Caderno Poemas 7 8 e 9 Ano

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    METAS CURRICULARES DE PORTUGUS

    CADERNO DE APOIO

    POESIA7.ANO

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    Florbela Espanca

    Amar!

    Eu quero amar, amar perdidamente!Amar s por amar: Aqui... alm...Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...Amar! Amar! E no amar ningum!

    Recordar? Esquecer? Indiferente!...Prender ou desprender? mal? bem?Quem disser que se pode amar algumDurante a vida inteira porque mente!

    H uma Primavera em cada vida: preciso cant-la assim florida,Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

    E se um dia hei-de ser p, cinza e nadaQue seja a minha noite uma alvorada,Que me saiba perder... pra me encontrar...

    *

    Ser poeta

    Ser poeta ser mais alto, ser maiorDo que os homens! Morder como quem beija! ser mendigo e dar como quem sejaRei do Reino de Aqum e de Alm Dor!

    ter de mil desejos o esplendorE no saber sequer que se deseja ter c dentro um astro que flameja, ter garras e asas de condor!

    ter fome, ter sede de Infinito!Por elmo, as manhs de oiro e de cetim... condensar o mundo num s grito!

    E amar-te, assim, perdidamente... seres alma, e sangue, e vida em mimE diz-lo cantando a toda a gente!

    In Sonetos

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    Jos Rgio

    Cntico negro

    Vem por aqui dizem-me alguns com os olhos doces,Estendendo-me os braos, e segurosDe que seria bom que eu os ouvisseQuando me dizem: vem por aqui!Eu olho-os com olhos lassos,(H, nos meus olhos, ironias e cansaos)E cruzo os braos,E nunca vou por ali...

    A minha glria esta:Criar desumanidade!No acompanhar ningum.Que eu vivo com o mesmo sem-vontadeCom que rasguei o ventre a minha Me.

    No, no vou por a! S vou por ondeMe levam meus prprios passos...

    Se ao que busco saber nenhum de vs responde,Por que me repetis: vem por aqui!?Prefiro escorregar nos becos lamacentos,Redemoinhar aos ventos,Como farrapos, arrastar os ps sangrentos,A ir por a...

    Se vim ao mundo, foiS para desflorar florestas virgens,E desenhar meus prprios ps na areia inexplorada!O mais que fao no vale nada.

    Como, pois, sereis vsQue me dareis impulsos, ferramentas, e coragemPara eu derrubar os meus obstculos?...Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avs,E vs amais o que fcil!Eu amo o Longe e a Miragem,Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

    Ide! Tendes estradas,

    Tendes jardins, tendes canteiros,Tendes ptria, tendes tectos,

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    E tendes regras, e tratados, e filsofos, e sbios...Eu tenho a minha Loucura!Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,E sinto espuma, e sangue, e cnticos nos lbios...

    Deus e o Diabo que me guiam, mais ningum!Todos tiveram pai, todos tiveram me;Mas eu, que nunca principio nem acabo,

    Nasci do amor que h entre Deus e o Diabo.

    Ah, que ningum me d piedosas intenes,Ningum me pea definies!Ningum me diga: vem por aqui!A minha vida um vendaval que se soltou. uma onda que se alevantou. um tomo a mais que se animou...

    No sei por onde vou,No sei para onde vouSei que no vou por a!

    InPoemas de Deus e do Diabo

    O papo

    Atrs da porta, erecto e rgido, presente,Ele espera-me. E por isso me atrapalho,E vou pisar, exactamente,A sombra deEle no soalho!

    Senhor Papo!(Gaguejo eu)Deixe-me ir dar a minha lio!Sou professor no liceu...

    Mas o seu hlitoMarcou-me, frio como o tacto duma espada.E eu saio plido,Com a garganta fechada.

    Perguntam-me, l fora: Ests doente?No!, (grito-lhes)... porqu?!. E falo e rio, divertindo-me.Ora o pior que h palavras em que paro, de repente,E que me doem, doem, doem..., prolongando-se e ferindo-me...

    Ento, no ar,Levitando-se, enorme, e subvertendo tudo,

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    Ele faz frio e luz como um luar...Eu ouo-lhes o riso mudo.

    Senhor Papo!(Gaguejo eu) por quem ,

    Deixe-me estar aqui, nesta reunio,Sentadinho, a tomar o meu caf...!

    Mas os mnimos gestos e palavras do meu diaFicaram cheios de sentido.Ter de mais que dizer..., ah, que maada e que agonia!Bem natural que eu seja repelido.

    Fujo. E na minha mansarda,Volvo-lhe: - "Senhor Papo!

    Se o meu Anjo-da-Guarda,Guarde-me!, mas de si! da vida no.

    O seu olhar, ento, fuzila como um facho.Suas asas sem fim vibram no ar como um aoite...E at no leito em que me deito o acho,E ns lutamos toda a noite.

    At que, vencido, imbeleAnte o esplendor da sua face,

    De repente me prostro, e beijo o cho diante deEle,Reconhecendo o seu disfarce.

    E rezo-lhe: - Meu Deus! perdo...: Senhor Papo!Eu no sou digno desta guerra!Poupe-me sua Revelao!Deixe-me ser c da terra!

    Quando uma sbita viragemMe faz ver (truque velho!...)

    Que estou em frente do espelho,Diante da minha imagem.

    InAs Encruzilhadas de Deus

    Nossa Senhora

    Tenho ao cimo da escada, de maneiraQue logo, entrando, os olhos me do nela,

    Uma Nossa Senhora de madeira,Arrancada a um Calvrio de Capela.

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    Pe as mos com fervor e angstia. O mantocobre-lhe a testa, os ombros, cai composto;E uma expresso de febre e espantoQuase lhe afeia o fino rosto.

    Me de Deus, seus olhos enevoadosOlham, chorosos, fixos, muito alm...E eu, ao passar, detenho os passos apressados,Peo-lheA sua bno, Me!

    Sim, fazemo-nos boa companhiaE no me assusta a sua dor: quase me apraz.O Filho dessa Me nunca mais morre. Aleluia!S isto bastaria a me dar paz.

    Porque choras, Mulher? docemente a repreendo.Mas minhalma, ento, chega de longe a sua vozQue eu bem entendo:

    No porEle...

    Eu sei! teus filhos somos ns.

    InMas Deus Grande

    Vitorino Nemsio

    A concha

    A minha casa concha. Como os bichosSegreguei-a de mim com pacincia:Fachada de mars, a sonho e lixos,O horto e os muros s areia e ausncia.

    Minha casa sou eu e os meus caprichos.

    O orgulho carregado de inocnciaSe s vezes d uma varanda, vence-aO sal que os santos esboroou nos nichos.

    E telhados de vidro, e escadariasFrgeis, cobertas de hera, oh bronze falso!Lareira aberta ao vento, as salas frias.

    A minha casa... Mas outra a histria:Sou eu ao vento e chuva, aqui descalo,Sentado numa pedra de memria.

    *

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    Five oclocktea

    Eu canto o ch das cinco que minha Mulher ofereceu,s seis da tarde, ao longo da barra azul da sala,quela senhora inglesa que o Outono nos adiantou,

    To distinta, discreta, boa e doce,Naquela cadeira exposta ali na sala aos destinosDas pessoas que vo entrando;Aquela senhora de modos to finosE de dentes brancos onde j um ramo de tempo deita sombra;Aquela senhora, ali, inglesa, no seu vestido de miostis,De que no me atrevo a pedir ramo algumEnquanto bebo o meu ch, ao lado dela, pensandoEm tanto miostis que tenho visto e me tenho acanhado de pedir

    Ou por no ser tempo de miostis e ficar feio andar augado,Ou por no haver outra coisa nos jardins seno miostis e no me apetecer,[francamente

    E assim, imobilizado o meu plidoyesE falando francs quela senhora inglesa,Eu canto o ch dourado que minha Mulher lhe ofereceMinha Mulher, que no inglesa mas gosta de pessoas de Inglaterra,E ps a barra azul na sala, por poesia,E escureceu os mveis numa tarde toda douradaEm que mais triste se sentia.A senhora inglesa,Que uma amiga nossa que j esteve em Inglaterra nos trouxe para este dia;A senhora inglesa dos olhos claros;A senhora inglesa que s disse palavras correctas, coisas correctas,E insinuou, na tarde, uma sinuosidade e uma harmoniaS com o seu sim ou o seu no,O seu brao longo, desistido, inapetente, mas beloPrecisamente porque j o brao para o neto esfregar as gengivasE roer e rir, e rir e roer, meses depois de nascer,

    Como um belo guizo de oiro que s mesmo feito em Inglaterra!O brao que no ocupa lugar e mede pela asa da chvena( distncia a que a senhora inglesa a pe nos seus dedos como asas)O abismo que vai da senhora inglesa a um lugar da Inglaterra,E desta hora do ch a uma outra hora l dela,ntima, doce, nica, rara, ampla, esquecida,Que no existiu talvez seno para ser lembradaEm minha casa, esta tarde, e a comershort-breadQue assim a vida

    In O Bicho Harmonioso

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    Meu corao como um peixe cego,S o calor das guas o orienta,E por isso me arrasta aonde me nego;De puros impossveis me sustenta.

    O que eu tenho sentido mais que mar;Em fora e azul, cinco oceanos soma:Mas ainda h a tristeza a carregarE as coisas que s pesam pelo aroma.

    H o pas da espera e dos sinais,Se feitos, apagados na neblina,E a terra de tudo e muito mais,Onde a minha alma quase uma menina.

    Sentada no jardim de nunca, a triste!Se vale a pena em flor, essa ainda rego.Tudo o maisnem me agrava, nem existe:rida distraco, lnguido apego.

    InEu, Comovido a Oeste

    Antnio Ramos Rosa

    No posso adiar o amor para outro sculono possoainda que o grito sufoque na gargantaainda que o dio estale e crepite e ardasob as montanhas cinzentase montanhas cinzentas

    No posso adiar este brao

    que uma arma de dois gumesamor e dio

    No posso adiarainda que a noite pese sculos sobre as costase a aurora indecisa demoreno posso adiar para outro sculo a minha vidanem o meu amornem o meu grito de libertao

    No posso adiar o corao

    *

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    Para um amigo tenho sempre um relgioesquecido em qualquer fundo de algibeira.Mas esse relgio no marca o tempo intil.So restos de tabaco e de ternura rpida. um arco-ris de sombra, quente e trmulo. um copo de vinho com o meu sangue e o sol.

    In Viagem atravs duma Nebulosa

    Antnio Gedeo

    Impresso digital

    Os meus olhos so uns olhos.E com esses olhos unsque eu vejo no mundo escolhosonde outros, com outros olhos,no vem escolhos nenhuns.

    Quem diz escolhos diz flores.De tudo o mesmo se diz.Onde uns vem luto e doresuns outros descobrem coresdo mais formoso matiz.

    Nas ruas ou nas estradasonde passa tanta gente,uns vem pedras pisadas,mas outros, gnomos e fadasnum halo resplandecente.

    Intil seguir vizinhos,querer ser depois ou ser antes.Cada um seus caminhos.Onde Sancho v moinhosD. Quixote v gigantes.

    V moinhos? So moinhos.V gigantes? So gigantes.

    *

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    Pedra filosofal

    Eles no sabem que o sonho uma constante da vidato concreta e definida

    como outra coisa qualquer,como esta pedra cinzentaem que me sento e descanso,como este ribeiro mansoem serenos sobressaltos,como estes pinheiros altosque em verde e oiro se agitam,como estas aves que gritamem bebedeiras de azul.

    Eles no sabem que o sonho vinho, espuma, fermento,

    bichinho lacre e sedento,de focinho pontiagudo,que fossa atravs de tudonum perptuo movimento.

    Eles no sabem que o sonho tela, cor, pincel,

    base, fuste, capitel,arco em ogiva, vitral,pinculo de catedral,contraponto, sinfonia,mscara grega, magia,que retorta de alquimista,mapa do mundo distante,rosa-dos-ventos, Infante,caravela quinhentista,que cabo da Boa Esperana,

    ouro, canela, marfim,florete de espadachim,

    bastidor, passo de dana,Colombina e Arlequim,

    passarola voadora,pra-raios, locomotiva,barco de proa festiva,alto-forno, geradora,ciso do tomo, radar,

    ultra-som, televiso,

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    desembarque em foguetona superfcie lunar.

    Eles no sabem, nem sonham,que o sonho comanda a vida.

    Que sempre que um homem sonhao mundo pula e avanacomo bola coloridaentre as mos de uma criana.

    *

    Lgrima de preta

    Encontrei uma pretaque estava a chorar,pedi-lhe uma lgrimapara a analisar.

    Recolhi a lgrimacom todo o cuidadonum tubo de ensaio

    bem esterilizado.

    Olhei-a de um lado,do outro e de frente:tinha um ar de gotamuito transparente.

    Mandei vir os cidos,as bases e os sais,as drogas usadasem casos que tais.

    Ensaiei a frio,experimentei ao lume,de todas as vezesdeu-me o que costume:

    nem sinais de negro,nem vestgios de dio.gua (quase tudo)e cloreto de sdio.

    *

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    Poema do fecho clair

    Filipe II tinha um colar de oiro,tinha um colar de oiro com pedras rubis.Cingia a cintura com cinto de coiro,

    com fivela de oiro,olho de perdiz.

    Comia num pratode prata lavradagirafa trufada,rissis de serpente.O copo era um gomoque em flor desabrocha,de cristal de rocha

    do mais transparente.

    Andava nas salasforradas de Arrs,com panos por cima,

    pela frente e por trs.Tapetes flamengos,combates de galos,ales e podengos,falces e cavalos.

    Dormia na camade prata maciacom dossel de lhamade franja rolia.

    Na mesa do cantovermelho damasco,e a tbia de um santoguardada num frasco.

    Foi dono da Terra,foi senhor do Mundo,nada lhe faltava,Filipe Segundo.

    Tinha oiro e prata,pedras nunca vistas,safira, topzios,rubis, ametistas.

    Tinha tudo, tudosem peso nem conta,

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    bragas de veludo,pelias de lontra.Um homem to grandetem tudo o que quer.

    O que ele no tinhaera um fecho clair.

    In Obra Completa

    Miguel Torga

    Histria antiga

    Era uma vez, l na Judeia, um rei.Feio bicho, de resto:Uma cara de burro sem cabrestoE duas grandes tranas.A gente olhava, reparava, e viaQue naquela figura no haviaOlhos de quem gosta de crianas.

    E, na verdade, assim acontecia.Porque um dia,O malvado,S por ter o poder de quem reiPor no ter corao,Sem mais nem menos,Mandou matar quantos eram pequenos

    Nas cidades e aldeias da Nao.

    Mas,Por acaso ou milagre, aconteceu

    Que, num burrinho pela areia fora,FugiuDaquelas mos de sangue um pequenitoQue o vivo sol da vida acarinhou;E bastouEsse palmo de sonhoPara encher este mundo de alegria;Para crescer, ser Deus;E meter no inferno o tal das tranas,S porque ele no gostava de crianas.

    *

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    Lisboa, Cadeia do Aljube, 1 de Janeiro de 1940

    Ariane

    Ariane um navio.

    Tem mastros, velas e bandeira proa,E chegou num dia branco, frio,A este rio Tejo de Lisboa.

    Carregado de Sonho, fundeouDentro da claridade destas grades...Cisne de todos, que se foi, voltouS para os olhos de quem tem saudades...

    Foram duas fragatas ver quem era

    Um tal milagre assim: era um navioQue se balana ali minha esperaEntre gaivotas que se do no rio.

    Mas eu que no pude ainda por meus passosSair desta priso em corpo inteiro,E levantar a ncora, e cair nos braosDe Ariane, o veleiro.

    InDirio I

    Segredo

    Sei um ninho.E o ninho tem um ovo.E o ovo, redondinho,Tem l dentro um passarinho

    Novo.

    Mas escusam de me atentar:Nem o tiro, nem o ensino.Quero ser um bom meninoE guardarEste segredo comigo.E ter depois um amigoQue faa o pinoA voar

    InDirio VIII

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    A espera

    E a expedio partiu.Partiu, e o corao da me parou.E parado de angstia assim viveu.

    Enquanto a caravela no voltou.

    InPoemas Ibricos

    Manuel da Fonseca

    O vagabundo do mar

    Sou barco de vela e remosou vagabundo do mar.

    No tenho escala marcadanem hora para chegar: tudo conforme o vento,tudo conforme a mar...Muitas vezes acontecelargar o rumo tomadoda praia para onde ia...

    Foi o vento que virou?foi o mar que enraiveceue no h porto de abrigo?ou foi a minha vontadede vagabundo do mar?Sei l.Fosse o que fosseno tenho rota marcadaando ao sabor da mar. por isso, meus amigos,

    que a tempestade da Vidame apanhou no alto mar.E agoraqueira ou no queira,cara alegre e brao forte:estou no meu posto a lutar!Se for ao fundo acabou-se.Estas coisas acontecemaos vagabundos do mar.

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    Maria Campania

    Debaixo do leno azul com sua barra amarelaos lindos olhos que tem!Mas o rosto macerado

    de andar na ceifa e na mondadesde manh ao sol-posto,mas o jeitodas mos torcendo o xaile nos dedos de mgoa e abandono...Ai Maria Campania,levanta os olhos do choque eu quero ver nascer o sol!

    *

    Mataram a Tuna!

    Nos domingos antigos do bibe e piosaa a Tuna do Z Jacintotangendo violas e bandolinstocando a marcha Almadanim.

    Abriam janelas meninas sorrindo

    parava o comrcio pelas portase os campanios de vir vilatolhendo os passos escutando em grupo.Moos da rua tinham p leveo burro da nora da Quinta Novaespetava orelhas apreensivoManuel da gua punha gravata!Tudo mexia como acordadoao som da marcha Almadanim

    cantando a marcha Almadanim.Quem no sabia aquilo de cor?A gente cantava assobiava aquilo de cor...(s a Marianita se enganavaai s a Marianita se enganavaeu matava-me a ensinar...)que eu sabia de corinteirinha de core para mim domingo no era domingo

    era a marcha Almadanim!

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    Entanto as senhoras no gostavamfaziam troa dizendo coisasos senhores tambm no gostavamfaziam m cara para a Tuna:

    que era indecente aquela marchaparecia at coisa de doidos:no era msica era raivaaquela marcha Almadanim.

    Mas Z Jacinto no desistia.Vinha domingo e a Tuna na ruaenchendo a rua enchendo as casas.Voavam fitas coloridasraspavam notas violentas

    rasgava a Tuna o quebranto da vilatangendo nas violas e bandolinsa herica marcha Almadanim!

    Meus companheiros antigos do bibe e pioagora empregados no comrciodesenrolando fazenda medindo chitaagora sentadosdobrados nas secretrias do comrciocabeas pendidas jovens-velhinhos

    escrevendo no Deve e Haver somando somandona vila quietasem vidasem nadamais que o sossego das falas brandas...

    onde esto os domingos amarelos verdes azuis encarnadosvibrantes tangidos bandolins fitas violas gritosda herica marcha Almadanim?!

    meus amigos desgraadosse a vida curta e a morte infinitadespertemos e vamoseia!vamos fazer qualquer coisa de louco e hericocomo era a Tuna do Z Jacintotocando a marcha Almadanim!

    In Obra Potica

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    Eugnio de Andrade

    As palavras

    So como um cristal,as palavras.Algumas, um punhal,um incndio.Outras,orvalho apenas.

    Secretas vm, cheias de memria.Inseguras navegam:

    barcos ou beijos,

    as guas estremecem.

    Desamparadas, inocentes,leves.Tecidas so de luze so a noite.E mesmo plidasverdes parasos lembram ainda.

    Quem as escuta? Quem

    as recolhe, assim,cruis, desfeitas,nas suas conchas puras?

    In Corao do Dia

    Cano

    Tinha um cravo no meu balco;

    veio um rapaz e pediu-mome, dou-lho ou no?

    Sentada, bordava um leno de mo;veio um rapaz e pediu-mo

    me, dou-lho ou no?

    Dei o cravo e dei um leno,s no dei o corao;mas se o rapaz mo pedir

    me, dou-lho ou no?InPrimeiros Poemas

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    Urgentemente

    urgente o amor. urgente um barco no mar.

    urgente destruir certas palavrasdio, solido e crueldade,alguns lamentos,muitas espadas.

    urgente inventar alegria,multiplicar os beijos, as searas, urgente descobrir rosas e riose manhs claras.

    Cai o silncio nos ombros e a luzimpura, at doer. urgente o amor, urgente

    permanecer.

    InAt Amanh

    Sebastio da Gama

    O sonho

    Pelo Sonho que vamos,comovidos e mudos.Chegamos? No chegamos?Haja ou no haja frutos,

    pelo Sonho que vamos.

    Basta a f no que temos.

    Basta a esperana naquiloque talvez no teremos.Basta que a alma dmos,com a mesma alegria,ao que desconhecemose ao que do dia-a-dia.

    Chegamos? No chegamos?

    Partimos. Vamos. Somos.

    InPelo Sonho que Vamos

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    O papagaio

    Deixem-no l, deixem-no l, o papagaio!Deixem-no l, bem preso terra,vibrando!

    Aos arranques,a fazer tremer a terra,a querer voar

    pelo arat pertinho do Cu...

    Deixem-no l, deixem-no l, o papagaio!Deixem-no l viver a sua inquietaoe ser verdade aquela nsia

    de fugir.No lhe cortem o cordel!Poupem o papagaio dor enormede cair,

    papel intil roto, pelo cho.

    No lhe ensinem,ao pobre papagaio de papel,que a sua inquietao a nica fora que ele tem.

    Deixem-no l,naquela nsia de fuga,no sonho (a que uma navalha

    pode dar o triste fim)de fazer ninho no Cu:Sempre anda longe da terra, assim,o comprimento do cordel...

    Deixem-no l, deixem-no l,

    o papagaio de papel!...

    InItinerrio Paralelo

    Ruy Cinatti

    Meninos tomaram coragemPara beberem os rios;

    E comearam viagemPara chegarem aos rios.

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    Manh de partida,To fria, to alva.Horizonte encantado.Olhai, que ali nos vamos.

    Msculos ainda tenrosEmpurraram montanhas.As fontes da guaResvalam nos vales.

    Na foz de todos os riosOs meninos esto velhos.A gua bebidaVem do mar profundo.

    Meninos bailai.Bebei os soluos,Mas danai, danaiAt cair de bruos.

    *

    Quando eu partir, quando eu partir de novo,A alma e o corpo unidos,

    Num ltimo e derradeiro esforo de criao;Quando eu partir...Como se um outro ser nascesseDe uma crislida prestes a morrer sobre um muro estril,sem que o milagre lhe abrisseAs janelas da vida...Ento pertencer-me-ei.

    Na minha solido, as minhas lgrimasHo-de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescncia,eu serei o senhor da minha prpria liberdade.

    Nada ficar no lugar que eu ocupei.O ltimo adeus vir daquelas mos abertasQue ho-de abenoar um mundo renegado

    No silncio de uma noite em que um navioMe levar para sempreMas aliHei-de habitar no corao de certos que me amaram;Ali hei-de ser eu como eles prprios me sonharam;Irremediavelmente...

    Para sempre.InNs no Somos deste Mundo

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    Linha de rumo

    Quem no me deu Amor, no me deu nada.Encontro-me paradoOlho em redor e vejo inacabadoO meu mundo melhor.Tanto tempo perdidoCom que saudade o lembro e o bendigo:Campos de floresE silvasFonte da vida fui. Medito. Ordeno.Penso o futuro a haver.E sigo deslumbrado o pensamentoQue se descobre.

    Quem no me deu Amor, no me deu nada.Desterrado,Desterrado prossigo.E sonho-me sem Ptria e sem Amigos.Adrede.

    In O Livro do Nmada meu Amigo

    *

    Morte em Timor

    Sobre Timor um fogo fino paira,alastra, crepita quando da terra se aproximae crescente, envolvente, cerca os montese coroa se afirma.

    Meus olhos sentem a beleza rubraululante de ces pela noite fora,

    a pacincia da floresta destruda,catana na raiz e depois cinza.

    Minha incompreenso em vo procuraressuscitar as crenas vs de outrora,os bosques sagrados onde o frio habitano temor que as mos prende e petrifica.

    Minha imaginao em vo procuradeter com astros e outras mos a sina

    insidiosa qual a morte de homemancorado na rvore que sobre a terra se persigna.

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    E vejo um monte de palhaardendo do cimo ao mar que ondula e se derrama nas praiase contra o denso fumo que circunda,avano, resoluto, archote em vida,

    proclamando a verdade do cntico,a dana terreal que me fascina.

    *

    Anlise

    A ilha de terra e guae de efeito contra-mtuo:

    floresta que, tal a vaga,ascende do mar nuvem.O ar respiram-no todos:

    plantas, animais e homensque no fogo forjam armase com elas ferem lume.O fogo consome os homensem sua nudez telrica.gua, fogo, terra e arnutrem de nervo e almaum panorama essencial.O fogo o mais obscuro.

    In Uma Sequncia Timorense

    Alexandre ONeill

    Amigo

    Mal nos conhecemosInaugurmos a palavra amigo.

    Amigo um sorrisoDe boca em boca,Um olhar bem limpo,Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,Um corao pronto a pulsar

    Na nossa mo!

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    Amigo (recordam-se, vocs a,Escrupulosos detritos?)Amigo o contrrio de inimigo!

    Amigo o erro corrigido,

    No o erro perseguido, explorado, a verdade partilhada, praticada.

    Amigo a solido derrotada!

    Amigo uma grande tarefa,Um trabalho sem fim,Um espao til, um tempo frtil,Amigo vai ser, j uma grande festa!

    *

    Gaivota

    Se uma gaivota viessetrazer-me o cu de Lisboano desenho que fizesse,nesse cu onde o olhar uma asa que no voa,

    esmorece e cai no mar.

    Que perfeito coraono meu peito bateria,meu amor na tua mo,nessa mo onde cabia

    perfeito o meu corao.

    Se um portugus marinheiro,dos sete mares andarilho,

    fosse quem sabe o primeiroa contar-me o que inventasse,se um olhar de novo brilhono meu olhar se enlaasse.

    Que perfeito coraono meu peito bateria,meu amor na tua mo,nessa mo onde cabia

    perfeito o meu corao.

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    Se ao dizer adeus vidaas aves todas do cume dessem na despedidao teu olhar derradeiro,esse olhar que era s teu,amor que foste o primeiro.

    Que perfeito coraono meu peito morreria,meu amor na tua mo,nessa mo onde perfeito

    bateu o meu corao.

    *

    Auto-retrato

    ONeill (Alexandre), moreno portugus,cabelo asa de corvo; da angstia da cara,nariguete que sobrepuja de travsa ferida desdenhosa e no cicatrizada.Se a visagem de tal sujeito o que vs(omita-se o olho triste e a testa iluminada)o retrato moral tambm tem os seus qus(aqui, uma pequena frase censurada...)

    No amor? No amor cr (ou no fosse ele ONeill!)e tem a veleidade de o saber fazer(pois amor no h feito) das maneiras milque so a semovente esttua do prazer.

    Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-sedo que neste soneto sobre si mesmo disse

    InPoesias Completas

    David Mouro-Ferreira

    Barco negro

    De manh, que medoque me achasses feia.

    Acordei, tremendo,deitada nareia.

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    Mas logo os teus olhosdisseram que noe o sol penetrouno meu corao.

    Vi depois, numa rocha, uma cruze o teu barco negrodanava na luz.Vi teu brao acenando,entre as velas j soltas.Dizem as velhas da praiaque no voltas.So loucas! So loucas!

    Eu sei meu amorque nem chegaste a partir

    pois tudo em meu redorme diz que ests semprecomigo.

    No vento que lanaareia nos vidros,na gua que canta,no fogo mortio,

    no calor do leito,nos barcos vazios,dentro do meu peito

    sts sempre comigo!

    Maria Lisboa

    varina, usa chinela,tem movimentos de gata.

    Na canastra, a caravela;no corao, a fragata.

    Em vez de corvos, no xailegaivotas vm pousar.Quando o vento a leva ao baile,

    baila no baile coo mar.

    de conchas o vestido;tem algas na cabeleira;

    e nas veias o latidodo motor de uma traineira.

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    Vende sonho e maresia,tempestades apregoa.Seu nome prprio, Maria.Seu apelido, Lisboa.

    *

    Capital

    Casas, carros, casas, casos.Capital

    encarcerada.

    Colos, calos, cuspo, caspa.Cautos, castas. Calvos, cabras.Casos, casos... Carros, casas...Capital

    acumulado.

    E capuzes. E capotas.E que psames! Que passos!Em que pensas? Como passas?Capites. E capatazes.

    E cartazes. Que patadas!E que chaves! Cofres, caixas...Capital

    acautelado.Cascos, coxas, queixos, cornos.Os capazes. Os capados.Corpos. Corvos. Copos, copos.Capital,

    oh! capital,capital

    decapitada!

    *

    E por vezes

    E por vezes as noites duram mesesE por vezes os meses oceanosE por vezes os braos que apertamos

    nunca mais so os mesmos E por vezes

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    encontramos de ns em poucos meseso que a noite nos fez em muitos anosE por vezes fingimos que lembramosE por vezes lembramos que por vezes

    ao tomarmos o gosto aos oceanoss o sarro das noites no dos mesesl no fundo dos copos encontramos

    E por vezes sorrimos ou choramosE por vezes por vezes ah por vezesnum segundo se evolam tantos anos

    In Obra Potica

    Percy B. Shelley

    Love's philosophy

    Correm as fontes ao rioos rios correm ao mar;

    num enlace fugidioprendem-se as brisas no ar...Nada no mundo sozinho:por sublime lei do Cu,tudo frui outro carinho...

    No hei-de alcan-lo eu?

    Olha os montes adorandoo vasto azul, olha as vagasuma a outra se osculandotodas abraando as fragas...Vivos, rtilos desejos,no sol ardente os vers:

    Que me fazem tantos beijos,se tu a mim mos no ds?

    (trad. Lus Cardim) InHoras de Fuga

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    METAS CURRICULARES DE PORTUGUS

    CADERNO DE APOIO

    POESIA8.ANO

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    S de Miranda

    Comigo me desavim,sou posto em todo perigo;

    no posso viver comigonem posso fugir de mim.

    Com dor, da gente fugia,antes que esta assi crecesse;agora j fugiriade mim, se de mim pudesse.Que meo espero ou que fimdo vo trabalho que sigo,

    pois que trago a mim comigo,tamanho imigo de mim?

    *

    O sol grande, caem coa calma as aves,do tempo em tal sazo, que si ser fria;esta gua que dalto cai acordar-m-ia

    do sono no, mas de cuidados graves.

    cousas, todas vs, todas mudaves,qual tal corao quem vs confia?Passam os tempos vai dia trs dia,incertos muito mais que ao vento as naves.

    Eu vira j aqui sombras, vira flores,vi tantas guas, vi tanta verdura,as aves todas cantavam damores.

    Tudo seco e mudo; e, de mestura,tambm mudando-meu fiz doutras cores:e tudo o mais renova, isto sem cura!

    In Obras Completas

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    Lus Vaz de Cames

    Trovas

    a a cativa com quem andava damoresna ndia, chamada Brbora

    Aquela cativa,que me tem cativo,

    porque nela vivoj no quer que viva.Eu nunca vi rosaem suaves molhos,que para meus olhos

    fosse mais fermosa.

    Nem no campo flores,nem no cu estrelas,me parecem belascomo os meus amores.Rosto singular,olhos sossegados,

    pretos e cansados,mas no de matar.

    a graa viva,que neles lhe mora,

    para ser senhorade quem cativa.Pretos os cabelos,onde o povo vo

    perde opinioque os louros so belos.

    Pretido de Amor,to doce a figura,que a neve lhe juraque trocara a cor.Leda mansidoque o siso acompanha;

    bem parece estranha,mas brbora no.

    Presena serena

    que a tormenta amansa;nela enfim descansa

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    toda a minha pena.Esta a cativaque me tem cativo,e, pois nela vivo, fora que viva.

    *

    Cantiga

    a este moto:Descala vai para a fonteLeanor pela verdura;vai fermosa e no segura.

    Voltas

    Leva na cabea o pote,o testo nas mos de prata,cinta de fina escarlata,sainho de chamalote;traz a vasquinha de cote,mais branca que a neve pura;vai fermosa, e no segura.

    Descobre a touca a garganta,cabelos douro o tranado,fita de cor dencarnado,to linda que o mundo espanta;chove nela graa tantaque d graa fermosura;vai fermosa, e no segura.

    *

    Esparsa

    sua ao desconcerto do mundo

    Os bons vi sempre passarno mundo graves tormentos;e, para mais mespantar,os maus vi sempre nadarem mar de contentamentos.Cuidando alcanar assimO bem to mal ordenado,

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    fui mau, mas fui castigado:Assi que, s para mimanda o mundo concertado.

    *

    Alma minha gentil, que te partisteto cedo desta vida descontente,repousa l no Cu eternamente,e viva eu c na terra sempre triste.

    Se l no assento etreo, onde subiste,memria desta vida se consente,no te esqueas daquele amor ardente

    que j nos olhos meus to puro viste.

    E se vires que pode merecer-tealga cousa a dor que me ficouda mgoa, sem remdio, de perder-te,

    roga a Deus, que teus anos encurtou,que to cedo de c me leve a ver-te,quo cedo de meus olhos te levou.

    *

    Amor um fogo que arde sem se ver, ferida que di, e no se sente; um contentamento descontente, dor que desatina sem doer.

    um no querer mais que bem querer; um andar solitrio entre a gente; nunca contentar-se de contente;

    um cuidar que ganha em se perder.

    querer estar preso por vontade; servir a quem vence, o vencedor; ter com quem nos mata, lealdade.

    Mas como causar pode seu favornos coraes humanos amizade,se to contrrio a si o mesmo Amor?

    *

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    Aquela triste e leda madrugada,cheia toda de mgoa e de piedade,enquanto houver no mundo sadadequero que seja sempre celebrada.

    Ela s, quando amena e marchetadasaa, dando ao mundo claridade,viu apartar-se da outra vontade,que nunca poder ver-se apartada.

    Ela s viu as lgrimas em fio,que duns e doutros olhos derivadassacrescentaram em grande e largo rio.

    Ela viu as palavras magoadas

    que puderam tornar o fogo frio,e dar descanso s almas condenadas.

    *

    Busque Amor novas artes, novo engenho,para matar-me, e novas esquivanas;que no pode tirar-me as esperanas,que mal me tirar o que eu no tenho.

    Olhai de que esperanas me mantenho!Vede que perigosas seguranas!Que no temo contrastes nem mudanas,andando em bravo mar, perdido o lenho.

    Mas, conquanto no pode haver desgostoonde esperana falta, l me escondeAmor um mal, que mata e no se v.

    Que dias h que nalma me tem postoum no sei qu, que nasce no sei onde,vem no sei como, e di no sei porqu.

    *

    Erros meus, m fortuna, amor ardenteem minha perdio se conjuraram;os erros e a fortuna sobejaram,que para mim bastava o amor somente.

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    Tudo passei; mas tenho to presentea grande dor das cousas que passaram,que as magoadas iras me ensinarama no querer j nunca ser contente.

    Errei todo o discurso de meus anos;dei causa [a] que a Fortuna castigasseas minhas mal fundadas esperanas.

    De amor no vi seno breves enganos.Oh! quem tanto pudesse que fartasseeste meu duro gnio de vinganas!

    *

    O cu, a terra, o vento sossegado...As ondas, que se estendem pela areia...Os peixes, que no mar o sono enfreia...O nocturno silncio repousado...

    O pescador Anio, que, deitadoonde co vento a gua se meneia,chorando, o nome amado em vo nomeia,que no pode ser mais que nomeado:

    Ondas (dezia), antes que Amor me mate,torna-me a minha Ninfa, que to cedome fizestes morte estar sujeita.

    Ningum lhe fala; o mar de longe bate,move-se brandamente o arvoredo;leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita.

    *

    Quando de minhas mgoas a comprida

    maginao os olhos me adormece,em sonhos aquelalma me apareceque para mim foi sonho nesta vida.

    L na sodade, onde estendidaa vista pelo campo desfalece,corro parela; e ela ento pareceque mais de mim se alonga, compelida.

    Brado:No me fujais, sombra benina!

    Ela (os olhos em mim cum brando pejo,como quem diz que j no pode ser),

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    torna a fugir-me; e eu, gritando:Dina...antes que diga mene, acordo, e vejoque nem um breve engano posso ter.

    InLrica

    Almeida Garrett

    As minhas asas

    Eu tinha umas asas brancas,Asas que um anjo me deu,Que, em me eu cansando da terra,

    Batia-as, voava ao cu.Eram brancas, brancas, brancas,Como as do anjo que mas deu:Eu inocente como elas,Por isso voava ao cu.

    Veio a cobia da terra,Vinha para me tentar;Por seus montes de tesourosMinhas asas no quis dar.

    Veio a ambio, coas grandezas,Vinham para mas cortar,Davam-me poder e glriaPor nenhum preo as quis dar.

    Porque as minhas asas brancas,Asas que um anjo me deu,Em me eu cansando da terraBatia-as, voava ao cu.

    Mas uma noite sem luaQue eu contemplava as estrelas,E j suspenso da terra,Ia voar para elas,

    Deixei descair os olhosDo cu alto e das estrelas...Vi entre a nvoa da terra,Outra luz mais bela que elas.

    E as minhas asas brancas,Asas que um anjo me deu,

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    Para a terra me pesavam,J no se erguiam ao cu.

    Cegou-me essa luz funestaDe enfeitiados amores...

    Fatal amor, negra horaFoi aquela hora de dores!

    Tudo perdi nessa horaQue provei nos seus amoresO doce fel do deleite,O acre prazer das dores.

    E as minhas asas brancas,Asas que um anjo me deuPena a pena me caram...

    Nunca mais voei ao cu.

    InFlores sem Fruto

    Barca bela

    Pescador da barca bela,Onde vs pescar com ela,

    Que to bela,

    pescador?

    No vs que a ltima estrelaNo cu nublado se vela?

    Colhe a vela, pescador!

    Deita o lano com cautela,Que a sereia canta bela...

    Mas cautela,

    pescador!No se enrede a rede nela,Que perdido remo e vela

    S de v-la, pescador.

    Pescador da barca bela,Inda tempo, foge dela,

    Foge dela pescador!

    *

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    Seus olhos

    Seus olhosse eu sei pintarO que os meus olhos cegou

    No tinham luz de brilhar,Era chama de queimar;E o fogo que a ateouVivaz, eterno, divino,Como facho do Destino.

    Divino, eterno!e suaveAo mesmo tempo: mas graveE de to fatal poder,Que, um s momento que a vi,

    Queimar toda alma senti...Nem ficou mais de meu ser,Seno a cinza em que ardi.

    InFolhas Cadas

    Cantigas

    Cantiga de Amigo

    [Mendinho]

    Estava eu na ermida de So Simeo,cercaram-me as ondas que to altas so!

    eu esperando o meu amigo!eu esperando o meu amigo!

    Estando eu na ermida diante do altar,cercaram-me as ondas grandes do mar:

    eu esperando o meu amigo!

    eu esperando o meu amigo!

    Cercaram-me as ondas que to altas so!remador no tenho nem embarcao:

    eu esperando o meu amigo!eu esperando o meu amigo!

    Cercaram-me as ondas do alto mar;no tenho barqueiro e no sei remar:

    eu esperando o meu amigo!

    eu esperando o meu amigo!

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    Remador no tenho nem embarcao;morrerei formosa na imensido:

    eu esperando o meu amigo!eu esperando o meu amigo!

    No tenho barqueiro e no sei remarmorrerei formosa no alto mar:

    eu esperando o meu amigo!eu esperando o meu amigo!

    *

    Cantiga de Amigo[Nuno Fernandes Torneol]

    Ergue-te, amigo que dormes nas manhs frias!Todas as aves do mundo, de amor, diziam:

    alegre eu ando.

    Ergue-te, amigo que dormes nas manhs claras!Todas as aves do mundo, de amor, cantavam:

    alegre eu ando.

    Todas as aves do mundo, de amor, diziam;do meu amor e do teu se lembrariam:

    alegre eu ando.

    Todas as aves do mundo, de amor, cantavam;do meu amor e do teu se recordavam:

    alegre eu ando.

    Do meu amor e do teu se lembrariam;tu lhes tolheste os ramos em que eu as via:

    alegre eu ando.

    Do meu amor e do teu se recordavam;tu lhes tolheste os ramos em que pousavam:

    alegre eu ando.

    Tu lhes tolheste os ramos em que eu as via;e lhes secaste as fontes em que bebiam:

    alegre eu ando.

    Tu lhes tolheste os ramos em que pousavam;e lhes secaste as fontes que as refrescavam:

    alegre eu ando.

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    *

    Cantiga de Amigo (Pastorela)

    Pelo souto do Crescente

    uma pastora vi andar,muito afastada das gentes,erguendo a voz a cantar,em sua saia cingidaquando a luz do sol nascianas margens do rio Sar.

    E as aves que voavamquando rompia o alvor,

    os seus amores entoavampelos ramos de arredor.No sei de quem l estivesseque o pensamento pusessese no em coisas de amor.

    Ali estive muito quedo,quis falar e no ousei;disse-lhe, por fim, a medo:Senhora, falar-vos-ei,

    se me quiserdes ouvir,e se melhor vos servir,ordenai e eu partirei.

    Senhor, porSanta Maria,ide-vos, deixai-me s.Ver-vos partir preferiadeste lugar onde estou;

    pois quantos aqui chegarem,diro, se nos encontrarem,mais do que aqui se passou.

    *

    Cantiga de Amor de Mestria[D. Dinis]

    Os provenais que bem sabem trovar!e dizem eles que trovam com amor,

    mas os que s na estao da florvejo trovar jamais no corao

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    semelhante tristeza sentiroqual por minha senhora ando a levar.

    Muito bem trovam! Que bem sabem louvaras suas bem-amadas! Com que ardor

    os provenais lhes tecem um louvor!Mas os que trovam durante a estaoda flor e nunca antes, sei que noconhecem dor que minha se compare.

    Os que trovam e alegres vejo estarquando na flor est derramada a core que depois quando a estao se for,de trovar no mais se lembraro,esses, sei eu que nunca morreroda desventura que vejo a mim matar.

    In Cantares dos Trovadores Galego-Portugueses(Verso de Natlia Correia)

    Joo Roiz de Castel Branco

    Cantiga sua, partindo-se

    Senhora, partem tam tristesmeus olhos por vs, meu bem,que nunca tam tristes vistesoutros nenhs por ninguem.

    Tam tristes, tam saudosos,tam doentes da partida,tam cansados, tam chorosos,

    da morte mais desejososcem mil vezes que da vida.Partem tam tristes os tristes,tam fora desperar bemque nunca tam tristes vistesoutros nenhs por ninguem.

    In Cancioneiro Geral

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    Nicolau Tolentino de Almeida

    Chaves na mo, melena desgrenhada,batendo o p na casa, a Me ordena

    que o furtado colcho, fofo e de pena,a filha o ponha ali, ou a criada.

    A filha, moa esbelta e aparaltadaLhe diz coa doce voz que o ar serena:

    Sumiu-se-lhe um colcho, forte pena!Olhe no fique a casa arruinada

    Tu respondes assim? Tu zombas disto?Tu cuidas que, por teu pai embarcado,

    j a me no tem mos? E dizendo isto,

    Arremete-lhe cara e ao penteado;Eis seno quandocaso nunca visto!Sai-lhe o colcho de dentro do toucado.

    *

    De bolorentos livros rodeado

    Moro, Senhor, nesta fatal cadeiraDe quinze invernos a voraz carreiraMe tem no mesmo posto sempre achado,

    Longo tempo em pedir tenho gastado,E gastarei talvez a vida inteira;O ponto est em que quem pode queira,Que tudo o mais trabalhar errado.

    Prncipe Augusto, seja vossa a glria:

    Fazei que este infeliz ache ventura;Ajuntai mais um facto vossa histria.

    Mas, se inda aqui me segue a desventura,Cedo ao meu fado, e vou coa palmatriaCavar num canto da aula a sepultura.

    In Obras Completas

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    Bocage

    Magro, de olhos azuis, caro moreno,

    Bem servido de ps, meo na altura,Triste de facha, o mesmo de figura,Nariz alto no meio, e no pequeno;

    Incapaz de assistir num s terreno,Mais propenso ao furor do que ternura;Bebendo em nveas mos, por taa escura,De zelos infernais letal veneno;

    Devoto incensador de mil deidades

    (Digo, de moas mil) num s momento,E somente no altar amando os frades,

    Eis Bocage em quem luz algum talento;Saram dele mesmo estas verdades,

    Num dia em que se achou mais pachorrento.

    *

    O cu, de opacas sombras abafado,

    Tornando mais medonha a noite feia;Mugindo sobre as rochas, que salteia,O mar, em crespos montes levantado;

    Desfeito em furaces o vento irado;Pelos ares zunindo a solta areia;O pssaro nocturno, que vozeia

    No agoireiro cipreste alm pousado,

    Formam quadro terrvel, mas aceito,

    Mas grato aos olhos meus, grato ferezaDo cime e saudade, a que ando afeito.

    Quer no horror igualar-me a Natureza;Porm cansa-se em vo, que no meu peitoH mais escuridade, h mais tristeza.

    InRimas

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    Joo de Deus

    Boas noites

    Estava uma lavadeiraA lavar numa ribeira,Quando chega um caador:

    Boas tardes, lavadeira!

    Boas tardes, caador!

    Sumiu-se-me a perdigueiraAli naquela ladeira;

    No me fazeis o favorDe me dizer se a brejeiraPassou aqui a ribeira?

    Olhe que dessa maneiraAt um dia, senhor,Perdereis a caadeira,Que ainda perda maior.

    Que me importa, lavadeira!

    Aqui na minha algibeiraTrago dobrado valor...Assim eu fora senhorDe levar a vida inteiraS a ver o meu amorLavar roupa na ribeira!...

    Talvez que fosse melhor...Ver coser a costureira!Vir de ladeira em ladeira

    Apanhar esta canseira,E tudo s por amorDe ver uma lavadeiraLavar roupa na ribeira... escusado, senhor!

    Boas noites... lavadeira!

    Boas noites, caador!...

    In Campo de Flores

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    Antero de Quental

    As fadas

    As fadas eu creio nelas!

    Umas so moas e belas,Outras, velhas depasmarUmas vivem nos rochedos,Outras, pelos arvoredos,Outras, beira do mar

    Algumas em fonte friaEscondem-se, enquanto dia,Saem s ao escurecerOutras, debaixo da terra,

    Nas grutas verdes da serra, que se vo esconder

    O vestir so tais riquezas,Que rainhas, nem princesas

    Nenhuma assim se vestiu!Porque as riquezas das fadasSo sabidas, celebradasPor toda a gente que as viu

    Quando a noite clara e amenaE a lua vai mais serena,Qualquer as pode espreitar,Fazendo roda, ocupadasEm dobar suas meadasDe ouro e de prata, ao luar.

    O luar os seus amores!Sentadinhas entre as floresFicam-se horas sem fim,

    Cantando suas cantigas,Fiando suas estrigas,Em roca de oiro e marfim.

    Eu sei os nomes de algumas:Viviana ama as espumasDas ondas nos areais,Vive junto ao mar, sozinha,Mas costuma ser madrinha

    Nos baptizados reais.

    Morgana muito enganosa;s vezes, moa e formosa,

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    E outras, velha, a rir, a rirOra festiva, ora grave,E voa como uma ave,Se a gente lhe quer bulir.

    Que direi de Melusina?De Titnia, a pequenina,Que dorme sobre um jasmim?De cem outras, cuja glriaEnche as pginas da histriaDos reinos de el-rei Merlim?

    Umas tm mando nos ares;Outras, na terra, nos mares;E todas trazem na mo

    Aquela vara famosa,A vara maravilhosa,A varinha de condo.

    O que elas querem, num pronto,Fez-se ali! parece um contoMesmo de fadas eu sei!So condes, que do genteOu dinheiro reluzenteOu jias, que nem um rei!

    A mais pobre criancinhaSe quis ser sua madrinha,Uma fada ai, que feliz!So palcios, num momentoBeleza, que umportentoRiqueza, que nem se diz

    Ou ento, prendas, talento,Cincia, discernimento,

    Graas, chiste, discrioV-se o pobre inocentinhoFeito um sbio, um adivinho,Que aos mais sbios vai mo!

    Mas, com tudo isto, as fadasSo muito desconfiadas;Quem as v no h-de rir,Querem elas que as respeitem,E no gostam que as espreitem,

    Nem se lhes h-de mentir.Quem as ofende cautela!

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    A mais risonha, a mais bela,Torna-se logo to m,To cruel, to vingativa! inimiga agressiva, serpente que ali est!

    E tm vinganas terrveis!Semeiam coisas horrveis,Que nascem logo no choLnguas de fogo, que estalam!Sapos com asas, que falam!Um ano preto! um drago!

    Ou deitam sortes na genteO nariz faz-se serpente,

    A dar pulos, a crescer-se morcego ou veadoE anda-se assim encantado,Enquanto a fada quiser!

    Por isso quem por estradasFor, de noite, e vir as fadas

    Nos altos, mirando o cu,Deve com jeito falar-lhes,Muito corts e tirar-lhes

    At ao cho o chapu.

    Porque a fortuna da genteEst s vezes somente

    Numa palavra que diz.Por uma palavra, engraaUma fada com quem passaE torna-o logo feliz.

    Quantas vezes j deitado,

    Mas sem sono, inda acordadoMe ponho a considerarQue condo eu pediria,Se uma fada, um belo dia,Me quisesse a mim fadar

    O que seria? Um tesoiro?Um reino? Um vestido de oiro?Ou um leito de marfim?Ou um palcio encantado,

    Com seu lago prateadoE com paves no jardim?

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    Ou podia, se eu quisesse,Pedir tambm que me desseUm condo, para falarA lngua dos passarinhos,Que conversam nos seus ninhosOu ento, saber voar!

    Oh, se esta noite, sonhando,Alguma fada, engraandoComigo (podia ser?)Me tocasse coa varinhaE fosse minha madrinha,Mesmo a dormir, sem a ver

    E que amanh acordasse

    E me achasse eu sei! me achasseFeito um prncipe, um emir!At j, imaginando,Se esto meus olhos fechandoDeixa-me j, j dormir!

    In Tesouro Potico da Infncia

    O palcio da ventura

    Sonho que sou um cavaleiro andante.Por desertos, por sis, por noite escura,Paladino do amor, busco anelanteO palcio encantado da Ventura!

    Mas j desmaio, exausto e vacilante,Quebrada a espada j, rota a armadura...E eis que sbito o avisto, fulgurante

    Na sua pompa e area formosura!

    Com grandes golpes bato porta e brado:Eu sou o Vagabundo, o DeserdadoAbri-vos, portas douro, ante meus ais!

    Abrem-se as portas douro, com fragor...Mas dentro encontro s, cheio de dor,Silncio e escuridoe nada mais!

    *

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    Na mo de Deus

    Na mo de Deus, na sua mo direita,Descansou afinal meu corao.Do palcio encantado da Iluso

    Desci a passo e passo a escada estreita.

    Como as flores mortais, com que se enfeitaA ignorncia infantil, despojo vo,Depus do Ideal e da PaixoA forma transitria e imperfeita.

    Como criana, em lbrega jornada,Que a me leva no colo agasalhadaE atravessa, sorrindo vagamente,

    Selvas, mares, areias do deserto...Dorme o teu sono, corao liberto,Dorme na mo de Deus eternamente!

    In Sonetos

    Guerra Junqueiro

    Lar

    Ai, h quantos anos que eu parti chorandoDeste meu saudoso, carinhoso lar!...Foi h vinte?... h trinta?... Nem eu sei j quando!...Minha velha ama, que me ests fitando,Canta-me cantigas para me eu lembrar!...

    Dei a volta ao mundo, dei a volta Vida...S achei enganos, decepes, pesar...Oh! a ingnua alma to desiludida!...Minha velha ama, com a voz dorida,Canta-me cantigas de me adormentar!...

    Trago damargura o corao desfeito...V que fundas mgoas no embaciado olhar!

    Nunca eu sara do meu ninho estreito!...Minha velha ama que me deste o peito,Canta-me cantigas para me embalar!...

    Ps-me Deus outrora no frouxel do ninhoPedrarias dastros, gemas de luar...Tudo me roubaram, v, pelo caminho!...

    Minha velha ama, sou um pobrezinho...Canta-me cantigas de fazer chorar!

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    Como antigamente, no regao amado,(Venho morto, morto!...) deixa-me deitar!Ai, o teu menino como est mudado!Minha velha ama, como est mudado!Canta-lhe cantigas de dormir, sonhar!...

    Canta-me cantigas, manso, muito manso...Tristes, muito tristes, como noite o mar...Canta-me cantigas para ver se alcanoQue a minhalma durma, tenha paz, descanso,Quando a Morte, em breve, ma vier buscar!...

    *

    A moleirinha

    Pela estrada plana, toque, toque, toqueGuia o jumentinho uma velhinha errante.Como vo ligeiros, ambos a reboque,Antes que anoitea, toque, toque, toque,A velhinha atrs, o jumentito adiante!...

    Toque, toque, a velha vai para o moinho,Tem oitenta anos, bem bonito rol!...E contudo alegre como um passarinho,Toque, toque, e fresca como o branco linho,

    De manh nas relvas a corar ao sol.

    Vai sem cabeada, em liberdade franca,O jerico ruo duma linda cor;

    Nunca foi ferrado, nunca usou retranca,Tange-o, toque, toque, moleirinha brancaCom o galho verde duma giesta em flor.

    Vendo esta velhita, encarquilhada e benta,Toque, toque, toque, que recordao!

    Minha av ceguinha se me representa...Tinha eu seis anos, tinha ela oitenta,Quem me fez o bero fez-lhe o seu caixo!...

    Toque, toque, toque, lindo burriquito,Para as minhas filhas quem mo dera a mim!

    Nada mais gracioso, nada mais bonito!Quando a virgem pura foi para o Egipto,Com certeza ia num burrico assim.

    Toque, toque, tarde, moleirinha santa!Nascem as estrelas, vivas, em cardume...

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    Toque, toque, toque, e quando o galo canta,Logo a moleirinha, toque, se levanta,Pra vestir os netos, pra acender o lume...

    Toque, toque, toque, como se espaneja,

    Lindo o jumentinho pela estrada ch!To ingnuo e humilde, d-me, salvo seja,D-me at vontade de o levar igreja,Baptizar-lhe a alma, pr fazer crist!

    Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga,Toda, toda branca, vai numa frescata...Foi enfarinhada, sorridente amiga,Pela m da azenha com farinha triga,Pelos anjos loiros com luar de prata!...

    Toque, toque, como o burriquito avana!Que prazer doutrora para os olhos meus!Minha av contou-me quando fui criana,Que era assim tal qual a jumentinha mansaQue adorou nas palhas o menino Deus...

    Toque, toque, noite... ouvem-se ao longe os sinos,Moleirinha branca, branca de luar!Toque, toque, e os astros abrem diamantinos,

    Como estremunhados querubins divinos,Os olhitos meigos para a ver passar...

    Toque, toque, e vendo sideral tesoiro,Entre os milhes dastros o luar sem vu,O burrico pensa: Quanto milho loiro!Quem ser que mi estas farinhas doiroCom a m de jaspe que anda alm no Cu!

    In Os Simples

    Cesrio Verde

    De tarde

    Naquelepic-nic de burguesas,Houve uma cousa simplesmente bela,

    E que, sem ter histria nem grandezas,Em todo o caso dava uma aguarela.

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    Foi quando tu, descendo do burrico,Foste colher, sem imposturas tolas,A um granzoal azul de gro-de-bicoUm ramalhete rubro de papoulas.

    Pouco depois, em cima duns penhascos,Ns acampmos, inda o sol se via;E houve talhadas de melo, damascos,E po-de-l molhado em malvasia.

    Mas, todo prpuro a sair da rendaDos teus dois seios como duas rolas,Era o supremo encanto da merendaO ramalhete rubro das papoulas!

    *

    A dbil

    Eu, que sou feio, slido, leal,A ti, que s bela, frgil, assustada,Quero estimar-te, sempre, recatada

    Numa existncia honesta, de cristal.

    Sentado mesa dum caf devasso,Ao avistar-te, h pouco, fraca e loura,

    Nesta Babel to velha e corruptora,Tive tenes de oferecer-te o brao.

    E, quando deste esmola a um miservel,Eu, que bebia clices de absinto,Mandei ir a garrafa, porque sintoQue me tornas prestante, bom, saudvel.

    Ela a vem! disse eu para os demais;

    E pus-me a olhar, vexado e suspirando,O teu corpo que pulsa, alegre e brando,

    Na fresquido dos linhos matinais.

    Via-te pela porta envidraada;E invejavatalvez que o no suspeites!Esse vestido simples, sem enfeites,

    Nessa cintura tenra, imaculada.

    Ia passando, a quatro, o patriarca.

    Triste, eu deixei o botequim, pressa;

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    Uma turba ruidosa, negra, espessa,Voltava das exquias dum monarca.

    Adorvel! Tu, muito natural,Seguias a pensar no teu bordado;

    Avultava, num largo arborizado,Uma esttua de rei num pedestal.

    Sorriam, nos seus trens, os titulares;E ao claro sol, guardava-te, no entanto,A tua boa me, que te ama tantoQue no te morrer sem te casares!

    Soberbo dia! Impunha-me respeitoA limpidez do teu semblante grego;

    E uma famlia, um ninho de sossego,Desejava beijar sobre o teu peito.

    Com elegncia e sem ostentao,Atravessavas branca, esbelta e fina,Uma chusma de padres de batina,E daltos funcionrios da nao.

    Mas se a atropela o povo turbulento!Se fosse, por acaso, ali pisada!

    De repente paraste, embaraada,Ao p dum numeroso ajuntamento.

    E eu, que urdia estes fceis esbocetos,Julguei ver, com a vista de poeta,Uma pombinha tmida e quieta

    Num bando ameaador de corvos pretos.

    E foi, ento, que eu, homem varonil,Quis dedicar-te a minha pobre vida,

    A ti que s tnue, dcil, recolhida,Eu, que sou hbil, prtico, viril.

    Cnticos do Realimo e outros Poemas/ O Livro de Cesrio Verde

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    Antnio Nobre

    Fala ao corao

    Meu Corao, no batas, pra!Meu Corao vai-te deitar!A nossa dor, bem sei, amara,A nossa dor, bem sei, amara:Meu Corao, vamos sonharAo Mundo vim, mas enganado.Sinto-me farto de viver:Vi o que ele era, estou maado,Vi o que ele era, estou maado.

    No batas mais! vamos morrer...Bati porta da VenturaNingum ma abriu, bati em vo:Vamos a ver se a sepultura,Vamos a ver se a sepultura

    Nos faz o mesmo, Corao!Adeus, Planeta! adeus, Lama!Que a ambos ns vais digerir.Meu Corao, a Velha chama,Meu Corao, a Velha chama:

    Basta, por Deus! vamos dormir...

    *

    Menino e moo

    Tombou da haste a flor da minha infncia alada,Murchou na jarra de oiro o pudico jasmim:Voou aos altos Cus a pomba enamorada

    Que dantes estendia as asas sobre mim.

    Julguei que fosse eterna a luz dessa alvorada,E que era sempre dia, e nunca tinha fimEssa viso de luar que vivia encantada,

    Num castelo de prata embutido a marfim!

    Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infncia,Que me enchiam de Lua o corao, outrora,Partiram e no Cu evolam-se, a distncia!

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    Debalde clamo e choro, erguendo aos Cus meus ais:Voltam na asa do Vento os ais que a alma chora,Elas, porm, Senhor! elas no voltam mais...

    *

    Na praia l da Boa Nova, um dia,Edifiquei (foi esse o grande mal)Alto Castelo, o que a fantasia,Todo de lpis-lazli e coral!

    Naquelas redondezas, no haviaQuem se gabasse dum domnio igual:Oh Castelo to alto! parecia.

    O territrio dum Senhor feudal!

    Um dia (no sei quando, nem sei donde)Um vento seco de mau sestro e spleenDeitou por terra, ao p que tudo esconde,

    O meu condado, o meu condado, sim!Porque eu j fui um poderoso Conde,

    Naquela idade em que se conde assim...

    *

    Aqui, sobre estas guas cor de azeite,Cismo em meu Lar, na paz que l havia.Carlota, noite, ia ver se eu dormiaE vinha, de manh, trazer-me o leite.

    Aqui, no tenho um nico deleite!Talvez... baixando, em breve, gua fria,Sem um beijo, sem umaAve-Maria,

    Sem uma flor, sem o menor enfeite!

    Ah pudesse eu voltar minha infncia!Lar adorado, em fumos, a distncia,Ao p de minha Irm, vendo-a bordar:

    Minha velha Aia! conta-me essa histriaQue principiava, tenho-a na memria,Era uma vez...

    Ah deixem-me chorar!

    In S

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    Petrarca

    Soneto 132

    Se amor no , qual meu sentimento?mas se amor, por Deus, que cousa e qual?se boa, que do efeito spro e mortal?se m, o que que adoa tal tormento?

    Se ardo a bom grado, onde pranto e lamento?e se a mau grado, o lamentar que val? viva morte, deleitoso mal,tanto em mim podes sem consentimento?

    E em sem razo me queixo, se o tolero.E em to contrrios ventos, frgil barcame leva em alto mar e sem governo,

    to cheia de erros, de saber to parca,que eu mesmo nem sequer sei o que quero,e a tremer no estio, ardo de inverno.

    (trad. Vasco Graa Moura) InAs Rimas de Petrarca

    William Shakespeare

    Soneto XCVIII (De ti me separei na Primavera)De ti me separei na Primavera:quando o risonho Abril, ao sol voando,em cor e luz, a plenas mos, cantando,nova alegria entorna pela esfera

    No viridente bosque at disserao pesado Saturno ver folgandoPorm nem cor vistosa ou cheiro brandolograram incender minha quimera.

    A brancura dos lrios, no a viO vermelho das rosas desmaiavaEram fantasmas s ao p de ti

    o seu modeloquanto lhes faltava!

    Parcia Inverno; e eu, a viva alfombra,S pude imagin-la a tua sombra.

    (trad. Lus Cardim) In Colquio Letras n.

    168/169 (Imagens da Poesia Europeia II)

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    METAS CURRICULARES DE PORTUGUS

    CADERNO DE APOIO

    POESIA9.ANO

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    Fernando Pessoa

    [O aldeo]

    sino da minha aldeia,Dolente na tarde calma,Cada tua badaladaSoa dentro da minha alma.

    E to lento o teu soar,To como triste da vida,Que j a primeira pancadaTem o som de repetida.

    Por mais que me tanjas perto,Quando passo, sempre errante,s para mim como um sonho,Soas-me na alma distante.

    A cada pancada tua,Vibrante no cu aberto,Sinto mais longe o passado,Sinto a saudade mais perto.

    *

    O Menino da sua Me

    No plaino abandonadoQue a morna brisa aquece,De balas traspassadoDuas, de lado a lado,Jaz morto, e arrefece.

    Raia-lhe a farda o sangue.De braos estendidos,Alvo, louro, exangue,Fita com olhar langueE cego os cus perdidos.

    To jovem! que jovem era!(Agora que idade tem?)Filho nico, a me lhe dera

    Um nome e o mantivera:O menino da sua me.

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    Caiu-lhe da algibeiraA cigarreira breve.Dera-lha a me. Est inteiraE boa a cigarreira.Ele que j no serve.

    De outra algibeira, aladaPonta a roar o solo,A brancura embainhadaDe um leno... Deu-lho a criadaVelha que o trouxe ao colo.

    L longe, em casa, h a prece:Que volte cedo, e bem!(Malhas que o Imprio tece!)Jaz morto, e apodrece,O menino da sua me.

    *

    Se estou s, quero no star,Se no stou, quero star s.Enfim, quero sempre estarDa maneira que no estou.

    Ser feliz ser aquele.E aquele no feliz,Porque pensa dentro deleE no dentro do que eu quis.

    A gente faz o que querDaquilo que no nada,Mas falha se o no fizerFica perdido na estrada.

    In Obra Potica

    O Mostrengo

    O mostrengo que est no fim do marNa noite de breu ergueu-se a voar; roda da nau voou trs vezes,Voou trs vezes a chiar,

    E disse, Quem que ousou entrarNas minhas cavernas que no desvendo,

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    Meus tectos negros do fim do mundo?E o homem do leme disse, tremendo,El-Rei D. Joo Segundo!

    De quem so as velas onde me roo?

    De quem as quilhas que vejo e ouo?Disse o mostrengo, e rodou trs vezes,Trs vezes rodou imundo e grosso,Quem vem poder o que s eu posso,Que moro onde nunca ningum me visseE escorro os medos do mar sem fundo?E o homem do leme tremeu, e disse,El-Rei D. Joo Segundo!

    Trs vezes do leme as mos ergueu,Trs vezes ao leme as reprendeu,E disse no fim de tremer trs vezes,Aqui ao leme sou mais do que eu:Sou um Povo que quer o mar que teu;E mais que o mostrengo, que me a alma temeE roda nas trevas do fim do mundo,Manda a vontade, que me ata ao leme.De El-Rei D. Joo Segundo!

    *

    Mar Portugus

    mar salgado, quanto do teu salSo lgrimas de Portugal!Por te cruzarmos, quantas mes choraram,Quantos filhos em vo rezaram!Quantas noivas ficaram por casarPara que fosses nosso, mar!

    Valeu a pena? Tudo vale a penaSe a alma no pequena.Quem quer passar alm do BojadorTem que passar alm da dor.Deus ao mar o perigo e o abismo deu,Mas nele que espelhou o cu.

    InMensagem

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    Camilo Pessanha

    Floriram por engano as rosas bravasNo inverno: veio o vento desfolh-las...

    Em que cismas, meu bem? Porque me calasAs vozes com que h pouco me enganavas?

    Castelos doidos! To cedo castes!...Onde vamos, alheio o pensamento,De mos dadas? Teus olhos, que um momentoPerscrutaram nos meus, como vo tristes!

    E sobre ns cai nupcial a neve,Surda, em triunfo, ptalas, de leveJuncando o cho, na acrpole de gelos...

    Em redor do teu vulto como um vu!Quem as esparzequanta flor!do cu,Sobre ns dois, sobre os nossos cabelos?

    *

    (A Aires de Castro e Almeida)

    Quando voltei encontrei os meus passosAinda frescos sobre a hmida areia.A fugitiva hora, reevoquei-a,

    To rediviva! nos meus olhos baos...

    Olhos turvos de lgrimas contidas.Mesquinhos passos, porque doidejastesAssim transviados, e depois tornastesAo ponto das primeiras despedidas?

    Onde fostes sem tino, ao vento vrio,Em redor, como as aves num avirio,At que a asita fofa lhes falea...

    Toda esta extensa pistapara qu?Se h-de vir apagar-vos a mar,Com as do novo rasto que comea...

    In Clepsidra

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    Mrio de S-Carneiro

    Quasi

    Um pouco mais de soleu era brasa,Um pouco mais de azuleu era alm.Para atingir, faltou-me um golpe dasaSe ao menos eu permanecesse aqum...

    Assombro ou paz? Em vo... Tudo esvadoNum baixo mar enganador despuma;E o grande sonho despertado em bruma,O grande sonho dor!quasi vivido...

    Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,Quasi o princpio e o fimquasi a expanso...Mas na minhalma tudo se derrama...Entanto nada foi s iluso!

    De tudo houve um comeo... e tudo errou...Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim...Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,Asa que se elanou mas no voou...

    Momentos dalma que desbaratei...

    Templos aonde nunca pus um altar...Rios que perdi sem os levar ao mar...nsias que foram mas que no fixei...

    Se me vagueio, encontro s indciosOgivas para o solvejo-as cerradas;E mos dheri, sem f, acobardadas,Puseram grades sobre os precipcios...

    Num mpeto difuso de quebranto,

    Tudo encetei e nada possu...Hoje, de mim, s resta o desencantoDas coisas que beijei mas no vivi

    Um pouco mais de sole fora brasa,Urn pouco mais de azule fora alm.Para atingir, faltou-me um golpe dasaSe ao menos eu permanecesse aqum

    InDisperso

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    O recreio

    Na minhAlma h um balouoQue est sempre a balouarBalouo beira dum poo,

    Bem difcil de montar...

    E um menino de bibeSobre ele sempre a brincar...

    Se a corda se parte um dia(E j vai estando esgarada),Era uma vez a folia:Morre a criana afogada...

    C por mim no mudo a cordaSeria grande estopada...

    Se o indez morre, deix-lo...Mais vale morrer de bibeQue de casaca... Deix-loBalouar-se enquanto vive...

    Mudar a corda era fcil...Tal ideia nunca tive...

    InIndcios de Oiro

    Irene Lisboa

    Escrever

    Se eu pudesse havia de transformar as palavras

    em clava.Havia de escrever rijamente.Cada palavra seca, irressonante, sem msica.Como um gesto, uma pancada brusca e sbria.Para qu todo este artifcio da composio sintc-tica e mtrica?Para qu o arredondado lingustico?Gostava de atirar palavras.Rpidas, secas e brbaras, pedradas!Sentidos prprios em tudo.Amo? Amo ou no amo.

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    Vejo, admiro, desejo?Ou sim ou no.E, como isto, continuando.

    E gostava para as infinitamente delicadas coisas

    do espritoQuais, mas quais?Gostava, em oposio com a braveza do jogo da

    pedrada, do tal ataque s coisas certas e negadasGostava de escrever com um fio de gua.Um fio que nada traasse.Fino e sem cor, medroso.

    infinitamente delicadas coisas do esprito!Amor que se no tem, se julga ter.Desejo dispersivo.Vagos sofrimentos.Ideias sem contorno.Apreos e gostos fugitivos.Ai! o fio da gua, o prprio fio da gua sobrevs passaria, transparentemente?Ou vos seguiria humilde e tranquilo?

    *

    Monotonia

    Comear, recomear, interminamente repetir ummontono romance, o romance da minha vida.Com palavras iguais, inalterveis, semelhantes, in-sistir sobre o cansao e a pobreza disto de viver...Andar como os dementes pelos cantos a repisaro que j ningum quer ouvir.Levar o meu desprecioso tempo deriva.

    Queixar-me, castigar e lamentar sem qualqueresperana, por desfastio.Pr a nu uma misria comum e conhecida, ch-mente, serenamente, indiferente beleza dos temase das concluses.Monotonamente, monotonamente.

    Monotonia. Arte, vida...No serei ainda eu que te erigirei o merecido

    altar.Que te manejarei hbil e serena.

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    Monotonia! Gume frio, acerado, tenaz, eloquente.Sino de poucos tons, impressionante.Mas se te descobri no te vou renegar.Tu ensinas-me, tu insinuas-me a arte da verdade,a pobreza e a constncia.Monotonia, torna-me desinteressada.

    In Um Dia e outro Dia Outono Havias de Vir Latente, Triste

    Almada Negreiros

    Lus, o poetasalva a nado o poema

    Era uma vezum portugusde Portugal.O nome Lush-de bastartoda a naoouviu falar.Estala a guerra

    E Portugalchama Luspara embarcar.Na guerra andoua guerreare perde um olho

    por Portugal.Livre da morte

    ps-se a contaro que sabiade Portugal.Dias e diasgrande pensar

    juntou Lusa recordar.Ficou um livroao terminarmuito importante

    para estudar.

    Ia num barcoia no mar

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    e a tormentav destalar.Mais do que a vidah-de guardaro barco a piqueLus a nadar.Fora da guaUm brao no arna mo o livroh-de salvar.

    Nada que nadasempre a nadarlivro perdidono alto mar.

    Mar ignoranteque queres roubar?a minha vidaou este cantar?A vida minhata posso darmas este livroh-de ficar.Estas palavras

    ho-de durarpor minha vidaquero jurar.Tira-me as foras

    podes matara minha almasabe voar.Sou portugusde Portugaldepois de mortono vou mudar.Sou portugusde Portugalacaba a vidae sigo igual.Meu corpo Terrade Portugale morto ilhano alto mar.

    H portuguesesa navegar

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    por sobre as ondasme ho-de achar.A vida mortaaqui a boiarmas no o livrose h-de molhar.Estas palavrasvo alegrara minha gentede um s pensar. nossa terrairo pararl toda a genteh-de gostar.

    S uma coisavo olvidar:o seu autoraqui a nadar. fado nosso nacionalno h portuguesesh Portugal.Saudades tenho

    mil e sem parsaudade vidasem se lograr.A minha vidavai acabarmas estes versosho-de gravar.O livro este este o cantarassim se pensaem Portugal.Depois de prontofaltava dara minha vida

    para o salvar.

    In Obras CompletasPoesia

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    Jos Gomes Ferreira

    V

    (Encontrei na Brasileira do Rossio o Manuel Mendes

    a primeira pessoa a quem li estes versos.)

    Nunca encontrei um pssaro morto na floresta.

    Em vo andei toda a manha procurar entre as rvoresum cadver pequeninoque desse o sangue s florese as asas s folhas secas...

    Os pssaros quando morremcaem no cu.

    InPoeta Militante I

    XXV

    (Na praia. O menino aprende a linguagem das nuvens.)

    Aquela nuvemparece um cavalo...

    Ah! se eu pudesse mont-lo!

    Aquela?Mas j no um cavalo, uma barca vela.

    No faz mal.Queria embarcar nela.

    Aquela?

    Mas j no um navio, uma Torre Amarelaa vogar no frioonde encerraram uma donzela.

    No faz mal.Quero ter asas

    para a espreitar da janela.

    V, lancem-me no mar

    donde voam as nuvenspara ir numa delas

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    tomar mil formascom sabor a sal

    labirinto de sombras e de cisnesno cu de gua-sol-vento-luz concreto e irreal...

    InPoeta Militante II

    III

    (Todas as manhs, descia a Charca em direco aoColgio Colgio Francs, dirigido pelo Sr. Silva

    sempre com um sorriso de fraque cnico e a palmatriana gaveta da secretria.)

    O tempo parou

    no caminho para a escolamusgo de voo,asas de gaiola.

    s vezes no passado a morte assim.Continua-se vivo.

    S a gravidade muda de leipedra que pra sem peso no ar do jardime no torno a v-la quebrar o vidroque eu quebrei.

    *

    XIX

    (De p, humilhado diante do quadro preto.)

    Errei as contas no quadro,preguia de giz negroe to bom parecer estpido!

    Minado pelo sonholiberdade secreta,rosto de espelho opaco.

    Assim tambm a noiteque eu via atravs das janelas fechadas

    sozinho na cama quente de solido.

    E tantas, tantas somas de estrelas erradas.

    InPoeta Militante III

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    Jorge de Sena

    Uma pequenina luz

    Uma pequenina luz bruxuleanteno na distncia brilhando no extremo da estradaaqui no meio de ns e a multido em voltaune toute petite lumire

    just a little lightuna piccola... em todas as lnguas do mundouma pequena luz bruxuleante

    brilhando incerta mas brilhandoaqui no meio de ns

    entre o bafo quente da multidoa ventania dos cerros e a brisa dos marese o sopro azedo dos que a no vems a adivinham e raivosamente assopram.Uma pequena luzque vacila exactaque bruxuleia firmeque no ilumina apenas brilha.Chamaram-lhe voz ouviram-na e muda.Muda como a exactido como a firmeza

    como a justia.Brilhando indefectvel.Silenciosa no crepitano consome no custa dinheiro.

    No ela que custa dinheiro.No aquece tambm os que de frio se juntam.No ilumina tambm os rostos que se curvam.Apenas brilha bruxuleia ondeiaindefectvel prxima dourada.

    Tudo incerto ou falso ou violento: brilha.Tudo terror vaidade orgulho teimosia: brilha.Tudo pensamento realidade sensao saber: brilha.Tudo treva ou claridade contra a mesma treva: brilha.Desde sempre ou desde nunca para sempre ou no:

    brilha.Uma pequenina luz bruxuleante e mudacomo a exactido como a firmezacomo a justia.

    Apenas como elas.Mas brilha.

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    No na distncia. Aquino meio de ns.Brilha.

    *

    Cames dirige-se aos seus contemporneos

    Podereis roubar-me tudo:as ideias, as palavras, as imagens,e tambm as metforas, os temas, os motivos,os smbolos, e a primazianas dores sofridas de uma lngua nova,no entendimento de outros, na coragem

    de combater, julgar, de penetrarem recessos de amor para que sois castrados.E podereis depois no me citar,suprimir-me, ignorar-me, aclamar atoutros ladres mais felizes.

    No importa nada: que o castigoser terrvel. No s quandovossos netos no souberem j quem soistero de me saber melhor aindado que fingis que no sabeis,como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,reverter para o meu nome. E mesmo ser meu,tido por meu, contado como meu,at mesmo aquele pouco e miservelque, s por vs, sem roubo, havereis feito.

    Nada tereis, mas nada: nem os ossos,que um vosso esqueleto h-de ser buscado,

    para passar por meu. E para outros ladres,iguais a vs, de joelhos, porem flores no tmulo.

    *

    Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya

    No sei, meus filhos, que mundo ser o vosso. possvel, porque tudo possvel, que ele sejaaquele que eu desejo para vs. Um simples mundo,onde tudo tenha apenas a dificuldade que advmde nada haver que no seja simples e natural.

    Um mundo em que tudo seja permitido,conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,

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    o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vs.E possvel que no seja isto, nem seja sequer istoo que vos interesse para viver. Tudo possvel,ainda quando lutemos, como devemos lutar,

    por quanto nos parea a liberdade e a justia,ou mais que qualquer delas uma fieldedicao honra de estar vivo.Um dia sabereis que mais que a humanidadeno tem conta o nmero dos que pensaram assim,amaram o seu semelhante no que ele tinha de nico,de inslito, de livre, de diferente,e foram sacrificados, torturados, espancados,e entregues hipocritamente secular justia,

    para que os liquidasse com suma piedade e sem efuso de sangue.

    Por serem fiis a um deus, a um pensamento,a uma ptria, uma esperana, ou muito apenas fome irrespondvel que lhes roa as entranhas,foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,e os seus corpos amontoados to anonimamente quanto haviam vivido,ou suas cinzas dispersas para que delas no restasse memria.s vezes, por serem de uma raa, outras

    por serem de uma classe, expiaram todosos erros que no tinham cometido ou no tinham conscincia

    de haver cometido. Mas tambm aconteceue acontece que no foram mortos.Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,aniquilando mansamente, delicadamente,

    por nvios caminhos quais se diz que so nvios os de Deus.Estes fuzilamentos, este herosmo, este horror,foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanhah mais de um sculo e que por violenta e injustaofendeu o corao de um pintor chamado Goya,que tinha um corao muito grande, cheio de friae de amor. Mas isto nada , meus filhos.Apenas um episdio, um episdio breve,nesta cadeia de que sois um elo (ou no sereis)de ferro e de suor e sangue e algum smena caminho do mundo que vos sonho.Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ningumvale mais que uma vida ou a alegria de t-la. isto o que mais importaessa alegria.Acreditai que a dignidade em que ho-de falar-vos tanto

    no seno essa alegria que vemde estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez

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    algum est menos vivo ou sofre ou morrepara que um s de vs resista um pouco mais morte que de todos e vir.Que tudo isto sabereis serenamente,sem culpas a ningum, sem terror, sem ambio,e sobretudo sem desapego ou indiferena,ardentemente espero. Tanto sangue,tanta dor, tanta angstia, um dia

    mesmo que o tdio de um mundo feliz vos persigano ho-de ser em vo. Confesso quemuitas vezes, pensando no horror de tantos sculosde opresso e crueldade, hesito por momentose uma amargura me submerge inconsolvel.Sero ou no em vo? Mas, mesmo que o no sejam,

    quem ressuscita esses milhes, quem restitui,no s a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?

    Nenhum Juzo Final, meus filhos, pode dar-lhesaquele instante que no viveram, aquele objectoque no fruram, aquele gestode amor, que fariam amanh.E, por isso, o mesmo mundo que criemosnos cumpre t-lo com cuidado, como coisaque no s nossa, que nos cedida

    para a guardarmos respeitosamenteem memria do sangue que nos corre nas veias,da nossa carne que foi outra, do amor queoutros no amaram porque lho roubaram.

    In Poesia II

    Sophia de Mello Breyner Andresen

    As pessoas sensveis

    As pessoas sensveis no so capazesDe matar galinhasPorm so capazesDe comer galinhas

    O dinheiro cheira a pobre e cheira roupa do seu corpo

    Aquela roupaQue depois da chuva secou sobre o corpo

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    Porque no tinham outraPorque cheira a pobre e cheiraA roupaQue depois do suor no foi lavadaPorque no tinham outra

    Ganhars o po com o suor do teu rostoAssim nos foi impostoE no:Com o suor dos outros ganhars o po

    vendilhes do templo construtoresDas grandes esttuas balofas e pesadas cheios de devoo e de proveito

    Perdoai-lhes SenhorPorque eles sabem o que fazem

    *

    Meditao do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal

    Nunca maisA tua face ser pura limpa e viva

    Nem o teu andar como onda fugitivaSe poder nos passos do tempo tecer.E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

    Nunca mais servirei senhor que possa morrer.A luz da tarde mostra-me os destroosDo teu ser. Em breve a podridoBeber os teus olhos e os teus ossosTomando a tua mo na sua mo.

    Nunca mais amarei quem no possa viverSempre,Porque eu amei como se fossem eternosA glria, a luz e o brilho do teu ser,Amei-te em verdade e transparnciaE nem sequer me resta a tua ausncia,s um rosto de nojo e negaoE eu fecho os olhos para no te ver.

    Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

    *

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    Porque

    Porque os outros se mascaram mas tu noPorque os outros usam a virtude

    Para comprar o que no tem perdo.Porque os outros tm medo mas tu no.

    Porque os outros so os tmulos caiadosOnde germina calada a podrido.Porque os outros se calam mas tu no.

    Porque os outros se compram e se vendemE os seus gestos do sempre dividendo.Porque os outros so hbeis mas tu no.

    Porque os outros vo sombra dos abrigosE tu vais de mos dadas com os perigos.Porque os outros calculam mas tu no.

    *

    Cames e a tena

    Irs ao Pao. Irs pedir que a tenaSeja paga na data combinadaEste pas te mata lentamentePas que tu chamaste e no respondePas que tu nomeias e no nasce

    Em tua perdio se conjuraramCalnias desamor inveja ardenteE sempre os inimigos sobejaramA quem ousou seu ser inteiramente

    E aqueles que invocaste no te viramPorque estavam curvados e dobradosPela pacincia cuja mo de cinzaTinha apagado os olhos no seu rosto

    Irs ao Pao irs pacientementePois no te pedem canto mas pacincia

    Este pas que te mata lentamente.

    In Obra Potica

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    Carlos de Oliveira

    Vilancete castelhano de Gil Vicente

    Por mais que nos doa a vidanunca se perca a esperana;a falta de confianas da morte conhecida.Se a lgrimas for cumpridaa sorte, sentindo-a bem,vereis que todo o mal vemachar remdio na vida.E pois que outro preo tem

    depois do mal a bonana,nunca se perca a esperanaenquanto a morte no vem.

    *

    Quando a harmonia chega

    Escrevo na madrugada as ltimas palavras deste livro: e tenho ocorao tranquilo, sei que a alegria se reconstri e continua.

    Acordam pouco a pouco os construtores terrenos, gente quedesperta no rumor das casas, foras surgindo da terra inesgotvel,crianas que passam ao ar livre gargalhando. Como um rio lento eirrevogvel, a humanidade est na rua.

    E a harmonia, que se desprende dos seus olhos densos ao encontroda luz, parece de repente uma ave de fogo.

    In Terra da Harmonia

    Ruy Belo

    Os estivadores

    S eles suam mas s eles sabemo preo de estar vivo sobre a terraS nessas mos enormes que cabemas coisas mais reais que a vida encerra

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    Outros riro e outros sonharopodem outros roubar-lhes a alegriamas a um deles que chamo irmona vida que em seus gestos principia

    Onde outrora houve o deus e houve a ninfaeles so a moderna divindadee o que antes era pura linfa o que sobra agora da cidade

    Vede como alheios a tudo o restocompram com o suor a claridadee rasgam com a deciso do gestoo muro oposto pela gravidade

    Ode martima que chamo odeescrita ali sobre a pedra do caisA natureza certo muito podemas um homem de p pode bem mais

    *

    E tudo era possvel

    Na minha juventude antes de ter sadoda casa de meus pais disposto a viajareu conhecia j o rebentar do mardas pginas dos livros que j tinha lido

    Chegava o ms de maio era tudo floridoo rolo das manhs punha-se a circulare era s ouvir o sonhador falarda vida como se ela houvesse acontecido

    E tudo se passava numa outra vidae havia para as coisas sempre uma sadaQuando foi isso? Eu prprio no o sei dizer

    S sei que tinha o poder de uma crianaentre as coisas e mim havia vizinhanae tudo era possvel era s querer

    *

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    Algumas proposies com crianas

    A criana est completamente imersa na infnciaa criana no sabe que h-de fazer da infnciaa criana coincide com a infncia

    a criana deixa-se invadir pela infncia como pelo sonodeixa cair a cabea e voga na infnciaa criana mergulha na infncia como no mara infncia o elemento da criana como a gua o elemento prprio do peixea criana no sabe que pertence terraa sabedoria da criana no saber que morrea criana morre na adolescnciaSe foste criana diz-me a cor do teu pas

    Eu te digo que o meu era da cor do bibee tinha o tamanho de um pau de gizNaquele tempo tudo acontecia pela primeira vezAinda hoje trago os cheiros no narizSenhor que a minha vida seja permitir a infnciaembora nunca mais eu saiba como ela se diz

    In Obra Potica

    Herberto Helder

    No sei como dizer-te que minha voz te procurae a ateno comea a florir, quando sucede a noiteesplndida e vasta.

    No sei o que dizer, quando longamente teus pulsosse enchem de um brilho preciosoe estremeces como um pensamento chegado. Quando,iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado

    pelo pressentir de um tempo distante,e na terra crescida os homens entoam a vindima

    eu no sei como dizer-te que cem ideias,dentro de mim, te procuram.

    Quando as folhas da melancolia arrefecem com astrosao lado do espaoe o corao uma semente inventadaem seu escuro fundo e em seu turbilho de um dia,tu arrebatas os caminhos da minha solidocomo se toda a casa ardesse pousada na noite.

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    E ento no sei o que dizerjunto taa de pedra do teu to jovem silncio.Quando as crianas acordam nas luas espantadasque s vezes se despenham no meio do tempo

    no sei como dizer-te que a pureza,dentro de mim, te procura.

    Durante a primavera inteira aprendoos trevos, a gua sobrenatural, o leve e abstractocorrer do espaoe penso que vou dizer algo cheio de razo,mas quando a sombra cai da curva sfregados meus lbios, sinto que me faltamum girassol, uma pedra, uma avequalquer

    coisa extraordinria.Porque no sei como dizer-te sem milagresque dentro de mim o sol, o fruto,a criana, a gua, o deus, o leite, a me,o amor,

    que te procuram.

    InA Colher na Boca

    Gasto Cruz

    Ode soneto coragem

    O silncio coragem no consenteo amor da linguagem o silncio um incndio grande e a nossa falaestremece de palavras abraadas

    H um amor do que se diz do fogo

    onde sempre se esgota a nossa vozdizer palavras lutar se a lutareconhece as palavras que produz

    se as acende nas ruasdo sentido que o corao dos homens conseguiuimpor-lhes em silncio incndio grande

    a lngua maior incndio os homenssobre a fala esgotada coragem sobreo fogo maior incndio o amor

    InA Doena

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    cf. Romeo and Juliet, III. V. 1-36

    A cotovia um rouxinol ainda

    Os ouvidos no ouvem essaave que dividee a luz que conduz a mntua no canta

    Esse canto alteradocomo um simples acidente da bocaera um som diferente nos teus mudosouvidosda to ameaada madrugada

    A tua boca ouvea noite nessa ave

    porm na manh que se transforma noutroo canto que escurece como a luz a dor poucoantes entre outro canto fugitiva

    Vejo-te contra a pele como se no pudesseocultar-te de todo o movimentodum incndio

    e a cotovia exprimeimpede a tua perda

    *

    Tinha deixado a torpe arte dos versose de novo procuro esse exercciode soluos

    Devo agora rever a noite que te oculta

    como pude esquecer que de tal modoteria de exprimir

    tudo o que j esquecera e sopra sobremimcomo numa plancie o crepsculo

    Tinha esquecido a arte dos tercetose toda aoutra

    mas fechaste-te nela e eu descubrono seu esse veneno esse discurso

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    Devo pois ver de novo como mudacomo os sinais da voz a noite que perduratu deitas-te eu ensino minha vidaesse extinto exerccio

    In Teoria da Fala

    Nuno Jdice

    Escola

    O que significa o rio,

    a pedra, os lbios da terraque murmuram, de manh,o acordar da respirao?

    O que significa a medidadas margens, a cor quedesaparece das folhas nolodo de um charco?

    O dourado dos ramos na

    estao seca, as gotasde gua na ponta doscabelos, os muros de hera?

    A linha envolve os objectoscom a nitidez abstractados dedos; traa o sentidoque a memria no guardou;

    e um fio de versos e verbos

    canta, no fundo do ptio,no coro de arbustos queo vento confunde com crianas.

    A chave das coisas estno equvoco da idade, nasombria abbada dos meses,no rosto cego das nuvens.

    *

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    Fragmentos

    1

    Aceita o transitrio; nada do que definitivo, dura, te pode atingir

    2

    Algo de visvel perpassanos limites do ser.

    3

    De noite, o vento partiuum dos vidros das traseiras.

    4

    S o rudo da noite sobrevive luz e ao furor matinais.

    5

    (Se aquelas nuvens, no horizonte,chegassem at mim...)

    6

    O fragmento, porm, exprime

    o estilhaar da intensidade.

    7

    No ltimo fragmento, fixao efmero e repousa.

    InMeditao sobre Runas

    *

    O conceito de metforacom citaes de Cames e Florbela

    Transforma-se a imagem no objecto visto:amada no ramo pousada, ave e memria,

    peas espalhadas num lugar sem histriaque o poema arruma sem nada ter previsto.

    Deito essa imagem num velho travesseiro,toco-a com os dedos de um verso antigo

    e digo-lhe: Amo-te ainda; vem comigo!,quando ela me oferece o seu corp