axiolgicos. Segundo o referido autor, essa concepo de centro, que embasa os etnocentrismos, racionalizada e levada aos extremos historicamente conhecidos pela inaugurao da filosofia moderna, do egocentrismo epistemolgico do Cogito, tal como Descartes o props, como fundamento evidente da edificao filosfica. Cogito, ergo, sum. O a priori que tudo alicera o cogito, sendo este, portanto, o ncleo de todas as afirmaes posteriores. Nesta abordagem de diferentes formas de monismos, a tradio - ou seja, a memria exteriorizada como modelo - refere-se a um corpo consolidado de crenas, normas e valores definidos na sua origem passada. A memria concebida com uma funo de almoxarifado desse passado. Vale-se da fetichizao, quer para transformar a memria em mercadoria, quer para utiliz-la como instrumento de legitimao potencializada pelo valor cultural. A memria nacional, que no o somatrio das diferentes memrias coletivas de uma nao, apresenta-se como unificada e integradora, procurando a harmonia e escamoteando ou sublimando o conflito: da ordem da ideologia. Por isso mesmo, o Estado e as camadas dominantes, como interessados na reproduo da ordem social (a que eles induzem e que simbolicamente realizam), so, em certos momentos, os principais responsveis pela sua constituio e circulao (Meneses, s.d., p.3). Podemos fazer uma aproximao dessa concepo de memria com o conceito de cultura, situando-a na sociedade de classes, como cita Bosi: ... como uma mercadoria, como algo que se pode obter, ou ento, se recuarmos um pouco at uma sociedade pr-capitalista, ou capitalista atrasada, podemos dizer

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que a cultura uma coisa que se herda, uma herana (Bosi, 1987, p.35). Comentando sobre a concepo de cultura como um bem que se aproxima dos bens de luxo e suprfluos, Alfredo Bosi (1987, p.85) salienta que s ... os grupos de poder aquisitivo que dispem de lazer podem fruir desse bem, que d pessoa um halo, uma aurola de diferena. Ela diferente, alguma coisa como, na sociedade do Antigo Regime, era a aristocracia. Segundo o referido autor, a cultura - ou uma determinada concepo de cultura - acabou substituindo a idia de aristocracia na sociedade capitalista, s potencialmente democrtica. Enfatiza que, s vezes, isso parece uma fatalidade, como ser ou no ser nobre, alguma coisa que vem, um bem de raiz, um bem de famlia. A essa viso de cultura, o autor denomina de reificada, uma vez que considera a cultura como um conjunto de coisas. Essa abordagem contextual objetivou apresentar alguns posicionamentos de estudiosos e, apoiando-nos em algumas de suas produes, procuramos enfocar, sobretudo, o monismo que vai servir de lastro s aes da nao, do Estado, destacando a presena de uma ideologia unificadora, que ir tentar conduzir as aes denominadas de poltica cultural, que iremos focalizar a seguir. Como registramos na introduo deste trabalho, temos conscincia que essa ao unificadora do Estado no pode ser entendida de forma mecanicista. Somente analisando as esferas econmica, poltica e cultural/ideolgica, bem como as suas intersees, as formas como cada uma delas se sustenta e contradiz a outra, que poderemos realizar uma anlise que focalize as contradies, os conflitos e as mediaes e, principalmente, as resistncias tanto quanto a reproduo. Entendemos, pois, os

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campos de atuao da educao e da cultura no Brasil como um espao de produo e reproduo.

2.3 Buscando Uma Identidade Nacional: a organizao em sistemas. Tentaremos, neste item, pontuar algumas aes levadas a efeito no bojo da poltica cultural adotada em vrios momentos no Pas, enfocando aspectos que apontam para a busca de uma identidade nacional, pautada em uma concepo de cultura de carter unitrio e globalizador, compreendendo que a formulao de uma poltica cultural por parte do Estado reveladora do tipo de relacionamento entre o Estado e a sociedade. As diretrizes estabelecidas, as prioridades e solues apontadas sero compreendidas como a orientao poltico-filosfica vinculada noo de continuidade no processo cultural, entendendo-a como: o conjunto de princpios filosficos, polticos, doutrinrios que orientam a ao cultural (execuo da poltica nos seus diversos nveis) (Lopes, s.d., p.26). A expresso concepo oficial de cultura ser ento usada, inicialmente, de modo descritivo, buscando-se explicitar, posteriormente, algumas consideraes crticas. Na formao da nao brasileira, a cidadania, mesmo enquanto idia, no foi uma fora poltica capaz de forjar uma identidade. Dificilmente se poderia apelar para tradies ancestrais do povo ou para sua homogeneidade tnica ou lingstica. Cunha (1992, p.34), salienta que, na ocasio da independncia poltica, a construo da identidade nacional foi um problema para as elites: ... uma nao sem povo, com a maior parte de seus habitantes totalmente excludos da participao e direitos polticos, vistos com desconfiana e superioridade pela aristocracia branca. Seria, assim, a luta contra a metrpole o eixo capaz de

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conferir uma idia de unidade a esta nao formada de diferenas to profundas. No Imprio, a simbologia da nao apelou para a exuberncia dos trpicos; as cores da bandeira lembravam o ouro e as florestas, e o ndio - a despeito do seu sistemtico extermnio, alm de ser entendido como um elemento da natureza e no do gnero humano - foi eleito como uma espcie de emblema desta nova nao que, ao sul do Equador, copiava as alegorias das naes civilizadas e adentrava na era do progresso. Uma historiografia oficial foi se constituindo para criar a memria desta nao que surgia: entre outros, trs heris (um branco, um negro e um ndio que haviam lutado pela expulso dos holandeses de Pernambuco) foram entronizados no interior de uma verso que atribua a diferentes episdios do perodo colonial o carter de movimentos nativistas (Cunha, 1992, p.35). Como as tradies inventadas - como, por exemplo, bandeiras, hinos, rituais cvicos e monumentos - foram incapazes de moldar a imagem de um povo homogneo, no final do sculo XIX e incio deste sculo, forja-se a idia de que a miscigenao era, a um s tempo, problema e virtude, e nela residia a alma do povo brasileiro. Romero (citado por Ortiz, 1985a, p.22) relaciona teorias que teriam contribudo para a superao do pensamento romntico. Dentre elas, trs tiveram um impacto real junto inteligentsia brasileira e, segundo Renato Ortiz (1985a, p.14), de uma certa forma, delinearam os limites no interior dos quais toda a produo terica da poca se constitui: o positivismo de Comte, o darwinismo social e o evolucionismo de Spencer. Elaboradas na Europa, em meados do sc. XIX, essas teorias, distintas entre si, podem ser consideradas sob um nico aspecto: o da evoluo histrica dos povos. Segundo Renato Ortiz (1985a, p.14): ... do ponto de vista poltico, tem-se que o evolucionismo vai possibilitar elite europia uma

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CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA N 7 - 1996 tomada de conscincia de seu poderio que se consolida com a expanso mundial do capitalismo.

Para o referido autor, que salienta no querer reduzi-lo a uma dimenso exclusiva, o evolucionismo, em parte, legitima ideologicamente a posio hegemnica do mundo ocidental. A importao dessa teoria vai colocar alguns problemas para os intelectuais brasileiros, pois aceitar as teorias evolucionistas implicava analisar a evoluo brasileira luz das interpretaes de uma histria natural da humanidade; o estgio civilizatrio do Brasil era inferior em relao etapa alcanada pelos pases europeus. O dilema dos intelectuais dessa poca era compreender a defasagem entre teoria e realidade, o que se consubstancia na construo de uma identidade nacional. A especificidade nacional, entendida como o hiato entre teoria e sociedade, s ser compreendida quando combinada a outros conceitos que possibilitem entender o atraso do Pas. A compreenso mais ampla das sociedades humanas, possibilitada pelo evolucionismo, foi completada com outros argumentos que permitem o entendimento da especificidade social. Os intelectuais brasileiros vo encontrar tais argumentos nas noes de meio e raa. Percebe-se bem a idia de miscigenao no registro de Silvio Romero (citado por Cunha, 1992, p.36) ... o europeu aliou-se aqui a outras raas, e desta unio saiu o genuno brasileiro, aquele que no se confunde mais com o portugus e sobre quem repousa o nosso futuro. Cunha (1992) comenta ainda que Silvio Romero atribua positividade miscigenao e estabelecia uma espcie de hierarquia sobre estas raas aliadas na definio do perfil genuinamente brasileiro. Prosseguindo no seu comentrio, a autora coloca que:

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Para alm do sangue, o portugus nos legara a cultura, o ndio, suas terras e algo de suas tradies e o negro, seu trabalho e sua fora. O mestio para os intelectuais brasileiros do sc. XIX mais do que uma realidade concreta, ele representa uma categoria atravs da qual exprime uma necessidade social - a elaborao de uma identidade nacional (Cunha, 1992, p.36). necessrio salientar que problemas como a abolio, o aproveitamento do escravo como proletrio, a colonizao estrangeira e a consolidao da Repblica preocupavam a elite intelectual brasileira da poca, que concebia um Estado Nacional, pensando os problemas nacionais. Entretanto, a abolio no coincide com a implantao do trabalho livre e no apaga a tradio escravocrata da sociedade brasileira. Alm disso, a nao enfrenta o problema da imigrao estrangeira, tentando resolver a questo da formao de uma economia capitalista. A raa, ento, a linguagem atravs da qual se aprende a realidade social e reflete o impasse da construo de um Estado Nacional que ainda no se consolidou. Segundo Ortiz (1985a, p.21), nesse sentido, as teorias importadas tm uma funo legitimadora e cognoscvel da realidade; por um lado, elas justificam as condies reais de uma Repblica que se implanta como nova forma de organizao poltico-econmica, e, por outro, possibilitam o conhecimento nacional, projetando para o futuro a construo de um Estado Brasileiro. Registra ainda o autor que, alm do significado econmico, a poltica de imigrao possui uma dimenso ideolgica que o branqueamento da populao brasileira. Assim, as cincias sociais da poca reproduzem, no discurso, as contradies reais da sociedade como um todo. A inferioridade racial explica o porqu do atraso brasileiro, mas a noo de mestiagem indica a formao de uma possvel unidade nacional. As mudanas ocorridas no Brasil nas primeiras dcadas do sc.XX podem ser identificadas atravs do aceleramento da

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urbanizao e da industrializao, do desenvolvimento de uma classe mdia, do surgimento de um proletariado urbano. A Revoluo de 30 faz com que essas mudanas sejam orientadas politicamente; o Estado busca consolidar o desenvolvimento social. As teorias raciolgicas tornam-se obsoletas, era necessrio super-las, pois a realidade social impunha um outro tipo de interpretao do Brasil (Ortiz, 1985a, p.14). Para o autor, o trabalho de Gilberto Freyre vem atender a esta demanda social. O autor considera que a obra de Gilberto Freyre representa continuidade, permanncia de uma tradio e salienta que no por acaso que ele vai produzir seus trabalhos fora dessa instituio moderna que a Universidade, trabalhando em uma instituio que segue o modelo dos antigos institutos histricos e geogrficos. Entende que no h ruptura entre Silvio Romero e Gilberto Freyre, mas reinterpretaes da mesma problemtica proposta pelos intelectuais do final do sculo. Ele reedita a temtica racial para constitu-la, como se fazia no passado, em objeto privilegiado de estudo: em chave para a compreenso do Brasil. O autor salienta que Freyre no mais a considera em termos raciais, como faziam Euclides da Cunha ou Nina Rodrigues; registra que, na poca em que Gilberto Freyre escreve, outras teorias antropolgicas desfrutam do estatuto cientfico e por isso o autor se volta para o culturalismo de Boas. Ento, a passagem do conceito de raa para o de cultura elimina vrias dificuldades, postas anteriormente, a respeito da herana atvica do mestio; permite, tambm, um maior distanciamento entre o biolgico e o social, possibilitando uma anlise mais rica da sociedade. Mota (1990), comentando sobre o grande relevo dado ao regionalismo, salienta que ele deve ser enfocado, levando-se em considerao o contexto de transio existente no Pas, onde o poderio das diversas oligarquias regionais estava sendo contestado pelos revolucionrios de 1930. O autor chama a ateno para o fato de que obras como Casa Grande e Senzala, escrita por um filho da Repblica Velha, demonstrou os esforos de compreenso da realidade brasileira, realizados por uma elite aristocratizante que vinha perdendo poder.

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A perda da fora social e poltica corresponde uma reviso, busca do tempo perdido, uma volta s razes. E, posto que, o contexto de crise, resulta o desnudamento da vida ntima da famlia patriarcal, a despeito do tom valorativo, em geral positivo, emprestado ao do senhorizato colonizador, ao que se prolonga, no eixo do tempo, da Colnia at o sc. XX, na figura de seus sucessores, representantes das oligarquias (Mota, 1990, p.58). ainda Carlos Guilherme Mota que ressalta: Obras como essa, de alta interpretao do Brasil, produzidas pela vertente ensastica, em verdade encobrem, sob frmulas regionalistas e/ou universalistas, o problema real que o das relaes de dominao no Brasil. ... O que est em pauta, antes de tudo, saber at que ponto frmulas regionalistas encobrem a histria das relaes de dominao, em que mitos, como o da democracia racial e do luso-tropicalismo, servem ao fortalecimento de um sistema ideolgico no qual se perpetua a noo de cultura brasileira (Mota, 1990, p.58). Consideramos importante essa anlise da atuao da inteligentsia brasileira, pois a obra dos denominados precursores das cincias sociais no Brasil vai influir nas aes levadas a efeito na esfera do Estado, na rea da cultura, que abordaremos a partir desse momento, entendendo que essas aes buscavam oficializar a concepo de cultura brasileira, identificada, desde os primeiros

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instantes de projeo autnoma do perfil nacional, como um sistema de relao coeso, harmonioso, unitrio1. Durante mais de 150 anos, as constituies brasileiras refletiram preocupaes permanentes dos representantes do povo, quanto aos elementos caracterizadores da sua nacionalidade. A preocupao com a proteo das belezas naturais e do patrimnio histrico e artstico antecede em muito a Constituio de 1934. A lei de 9 de setembro de 1826 dispe sobre os casos de bem comum para efeitos de desapropriao, prevista na Constituio do Imprio, e destaca a sua necessidade para as casas de instruo de mocidade e casas de decorao pblica. Segundo o Conselho Federal de Cultura (1976, p.13): ... velha frmula esta - consagrada no Cdigo Civil vigente (art. 590, 2, III) - a mais significativa das obras do Poder Legislativo da chamada Repblica Velha (1889 - 1930), e que procurava atender e resguardar o valor artstico, histrico e paisagstico das construes urbanas. margem do processo apropriatrio, em defesa do patrimnio paisagstico, histrico e artstico, foi criado outro mecanismo de limitao propriedade. Segundo o documento do Conselho Federal de Cultura: ... a legislao fragmentria e casustica procurava resguardar o acervo histrico do Pas. No Imprio, um1

Descrio apresentada no documento elaborado pelo Conselho Federal de Cultura - Aspectos da Poltica Federal de Cultura - publicado em 1976, e no qual nos embasaremos, em alguns momentos, para registrar a legislao e os objetivos da poltica oficial do Brasil, at a dcada de 70. O grifo nosso e queremos, com isso, destacar o propsito de construo de uma Cultura Brasileira, de uma Identidade Nacional.

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aviso de 1855 renovou, para caso especial, idntica preocupao (CFC, 1976, p. 13). No regime republicano, o desenvolvimento urbano provocou a volta da discusso do assunto, sobretudo no Congresso Nacional. Assim, em 1923, tentou-se, atravs de um projeto de lei, a criao da Inspetoria de Monumentos Histricos. Quatro anos depois, outra iniciativa parlamentar cuidou, sem sucesso, de proibir a sada de arte antiga do pas. O mesmo objetivo foi tentado por uma comisso nomeada pelo Estado de Minas Gerais, sem conseguir alcanar, no entanto, o intento pretendido. Devido s dificuldades encontradas para a elaborao de um corpo de leis de hierarquia federal, os estados da Bahia e de Pernambuco, por via legislativa, implantaram o aparelhamento prprio para resguardar seu rico acervo histrico e artstico, em 1927 e 1928, respectivamente (CFC, 1976, p. 14). Em 13 de abril de 1936, o Poder Executivo cria o Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, que teve por base o trabalho parlamentar, pois tinha como objetivo a regulamentao do artigo 10, inciso III, da Constituio de 1934. O Decreto-lei n 25, de 30 de novembro de 1937, representa o aperfeioamento daquela proposio constitucional, cristalizando os estudos e as aspiraes dos legisladores federais e estaduais da Repblica Velha (Conselho Federal de Cultura, 1976, p.55). Os anos 30 so a poca do traado da poltica institucional, trazendo como novidade o fato do Estado Nacional chamar intelectuais de todos os matizes, combinando projetos, propostas e idias mescladas da utopia dos anos 20. O discurso do governo vai ao encontro dos discursos dos intelectuais. Comentando sobre a atuao do Estado nesse perodo e sua relao com a elite intelectual da poca, Boemy (1991, p.9) registra que: ... aos projetos esparsos, empricos, distintos, o Estado abre a porta para o estabelecimento da grande poltica nacional, do projeto de reconstruo do patrimnio como prtica social integradora.

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Comenta que, naquele momento, ... a ousadia consistia na institucionalizao das paixes incontidas e medidas; da cultura com a civilizao; do popular com o erudito; do barroco com o clssico; da pluralidade com a unidade; da histria com a sociologia; da etnografia com a sociologia. Era o momento de realizao histrica de uma idia: do grande sistema cultural (Boemy, 1991, p.9). Assim como os escolanovistas foram chamados para a educao, os modernistas foram chamados para atuar na rea da cultura. Mrio de Andrade foi convidado, em 1936, poca em que se encontrava frente do Departamento Municipal de Cultura de So Paulo, para atuar no Servio do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional, rgo que foi dirigido por Rodrigo de Melo Franco de Andrade at 1967. O anteprojeto de Mrio seria a base para a criao desse rgo. Segundo Boemy (1991, p.8): ... quando Mrio de Andrade responde afirmativamente ao convite para formulao da poltica do patrimnio est dando concretude a uma certeza de fundo de que era hora de uma conceituao nova, era a vez da cincia em lugar do amadorismo, da sntese em lugar das disperses e descontinuidades. Continuando, a autora afirma que: Mrio de Andrade, como os pioneiros da educao, tambm sonhou com a organizao em sistema do que era plural, contingente disperso e fragmentar. Os tempos de Capanema seriam a consagrao desse projeto de formulao de uma

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identidade nacional, que passava pela cultura [o grifo nosso] (Boemy, 1991, p.8). Os bens culturais que comporiam o conjunto artstico e histrico deveriam refletir os objetivos propostos como essenciais para a caracterizao do Brasil, enquanto nao. Com esse objetivo, foram realizadas as vrias viagens dos modernistas, na dcada de 20, e dos tcnicos do SPHAN, uma dcada depois, denominadas redescobertas do Brasil, com os seguintes objetivos: Demarcar o elemento nacional; selecionar e valorizar as caractersticas nacionais; abolir os antagonismos entre o presente e o passado; compor o colonial e o moderno; resgatar o erudito e o popular. Assim, os intelectuais e os tcnicos do SPHAN privilegiam os elementos que vo caracterizar a brasilidade, onde as distncias temporais e espaciais venham a ser abolidas para a eleio de um perfil do Brasil, que pela afirmao de sua singularidade pudesse fazer parte do concreto internacional das naes (Guedes, 1991, p.23). Enfocando os discursos de Rodrigo de Melo Franco de Andrade e Alosio Magalhes, que tiveram uma atuao marcante no referido rgo, Gonalves (1991, p.63), sugere a interpretao de que os discursos de ambos podem ser lidos como narrativas onde um personagem principal - a nao brasileira - tem a sua identidade e a sua memria definidas a partir de uma perda - a perda da tradio, no caso de Rodrigo, e no caso de Alosio, a perda da diversidade cultural. Salienta Gonalves (1991) que, na perspectiva desses autores, o processo de perda ao qual se referem interpretado como um dado histrico objetivo; ao tempo em que narram uma presente e progressiva situao de perda, justificam o trabalho de defesa,

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resgate, apropriao, coleo, preservao e restaurao de um determinado patrimnio cultural. O autor salienta que, em assim agindo, criaram aquela situao de perda mediante narrativas, por meio do processo de descontextualizao e de reapropriao dos objetos que viro a compor o chamado patrimnio nacional. Assim procedendo, eles produzem, no mesmo movimento, os valores que esto supostamente destrudos pelo processo histrico. Esses valores so concebidos como fragmentos que apontam para uma totalidade imaginria, original, distante. Os intelectuais denominados de intelectuais do patrimnio, vo contribuindo para a elaborao dos suportes materiais capazes de evocar a idia de nao. Nos anos 50, o conceito de cultura remodelado. Os intelectuais do ISEB vo analisar a questo cultural dentro de um quadro filosfico e sociolgico, recusando a perspectiva antropolgica, que toma o culturalismo americano como referncia. Categorias como aculturao so, aos poucos, substitudas por outras como transplantao cultural, cultura alienada etc. Apoiados na sociologia e na filosofia alem, principalmente em Manheim e Hegel, os intelectuais do ISEB definiro a cultura como a objetivao do esprito humano e insistiro no fato de que a cultura significa um vir a ser. Neste sentido, eles privilegiaro a histria que est por ser feita, a ao social, e no os estudos histricos. Ao conceber o domnio da cultura como instrumento de transformao econmica, os intelectuais do ISEB se distanciam do passado intelectual brasileiro e abrem perspectivas para se pensar a problemtica da cultura brasileira em novos termos (Ortiz, 1985a, p.46). Ampliando seu comentrio sobre a atuao dos profissionais do ISEB, Renato Ortiz salienta: ... o que atual no pensamento do ISEB justamente que ele no se constitui em fbrica de ideologia do governo Kubitscheck se de fato o Estado desenvolvimentista procurou uma legitimao ideolgica junto a um determinado grupo de

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intelectuais, no menos verdade que os avatares desta ideologia caminharam em um sentido oposto ao do Estado Brasileiro (Ortiz, 1985a, p.46). Destaca que o golpe de 64 castrou qualquer pretenso de oficialidade das teorias do ISEB mas, curiosamente, esta ideologia foi popularizada nos setores progressistas e de esquerda. No seu entender, ... esta a atualidade de um pensamento datado, produzido por um grupo de intelectuais, mas que se popularizou, isto , tornou-se senso comum e se transformou em religiosidade popular nas discusses sobre cultura brasileira (Ortiz 1985 , p. 16). A partir de 64, assiste-se reorganizao da economia brasileira que busca cada vez mais se inserir no ... processo de internacionalizao do capital; o Estado autoritrio permite consolidar no Brasil o capitalismo tardio. Em termos culturais essa reorientao econmica traz conseqncias imediatas, pois, paralelamente ao crescimento do parque industrial e do mercado interno de bens culturais, fortalece-se o parque industrial de produo da cultura e o mercado de bens culturais (Ortiz, 1985b, p.114). A expanso das atividades culturais vai ocorrer associada a um controle estrito das manifestaes que se contrapem ao pensamento autoritrio. O mercado de bens culturais envolve uma dimenso simblica que aponta para problemas ideolgicos, expressam uma aspirao, um elemento poltico embutido no prprio produto veiculado. Portanto, o Estado vai dar um tratamento especial a esta rea, pois a cultura poderia expressar valores e disposies

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contrrias vontade poltica dos que esto no poder. A censura, neste contexto, possui duas faces: ... uma repressiva, outra disciplinadora. A primeira diz no, puramente negativa; a outra mais complexa, afirma e incentiva um determinado tipo de orientao (Ortiz, 1985b, p.114). Para garantir o domnio, a represso lanada e, ao mesmo tempo, busca-se racionalizar os recursos existentes; lanar as bases (Embratel etc.) e montar um poderoso aparato persuasivo, alicerado nos meios de comunicao de massa e em recursos tecnolgicos. Nos anos 30, as produes culturais eram restritas e atingiam um nmero pequeno de pessoas. O que vai caracterizar o mercado cultural ps 64 o seu volume e a sua dimenso, atingindo um grande pblico consumidor, conferindo-lhe uma dimenso nacional que no possua anteriormente. A noo de integrao que trabalhada pelo pensamento autoritrio vai servir de premissa a toda uma poltica que tenta coordenar as diferenas, submetendo-as aos denominados objetivos nacionais. Segundo Srgio Miceli: ... no Estado de Segurana Nacional, no apenas o poder conferido pela cultura no reprimido, mas desenvolvido e plenamente utilizado. A nica condio que esse poder seja submisso ao Poder Nacional, com vistas segurana nacional (Miceli citado por Ortiz, 1985b, p.83). Decorre da a constante busca pela concretizao de um sistema nacional de cultura. O Estado procura integrar as partes a partir de um centro de deciso e dentro desse quadro a cultura pode e deve ser estimulada. Ortiz (1985b, p.83) chama a ateno para o fato de que nem sempre o controle do Estado absoluto, pois existe um hiato entre o pensamento autoritrio e a realidade.

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Sentindo a necessidade de uma poltica cultural para o Brasil, o governo Castelo Branco institui uma comisso com o objetivo de apresentar sugestes para a reformulao cultural do Pas. Essa comisso recomenda a criao do Conselho Federal de Cultura, simtrico ao Conselho Federal de Educao. Aps estudo da matria, o Ministro da Educao e Cultura apresentou ao presidente o anteprojeto de um decreto-lei, que foi aprovado imediatamente, pois era seu interesse ... dotar o Pas de um colegiado que levando em conta as diversas regies sociais e culturais do Brasil, reunisse vinte e quatro figuras representativas dessas culturas, para assessorar o Governo Federal (CFC, 1976, p.20). interessante, para nossa anlise, registrar um trecho da fala proferida pelo Presidente Castelo Branco durante a cerimnia de instalao do Conselho Federal de Cultura: ... assim, para suprir a grave lacuna existente, julgou o governo que, a exemplo do Conselho Federal de Educao, to forte no seu esprito federativo, tambm um Conselho Federal de Cultura deveria atender s peculiaridades regionais, sem prejuzo de ser rgo governamental destinado a defender, estimular e coordenar, nas suas linhas mestras, a um plano nacional (CFC, 1976, p.20). A ideologia do Brasil mestio retomada pelos intelectuais que vo atuar no Conselho Federal de Cultura que, segundo Ortiz (1985b, p.91), so, na verdade, membros de um grupo de produtores de conhecimento, que pode ser caracterizado como de intelectuais tradicionais, recrutados nos institutos histricos e geogrficos e nas academias de letras. A viso da cultura brasileira legitimada atravs de uma continuidade, pois o Estado,

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ideologicamente, assim coloca o movimento de 64, concretizando uma associao com as origens do pensamento sobre cultura brasileira. A transcrio de parte do documento do Conselho Federal de Cultura, no tpico Formao e Projeto da Cultura Brasileira, que apresentamos a seguir, grifado por ns, bem elucidativa no que concerne ao retorno das idias de Silvio Romero e Gilberto Freyre: A Cultura Brasileira, no que ela tem de mais caracteristicamente mltipla e criadora - formas de vida, trabalho, lazer, conhecimento, literatura, arte, esporte, as manifestaes mais diversificadas da cultura popular - o resultado desse processo sincrtico da mistura desses trs grupos instauradores, que j no sculo indefinido do descobrimento desenharam uma rota, indicaram um caminho. E este caminho, da soma, da miscigenao, da convivncia, amplia-se substancialmente com a chegada, no sc. XIX e ainda no sc. XX, de contingentes alemes, italianos, poloneses, franceses, libaneses, srios, japoneses, holandeses. Todos contribuindo para uma configurao cultural sempre mais peculiar e ntida (CFC, 1976, p. 8). A miscigenao cultural repercute, naturalmente, nas novas imagens fsicas, nos tipos decorrentes, uma policromia nica e inconfundvel. Mas no permanece a a vocao irreversvel do pluralismo ou da multiplicidade: a extenso geogrfica acentua igualmente a diversificao cultural. Pas constitudo de regies diferenciadas, cada uma dessa regies reflete o grau de presena maior ou menor daqueles elementos fundadores, ou modalidades prprias de aculturao, assimilao e sobretudo, porque mais verticalmente, de criao. Nas representaes mesmas da cultura popular - o bumba-meu-boi, o boi nordestino, a capoeira baiana, o frevo pernambucano, o vissungo

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mineiro etc. (...) e nas manifestaes mais acabadas da criao erudita - a poesia de Gregrio de Matos, a msica de Padre Jos Maurcio, a escultura do Aleijadinho etc. (...) predomina e se impe a fora de uma cultura autnoma. Autnoma porm receptiva, aberta, confluente. Do mesmo modo que regional, local at, mas amplamente universal e universalizante (CFC, 1976, p.8). O conceito de raa aqui retomado com o mesmo enfoque dos intelectuais que atuaram no final do sculo XIX perdurou at os anos 30 - ou seja, a compreenso do Brasil a partir da fuso das trs raas que o povoaram - e acrescenta o segundo significado do preconceito de mestiagem, levando-nos noo de heterogeneidade. Quando os membros do Conselho Federal de Educao afirmam que a cultura Brasileira plural e variada, isto , que o Brasil constitui um continente arquiplago o que se procura sublimar o aspecto da diversidade (Ortiz, 1985b, p.92). O discurso do Conselho Federal de Cultura retoma o regionalismo como filosofia social, moda de Gilberto Freyre, enfocando a regio como uma das diversidades que definem a unidade nacional. O elemento da mestiagem contm justamente os textos que naturalmente definem a identidade brasileira: unidade na diversidade. A idia de pluralidade, encontrada em quase todos os textos do CFC, vai encobrir uma ideologia de harmonia, que caracterstica do modelo de pensamento da obra de Gilberto Freyre. Na dcada de 70, mesmo com o descontentamento crescente, inclusive de certas fraes das classes dominantes, a poltica econmica de 64 foi mantida e, da mesma forma, devido s exigncias da prpria poltica econmica, a poltica cultural foi conservada. O Estado foi colocado no centro da produo cultural do pas. Praticamente todas as condies de produo, comunicao e debate das produes artsticas, culturais

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CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA N 7 - 1996 e cientficas passaram a ser, seno controladas, diretamente influenciadas pelos ministrios, conselhos, comisses, institutos e outros rgos (So Paulo, 1992, p.52).

Cohn (1984, p.7) salienta que o sentido da poltica nacional de cultura, nessa fase, era o de processar um equacionamento da cultura, de modo a adequ-la ao regime poltico que se procurava consolidar. Assim, classifica as duas metas da dcada, do ponto de vista das formulaes culturais: A primeira, caracterizada pela elaborao de programticas abrangentes, mas com escassos efeitos; propostas

a segunda, diversificando e redefinindo os temas sob uma tica cada vez mais operacional e mais poltica, aliados a uma extensa renovao institucional. Contrapondo-se s idias de Cohn, Ianni e Miceli, Mrio Machado (citado por Schasberg, 1989, p.64) destaca que, no Brasil, h poucos estudos empricos sobre polticas pblicas em geral e aponta este fato como um indicador de inadequao para se falar em poltica cultural nesse perodo. Considera mais razovel se falar em polticas pblicas implementadas por rgos os mais variados, guardando pouca relao entre si. Salienta que existe no Pas, nesse perodo, uma poltica de mercado: a indstria cultural, em projeto implementado por empresas privadas, consentido pelo Estado e pleno de conflitos entre produtores e censura. Todavia, Benny Schasberg (1989, p.67) chama a ateno para o fato de que ... a tentativa mais destacada - da mesma maneira observada por Miceli, Ianni e Cohn -, no sentido de definio de uma poltica cultural, a que ambicionou

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formul-la centrada na questo patrimonial, procurando conservar o passado. No meado da dcada de 70, nas gestes de Jarbas Passarinho e Ney Braga frente do MEC, adota-se uma concepo oficial de cultura como somatria das criaes do homem, como herana e patrimnio, acrescentando-se a concepo de que essa somatria se d no processo de criao do prprio homem, introduzindo-se assim um componente humanista, ainda abstrato, que constituir um dos temas bsicos a serem reelaborados ao longo do perodo (Cohn, 1987, p.7). As dimenses de consumo e de distribuio passam a ser valorizadas. O discurso do Conselho Federal de Cultura deixava de lado estes aspectos, pois assumia uma concepo de cultura associada qualidade, e atribua a quantidade ao reino do tecnicismo. Anteriormente, como j vimos, os intelectuais tradicionais colocavam a nfase na preservao do patrimnio. Agora, a preservao do patrimnio vai deixar de ser o eixo central. Ela continua sendo considerada, porm, diretrizes de rgos como o DAC, a SEAC, a FUNARTE, apontam para trs aspectos: o incentivo produo, a dinamizao dos circuitos de distribuio e o consumo dos bens culturais. A participao vai significar o acesso aos bens de consumo. O consumo transforma-se em ndice de avaliao da prpria cultura brasileira. So vrios os documentos oficiais que registram a necessidade de se vincular o sistema de ensino ao desenvolvimento cultural. A escola vista como um espao importante na formao de hbitos e de expectativas culturais, o que possibilita uma extenso do consumo. Ao se afirmar, por exemplo, que o homem brasileiro precisa se habituar a consumir a cultura em sua vida diria, o Estado se prope a realizar uma potencialidade cultural do mercado consumidor e por outro lado, assegura uma ideologia de democratizao que concebe a distribuio cultural como ncleo de uma poltica governamental (Schasberg, 1989, p.67).

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Ortiz (1985b, p.118) cita a fala do secretrio do MEC aos militares da Escola Superior de Guerra, quando este diz: Acredito que o estabelecimento de uma poltica cultural conduzir a um equilbrio entre valor econmico e valor social atravs do eixo cultural. Cultura no luxo, logo no pode ser classificada como utilitria e no rentvel. Comenta que, na verdade, essa fala demonstra as convices pessoais do secretrio de que uma poltica cultural bem orientada poderia se transformar, a curto ou a mdio prazo, num real investimento de capital. Salienta que, mesmo nas atividades de carter patrimonial - a exemplo da Fundao Pr-Memria - essa dimenso mercadolgica se manifesta e cita uma fala de Alosio Magalhes, ao se referir aos bens do patrimnio histrico: Um dos objetivos da Fundao ser o de transformar os bens da Unio em bens rentveis, logicamente quando isso for possvel e no oferecendo riscos ao imvel. Assim faremos o levantamento para saber quais os imveis que podero ser transformados em albergues tursticos e entregues, por contrato, s companhias hoteleiras para explorao comercial e que devero ser conservados (Ortiz, 1985b, p.118). Analisando as tendncias mais gerais nas redefinies da concepo oficial de cultura, do final da dcada de 70 at a gesto de Celso Furtado no Ministrio da Cultura, Cohn (1984, p.7) destaca as seguintes concepes: Gesto Eduardo Portela - cultura como modo de ser, como vivncia de determinadas parcelas da sociedade; gesto Alusio Pimenta - a cultura passa a ser concebida em seu papel de resistncia dominao hegemnica;

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gesto Celso Furtado - reala-se a sua condio de fonte de criatividade. O autor enfatiza que essas concepes s ganham sentido quando na formulao de diretrizes prticas nas instncias oficiais, vale dizer, em polticas culturais. Destaca uma mesma linha de raciocnio existente nessas concepes: o seu mpeto antielitista, que conduz preocupao com a democratizao da cultura, constante em vrios documentos oficiais, independentemente dos contextos polticos da sua formao. Chama a ateno para o fato de que a diferena bsica nesse aspecto consiste no sentido que atribudo a essa democratizao. Enquanto nos meados dos anos 70, como vimos anteriormente, se tentava promover a integrao nacional, atravs da difuso cultural - vista como unitria entre uma populao que deveria ser colocada altura de receb-la, mediante a educao - posteriormente, a preocupao principal ser com a diversidade das formas e experincias culturais numa sociedade marcadamente estratificada e excludente. Essa proposta ntida na gesto de Eduardo Portela, quando se enfatiza a necessidade de se inverter o caminho at ento percorrido da oferta a partir do centro para a periferia e vai ganhar uma expresso mais acabada no programa de trabalho da gesto Alusio Pimenta, no qual o estmulo diversidade cultural e o combate degradao da cultura pela massificao e pelas imposies do mercado so elementos de realce. A palavra de ordem , ento, a descolonizao da cultura, com a possibilidade da formulao de polticas culturais plurais. No final dos anos 80, o termo chave da concepo oficial da cultura moderno. A cultura vai ser concebida como fonte de criatividade simblica e como rea aberta ao investimento econmico capitalista, com a conseqente eliminao das figuras tradicionais do patronato pblico e do mecenato privado (Cohn, 1984, p. 9). A Lei Sarney bastante clara nesse sentido: ...cria mecanismos que permitem o tratamento dos investimentos na rea da cultura como uma questo de aplicao capitalista de recursos e no como mero mecenato. Percebe-se assim uma tendncia

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... politizao e sociabilizao da concepo de cultura que vai sendo superada por uma frmula que busca reaproximar a lgica dos fins cultural da lgica dos meios, da racionalidade econmica voltada para a acumulao, e que a Lei Sarney uma componente de almejada sntese de ambas (Cohn, 1984, p.9). O tema modernizao capitalista ento assimilado pela concepo oficial de cultura, imprimindo no processo cultural o timbre do mercado e recolocando a questo de se compreender o conjunto dos produtos culturais como clientela, dessa feita, no mais passiva, mas convidada a organizar-se em moldes capitalistas modernos. Concluindo este bloco, retornamos a Renato Ortiz, quando salienta que essa memria possibilita ao Estado estabelecer uma ponte entre o passado e o presente, legitimando a Histria de um Brasil sem rupturas e violncias e que, por outro lado, ela se impe como memria coletiva - como um mito unificador do ser e da sociedade brasileira: a sociedade mudou, mas sua essncia seria idntica sua prpria raiz. Citando Halbwaschs, Ortiz salienta que a memria sempre vivida pelo presente, o que significa dizer que o discurso da preservao da identidade se d no interior da concretude de desenvolvimento capitalista (Ortiz, 1985b, p.124). No foi nosso objetivo apresentar uma histria linear da cultura brasileira, buscando sucesses de influncias, do passado at o presente, como um passado acumulado. Pretendemos, atravs da presente anlise, mostrar que, apesar do Estado, em vrios documentos relacionados com a elaborao de diretrizes para a rea da cultura, apresentar-se como espao de neutralidade, assumindo

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um discurso democrtico, o que ocorre, na realidade, a sua atuao como uma ideologia que tenta, em vrios momentos, tornar-se hegemnica. Entendemos que esse objetivo nem sempre foi alcanado; houve momentos de resistncia e de tentativa de ruptura, o que nos leva a inferir que, na rea da poltica oficial de cultura, h espao para reproduo e produo. Por outro lado, necessrio questionar a eficcia absoluta desta identidade produzida. Cunha (1992, p.35) nos chama a ateno para o fato de que: At que ponto devemos supor que para a maioria das pessoas a identidade nacional, se que efetivamente existe, exclui ou superior s demais identidades que constituem as sociedades humanas? E como, particularmente, esta pergunta se desdobra em dimenses polticas capazes de desvendar alguns significados de um Pas como o Brasil, com sua trajetria de excluses, de privao de direitos, de ausncia de cidadania para uma maioria que nunca se perguntou sobre esta dura experincia de ser parte da nao?

2.4 O Papel dos Museus na Construo de uma Identidade Nacional Procuraremos, a partir deste momento, situar os museus no contexto da poltica oficial de cultura do Pas, pontuando algumas aes registradas em alguns documentos oficiais, bem como registros de profissionais da rea. Dessa maneira, buscaremos indicadores que possam identificar prticas e propostas museolgicas reveladoras da tentativa de uma identidade nacional - caracterizada atravs de aes que tm por base uma concepo de memria, de tradio, como um corpo consolidado de crenas, normas e valores definidos no passado

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e que so usadas pelo Estado, como um suporte necessrio para sua afirmao. O Estado Brasileiro tem sido, ao longo dos anos, o principal mentor e feitor das instituies museais, o que, naturalmente, nos leva a analis-las atravs do conjunto de princpios filosficos, polticos e doutrinrios que tm orientado a poltica oficial do governo. Entendemos, porm, que a relao Estado e Museu Estado e Cultura, como destacamos anteriormente, no to simples como parece, pois uma relao essencialmente dual e no pode ser compreendida sem os pontos de vista, esperanas, necessidades e interesses das pessoas que esto, constantemente, submetidas ao intenso bombardeio simblico. Por outro lado, necessrio entender, desvelar os objetivos e os meios utilizados, no s para nos ilustrarmos, mas para estabelecer um novo ponto de partida, assumindo que h um espao para produo. Como Apple (1989, p.43), entendemos que a hegemonia no um fato social j acabado, mas um processo no qual os grupos e classes dominantes buscam obter o consenso ativo daqueles sobre os quais exercem o domnio. Enfocaremos alguns aspectos relacionados poltica oficial para a rea dos museus, compreendendo-a como um aspecto da poltica cultural mais ampla. Assim, necessrio situ-la na abordagem contextual, j enfocada no item 2 deste trabalho, relacionando-a com o item 3 - Buscando uma Identidade Nacional: a organizao em sistemas. Os museus nacionais tiveram a sua origem no final do sc. XVIII, na Frana, portanto, no contexto de formao do Estado moderno. As grandes colees reais, burguesas e eclesisticas, de carter cientfico, histrico e artstico foram, ento, colocadas disposio do pblico. Sua principal finalidade era de preservar e celebrar esse patrimnio para conservar o passado nacional e manter uma mitologia das relquias culturais tradicionais a serem veneradas a fim de valorizar a

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nao e o status do homem atravs de sua identidade cultural (Novaes, s.d., p.1). Com base nesse discurso, o modelo de museu nacional espalha-se por toda a Europa e exportado, no sc. XIX e at incio do sc. XX, para outros pases, principalmente os pases do 3 mundo. Por iniciativa de D. Joo VI, so criados, no Rio de Janeiro, os museus da Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro, que foi iniciado com a Escola Real de Cincias, Artes o Ofcios, em 1815, e o Museu Nacional, em 1818. Esses museus foram instalados, para compor um quadro, como parte das bases lanadas para uma renovao cultural que culminou, de certa forma, na introduo de hbitos, de pensamento e ao que vigoravam na Europa do sc. XIX e compuseram a ideologia da burguesia brasileira em ascenso, no final do sculo XIX. Percebe-se que os museus, nesse contexto, j faziam parte de uma simbologia da nao, com colees que celebravam a exuberncia dos trpicos, como o caso da coleo de histria natural, situada na denominada Casa dos Pssaros. No incio deste sculo, no centro do debate em torno da questo nacional que vai se dar, em maior escala, a criao de museus, inclusive com a participao do Poder Legislativo. Assim que, por sua iniciativa e colaborao, so estruturados os museus brasileiros, em mbito federal e local, a exemplo do Museu Histrico Nacional, situado na cidade do Rio de Janeiro - Decreto n 15.596, de 2 de agosto de 1922; Museu Histrico da Cidade do Rio de Janeiro, que teve origem na proposio formulada na Cmara Municipal, em 22 de abril de 1891 e foi instalado em 1934; Museu do Diamante, na cidade de Diamantina, Minas Gerais - Lei n 200, de 12 de abril de 1954; Museu Nacional de Imigrao e Colonizao, com sede em Joinville, Santa Catarina - Lei n 3.188, de 2 de julho de 1957; e Museu da Abolio, sediado em Recife - Lei n 3.357, de 22 de dezembro de 1957.

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Consideramos os museus como um dos suportes, utilizados pelos chamados intelectuais do patrimnio, capazes de evocar a idia de nao unificadora. Talvez o exemplo mais marcante da utilizao dessas instituies, com a finalidade de alcanar este objetivo, seja a atuao de Gustavo Barroso, que apontado como um exemplar mais bem acabado de intelectual orgnico vinculado ao processo de edificao nacional (Abreu, 1991, p.93). Gustavo Barroso atuou como jornalista, chamando a ateno atravs da imprensa, para a desenfreada perda de referncias estticas, culturais e histricas que se verificava no Brasil, nos primeiros anos do sc. XX. Lutou no sentido de criar uma mentalidade preservacionista. Atuou na Academia Brasileira de Letras e buscou delimitar as influncias das culturas regionais na formao da cultura nacional (Abreu, 1991, p.94). Em seu livro Terra do Sol, por exemplo, escrito em 1911, Barroso descreveu alguns traos culturais encontrados no Nordeste, visando destacar o que ele designava por tipo exato do brasileiro do Norte. Dirigiu o Museu Histrico Nacional, de 1922 a 1959, interrompendo a sua administrao, no perodo de 1930 a 1932. A atuao de Gustavo Barroso um marco para a Museologia brasileira, pois ele foi o fundador do Primeiro Curso de Museologia do Pas, instalado no Museu Histrico Nacional, funcionando ali at 1979. Esse curso adotou, por um longo perodo, as concepes, os objetivos, enfim, as linhas mestras da atuao de Barroso. Sendo o primeiro plo de formao de profissionais da rea da Museologia, as suas idias foram sendo disseminadas por todo o Brasil e foram formando a cara da Museologia brasileira, no passado e na atualidade. Para Gustavo Barroso (citado por Abreu, 1991, p. 94), o ato de conservar ou a idia de preservar estava intimamente relacionados a uma funo prtica: fazer amar a ptria. Assim, a responsabilidade do museu era fazer brotar nos indivduos um sentimento nacional. Atravs dos ensinamentos dessa instituio, o brasileiro deveria aprender a amar e respeitar a sua ptria. A autora comenta que esse pressuposto orienta a seleo dos objetos a serem preservados e a formulao de uma extensa e

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sofisticada teoria sobre museus. Enfatiza que o objetivo principal do museu de Barroso consistia em resgatar uma tradio nacional e forjar um sentimento cvico (o grifo nosso). Atravs dos objetos, que, por si s, podiam transmitir e afirmar valores, ensinava-se o povo a amar o passado. Comentando sobre os valores do passado, veiculados pelo Museu de Gustavo Barroso, Regina Abreu destaca os seguintes: Relao de continuidade do Brasil, enquanto nao, com o Estado portugus (o nascimento da nao brasileira datava da chegada da Coroa Portuguesa, em 1808); a independncia poltica, em 1822, no significava um rompimento com a coroa portuguesa, mas era anunciada como um marco de iniciao de entrada do Pas na vida adulta. Como sucessores da independncia p