Cadernos Acorianos 2 DANIEL de Sa

39
1 cadernos açorianos CADERNO N.º 2 Edição MARÇO 2010 DEDICADO A DANIEL DE SÁ Todas as edições em linha em http://www.lusofonias.net Editor Colóquios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena Chrystello / Rosário Girão dos Santos Os colóquios da lusofonia seguem a nova ortografia desde FEV.º 2009 Editado por ©™®revisto agosto2011 Nota introdutória do Editor Chrys Chrystello Foi decidido no 4º Encontro Açoriano da Lusofonia, realizado na vila da Lagoa (Açores, março 2009), preparar a publicação regular, online, pelos Colóquios da Lusofonia, dos Cadernos de Estudos Açorianos. É isso que nos propomos fazer, dando a conhecer alguns textos de autores de matriz açoriana. Estes cadernos, despretensiosos, irão dar a conhecer excertos de obras de alguns dos autores que os Colóquios mais apreciam. Não serão exaustivos nem completos, limitar-se-ão a abrir uma janela sobre a escrita destes autores que nós, nos Colóquios, entendemos ser diferente da dos restantes escritores portugueses. Assim, os colóquios da lusofonia lançaram na sua página principal, esses cadernos de estudos açorianos, uma coisa pequena e muito despretensiosa (para já) em formato pdf, generalizado e de fácil leitura, para divulgar autores da açorianidade. Essa era uma das conclusões dos últimos colóquios que agora iremos concretizar. A sua conceção assenta na premência de dar a conhecer excertos de obras, a quem pouco ou nada sabe. Estes cadernos destinam-se aos que desconhecem a existência de autores de matriz açoriana ou nunca leram nada do que estes autores escreveram...Vamos tentar chegar a leitores nunca imaginados... Os Colóquios da Lusofonia decidiram também suprir a ausência da cadeira de Estudos Açorianos na Universidade dos Açores (em tempos ministrada pelo Urbano Bettencourt) e estabeleceram parcerias para ministrar à distância uma nova cadeira de Estudos Açorianos. Igualmente firmaram um protocolo para criar uma cadeira AÇORIANIDADE(S) e INSULARIDADE(S) na Universidade do Minho, Braga, Portugal (regime presencial previsto para iniciar-se em outubro 2010, veja os detalhes no Boletim 0). Para ajudar os que ora se iniciam em autores açorianos, convém referir a bibliografia que os colóquios compilaram e disponível em anexo a estes Cadernos. Exaustiva não é, decerto, mas é indicadora de quanto se tem produzido literariamente e muito do qual merece ser lido, analisado, criticado e trabalhado. Nem todos os livros serão obras-primas, nem todos os autores relevantes. Por entre o trigo e o joio há bons trabalhos à espera de serem descobertos, lidos e ensinados. Nesta bibliografia incluíram-se autores contemporâneos açorianos (residentes, expatriados e emigrados), autores estrangeiros ou nacionais (açorianizados ou não) que debateram temáticas açorianas. Esta listagem é regularmente atualizada.

Transcript of Cadernos Acorianos 2 DANIEL de Sa

1 cadernos aorianos CADERNO N. 2 Edio MARO 2010 DEDICADO A DANIEL DE S Todas as edies em linha em http://www.lusofonias.netEditor Colquios da Lusofonia (Chrys Chrystello) Coordenadoras Helena Chrystello / Rosrio Giro dos Santos Os colquios da lusofonia seguem a nova ortografia desde FEV. 2009 Editado por revisto agosto2011 Nota introdutria do Editor Chrys Chrystello Foidecididono4EncontroAorianodaLusofonia,realizadonaviladaLagoa (Aores,maro2009),prepararapublicaoregular,online,pelosColquiosda Lusofonia,dosCadernosdeEstudosAorianos.issoquenospropomosfazer, dandoaconheceralgunstextosdeautoresdematrizaoriana.Estescadernos, despretensiosos, iro dar a conhecer excertos de obras de alguns dos autores que os Colquios maisapreciam.Noseroexaustivosnemcompletos, limitar-se-oaabrir umajanelasobreaescritadestesautoresquens,nosColquios,entendemosser diferente da dos restantes escritores portugueses. Assim,oscolquiosdalusofonialanaramnasuapginaprincipal,esses cadernos de estudos aorianos, uma coisa pequena e muito despretensiosa (para j) em formato pdf, generalizado e de fcil leitura, para divulgar autores da aorianidade. Essaeraumadasconclusesdosltimos colquiosqueagorairemosconcretizar.A suaconceoassentanapremnciadedaraconhecerexcertosdeobras,aquem pouco ou nada sabe. Estes cadernos destinam-se aos que desconhecem a existncia deautoresdematrizaorianaoununcaleramnadadoqueestesautores escreveram...Vamos tentar chegar a leitores nunca imaginados... OsColquiosdaLusofoniadecidiramtambmsupriraausnciadacadeirade EstudosAorianosnaUniversidadedosAores(emtemposministradapeloUrbano Bettencourt)eestabeleceramparceriasparaministrardistnciaumanovacadeira deEstudosAorianos.Igualmentefirmaramumprotocoloparacriarumacadeira AORIANIDADE(S) e INSULARIDADE(S) na Universidade do Minho, Braga, Portugal (regimepresencialprevistoparainiciar-seemoutubro2010,vejaosdetalhesno Boletim 0). Paraajudarosqueoraseiniciamemautoresaorianos,convmreferira bibliografiaqueoscolquioscompilaramedisponvelemanexoaestesCadernos. Exaustiva no , decerto, mas indicadora de quanto se tem produzido literariamente e muito do qual merece ser lido, analisado, criticado e trabalhado. Nem todos os livros seroobras-primas,nemtodososautoresrelevantes.Porentreotrigoeojoioh bons trabalhosesperadeserem descobertos, lidoseensinados.Nestabibliografia incluram-seautorescontemporneosaorianos(residentes,expatriadose emigrados), autores estrangeiros ou nacionais (aorianizados ou no) que debateram temticas aorianas. Esta listagem regularmente atualizada. 2 AutobiografiaDanielAugustoRaposodeSnasceua02/03/1944eresidenaMaia,S. Miguel, Aores. Na galeria da fama dos maus romances, h um que comea mais ou menos desta maneira: "Era uma noite escura e tempestuosa". Estava assim aquela em que nasci, quando o apocalipse da guerra contava j os seus ltimos milhes de mortos, e o petrleo ia substituindo o azeite de gata, que davamaischeiroqueluz.Nessedia,quadragsimononoaniversriodo decreto da autonomia de Hintze Ribeiro- Joo Franco - D. Carlos, os aliados continuavamacercaromosteirodeMonteCassino,ePioXIIcompletava sessenta e oito anos de vida e cinco de Papa. MaslogoaosdoisanostivededeixaraMaiaeosmeusboizinhosde carrilho,porquemeupaifora,comomuitosmais,procuraraimitaodo "Eldorado" no aeroporto de Santa Maria, e nos fizera carta de chamada, pois as ilhas estavam ento separadas por alfndega e outras dificuldades, como estadosindependentes.Comeavaacumprir-seofadodeumafamliade emigrantes, que haveria de esboroar-se toda, nessa e nas dcadas seguintes, por este mundo de Deus e de legtimas ambies humanas. Dosprimeirostemposnailha-me,feitadepedraecal,recordo vagamente os meus caracis louros e compridos, um coelhinho de lato que forabrocheesetornounomeubrinquedopreferidoequasenico,o encantoindizveldeum"Dakota"deplsticoqueoMeninoJesusmedeu, creioeu,porumNatalemquechegueichaminaindaatempodeover fugir, e uns versos com que me estreei na poesia, cantando para a vizinha da frente segundo as normas de rima que meu pai me ensinara na vspera. Fuicrescendocomessacismanacabea,echegueiapassarhorasem desafios renhidos de redondilha maior com o Firmino, meu colega de quarta classenaescoladeSantana,ondeaboadaprofessoratinhadeaturarmais detrsdezenasderapazeseraparigas,desdeosqueandavamnab--b ataosquepapagueavamsignificados,rios,reis,serraselinhasfrreas, entremeandoasuaexaustapacinciacomum"calem-se"paransosdois, sem que ela sonhasse o que dizamos e como o dizamos, a voz contida. depoucodepoisomeuprimeiroromancefalhado,umaaventurade ndios e "cowboys" que acabou quando o assalto a um rancho coincidiu com a minha falta de pacincia ou de inspirao para o resto. MasomelhoreramosrelatosdefutebolouvidosediscutidosnoClube AsasdoAtlnticoe,sublimidadedequantassensaeshaviananossa infncia, as "matins" do Atlntida Cine, onde se arranjava quase sempre um lugarzinho,mesmoquenosetivesseodinheiroparaobilhete,porqueo SenhorCardosoabriaaportafiladanossagulaimpacientequando percebia que, a respeito de entradas pagas, estava tudo conversado. Masemfinsde1958aconteceuoprimeirograndedesgostodaminha vida:obondosopadreArturperdeu-senonaufrgiodo"Arnel";e,poucos mesesdepois,meupaimorreu.Otempocomeouentoapassarmuito depressa.OquintoanofeitonoExternatodaRibeiraGrandeeocursodo MagistrioPrimrioforamunsinstantesedeipormim,derepente, professornosFenaisdaAjuda.Andeiporlquatroanos,ecomeceia escrever para o jornal do saudoso Ccero de Medeiros, com um pseudnimo queeuimaginaramuitoanteseque,feitodomeuverdadeironomeede umadasdesignaesdaquelafreguesia,porinteressantecoincidnciase justificavaplenamente:AugustodeVeraCruz.Cumpridepoisessedever absurdodeaprenderaguerra,nasCaldasdaRainhaarecrutaea especialidadeemTavira,masescapeiimposiodeexercernaprticaos conhecimentosadquiridos,porquepasseiorestodoserviomilitarno batalhodosArrifes.Depoisdemaisumanocomoprofessor,destavezna Maia,cumpriaseguiromeuroteirodenmada,entrandoparaa congregaomissionriadosCombonianos,eporlestive,quasetrsanos em Valncia e alguns meses em Granada. Aprendi a ignorncia de filsofos e telogos e criei o vcio fsico da sesta, de que adoeci sem remdio. 3 E aqui estou, definitivamente disposto a ser rural e sedentrio, que Deus, afinal, est em toda a parte e o Mundo inteiro vem c ter com a gente.Entretanto,casei:faltavamvinteecincodiasnosonhadosparaquese cumprisse a plenitude de abril. Pai de trs filhos que vo crescendo e de seis livrosmaneirinhos,sintoquemesamelhor(talvezporseremumaobraa dois) com aqueles do que com estes, mas ainda no perdi a esperana de ser to feliz por uns como pelos outros. Tenhopenadenoternascidoatempodeescrevero"Estrangeiro"ou "As Vinhas da Ira", de compor o "Messias" ou a "Sagrao da primavera", de pintar"APeregrinaodeSantoIsidro",oudeesculpir"OsBurguesesde Calais", de formular a teoria da Relatividade ou de descobrir a penicilina, de erguer o Taj Mahal, de criar o poema "Tabacaria" ou, ao menos, de inventar amaionese.Meteram-menapoltica,ondetenhosidodetudoumpouco, menosmembrodogovernoregional,porque,almdeoutrasrazes evidentes, de certeza no serviria para isso. Soudeumacuriosidadesempreinsatisfeita,eteriaestadodisposto,se talfossepossvel,aficarolhando,durantemilhesdeanos,acriaodo Universo,sparasabercomofoi.Trocariatodasaspalavrasqueathoje disse,equeosamigosaplaudiram,parapensarpormomentos,sem esquecer depois, com o crebro do primeiro homem que foi capaz de pensar. Noseisepossodizerquesoupuro,comoosjustosdoantigoEgitono julgamentodeOsris.SeiquenoqueimeiotemplodeDiananemordenei nenhumcampodeconcentrao.Possoinvocarunsquantosnosde bondade, mas faltam-me os sins seguros da justia positiva. Todavia, a catedral da Literatura existe, com os seus demnios e os seus santos para todas as devoes. E, com tantos livros para ler, h quem gaste o seutempoeoseutalentoadiscutir-lhesaforma,aescolaoualiteratura menor a que pertenam. No entanto, cada vez que eu entro, por exemplo, na igreja do mosteiro da Batalha, ajoelho-me primeiro porque aquele templo foi feito para louvarmos a Deus e no o estilo ou os homens que o construram. Ese,culturalmente,souaptrida,nomaispermaneoilhueportugus, aceitando a fatalidade do destino com que nasci como se eu mesmo fosse o responsvel por ele. (Este texto foi escrito em 1992. Entretanto, os filhos cresceram em idade e inteligncia e os livros em nmero e tamanho.) Daniel Augusto Raposo de S nasceu e reside na Maia, S. Miguel, Aores, a 02/03/1944. Aos dois anos deixa a Maia (S. Miguel, Aores) para, com a me e a irm, ir juntar-se ao pai, que no ano anterior fora trabalhar no aeroporto de Santa Maria. Frequentou trs meses a escola de So Pedro, onde nada lhe foi ensinado por, devido idade, no estar matriculado. Em janeiro de 1951 a famlia mudou-se para Santana, tendo sido matriculado na escola desse lugar, substituindo nas estatsticas outro aluno de seis anos tambm. Frequentou o Externato de Santa Maria at ao quarto ano, tendo feito o quinto ano no Externato da Ribeira Grande. Fez o curso do Magistrio Primrio antes de ser professor nos Fenais da Ajuda por quatro anos. Comeou a escrever para o jornal de Ccero de Medeiros, com o pseudnimo Augusto de Vera Cruz. Cumpriu depois o servio militar (recruta e especialidade) nas Caldas da Rainha e Tavira, passando ao B. I. I. 18, dos Arrifes, at ser desmobilizado. Depois de mais um ano como professor, desta vez na Maia, entrou para a congregao missionria dos Combonianos, esteve quase trs anos em Valncia (onde fez o curso de Filosofia e o primeiro ano de Teologia) e alguns meses em Granada, onde frequentou a Faculdade de Teologia.Pai de trs filhos, foi membro Junta Regional dos Aores, o governo nomeado que preparou as primeiras eleies para a Assembleia Regional. Considera-se, culturalmente, aptrida, no mais permanecendo ilhu e portugus. Tem vrias obras publicadas e contribuiu para inmeras revistas e jornais. 1.De S, Daniel, (1982) Gnese (Novela), Edio Da DRAC, Angra Do Herosmo: SREC 2.De S, Daniel, (1985) Sobre A Verdade Das Coisas (Crnicas - Contos), ed. Junta De Freguesia Da Maia 3.De S, Daniel, (1987) O Esplio (Novela), ed. Signo, Ponta Delgada,4.De S, Daniel, (1987) A Longa Espera (Contos), ed. Signo, Ponta Delgada, 5.De S, Daniel, (1988) Bartolomeu (Teatro), ed. DRAC, Angra Do Herosmo: SREC 6.De S, Daniel, (1990) Um Deus Beira Da Loucura (Novela), ed. DRAC, Angra Do Herosmo: SREC 7.De S, Daniel, (1992) Ilha Grande Fechada (Romance), Lisboa, ed. Salamandra 4 8.De S, Daniel, (1993) A Criao Do Tempo, Do Bem E Do Mal (Ensaio), Lisboa, ed. Salamandra 9.De S, Daniel, (1995) Crnica Do Despovoamento Das Ilhas (E Outras Cartas De El-Rei) (Crnicas Histricas), Lisboa, ed. Salamandra 10.De S, Daniel, (1997) E Deus Teve Medo De Ser Homem (Novela), Lisboa, ed. Salamandra 11.De S, Daniel, (1999) As Duas Cruzes Do Imprio Memrias Da Inquisio (Romance), Lisboa, ed. Salamandra 12.De S, Daniel, (2003) A Terra Permitida (romance), edio Salamandra, Lisboa,13.De S, Daniel, (2003) Aores Coleccin Monumental y Turstica edio Everest, Len, Espanha; 14.De S, Daniel, (2005.) Dueto A Uma S Voz IAC Revista Atlntida vol. L 2005 15.De S, Daniel, (2007) Internet: (Autorretrato e bibliografia). Disponvel em: http://alfarrabio.di.uminho.pt/vercial/danielsa.htm 16.De S, Daniel, (2007) O Pastor Das Casa Mortas, Ponta Delgada, ed. VERAOR 17.De S, Daniel, (2007) Santa Maria, a Ilha-Me, Ponta Delgada, ed. VERAOR 18.De S, Daniel, (2009) S. Miguel a ilha esculpida, Ponta Delgada, ed. VERAOR 19.De S, Daniel, (2010) Peregrinos do Senhor Santo Cristo dos Milagres, ed. Paulus Editora, Lisboa 20.De S, Daniel, (2010) Terceira, terra de bravos, Ponta Delgada, ed. VERAOR, 21.De S, Daniel, (2010) Ilha Grande Fechada (Romance), 2 edio, Ponta Delgada, ed. VERAOR, 22.De S, Daniel. 2011 As Rosas de Granada (poesia) ed. Familiar no comercializvel, grafismo Hlder Segades.23.De S, Daniel, (sd.) Um Trovador Na Corte De D. Sancho Outras pginas sobre o autor:Recenso sobre a obra E Deus Teve Medo de Ser Homem Malino: Homenagem a Miguel TorgaDois sonetos sobre Natlia Correia Santa Maria, uma declarao de amor Considero-meumprivilegiadoquandomechamammariense. Porque, como filho destas ilhas, tenho a sorte de ter pai e me. Foi meu pai So Miguel, minha me, Santa Maria. E, se pode ter-se dupla nacionalidade, por certo que poder ter-se dupla insularidade.Sou mariense, sim, e julgo que de pleno direito. Cagarro e santaneiro. O que foi outro privilgio, ter vivido em Santana. Mais de oito anos, depois de quatroporSoPedro,nacasadoSr.ArmandoMonteiro,eseismesesna RibeiradoEngenho,numacasinhaqueeratodaaopdaportaetinhao telhado altura do caminho. DeSoMiguelsaaindade cabeloscompridos,dequeguardouma vaga memria mas somente do dia em que mos cortaram, j em So Pedro. Antes disso, e da ilha onde fui gerado e onde nasci, s sei o que me contava minha me. Tempo esse em que uma criana de dois anos podia andar pelas ruaseiratlonge,nolongerelativodotamanhodocorpo,semdeixar preocupado quem quer que fosse. Palmo e meio de pernas bastava para fugir facilmente das rodas de uma carroa ou de um carro de bois.Muito cedo comecei a ser aluno da vida, em Santa Maria. Que belas liesrecebi!Recordoasabedoriadeumpovoaquemvicavarumpoo antes do tempo da sede. Aprendi a sua bondade em coisas to simples como aquelas grandes pedras, postas ao alto semelhana de pequenos menires, ondeogadoiaroar-seplacidamente.Aminhadefiniocomopessoa 5 comeouafazer-secomestesecomoutrosensinamentoscasuaisou espontneos, sem pedagogia diplomada.Pode parecer um contrassenso considerar um privilgio ter vivido em Santana,porqueaquelaeraumadasaldeiasmaisruraisdePortugal.Nem haviasequerumacanadarazovelquelhefossecaminho.Aqueexistia servia,emparte,comoleitodeumaribeira,ondeafloravaarochairregular posta a descoberto pela eroso. Durante sculos, foi a nica via que levava a ViladoPorto.Maiorisolamentodoqueaqueledifcildeimaginar.Ainda assim, em Santana nasceram e viveram pessoas de grande valor humano e social. Prodgios da superao.Desbito,tudomudouem1945.EmSantanapropriamenteno, porqueelaficouimutvelnasuarsticaancestralidade.Mas,mesmoaliao lado, fora feito um aeroporto para ser um dos melhores e mais concorridos do Mundo. A Vila deixou de ser a principal referncia, porque at na religio os de Santana se tornaram como que paroquianos da capela de Nossa Senhora do Ar, que antes fora lugar de culto de protestantes, catlicos e judeus. Ia-se evinha-seusandoatalhosdesenhadospormilhesdepassadas,cortados aquiealipor murosqueeraprecisosaltar.Aaldeia isoladaficaraapoucos minutosdeummundonovoeimpensvel.Masaquelagenterecebeu-o quase com a mesma naturalidade com que via nascer o Sol todos os dias, o Solquegretavaosoloridonovero,depoisdesecososlameirosdo inverno.Aquelagente,queresistiraangstiadafome,numapenria humilhantee indignadacondiohumana.Comoumpoucopor todaailha, alis.Masquemanteveumadignidadebblica,porqueadignidadeum estado de esprito mais do que uma afirmao social.Anossacasanuncaforachamadacasaantesdelmorarmos.E, nesse tempo, era um absurdo pensar que quem tivesse menos de dezasseis anos no podia trabalhar. No o proibia a lei, e a isso obrigava a necessidade deasmesnoteremfaltadoqueprnamesahoradecomer.Apesar disso, no lamento nada da minha infncia. Fuipastordecabras,deovelhasedevacas.Cavalgueiempeloesem esporasnemfreio,comoosndios.Nuncaningummeensinouatermedo dodianemdanoite.FuicowboyoundionamatadeMonserrateenasdo Aeroporto.Masnoestragueinenhumarvore,nem osmeuscompanheiros deaventuras.ConteihistriasaomeuamigoElias,econtava-meeleoutra porcadaumadasminhas.Matvamosomenornmeropossvelde personagens,querfossemndiosoubandidos.Apenasoessencialpara haver vencedores e vencidos.Entretanto,iaaprendendoemlivrosounumquadropreto.Primeirona escola de Santana. Com a D. Eduarda na 1 classe, a D. Doroteia, na 2., a D.rsula,na3.,aD.Francisca,na4..Continuamaserdasminhas heronaspreferidas.Fizeramomilagredemeensinaraler,deexplicarque povosomoseaqueterrapertencemos.DepoisveiooExternato.Juntei minhalistadeherisedeheronasmaisunsquantospredestinadosparao bemeasabedoria.PasseiapertencertambmgeraodoCavaleiro Andante,semdvidaamaisprodigiosapublicaojuvenilquehouveem Portugal. No tnhamos dinheiro para livros nem revistas, por isso era o Jos GuilhermeCorreiaquemoemprestavasempre.Ealgunslivrostambm, como o Jos Vieira Souto Martins, um amigo de que nada sei h meio sculo. Foi assim que pude ler Emlio Salgari, Mark Twain ou Enid Blyton.EhaviaoClubeAsasdoAtlntico.OAsas!Nuncaningummepsna ruanemmostroudesagradopelaminhapresena.Nemimaginavamobem que me estavam fazendo. Ali ouvamos os relatos do futebol e do hquei das nossasalegriaspatriticas.Eeraondeeutinhadisposioosprincipais jornaisquesepublicavamemPortugal.UmdosmaisbemescritoseraA Bola,eporisso,aomesmotempoquearivalidadeentreoSportingeo BenficaeraumdosprincipaisfatoresdeunidadedosPortugueses,o desporto,contadonaquelejornalquemudoutantoquesepodeconsiderar extinto, era tambm uma lio de cultura. Nolonge,ocampodosjogospicosdofutebolromnticodedois defesas,trsmdiosecincoavanados.ComomticoBadjanaadaros ltimospontapsnabola,jogandopelaequipadaDireodoServiode Obras,ondemeupaitrabalhava.Depoisveiooutroclube,odeGonalo Velho,paraoqualminhameeminhairmbordaramosprimeiros emblemas. No entanto, a alegria suprema tinha lugar reservado no Atlntida Cine. O seuporteirodeixavamuitasvezesascrianasentraremsempagarbilhete. PorissooSr.Cardosofazpartedaminhalistadeherisparticulares.Eo gritoCardoso,apagaaluzaindaecoanasminhasrecordaescomoo anncio de todas as claridades. Outro benfeitor de homens a haver. Na capela de Nossa Senhora do Ar aprendi o lado mais humano da vida. Aquele que pensa acima de tudo no que nos distingue dos irracionais. E, se certo que sem uma f sobrenatural se pode ser boa pessoa, o cristianismo maneira do Padre Artur o testemunho do bem na Terra. Masqualquerpedaodemundovalepeloquevaleasuagente.Ado meu tempo era feita destas e de outras figuras que marcaram o modo de ser de um tempo e de uma gerao em que havia na ilha mais forasteiros do que naturaisdela.SortenossaqueamaiorpartedosqueemSantaMaria buscaram um pouco mais de fortuna ou um pouco menos de infortnio eram pessoas de deixar saudades. Por isso o reencontro com velhos pioneiros dos tempos modernos da Ilha de Gonalo Velho sempre um momento de festa 6 que dificilmente tem semelhana quando as amizades foram feitas por outras bandas. O prprio aeroporto, comeado a construir durante a guerra, acabou por serumlugardepassagemparaapaz.Se,em1918,FranklinDelano RooseveltescolheuPontaDelgadaparaapoioaotransportedetropasa caminhodaEuropa,poraquelaspistaspassaramsobretudosoldadosde regressoacasa.Onomedecdigodaoperao,GreenProject,eraele mesmo uma declarao de esperana numa nova era. Foinesteambiente,umdosespaosnacionaisondemaisse concentravampessoascomensinosuperioroucomumaculturaacimada mdia,quecomeouagerminaraminhavontadedefazerdaspalavras escritas um uso para alm da obrigao de alguma carta familiar. Sem Santa Maria,sobretudosemoseuExternato,euteriaficadopela4.classe,tal comotodososrapazesquenasceramnaMaia,emSoMiguel,nomesmo anoqueeu.Porumdessesacasosquesodifceis deexplicar,crescilogo nos primeiros anos de vida com uma curiosidade sem limites. Um dia, ainda antesdecompletarseisanos,pergunteiameupaicomoquesefaziam versos.Eleeraumimprovisadordequadrasedehistriascomopoucos conhecinavida.Chegouafazeronegciodeumaburracantandoao desafio. E, nos intervalos do almoo, contava casos a homens da sua idade, mastointeressadoscomocrianas.Vimuitosfilmespelosseusolhos,ou ouvi-osdasuaboca.Elelevouasrioaminhaperguntasobrepoesia,e respondeucomosedevesempreresponderaumacriana:dizendoa verdade das coisas como se se falasse ao adulto que a criana ser um dia. Logo a seguir exercitei o meu novo conhecimento cantando para uma vizinha da minha idade, de que s guardo a memria de uns longos caracis loiros. Sei que comeava assim, esse que foi em rigor o meu primeiro poema: Sou Daniel/ da ilha de So Miguel. Era, sim, com a sorte de ser da Ilha-Me tambm. E nela vivia ento um poeta que fez parte do meu imaginrio, e de quem eu muito quis ser imitador: Lopes de Arajo. No tive a sorte de ser seu aluno, mas a nsia de alcanar umestatutosemelhanteaoseufoitalvezomaiorimpulsoquemelevoua dedicar-me escrita. MasSantaMaria veioaserpara mimcenriodedramatambm.Numa certamanh,osresponsveispelaDireodoServiodeObrasestavam reunidosparadespedirpessoal.Ocritrioescolhidofoiodeoptarpelos trabalhadores com menos filhos. O nome do meu pai foi um dos primeiros a serem falados, porque ramos s minha irm e eu. Minha irm no estudara porqueaspropinasequivaliamaumterodoordenadodemeupai.Que levou um ano a decidir se eu deveria frequentar ou no o Externato. Acabou por resolver-se pela positiva, e eu revi a gramtica da 4. classe, feita um ano antes, estudando-a enquanto vigiava as vacas. Valeu-nos que nunca paguei propinas no colgio, como chamvamos ao Externato.OMiguelCrte-Real,essehomemdalinhagemdosprimeiros povoadoreseaquemSantaMariamuitodeve,noconcordoucomaideia, alegandoqueeuestudava,equemeupaieminhame,costureira,se sacrificavamatrabalharmaisdoquepodiamparaeuteraqueleprivilgio. Estava a questo por decidir quando chegou um funcionrio com uma notcia dramaticamenteirnica.Meupaiacabaradedeixarvagodefinitivamenteo seu lugar na vida. Santa Maria, uma declarao de Amor.SantaMaria,textoparaasessoevocativadeFranklinRoosevelt, promovida pela FLAD.

Malino, (Homenagem a Miguel Torga) Malino era um gato de alto l com ele. Um senhor gato. O preferido das gatas da vizinhana, que o aceitavam sem mais aquelas. No ia em grandes conversas.Tiroequeda.Lporcausadissonoincomodavaosouvidos sensveisdossenhoreshomensedassenhorasmulheresquetentavam dormir hora do namoro. Para algum mais desinsofrido era s o tempo de se levantar procura de improvisada arma de arremesso e, em chegando janela, jtudoerasilncio.Nemhaviaolhoscapazesdedescobriroparde amorosos, que se esgueiravam num pice para onde ningum os visse. Que dissessem dele que era um valdevinos, aceitava. Mas um valdevinos decente,acrescentassemaoditoporrespeitosuapessoa.Filhosenetos eram tantosquenem fazia ideiadeaquantosmontavam.Eno juravaque dealgumnofossepaieavaomesmotempo,queissodedeslindarde geraoemgeraoquemeradoseusanguenoeracoisaqueselhe 7 pedissecomsegurana.QueDeus lheperdoassequalquerabuso, masno tinhamododefugirsina.Erafadodegato,pacincia.Pioreseramas pessoas gente, que juravam para a vida inteira e, s vezes, era bem de uns diasoumesesemaldorestodavida.Porissosequeixavaosenhor Franciscoque,tendo-lhedadoDeustrsfilhoseduasfilhas,jlevavana contaoitonorasegenros.Egabavam-semuitosdefaanhasdeenganos. Masnoqueriamqueningumtocassenoqueeraseu.Porradariadecriar bichoesangueiradefazermorcelas,setalacontecesse.Mortesdegente, at.OutromododesereraodoJooCana,essefala-barato,quese confessara de aventuras de alcova e o padre absolvera do pecado da mentira apenas!Umfarsante.Aquiloeralhomemdepecadosmaioresdoqueo desejo,coitado?Pagavaumquartilhodevinhoparacalarabocadequem dizia t-lo visto com esta ou com aquela. No estivera nada. Mas os rapazes conheciam-lheo fraco,eraum tal inventarqueoapanhavamemdelitosto secretos que nem aconteciam. E ele, de elogiado, fingia-se temeroso de que lhedivulgassemsegredosdeencontrostoescondidosquenemoprprio Deus testemunhava. Vingava-se na sueca. No jogo das cartas, para que no hajaequvocos.Tinhaasortedostolos,diziam-lhe. Quelhe importava isso, seganhavamaisdoqueperdia?Umdia,puxouocincodecopas,efeza mo, porque os outros trs baixaram o jogo. A seguir, puxou o s, e levou a seta e o rei. Chamassem-lhe tolo, que os enganara e assim ganhou a partida e o dezasseis de vinho. Chegava ao fim da primavera numa desgraa, uma vergonha. Coisas da vida.Recuperavadepressa,quearatoagemnofoifeitaparamaisdoque isso, e as guelras do peixe e outras delcias eram farta. E ainda lhe restava barrigapararoubaralgumchicharro carapau,nodizer finodeLisboaou umpintodescuidadopelameepelasdonas,tentaesescusadas, verdade, mas o fruto proibido o mais apetecido. Nessetempo,andavalivrepelacasa,slhetrancavamasportasdos quartosdedormir.Tambmnohaviamuitocomoevitarqueentrasse quandolheapetecesse,aindaqueonoquisessem, oquenoeraocaso, porviadabicharadaqueroatudo.Melhorvidadoqueaquelanemados seus antepassados do Egito. Ento a dona velha regalava-se: Quatro, Ludrinhas, que o Malino apanhou hoje. Aquilo que um gato! Eera.Preto,queiaesquecendodizer.Gatopretosemprefoibom caador.Casafarta,adosseus.Lavradoresdesdeotempodasvacasmagras, nascerajnaabundnciadossubsdiosportudoepornada.Eraobezerro demama,eraavacadeleite,eraavacadefunta,eraistoeeraaquilo. GrandesalgibeirastinhaessesenhorGoverno,deondesaatanto.Fora criadocomsopasdesoroeleite.Podiaterdadoemgatofino,deescolher comida,masnoquisnegaracondio.Nohsopaquesecompare carne tenra de um murganho. Nem ao gosto de apanh-lo. Isso que no. Ascoisaspioraramfoicomariquezadosdonos,quandoascarteiras abarrotavamat lhesrasgaremasalgibeiras,quej deviamestarparecidas s do senhor Governo. Os vizinhos do lado que eram uma misria. Um homem s para dar de comeracincobocas,todasfmeas.Trabalhavanoqueaparecia,foi tenteandoa vidaat lheentraraquele malnascostas.s vezesnempodia mexer-se. Dias e dias na cama, e a fome a apertar em casa. Foi aos doutores todos deste mundo e do outro, contando-se entre os do outro os curadores de ervasedemezinhas.Nomelhorou.EosenhorFrancisco,aoserviode quem apanhou aquele jeito a revirar uma pedra do seu tamanho nos alicerces dacasanova,nolhedavaumescudonemumapalavradealento.No pusera o pessoal no seguro, e desculpava-se que ele j fora para l aleijado: queria era arranjar reforma sua custa. Safa, malandro! Quesimsenhor,estavacerto.Eraavozdosquesconhecemuma qualidade de gente a quem dar razo: aos mais fortes. Adesgraadosvizinhoscomearanumdiadeglriaederiqueza. Estardalhao de banda e de foguetes. Bno do padre e caldeirinha de gua benta.Meteragovernadorcivil,presidentedacmaraeoutradziade cabeasdasgrandes.Ocostume.Inauguraodasmquinasnovasda fbrica.Eparabnsparaesteeparaaquele.Eparaostrabalhadores,que tinhamotrabalhofacilitado.Eraotinhas!Logotrsdiasdepoisfoimetade para a rua. Sacho outra vez. Mas onde? Agora era s erva a perder de vista. Nemumaespigadetrigooumaarocademilho.Milheiraishavia,mas bastos.Paraassenhorasdailha,asvacas.Ouvirafalar,nanjaquefosse nadonessetempo,queumgatotemsete vidasmasacabam-setodasnum instante. Tornara-seumgatotriste.Talvezfossedaidade.Masjulgavaqueno. Erasdatristeza.Novo-ricoquercasanova,eosdonosdeitaramavelha quasetodaabaixo.Paredesdeblocos,portasdeaccia,persianasde alumnio.Nemumagretaquedeixasseentraroar,quantomaisumburaco por onde ele se esgueirasse. Telha vermelha do Continente. Desmancharam acasademilhoeomurodepedra,paraofazerdeblocos.Cimentaramo quintalquasetodo,deixandoapenasdoispalmosdeterraparaosgirassis da festa, trs ps de couves e uns espigos de salsa. Vassoura pelo ar, se o apanhavam l a fazer decentemente as suas necessidades. A dona velha at chorou quando esborralharam o forno. Ainda gostava de cozer o seu po de trigoedemilho,ouasuamassasovada.Eafilha:Compra-se,quea mesma coisa. 8 Atoleimada!Sabialoquedizia!Entoporquerazoatele,queera gato, bicho irracional, nunca comera ratos mortos pancada ou na ratoeira? Comoseosabordascoisasestivessesnabocaeno,tambm,no trabalho que se tem por elas. Atoleimada, pronto, pensara estava pensado. Quisumdiaprosolhosnacasanova,pordentro.Parecia-lheiguala todas as casas novas, mas tinha uma pequenina esperana de que os donos fossemdiferentes.Qualqu!Nemumpingodeimaginao.Azulejos, mosaicos, alcatifas, flores de plstico. Sape, gato! Ai,agoraerasapegato!Comqueento,tornara-setudogentefina naquela casa, que at tinha tapetes com pelagem de palmo, a fazer mesmo apetecer uma soneca nosseres de inverno. Ia-se embora de livre vontade. Metia-lhenojo,aquelalimpeza.Eospalermasdepsdescalosnasala, como os do Canad, a ver televiso com uma enfiada de sapatos porta. Era a sua orao. Era a sua mesquita. Passassem bem. Guelrasdepeixe?Nemv-las.Iatudoparaolixo,maisascascasde batata,asaparasdacarne,tudo.Porcausadosadubosjnohavia estrumeira, nada onde meter o nariz, s vezes mais por desfastio do que por andarprocurapelaprecisodafome.Eosratos?Eraumpenadoiro catrafulhar algum. Punham ratol por toda a parte, que iam comprar meio dado junta de freguesia. Pensavanistoenquantoiaacordando.Felizestemposemqueos automveis da freguesia se contavam pelas unhas de uma mo. O do senhor padre,odosenhorprofessor,odosenhordoutor,odosenhorJosda farmciaeocarrodepraa.HaviaocamiodosenhorFranciscoea camioneta da carreira, mas esses no cabiam em ruas estreitas como a sua. Noeradoseutempo,contara-lhea me,queouviradizer.Aindacrescera semmuitocomquesepreocupar.Atravessavaaruasemterdeolharnem escutar. Mais tarde que foram elas. Aquilo era um rebolio desde o nascer do Sol, ou antes, nos dias curtos, que Deus nos livre. Depois do barulho dos tratores, com as bilhas do leite vazias a matraquearem, vinha um chinfrim de buzinadelasdegentedoida,chamandoafreguesia.Acordavamquantos estivessemnosonodamanh,queomelhor.Eramoscarrosouos triciclos:dopeixe,doqueijodecabra,dopodaVila,dopodaRibeira Grande, da fruta, da carne, das fazendas. O diabo a quatro, a desinquietar a almamaispaciente.Eaindaacatervadacanalhadadebicicleta,eos rapazes de mota a fazer o pino. Mais perigosos que os trens de quatro rodas. Aquilo ainda havia de dar desgraa, fosse o diabo surdo. Mas no foi. Malinoacabaradedormiraquelasonecanocalorzinhodaspedrasda calada.Sara-lheasortegrande,poisningumoincomodara:nembicho co nem bicho gente. J no resistia dormideira em qualquer stio, s vezes paraesquecerafome.Asforashaviamminguadoemproporoinversa idade. Noutros tempos, estaria por essa altura a sonhar de dia com aventuras noturnas. Mas agora? Qual qu! Tivera um devaneio desses, dois dias antes, eaindalhedoaocorpotododeumasovaquelevara.DoTarouco,um trinca-espinhasfarrusco,umbadameco,quesdelheverosbigodesteria fugidoaseteps,senofosseaquelavelhicequeoescanzelarae amodorrava. At lhe ia tirando um olho com as unhas, o excomungado. E as gatasjnoeramtantascomoantigamente,ningumasqueria,parano encherem os quintais de filharada. Gatos, l escapava algum. Por isso eram como sete ces a um osso. Tantosefartaradenamorosquelhefaltavaapaixoparaandarpor telhadosemurosvelhosprocuradenamorada.Verdade,verdadinhaque notinhaeraforasparaissoeparaoresto,masdesculpava-seassim, tentandoacreditarnoquediziaasi mesmo.Gastara quantasdassuassete vidas?Cinco?Seis?Poderia viver maisumano?Dois?Desconfiava.Longe fosse o mau agoiro, mas aquela pieira e aquele desmazelo no anunciavam coisa boa. Levantou-setontodesono,comeouaatravessararuacomose pesasse tanto como um bezerro desmamado. E era s pele e osso. Os seus cincosentidosestavamavariados,gastos.Foiquandoveioaquelemaldito carro,silenciosocomoumladro,comoseasrodastivessemalmofadas iguais s dassuas patas, como se o motor no fizesse mais barulho doque umcoraodegato.Nemapitou,odemnio.Acasonomereciaeleuma travagem, uma apitadela ao menos? Ou foi a saia curta da Rita que distraiu o condutor? Fosse o que fosse, qualquer coisa lhe bateu na cabea quando a mquina infernal lhepassouporcima.Sorteno ficardebaixodeumaroda. Deviaestarigualamorto,depoisdodesastre.Desmaiou,semsaberpor quanto tempo. Tanto podia ter sido um minuto como um dia e uma noite.Quandoacordou,ochonoeraduronemquente.Ouviuvozesdas donas.Estavanosdoispalmosdeterradoquintal.Salvo!Reconheceu tambm a voz do David Lopes. Ah! Canalha, fora ele com certeza que quase omandaradestaparamelhor.Haviadepag-las,qualquerdia,queaquilo era um doido a guiar o carro, como se todo o Mundo fosse seu. Se eu tivesse um sacho, enterrava-o num instante. Entojulgavaqueotinhamatado!Enomostravaumsinaldepena! Alma de co. Ia ter uma surpresa das grandes, quando o visse vivo e pronto paraoutra.Prontoparaoutraeraummododedizer,agoraquetinha mesmo a certeza de no lhe restar mais do que uma vida. E estava presa por um fio. Aquele fio de sangue que lhe corria da cabea. No te preocupes, David. Isto at foi um favor dares cabo do bicho, que j ningum podia sofrer. 9 Ah! desgraada! Safada! A dona nova, que se babava para lhe pegar ao colo, enquanto foi pequenino, que passava minutos enormes, mas saborosos, acoar-lheolomboeopescooquandojeragrande,eeleaesticar-se, regalado,aocontactodas mosdela?Assim lhepagava tudo:otrabalho,o carinho e a fidelidade? Deixa,queeuatiro-odarochaabaixo,eo marhdelev-loquandoa mar encher. Depois de ouvir isto beira da morte, se um gato no merece o Cu!... Tanto tempo se passara desde a ltima vez que ela pegara nele ao colo. Tinha saudades de sentir as suas mos no pelo Viesse busc-lo.No devia estar bom da cabea. A poder fugir num instante, e disposto a ficarali,esperadamorte,sparasesentirtocadoumaltimavezpor aquelas mos de que tinha saudades. Mas gato tambm tem direito a morrer recebendo algum carinho, nem que seja s imaginado. Assim como assim, a vidanolheimportavaparanadaj.Notinhagraanenhuma,erauma morte lenta. Pareceu-lhequeadonanovapegavanelecomocuidadodeantes. Talvezfosseapenasparanosujarasmosdesangue.Foioseultimo salto.O maiordetodos.Aquedasobreaspedrasfezoresto.Nosentiuo que faltava ser feito. Sobre a Verdade das coisas. 2 Edio Maria da Graa Quandoo velhoenfraqueceuaopontodenopodersairdacama, Manuel Cordovo disps-se a cuidar dele como se fosse seu filho. Desde que os trs tinham ficado sozinhos na aldeia que se iam valendo entre si. Descia aovalepelomenosumavezporsemanaparafazerascomprasda mercearia, e ajudava o Torre Velha a arranjar lenha para a lareira e o forno. Maria da Graa cozia-lhe o po e passava-lhe a roupa a ferro. A eletricidade, que de qualquer maneira no o teria conseguido, no chegaraatempodeevitarqueaaldeiasedesalmasse,nemfizerao Cordovoperderohbitode ler tantocomoumcrticoliterrio.E,quandoa bibliotecadaGulbenkiandeixoudeirAldeiaNovadoVale,passoua comprar a maior parte dos livros que lia. Escrevia num caderno as frases de quegostavamais,eanotavatambmaspalavrasquenopercebiaeno vinham no dicionrio, para perguntar a quem soubesse, oportunidade que s vezes demorava meses a acontecer. Comoeraamaisnovadafamlia,pdeestudarat4classe. Maria da Graa chegou apenas 2, e por culpa dele... Nesseano,oexameda3tornara-seobrigatrioparaosrapazes, masnoparaasraparigas. Ele,apesardeterapenasdezanos,andavana 4 classe, porque entrara para a escola com seis. O posto escolar da Aldeia NovadoValenemsemprepodiacontarnoinciodecadaanocomtrintae doisalunosemidadenormal,eporissoaregentepediaparaalgumas crianas com seis anos anteciparem a matrcula e que as alunas que haviam atingidoolimitedeidade,masnotinhamconseguidoseraprovadasno examefinal,ditodo2grau,continuassemmatriculadas.Comoospais precisavamdosfilhos,consentiamfacilmentenaantecipaodamatrcula, paraosteremmaiscedolivresparaotrabalho,raramentepermitindoque estivessem na escola at depois dos nove ou dez anos. Quanto s raparigas, era difcil que as da Aldeia Nova da Serra fossem autorizadas a matricular-se aosseisanos,porcausadadistnciaedomauedesabrigadocaminhoa percorrer. Mas os pais de Maria da Graa, por acaso e insistncia da regente, atlhohaviamconsentido,poisopostoescolar,porterapenasvinteeoito alunosrecenseadosparaesseano,corriaoriscode fechar,sendoaescola mais prxima na Fonte Gralha, quase dois quilmetros adiante, o que tornaria afrequnciamaispenosaparatodososdaserra.Efoiopaideque arregimentou meia dzia de vizinhos para construrem, ao longo do carreiro, umaespciedecabanasdepastorondeascrianasseabrigassemda chuva. 10 Eraomsdemaio.Haviaalgumassemanas,desdequeleraAs AventurasdeTomSawyer,queManuelsentiaquegostava muitodeMaria daGraa,masnotinhacoragemdelhodizernemdeescreverumbilhete comooscompanheirosfaziampararevelaremassuaspaixesinfantis. InvejavaaliberdadeeoatrevimentodoherideMarkTwain,echegoua ensaiarunspasseiosem frentedacasadelacomoumaconfissodeamor. Mastemiaairadopaidarapariga,capazdelhedaralgumalambadamal medida,ealngualevadadoDiabodame,detalmaneiracortantena defesadahonradasfilhasquesediziaquenenhumachegariaacasar, porque nem tanto ao mar nem tanto serra. Se as outras mes guardavam o gineceudassuasninhadasdocontgiodecobias masculinas,aquelanem sequerqueriaqueolhosestranhospousassemnelas,comoseissoj fosse desonr-laseconden-lasadvitametmortem.E,porfim,adificuldade ainda maioreraadeenfrentarcaraa cara,epalavraapalavra,aquelaque eraoprincpioou motivodasuatimidez.Noseresolvesseprontamente,e qualquerdiaumcompanheiromaisatrevidoplantar-se-iaentreeleeela, fosse por declarao direta ou pelo recurso ao bilhetinho que no revelava o rubordafacenemostremoresdocorao,anoserquealetratrassea convicodossentimentos.Elteriadesair-lhedasintenesaGraa, ainda que da ideia o no pudesse, de certeza. Mas o amor tem impulsos de arte e engenho que em qualquer idade podem fazeroseuproveito.E foiassimque,numatardeemqueestavaao pdasecretriacomosoutrosalunosda4classe,aresponderaos significados,oseuolhardeunodela,queodesviaradocadernodacpia paramolharoaparonotinteiro.Derepente,atreveu-se:enviou-lheuma piscadelafurtiva.Nessetempo,umpiscardeolhoscorrespondidopodia comprometerparaavidainteira,aindaqueumaprimeiraenicapaixo acontecesse aos dez e oito anos. Ela, que no conseguia fechar s um olho, tapou o esquerdo com a mo e piscou duas vezes o direito. Manuel: fundao? A voz da professora chamou-lhe o esprito para mais perto do corpo. A resposta estava na ponta da lngua: Ato ou efeito de fundar, origem, princpio, instituio No regresso a casa, vieram em dois grupos como era costume, com osrapazesumpoucofrentedasraparigas.Eleolhavade vezemquando para trs, tentando perceber se o seu recado fora correspondido apenas por pirraaouconsentimentoverdadeiro,edavacomosorrisodelaacoloriro grupo com um brilho que nunca vira por tais descampados. Estava diferente, aGraa,nessatarde,enoseriaapenasporenganodosseusolhosque haviamservidoparaanunciaraquilodequeporpalavrasnotinhasido capaz. Ameiodocaminho,equandoiamentreduasdascabanasque serviamdeabrigo,comeouachover.Amaiorpartecorreunosentidoda caminhada, para o abrigo de cima, mas Maria da Graa deu meia volta e foi paraodebaixo.Manuelsegui-anafuga.Foiumimpulso,umrepentede inspirao, um no pensar antes de se decidir, um no ter tempo de imaginar que as palavras ou os gestos de que no seria capaz quando estivesse frente a frente com ela seriam motivo de vergonha por no as dizer ou no os fazer. Quandocasseemsi,cadasegundoiriaserdecertoumlongopercursode hesitaesdospensamentosnoseuesprito.Masoprincipaleraterdado aquelameiavolta,tercorridooriscodadesventuranamaisapetecidadas aventuras que ambicionava viver. UmadaspequenasdisseaumairmdeMariadaGraaqueeles tinham estado sozinhos num abrigo e que ele lhe dera um beijo. A irm disse me. A me disse ao pai. O pai bateu-lhe. E os dois, pai e me, proibiram-na de voltar escola. Pastor das Casas Mortas. Porto, VerAor Editores, 2007, pp. 15-16-17 11 (foto do solar de Lalm nas traseiras da casa do autor) ( 12 Asrunas emSantana,na ilhadesanta maria,dacasa doautor,que marcama gnese do pastor das casas mortas Terceiro dia Aosofrimentodosonoedo cansaocomqueselevantaoutra vez neste terceiro dia de romaria, penitncia de si mesma custosa de sofrer e que ojejum muitoaumenta maisoatrasar-lheapartidaparaoCanad, junta-se agora o que lhe doem os ps, com bolhas nos dedos e nos calcanhares e to inchadosquemallhecabemnossapatosleves.Noentanto,aoadormecer com saudades da sua casa, sentira um arrepio de inquietao ao pensar que spassarlmaisumdia,ejulgaqueafinalnodeveriatermarcadoa viagemparapartirtoderepente,semdartempoaqueossentimentos sossegassem e o corpo recuperasse foras. 13 Evitadobrarasarticulaesomaisquepode,aodescerparaa Povoao,pensaqueseocaminhofosseasubirlhecustariammenosas passadas. Mas, quando o rancho serpentear pela Lomba do Cavaleiro acima, h de compreender que pouco importa como seja a estrada, apesar de haver sidotratadonohospitaldavila,ondeoutrosromeirostambmforam atendidos de iguais males e com igual cuidado. certo que ter sentido um ligeiro alvio, mas ao pr-se novamente a andar reavivam-se-lhe as dores e o cansao. Anima-o que a meio da viagem deste dia h-se encontrar-se com a mulher e os filhos, mas o caminho at s Furnas todo feito muito a subir ou outro tanto a descer, e isso lhe aumenta, ao imagin-lo, o temor da distncia apercorrer.Etantomaisfortedoqueeleoseucansaoquepoucolhe importaolharparaovale,queoranchovaideixandoparatrs,eondeos sete lombos das Lombas se abrem pela ilha dentro, ao contrrio de em quase todas as outras partes, onde a terra se abre na direo do mar. Foitalvezporissoquea,porqueailhaumconviteparaquem vem do largo oceano e a v assim a abrir-se subindo para a serra me, tudo comeoucomo mistriode todososcomeos.No ficounomedeningum nemregistodenenhumfeito,eopoucoqueseconhecetemalendapor memria. Da primeira casa de ramos e ervas, dos amantes que se amaram e dofilhogeradoantesdequalqueroutroequefoioprimognitodailha,do matodesbravado,dogroquesesemeouesecolheu,detantosprimeiros atosquefizeramailhacomearamudar-se,nosesabemaisdoquea verdadeevidentedequetiveramdeacontecer...Esnosficaoimaginar passos e gestos, esperanas e temores, e a expectativa mtica de o que seria estaterraquerevelavasegredosaindaimpossveisdeentendernuncaem outras partes vistos por tais olhos, nem ouvidos sequer dizer que havia. SeJootivessenascidoumpoucomaiscedo(equinhentosanos nosomaisqueumpoucodetempona vidadaHumanidade),poderia ter sidooprimeiroaprpemterraparaaquificardevez.Emigrantedeum destinoacasomaisincertoaoquequantosdividirampeloMundoPortugal, porquenestaimensanaueternamenteancoradasevinhafazertudodo princpio,cumprir-lhe-iainaugurarumfuturonovo.Algumofez,edesse algum que foi talvez proscrito ou aventureiro no guardou a histria o nome nemalembrana,quemalsesabedequemasbarcasqueprimeiro chegaramequandoecomoeonde foramchegadas. Viagemdeemigrarna certeza de um no regresso, que muitas vezes nem chegada havia... Ilha Grande Fechada. Lisboa,ed. Salamandra, 1992, pp. 43-44 e 45 2 edio VerAor Ponta Delgada 2010 14 Literatura e humor (Homenagem a Joo Ubaldo Ribeiro e Marcolino Candeias) (MarcolinoCandeiascriouumapersonagemmagnfica,oJoe Cannoa,umcontadordehistriasfantsticas,capazatderessuscitar Lzaroumasegundavez.JooUbaldoRibeirodeuvidaamuitas personagenstodeliciosascomoasdoMarcolino.Estaumatentativade homenagearumeoutro,atravsdeumemigranteaorianoemterras brasileiras,vagamenteprimodoJoeCannoa,queparalfoiemcrianae que, do que diz, pouco soa linguagem de pai e me.) Um stio chamado Aqui Baiano tem famas bem ruins. Todo mundo o desconsidera como sujo e vagal, e mais ainda que, tendo esse tanto de porco e preguioso, tambm a vergonha do Brasil na hora de falar. Mas seu Ubaldo escreve direito nossas falas,efazliteraturaquenohquemnodaplausooubotedefeito, inclusiveportuguesesdePortugal,esendoqueelesdolustronaprospia, dedicandogenteadesgraceiradaignorncia.Esevosmecouvisse JulinhoCalagatos,principalmentedepoisdefeitassuasdevoesde cachaa,entoficavasabendooquebibliotecamesmo.certoquena horadecontarmentiranohquemganheele,oqueaumentaata imensidodeliteraturasqueelefala,equeodescaradochegoumesmoa dizer que os americanos j tiveram na Lua. Mas a gente desculpa, e pe as culpasnacachaadeAdnton,que mais forteque lcooldesararinfetos. TeveumavezumconcursodementirasideiadeAdntonparaganhar dinheiro nas apostas de aguardente e o danado derrotou todo mundo num instantezinho.Nemdeuhiptese.Novoucontarasmentirasda concorrncia, uns excessos que ningum pode imaginar, e eu no quero ser chamado de excessivo. Julinho Calagatos, que era o ltimo a botar palavra, falou s isto: Esse pessoal a esto fora do concurso. Tudo o que eles disse verdade. PoressarazodasilustresletrasdeseuUbaldo me dat vontade de chorar, eu que nem sou homem de chorar por cacarecos. Bem que minha santa me me azucrinava todo dia com a obstinao dos estudos, mas eu s tinha paixo de escola na hora de sair. Se escola fosse s sair dela eu tinha chegado a doutor. Tia Gertrudes era mais compadecida, e por isso era quem maismeaceitavaemcasadeladeixandomeubancoesperarpormimem voatquaseserhorademurucututusaircaando.Chegadasas convenientesindagaes,elasejustificavadizendoamamequeeutinha ajudadonoacaraj,competnciadeveterano,especialistamesmo,eno deixava aguar, no dava pausa enquanto titia fritava. Ento a mame exigia unsbolinhoscomoprovadasalegaes,eissodepoisqueeulevavauma porradadasretorcidas.Assimqueaconsequnciaeraqueseucomia grosso das mos dela, enquanto todo mundo se babava com os bolos de titia, mais ainda porque o feijo dela era o muito melhor daqui. Papaiseabstinhanasjustias,esdeusentenaemmeuproveito quandoeufizqueixa,provadaecomprovadaportudoquantoeraalunode professorJac.ProfessorJacnodesabedoriasseguras,no.Os meninosjuraramem minhajuraqueeleensinouissodealfabetodandoum nome terceira letra, e logo estava chamando ela de outra maneira. Num dia era c e no outro era qu. Mudou de opinio, e a gente sabe que professor nopodeteropinio,faloumeupai.Opovodeviaeratirarosfilhosda escola,queparaaprendererradonoprecisoprofessorcomdiploma. Errado a gente sabe. Com tudo isso, no aprendi mais que umas sete ou doze letras, e at essas esqueci para todo sempre, veja a inglria. isso a que me d vontade dechorar, j falei,queeunemqueriaserdoutor,s presumiasercapazde ler a Bblia e nossas histrias de seu Ubaldo. Aquitempoucopessoalcapazdelerdireito,masavelhaMariana sabe mais que uma universidade tudo junto, mesmo que ela mais sbia que Julinho. Pormnoadmira,que foioEspritoSanto queensinou,tantoque atpodefalaraslnguasprincipaisdoMundo, inclusiveportugus,espor humildadenofalaeporqueningumiaentender.AvelhaMariana daquelas mulheres que a gente pensa que j nasce velha e casa viva, mas tambm foinovinhacomoErnestina,podesermesmoquebonitacomoela, que todo mundo quer ver passar quando ela passa e ficar olhando a roda da saia e esperando o vento. Foi ela que escolheu nome para quase o pessoal todo, porque sabe o nome de tudo quanto santo, e praticou no monto de filhosqueteve,queerametadedopovodaquisenotivessemidopara outraspartes.Quandoolhavamnoespelhoeviamcaradehomem, pensavamqueeratempodeabrirogs,epronto,abriammesmo,s parando a mil lguas daqui, no mnimo. JulinhoCalagatoscasomaisdeespantar,mormentequeno aprendeu de Deus, foi s ouvindo e falando a vida toda. Se todo mundo tem seuacaraj,odele foi fazer laoapassarinho,ealilogoseperdeuhomem 15 capazdeganharNobelnaquiloquefossepreciso,podecrer.Erasdizer Julinho, vai a no concurso e vence esses camaradas todos. Nem que fosse alemo ou americano ele vencia mesmo. Julinho podia at ter estudado para santo,oqueparece ideiade jerico massantesde ouvirsuasrazes, mas ele no quis, diz que d uma trabalheira medonha que mesmo s santo que pode. Se no fosse, Julinho chegava a santo, com velas, flores e tudo l no altar,squeelequeriaissoeraparafazerumasvinganas,noesconde. Ricoquefossenaigrejapedirabundncia,eledavasdepiolhosede bexigas, e se no lhe dava uma bicuda na testa era porque santo no mexe, o que outra amolao que Julinho no aguenta, por isso ser santo difcil mais que subir pau de sebo. E de carne no havia de consentir na mesa do rico mais que mocot em dias de festa, Carnaval inclusive, e isso caso o rico no gostasse. Mas menina boa e feia ficava logo ali boa e boa, ora veja, no sei se entendeu. Uma vezteveaquidois fulanosparaarrolaropovodetestemunhas deJeov,queoNossoSenhordeles,efoiJulinhoquemresolveua questo.BemqueavelhaMarianatentou,masembatucou,comrespeitoa essas coisas que eles mostravam na Bblia, e o povo olhando e ouvindo sem saber que dizer. Os fulanos falavam que o Mundo ia acabar mais dia, menos dia,masdavamgarantiadoCu,emaisnoseioqu.Seeles acrescentassemsetentavirgens,comoosoutros,agenteatquefazia negcio sem mais considerandos, que a coisa estava ficando meio chata. O piorfoinahoradeexplicaroqueeraproibidolnareligiodeles.Houve coisasqueagenteiadandoacordonobaternamulher,tavacerto.Ea mulher pode bater no homem? No pode, t mais certo ainda, duas vezes certo,com isenoparaa mulherdeJunpero, todo mundosabe.Pagarum dinheiro para as gravatas deles e mais os ternos e as pastas e as viagens, que o mundo grande, maior que o serto todo e cheio de granfinagem que a gente nem sonha. Eles no falaram isso, mas o pessoal percebeu logo. Pior foi na hora de proibir cachaa. Julinho foi mandando bota a outra cachaa, seu Adnton. Os da pasta deitaram fogo pelos quatro-olhos e falaram que ele ia direito para o Inferno. Julinho encheu de ar, tossiu quatro vezes (aquela era especialssima ocasio, que nas vulgares s tossia trs), e emborcou o resto da cachaa. Nem cuspiu, que ele no cospe depois de beber para no botar foraogosto.Puxouascalas,esfregoucomodedodopdireitoo calcanharcanhoto,edeusentena.Vosmecsfalamquenessa especialidadedeCuscabecentoquarentaequatromil.Depois, descendonorespeito,acabouaargumentao.Vocsomelhormesmo no procurar mais fregueses que tire seus lugares. Morreua. Tinhamentradorezandoesaram xingandotodo mundo. Pelos modos, aqueles fregueses no vo fazer parte dos cento e quarenta e quatro mil. No merecem. E a culpa toda de Julinho Calagatos. J dizia a me dele que ele botava as almas dos outros nos Infernos. SeuAdntontambmnosabeler, mastem livroscomtudoquanto fiado. Emvezdenomeelefazumdesenhodasaparnciasdecadaqual,assim que bigode quer dizer Jorginho Filho, sobrancelha grossa seu Antenor, e os mais consequentemente. Julinho no precisa desenho, Adnton tem um livro s para ele. Pior o desenho de Raimundo, a quem a mulher planta na testa at doer a alma s de ouvir suas histrias escondidas, que eu nunca vi nem quero ver para no ter assombraes. E diz quem j viu o desenho dele que Adntoncaprichanospormenoresdaarmao.Raimundodisfara,masa gente v na cara que est sempre virado no co, chateado mais que lagosta apanhadanojerer,enoparamenos,queningumgosta.Dvidasde cachaasolembradascomumcopocada vez,equandocheganoquinze elefazumamoringa.Sendocasoqueocamaradabebemaisquinzesem pagamento, Adnton no desenha outra moringa, faz um dedo espetado com seudedodomeioservindode modelo, vejaodesaforo,enodnem mais uma pinga ao coitado. Televiso nunca apareceu aqui para filmar o povo e essas coisas assim, que o nico crime mortal que teve aqui foi quando Formosinho degolou Dalberto. Formosinho um cara sem vergonha, mas houve at quem risse da faanha dele,queissonotudoalmalavada.Masagenterisemprequandolhe chama esse nome, que o pobre to feio que s explicar mete medo. E at deu risada universal quando ele ficou com os olhos quase saindo pelo caro fora,porcausadoapertoqueZCo lhedeunogargalo. ZCoodono dascabrasvivasdobodedefunto,esnoesganoumesmoFormosinho paratodoosempreporquenoeradonodobode.Se fosse,esganava,eo crimeficavamaisfeioainda.OdonoeraFormosinhomesmo,masZCo queriaobodedeleparafazerofcionascabras,eestavanotempodas npciasdelas.Foiissoqueelenoperdoou,porqueparaacharoutrobode capaz de tais proezas, inclusive que Dalberto nem sequer era de preliminares demorados,precisavairataofinzinhodoRecndito,emesmoassimno sei.Masoverdadeirodonodobodeatquetinharazo,quebodenod leiteeelejvinhaaguentandoobichovivohmuitotempospara emprenharascabrasdeZCo,quenopagavadotenemnada.Eras despesa,quebodedepoisdecrescidonorendenaengorda,eDalberto levavaseismesesrecuperando-sedosobsquios.Alisocoitadode Formosinhojurouquenotencionava matar,apenasqueriacortarumchifre 16 paraunsenfeitesldele,squeocabrodobodenodeixouelecortar rente, e ento Formosinho teve de cortar na goela, veja a desgraa. Dalberto morreulogoali,eodesnaturadoaproveitouobitodochifrudoparafazer jantar de bode assado. Aqui tem igreja, mas to pequenina que Nosso Senhor tem de sair para o povo entrar. E botaram nela um santo que no h quem conhea, nem padre, nem bispo, nem papa mesmo, inclusive a velha Mariana. Imagine s: So Cucufate! Mais esta no desprestgio! Cristo no leva nome assim, mas pode que na lngua dele at fosse grande importncia. A velha Mariana, que sabe desantos e santas e Nossas Senhoras que nem doutor da Igreja, leva um ano inteirinho de catecismo s treinando os meninos para no rir quando ouvem o nome dele, e no para menos.A igrejaquem maisusaa velha Mariana, maisaindanosdiasque Brasil joga copa. A gente pe ela rezando l para Deus Nosso Senhor ajudar o escrete, ou para desajudar os outros, o que faz os mesmos devidos efeitos. QuandoojogocomospanudosdaArgentinaoucomosdelicadinhos ingleses,elavaidevspera.Nessesdiasobotecoficatoempestadoque nocabenemmosca,masesttudodeacordo.Opiornorestodoano, queistoaquiofutebolmuitodividido.MetadedopessoalBahia,outra metade Vitria, e a terceira metade uns sem-vergonha de clubes que eu nemseionomedireito.OmaispeguentoChicoCome-gua,que Fluminense, acha que pode? Mas no Fluminense de Feira Futebol Clube, sefosse,pelomenoseratimebaiano,eleFluminensecarioca,porraiva quetemdooutro,porquequeriasergoleiroldeles,eomisterdisseaele quenoservianemparagandulapoisnoagarravanembolaparada.E quem viu ele pensar que estava jogando confirma. Aqui tudo doutor de bola, se duvida pergunte, e se quer provas aqui tem a alinhaodotimequedeudespachode5-2naSucia:Gilmar,Djalma Santos,Bellini,Orlando,NiltonSantos,Zito,Didi,Garrincha,Vav,Pele Zagallo. Este pessoal s no ganhou trs copas seguidas porque perdeu em Inglaterracomosmoambicanos,queosportuguesesssabiamjogar futebolquandoerammoambicanos,emaisporquecontraelessalinhou metade do escrete, que o beque direito deles completou nas pernas do Rei a ousadiaqueumcomunistatinhacomeado.Masofuteboldehojeoutro sentimentoquedvontadedechorar.Antigamentetinhapontasque driblavamtudoquantoerazaga,e ficavamesperandoosmeiasparadriblar antesdefazergol.Etinhachutequeeramaisquetirodecanhoeat assustava os anjos. Nos treinamentos de Jairzinho no botavam vu de noiva nabalizaqueelechutava,paranorasgar.Masdesdequeapareceua televisodandoimportncianeles,jogadordefutebolmaispareceestar fazendoconcursodemisse,umdesconsolo.Emaisaindaqueagoratodo mundo se divide na opinio, que cada um v penlti e ofissaide quando quer quesejapenltieoffisaide,equandonoquernov.Antigamenteo pessoalacreditavanoespquersemmaisqunempraqu,nodava encrenca, ele falava tava falado, quem era a gente para negar?Que me desculpe seu Ubaldo, mas isso de saber ler eu acho que no ia dar, no. Eu gostei de ser menino, mesmo daquele modo sem jeito que j contei. Quando fiz doze anos s passava de metro e meio porque tinha calos nos ps como jegue sem ferraduras. E agora veja se tem jeito eu usar sapato fino. Futebol tinha cheiro de suor dos pontas que passavam correndo na linha e perfume de couro da bola. O povo comia p e aguentava firme na chuva, no sol e no vento. O povo fazia parte do jogo. A televiso meteu o jogo em nossa casa, mostratudodireito,a verdadequenotinhaantigamenteepor isso que era tudo to lindo. E d repetio at. Mas vida no tem repetio, no. Nodparavercomofoiparaaprendercomodeviatersido.Seeufosse capaz de ler os livros de seu Ubaldo, ia poder ficar lendo tudo quanto livro. Epodequeafossecomoissodeteleviso.Acabavaoencantamentoea inocncia. Dueto a uma s voz OmeuamigoJosdoCarmoFrancisco,umpoetadesuave sensibilidade, tambm jornalista do jornal Sporting. Costuma acompanhar por todo o Pas as equipas jovens do nosso clube, e houve uma vez em que comeouassimacrnicadeumjogo:Verdepodeseracordapaixo.O verde das folhas da videira a anunciarem as uvas e o vinho novo. Os verdes anosdajuventudequequerapressarachegadadoamanh.Verdeda paixo,paixodo verde.Das folhasda videiraquehodesecarnooutono. Felizesosqueosdeusesnoamam,porquetalveznomorramjovens. 17 Felizesosque,comoasfolhasdavideira,nosojovensparasempre. Porque s a morte faz eterna a juventude.Apesardafrequnciacomquetransformaumrelatodesportivonuma viagempelapoesia,estaintroduopareciasermaisdoqueumsimples efeito literrio. E era, de facto. Dispondo de umas horas livres, resolvera passear pelos arredores da vila ondeosjunioresdoSportingiriam jogar,e chegaraatumaquintaemcujo porto,aoladodeumacasacarregadadevelhadignidade,eraanunciado vinhodoprodutor.Maiscomoconsequnciadoseuespritocuriosodoque pordesejorealdecompraralgum,emborafosseesseopretextocomque justificaria o que ali ia fazer, puxou a corda da sineta que servia para chamar quemdevesseabriroporto,masfoiportadacasaqueapareceuum homemdebomaspeto,comcercadequarentaanos,queomandouentrar por ali, dizendo depois das apresentaes: Minha mulher no est. Foi visitar a irm.Para se dirigirem adega, passaram pela cozinha. Postas sobre uma cadeira, estavam umas calas escuras, azuis, uma camisa de riscas verticais azuis e brancas e meias num tom levemente mais escuro do que as calas. O donodacasaexplicou:ALucliasaiuenquantoeuestavaadescansarum pouco e, como sempre, teve o cuidado de me deixar a roupa preparada, para o caso de eu precisar de sair. que eu sou um desastre a combinar as cores. Nuncaatino...Imaginoqueestaquevestiparaandarporcasadeveestar terrvel...Usavacamisacastanha,calascinzentasepegasverdes.Em cima da mesa havia um bilhete, para que ele lhe chamou a ateno, no qual estava escrito numa letra muito bem desenhada: Meu Amor: Vou a casa de minha irm. Talvez me demore. Beijos. Luclia. Pegounoutrafolhadoblocodenotaseescreveu,comletrameio gatafunhada: Meu AmorVoumostraraquintaaumamigoqueveiodeLisboa.Sechegares entretanto, vai ter connosco. Beijos. Maurcio. Guardou o recado de Luclia numa gaveta do louceiro, onde estavam muitosoutros,explicando:Souincapazderasgarumbilheteseu.Masela to-pouco rasga os meus. Quer ver? E mostrou a gaveta ao lado. O Jos do Carmo Francisconotouumpormenorcurioso:todososbilhetesdelatinham dois pontos a seguir a Meu Amor, mas os dele no. HaviaoutroretratodeLuclianacozinha,eoJosdoCarmo comentou:Desculpequeeulhodiga, masasuamulhermuitobonita. O outro sorriu e respondeu: Um elogio no se desculpa, agradece-se. Avisitaquintacomeouporumavinhaidentificadacomainscrio QuintadeNo.Odesconhecido,dequesabiaapenasonomeeopouco que ia descobrindo, explicou: Estas videiras produzem um vinho forte, rstico eprimitivo.Jtrincouporacasoumbacelo?Tem-seaimpressodequeo seusaborpermanecenestevinho,quetemaqualidadedeexcitartodasas papilas. Os enlogos talvez o definissem como um vinho encorpado, mas eu prefiro usar outra linguagem. AvinhaseguinteeraadeDioniso.Noseiselhepareceestranhaa forma como escrevi o nome, mas prefiro esta para o deus grego, deixando a outraparaossimplesmortais.Asuvasdestavinhaproduzemumvinho ligeiramentecido,menosgrosseiroqueodeNo,masquenoabsorve demasiadoosabordamadeiradosbarris.um vinhoquetemapenasum sabor a vinho, perdendo a memria das uvas ou das cepas de que provm. AterceiravinhaeraadeBaco.Ovinhodestasemelhanteaoda vinhadeDioniso,masmaiscivilizado,maissuave.Sente-sepoucoasua passagem pela boca, como se ele no servisse para mais do que transportar um calor muito agradvel que nos cai no estmago de modo inesperado. A ltima vinha tinha o nome de Luclia. Olhe, meu amigo, aqui est a minha obra-prima. Estas uvas so delicadas, no devem ser pisadas por ps dehomensnem levadasprensa,por issosoespremidasapenascomas mos,comoqueacariciadas.Ascrianas,sim,podempis-las.Asmes trazem-nascomoqueparaumafestaelavam-lhesospsnaquelafonte. Deixo o mosto fermentar com as cascas, a polpa e obagao antes de coar. Depois de decantado, mudo-o. Ofereo este vinho a todas as igrejas ao redor daqui,paraamissa.Oresto,dou-oaosamigos.Semepermitirahonra, ofereo-lhe tambm uma garrafa. Mudou de tom, passando de um certo entusiasmo para um ar de tristeza. Osenhorcasado,no?Masnoseadmireporeudizerquenolhe desejoqueameasuamulhertantocomoeuaminha.Vivonumapaixo constante,que meaflige,porquetemosemprequeaconteaqualquercoisa demalLuclia.Elaestevedoente,muitodoente,poucodepoisdenos termoscasado,enemimaginaopavorquefoipensarqueelapodiafaltar-me. Queira Deus que isso no suceda nunca. Abriu uma garrafa do vinho com o nome dela, e ofereceu um copo ao JosdoCarmo,dizendo:Nopensequeeusintoestapaixocomonos primeirosdias,emboraavivadamesmamaneira,oumaisforteainda.J viajoudeavio,comcerteza.Quandoelearrancaparalevantarvoo,e enquanto vai subindo, ns sentimo-nos arrastados por aquela velocidade que 18 quaseumaexploso.Depois,quandoatingeaaltitudeconveniente, estabilizaenemnosapercebemosdequeestamosa voar. Masestamos,e maisdepressadoqueduranteasubida.Poisosdoismomentosda verdadeirapaixosoissomesmo:umprimeiro,quecomosefosseuma exploso,eumsegundo,odatranquilidadeedasegurana.Talveznoo notemos, mas este momento mais forte ainda do que o primeiro, apesar de poder durar a vida inteira. Ovinhoeradeumasuavidadequenoficariamalcomparardo rostodeLuclia,masdepressasepercebiaserfortetambm,talvezdeuns catorze graus. Devo ser um dos poucos homens a quem a mulher faz versos, veja l.Foiaumnichonaparededaadega,ondehaviaumasebentaque mostrou,explicando:aquiqueeuregistoovinho.Notenhonenhuma contabilidade,masgostodesaberoquecadavinhaproduz.Arrumoua sebenta,cheiadecaraterestogatafunhadoscomoasletrasdobilhete,e pegou numa paca de fotocpias. Estes so os poemas de Luclia. Gosto de oslerde vezemquando,enquantobeboumcopodoseuvinho,epor isso tragoparaaquiasfotocpiasquefaodocadernoemqueelaosvai escrevendo.Alis,elaescreve-osemdoiscadernos:umparamim,eoutro para si mesma. Fez uma pausa, talvez espera de que o Jos do Carmo lhe pedisseparaouviralgunspoemas,masestesentiupudordelhodizer.No entanto,ofereceu:Noseimportaqueeuleiaeste?Elachamou-o Primcias.Lucliatemumapredileoespecialpelosfrutosnovos.Os primeirosqueamadurecemsosempreparaela,queosesperacoma ansiedade de uma criana. Enquantoseparavaafolhadasoutras,caiuuma,escritacomletra desajeitada igual da sebenta e do bilhete que deixara mulher. Ao junt-la, disse:svezesLucliafalhaalgumdospoemas.Nuncamedeixaveros rascunhos,massurripiei-lheeste,copiei-o talequalcomoestava,e volteia guard-lonasuagaveta,queelanofecha.Elanoescreveununcao sonetonasuaformaacabada,maspodeserqueaproveiteaideia,porque issoacontece-lhecomfrequncia.Levadiassemsaberoquefazerameia dziadeversose,deummomentoparaooutro,mudandotudo,temum poema pronto e bem feito. Namargemdafolhahaviaumasriederimasanotadasque poderiamservirparaasquadrasdosoneto,equeeramasseguintes: portugus,trs,ms,vez,porqus,Ins,maduras,alturas,puras,futuras, mercs,curas.Orascunho,comalgumassetasaindicaremaposio prevista para um ou outro verso, estava escrito assim: Eu sei que pelos campos me procuras (Eu) Sei que (em) por toda a parte e em tudo o que E em quanto o que for belo Seja belo me revs meu Dom Pedro, rei e portugus, Que (a) tanto amor amando no descuras! Eis-me de ti senhora, e eis-me Ins, s o meu Pedro, sou a tua Ins Eis-me (sou tua) serva que alaste nas alturas, (alada) Para sempre a rainha das ternuras (que tu juras) Porque o amor (s fala) diz tudo sem porqus. Para sempre a rainha que tu crs. A senhora de todas as mercs Quisera ser por ti sempre donzela que sempre em mim tu estreasses No maculaste, amor, o que tocaste. Meu corpo de mulher imaculada. um imaculado de mulher Num corpo de mulher imaculada que tanto apagas E sou, amor... Se fui, sou inda bela pura e E pura, como quando me encontraste, Como quando h dez anos me encontraste Que o teu amor em mim no mudou nada: Nada estragaste, amor, do que tocaste. Em seguida, deu a sua opinio a respeito de como imaginava que Luclia teriaorganizadoosoneto,seestelhetivesseagradado,lendooque escrevera no verso da folha: Sei que por toda a parte me procuras,E em quanto seja belo me revs. s o meu Pedro, sou a tua Ins A quem teu grande amor nunca descuras. Sou tua serva alada nas alturas, A senhora de todas as mercs, Para sempre a rainha que tu crs, 19 Para sempre a rainha que tu juras. Quisera ser por ti sempre donzela, Num corpo de mulher imaculada Como quando h dez anos me encontraste. E sou, amor... Se fui, sou pura e bela, Que o teu amor em mim no mudou nada: Tu no maculaste, amor, o que tocaste. Depois pegou no soneto que se mostrara disposto a ler, e f-lo, devagar, sem forar a emoo nem o tom declamatrio: Primcias Sempre esperaste, amor, que eu te beijasse Como a primeira vez de ser beijado. E eu sempre espero como se esperasse Um pedido de amor no declarado. Sempre esperaste, amor, que eu muito amasse, Como ningum, jamais, foi to amado. E eu sempre esprei que o meu amor bastasse A quem to grande amor tem desejado. Que mais te posso dar, se tudo dou, Desde as flores colhidas pelos campos minhalma e ao meu corpo quando vou Nas fugas infantis de estarmos ss?... E sero sempre como frutos lampos As carcias trocadas entre ns. OuviuumelogiodoJosdoCarmoFrancisco,escolheuentouma garrafa do vinho prometido, e, como se o fizesse distraidamente, embrulhou-a nasfolhasemqueestavamescritososonetofalhadoeooutro.OJosdo Carmofingiuquenoreparou,porqueentendeuqueeletalveztivesse vontadedequeoslevasseconsigo.Aodespedirem-se,eledisse:Quando lheapetecermaisumpoucodessevinho,podevoltar vontade.SeLuclia no estiver, falaremos dela e eu ler-lhe-ei algum poema. Omeuamigoagradeceuedespediu-sesempensarsequerqueno levava o garrafo de vinho que dissera querer comprar, e seguiu de imediato paraocampodefutebol,aoladodoqualhaviaumcemitriocujasfloreso faziamparecermaisumjardimdesonhodoqueumlugardesonoeterno. Comoaindatinhaalgumtempolivre,resolveuentrare,pornolevarum ramoderosasoudecravosparaoferecerquelesmortos,apesardeno conhecernenhumdelesrezou-lhesumPai-NossoeumaAve-Mariae percorreucampaacampacomamesmadevoocomquecontemplaria cada altar de uma catedral gtica. Numa delas havia o retrato de uma jovem degrandebeleza.VendooardepenacomqueoJosdoCarmodeixava perceber o desconcerto que lhe ia na alma, uma senhora de idade avanada, equelogopareceumuitofaladora,explicouqueamoaforaprofessorado liceuemorreradeleucemia.Omarido,tambmprofessorcomoela, abandonara parasempre as aulas quando perdera aesperana na sua cura e teimava em viver como se a mulher fosse ainda viva. Tentara convenc-la de que se tratava de uma anemia teimosa, o que, dizia-se, a rapariga fingira acreditar para que ele no sofresse ainda mais. Pelo aspeto do tmulo, muito bemcuidado,percebia-sequeajovemfora,eseriaainda,muitoamada.O meuamigopensouqueconheceranessediaduasbelashistriasdeamor, apesardeestasertristeetalvezumpoucoexageradapelaimaginaoda narradora. S ento reparou na legenda, meio tapada por um ramo de flores azuis e amarelas: Luclia Nasceu a 24 de junho de 1958 Revista Atlntida, edio de 2005 20 As Duas Cruzes do Imprio Memrias da Inquisio SERMO DO PADRE ANTNIO VIEIRA NA CIDADE DE ANGRA Qui habet aures audiendi, audiat. Quem tem ouvidos para ouvir, que oua. EsteavisodeCristoSenhornosso.MasporqueoterfeitooDivino Mestre, que nunca disse uma palavra em vo? No ser que os ouvidos no servemsenoparaouvir,eintilapelaraoqueservemseaoutracousa no servem? Cristo sabia a quem falava, e conhecia os ouvidos de cada um dosSeusouvintes.E,assimcomoholhosque,olhando,noveem,h ouvidosque,ouvindo,noescutam.(Quiavidentesnonvident,etaudientes nonaudientenequeintellegunt.)Mascomopodeacontecerque,tendoos ouvidosnoouvirasuafuno,ehavendoquemlhesfale,noouam?Ou porqueoshomens,ouvindo,noqueiramouvir(audientesnonaudiunt)ou porquenoentendem(nequeintellegunt).Esoestasaspioresformasde noouvir,sendoasegundasemmalcia,porignorncia,eaprimeira semelhante maldade do Demnio, por no atender verdade. Se aqui vindes para ouvir sem escutar, melhor fora que no visseis nem vos falasse eu. Porque nem s de po vive o homem, mas de toda a palavra quevemdabocadeDeus.(Noninsolopanevivithomo,sedomniverbo quodproceditdeoreDei.)EabocadeDeus(oh! cristos,indignssimosou eu de falar por ela), no vos dada outra, agora, seno a minha. Mas, se no hquemfale,nohquemoua;senohquemoua,nohquem escute;senohquemescute,nohquemaprenda;e,senohquem aprenda, no haver quem saiba. Vrios so os passos da Sagrada Escritura em que se l que a boca tem poderdevidaepoderdemorte.Ah,quemaravilhosoeterrvelpoder!Pela boca se alimenta o como, mas, desatenta do que come, o matar se engolir peonha.Assimsoaspalavras,quepodemservirsalvaodemuitas almasoutrabalharnaperdiodetantasoutras.Comafalsidadedassuas bocasperversas,quiseramosvelhosluxuriososperderafielSusana;mas comamentiradelassecondenaramambos,porqueumdissequeavira debaixo de um lentisco e, o outro, de um carvalho. De maneira que se salvou o lrio de ser arrancado ao jardim da sua vida, e foram arrancados ao paul, de que era a deles, os dois perversos. Temos,pois,queservindoabocaa variadasfunes,asprincipaisso servirocorpo,alimentando-o,eserviropensamento,falando.Etomaro gostodoquecome,paraqueocomermaisapetea,eogostodoquediz, para que possa convencer quem ouve. Porque, se o que fazemos sem gosto de o fazer no pode ser exemplo de que outros por gosto o faam, falar sem gosto, ou sem acreditar no que se diz, no convence. E quantos de ns no estaramos mortos j, ou decerto todos, se a boca no nos valesse quando o nariz, que tem de sua natureza prpria respirar, no o consegue! Mas nem s a isto ele serve, porque os cheiros bons ou maus no-los d a perceber, e at opaladarseperdequandoaocheiroelenoserve.Deus,naSuainfinita sabedoriaepelaSuaomnipotncia,permitiuacadaumdestesrgos distintasfunes,paranonosfazerdisformesdecaraoumonstrosde vriascabeas.Eatosolhos,queparecemservirsparaverenomais queisso,sonecessriosaosono,fechadosquandodormimos,einteis, comoseestivessemfechados,quandocaminhamosnaescurido.Sos ouvidosnoservemparamaisqueumafuno,enuncasefechamnem recusama vigiarporns,quandoosoutrossentidostemosdesapercebidos no esquecimento do sono ou na escurido da noite. De que serve sentinela terolhos,quandonov?Umcegopodeestardevigiaemnoitenegra,e nissoeleatmelhorquens,porqueohabituouanecessidadeaversem olhos.E,seosolhosprecisamdeclaridadeedeestarvoltadosparaoque veem para poderem ver, aos ouvidos no faz falta a luz, e mais ouvem sem elaquecomela,tudoouvindosemimportardeondevmossonsque ouvem. Podeabocarecusar-seacomerouafalar,ecabe-lheescolher,pelo sabereosabor,oquemaisconvmsadedocorpo;e,pelaboarazo, dizersoquemaisconvmquesejadito.E,seoscheirosnosprevinem 21 ondehapodridoounosatraemaoperfume,fcilfugirdeumaou demorarnadeleitaodooutro,comofciltambmqueosolhosse desviem do que no queremos ver. S aos ouvidos, feitos para sempre ouvir, no h como fugir-lhes a que cumpram tal funo. De maneira que, como diz o livro do Eclesistico, devemos cercar os ouvidos com espinhos. (Sepiaurestuasspinis.)Comespinhos,meusirmos!Olhaiqueantes sermelhorsofr-losqueatenderaoquenospodeperderaalma.Estaa grandelioquedaquihavemosdetomar:quesedifcilfugiraquese oua,gravearesponsabilidade,entretantossonsearrazoados,tantas confusasideiasepalavrassbias,tantosoardeocoscmbalosoumui iluminadospensamentos,deescolheroquemaisimportasalvaodas nossas almas. Foi isso ao que viestes, e isso que sempre haveis de buscar mais que tudo em vossas vidas. Contudoaosouvidosquenoouvemintilfalar,aindaqueomesmo Deusofaa.Nosedeitamprolasaporcos,quepreferemalamaqueos refresca a um tesouro de que no podem tirar proveito. E no importa serem sbiososouvintesporque,muitasvezes,osignorantessomaissbiosa ouvir.Enessemesmolivrodesagradasabedoriasedizquemelhorum homem com pouca sabedoria e fraco senso que teme o Altssimo, que outro de abundante senso que no cumpre a Sua lei. (Melior est homo qui minuitur sapientiaetdeficienssensuintimore,quamquiabundanssensu,et transgrediturlegemAltissimi.)VedecomodeuCristograasaoPaipor revelarasverdadesdasalvaoaosignorantes,escondendo-asasbiose poderosos. E, se aqui nos parece Deus injusto, porque no O entendemos e,seOnoentendemos,porqueOnosabemosescutar.Poisestesso osfalsossbios,quecuidamqueoseusaberlhesbastaeanenhumoutro doouvidos;eospoderosossoaquelesquecuidamqueopoderlhesd razo, e a outras razes no atendem seno s suas. Sbio era Nicodemos, mas quis ouvir as razes de Cristo, e convenceu-o a verdade; poderoso era o centurio,mashumilhou-seperanteopoderdeCristo,eEstelhecurouo servo e exaltou to admirvel f. E, das almas mortas pelo pecado, s s que se fazem pequenas pode Cristo erguer da morte e ressuscit-las para a vida eterna, como ordenando a cada uma delas: Talitha kum. (Menina, levanta-te!) Qualdosdoissaiujustificadodotemplo?Ofariseuqueseproclamava cumpridor da Lei, ou o publicano que se confessava pecador? Denadavaleuaumterproclamadooquenoera,emuitofoiparao outro ter confessado o que julgava ser. Mas que a verdade? Quid est veritas? A esta pergunta de Pilatos calou Cristo, como se no soubesse responder. Se Deus tudo sabe, por forte razo tercalado.EarazonofoioutrasenoconhecerosouvidosqueO ouviam,sabendoquenenhunsdelesestavamdispostosaaceitarcomo verdade o que Ele dissesse que era a verdade. Omni qui est ex veritate, audit vocem meam. Quem da verdade ouve a Minha voz, foi a resposta de Cristo a Pilatos, que no era homem da verdade nem nenhuns outros que com ele estavam.Eassimperderammuitos,queLheouviamaspalavrasmas ouvindosoquequeriamecomoqueriam,umaoportunaocasiodese converterem Verdade que lhes era ali proposta. Sendo que Deus cala por intil falar ao auditrio (ou porque no merea, ou no entenda, ou no queira escutar), semelhante a ns no ouvir, porque os Seus ouvidos, infinitamente mais que os nossos, no se fecham nunca. De maneira que no pode escusar-Se Deus a saber que palavras saem da nossa boca,porque,assimcomono caiumapenaauma avenemumcabelos nossas cabeas sem que Ele o perceba, assim a nenhuma palavra pode fugir Deus de a entender. E, o estar em toda a parte, e conhecer todas as cousas e aes e pensamentos e intenes de cada homem, torna Deus testemunha de todos os instantes da nossa vida. Et in omnibus his insensatuns est cor, et omne cor intelligitur ab illo. Pois, cristos, ainda que seja o corao humano insensato,Deus v tudonosnossoscoraes.Oh!sepensramosnisto,se tivssemosamesmavergonhaoutemordeservistosporDeusouporEle ouvidoscomotemosdeserporoutroshomens,quosantaseriaanossa vida,quantosmalesseevitariamnestemundo,equantasalmas,quese perdem,haveriamdesersalvas!Deus,porm,nonosquerjustospelo temormaspelasboasintenes,porquesenenhumaaomseno feitacommaldade,nenhumaserboasespormedoevitamosser maldosos. Por que no fala Deus no nosso tempo como falou a patriarcas e profetas e muitos santos do povo eleito, no Velho Testamento? Por que s vos envia homenscomoeu,quesoupecadorcomo vs,quenosoumaisque vse que mais no sei de Deus? Como podereis acreditar que as minhas palavras soasqueCristohaveriadedizerenooutras?Noserporm,cristos, queofalardeDeusaoshomensomesmoainda,comofoinotempode Abrao, de Moiss, de Elias e de todos ossantos vares e santas mulheres que viveram antes da vinda de Cristo? No ser que, sendo Deus o mesmo, o modo de Ele falar aos homens no poder ter-se mudado nunca? No ser que,sehouve mudana(equedesgraadamudana!),essafoinossa,que deixmosfechar-seocoraoenosomoscapazesdeescutarDeus? Talvez cuideis que sereis santos se vsseis o mesmo Cristo, quando, em vez de um Cristo somente, tendes em cada homem, nosso irmo, a presena de outro Cristo. Tratai com todos eles acreditando que o so (e isso que so e no menos) e vivereis como vivereis acompanhandoa Jesus na Galileia ou na Judeia. E sereis santos. 22 Mas vs, que vos conheceis a vs mesmos melhor que aqueles que no veem mais que as vossas aes e no ouvem mais que as vossas palavras, sabeis que os vossos pecados vos impedem de ser uma sombra da imitao deCristo,quantomaisumCristoverdadeiro!PormDeusnomandaque cadaumdenssejulgueCristo,senoquetratecomcadaumdosoutros comosenaverdadeofosse.DeuscriouoCueaTerraparatodosos homens. E se h Inferno para os que no merecem o Cu depois da vida na Terra, tambm aqui pode haver j Cu e j Inferno. E sabeis quem mais faz com que o Inferno seja Inferno e mais almas leva a ele? No outro seno o Demnio.Seviveiscomtodososhomenscomosecadaumdelesfosse Cristo,antecipaisoCuna Terra; masse,paraos vossosirmos,tornaisa Terra um Inferno, fazeis o trabalho do Demnio. Sofremosmuitastentaes,eemmuitasdelascamos.Olhaique paciente Deus para connosco, que uma s vez pecou Lcifer no orgulho de no querer obedecer-Lhe, e foi condenado eternamente. E o Senhor permite-nos pecar muito, sem perdermos a esperana da salvao. Vigilateetorate,utnonintretisintentationem.Vigiaieorai,parano entrardes em tentao. Fecharam-se os olhos aos apstolos pelo sono, no se fechem os vossos ouvidosspalavrasdeCristo.Vigiemos,cristos,queningumpodepr outrodevigiasuaalmaenquantoestadorme,queomesmoquedizer enquantonocuidadobemdela.Podemdormirtodososmarinheiroseo capito do navio, s no h descanso para quem vigia o mar ou vai ao leme. Eseavidacomoomar,eanossaalmaonavioquenaveganele,e queremos que chegue a porto seguro, que o Cu, temos de ser o capito e o piloto e o vigia e o timoneiro e o grumete. Porque, se no formos cada um tudo isso para a nossa alma, qualquer rochedo, ou baixio, ou vaga de travs poder perder-nos para sempre. Aquetrabalhossedooshomenspelafortunadocorpo!Seuma pequenapartedessecuidado,seunsmomentossdessepenar,sea intenoaomenosdoquepemnosofrerpelasriquezasdoMundofosse posta na salvao da alma, no lhes fariam falta nem pregadores, nem outras penitncias, nem nenhum arrependimento. Olhai no meio de que dor saem os navegantesqueemlongesterras,entredesconhecidasetemidasgentes, acumulamtesourosnestemundo.OuvicomonosprevineCristo:Nolite tesaurisare vobis tesauros in terra. Mas que ouvireis e vereis aqui? Quantoschoros,quantaslgrimas,quantosgritos,quantosdesesperos, quantas incertezas de ver regressar quem parte! Quanto disso tudo e mais o medo de no voltar a ver quem fica, que os perigos do mar (que duas vezes experimentei maisduramente)soto feiose medonhosetormentososque outros no haver de causas naturais que os superem. E tal desconcerto por riquezasqueningumestsegurodealcanar,nemestaroelasseguras nuncadepoisdealcanadas.Podemdurarunspoucosdias,podemdurar muitosanos,mas,pormaisquedurem,sempreserpoucootempoque durarem. Estote ergo vos perfectis, sicut et pater vester caelestis perfectis est. Cuidava eu que me bastava a orao e a penitncia, a pobreza de nada ter de meu e a obedincia que devo a quem devo, que no me pedia Cristo maisqueserviroshomensepregar-lhesaverdade,quetinhaporcertaa virtude s com evitar o pecado. E que ouo da boca do Divino Mestre? Que ssereiperfeitoquandoforigualaoPaiceleste!Queimpossvelparaum homem que, s por ser homem, imperfeito j! No sabemos que ningum perfeito seno Deus? E como me pede Cristo a mim que oseja? Mas no o pede, s previne; no o exige, s o aconselha; no me pe por condio ser igualaEle,savisaque,comoeununcasereiperfeitocomooPai,no poderei descansar nas virtudes da minha alma, por maiores e mais provadas e mais constantes que sejam. Isto me quereis dizer, Senhor, e isto terei eu de fazer,sabendoqueperfeionosecheganunca.Istotornousantosos santos, isto fez de homens como eu a Vossa imitao na Terra. Nenhumdelesfoiperfeito,eningumjamaisser.DizSantoAgostinho que o nosso corao vive inquieto enquanto no repousa em Deus. Com que admirvel verdadenosinquietaobispodeHipona!Bemsabiaele,portanto ter experimentado o pecado e a virtude, a diferena que h entre um e outra, equenemnaquelenemporestapodeser felizohomem. A inquietaodo pecador nasce do medo da perdio eterna, a inquietao do santo nasce da vontade de ver a Deus; a inquietao do pecador fruto dassuas culpas, a inquietaodosantofrutodassuasvirtudes;ainquietaodopecador resultadenoquererdesapegar-sedosbensterrenos,ainquietaodo santo resulta da nsia de se libertar dos males deste mundo. Oh! quo longe destavirtudeandoeu,queestandoemperigodemortenoaltomar,e cuidando-mepertodemeencontrarcomoPaiqueestnoCu,tomou-me um tal temor que parecia esperar-me a mais terrvel das condenaes e no um to doce encontro. Vim mandado at vs, meus irmos, um pouco como Jonas a Nnive. Nunca recusei pregar a palavra do Senhor, e assim se poderia dizer que sou melhor que Jonas. Mas, quando o mar embraveceu, o profeta rebelde quis ser lanado a ele para salvar os que estavam no barco; e eu, pobre pecador, dei minha vida umvalortamanhoqualseoutrasnohouvessealisenoaminhaeno tivessem todas de salvar-se para me eu salvar tambm. Nem eu sou Jonas, nemvssoisninivitas.Ebempodeisdizer-meque,quemtopoucoest segurodemereceradivinaproteo,nomereceseracreditadonoque 23 prega.Queseabram,pois,vossosouvidos,paraqueoentendimentoda verdade seja coisa mais deles que da boca que a diz, pois esta indigna , e temerosa,ecomoquemuda,secomparadaperfeioaqueDeusnos aconselha. NsjconhecemosCristoeOconfessamosporSenhor;nadadenovo nos podes dizer, padre! Tereis razo, talvez. Mas como O conheceis e como O confessais? Pelo que sabeis dele ou pelas obras que praticais? Ou no verdade que podeis estardispostosatadaravidaporCristo,enocumpriraSuavontade? NingumconheceuCristomelhorqueosSeusapstolos.EquaisdelesO defenderamnojulgamentodeCaifs,deHerodesedePilatos?Onde estavam Bartolomeu e Andr e Filipe e outros seis dos que Ele mais amava? EscondidoscommedodosJudeus.EquemOacompanhou?Joo,porque era amigo do Sumo-sacerdote, e Pedro, levado por Joo, mas que O negou trs vezes.Enemdo mesmoJooseouviuumapalavraa testemunharem seufavor!ComoestariaangustiadaaSuaalma,semamigos,semjustia, sempiedadesuavolta!Mashouvealgumqueodefendeu,esabeis quem? Aquele que o traiu e aquele que O condenou morte! Enlouqueceste,padre!Senenhumdevsodiz,aomenosalguns certamenteoteropensado.Maseuvosprovareiqueapressadovosso juzo vos engana. Pois enquanto nove apstolos se escondiam longe do seu Mestre,umOseguiaporqueeraconhecidodoSumo-sacerdote,masem silncio,eooutroquetambmOseguianegava-Otrsvezes.Dosdoze, somenteJudas,vendoquecondenavamJesusmorte,procurouosque queriam conden-lo, e se enfureceu contra eles. NovenderaoMestreparasermorto,e,tendo-lheslanadoodinheiro da traio, foi enforcar-se. Morreu por amor a Cristo, e de que lhe ter valido isso? Faltou-lhe nada maisqueaesperananamisericrdiadeDeusparaouvirdeJesusoque haveria de ouvir, pouco depois, o ladro bom. E o segundo defensor de Cristo no foi outro seno Pilatos. No quis ele convencer os sacerdotes de que no encontrava em Cristo culpa alguma?Ergo nullam invenio in eo causam. No quis trocar por Ele um criminoso, dando escolha o pior que estava preso, a verselhescomoviaoscoraesoulhesquebravaonimosabendoeles quemseriasolto?Quantas vezesnospostodeumladoCristoedooutro Barrabs!Quantasvezesnosdadoaescolherentretrintadinheirosea nossa alma! E ns, loucos, a ir ao pecado em vez da virtude; e ns, nscios, aos bens que passam em vez da segurana eterna! Mas quando trocmos Cristo por Barrabs? Quando vendemos Cristo por trintadinheiros?Muitosdevs,outalveztodos,oestaropensandoe negandoaomesmotempo.Eeuvosrespondoquetalveznotodos,mas certamentealgunsoumuitosdevsofizestesj,epiorqueisso.Pilatos permitiuquematassemCristo,oquenoquiseraquefossefeito,eJudas entregou-Oportovilpreo,massemcuidarqueOmatavam.Nenhum deles,porm,calouaspalavrasdoMestre,quehaviamsidoditaspara permaneceremeternamente.Nenhumdosdoisanulouumasdasaes comasquaisJesusprovouqueeraFilhodeDeus.Nenhumpdecalara verdade, nem destruir a vida, nem mudar o caminho que, ouvida de Cristo, e sendo Cristo, e indo por Cristo, conduzem eternidade. Ego sum via, veritas etvita.Equefazeisvs,quandofechaisocoraoverdade,quando recusaisavida,quandofugisdeandarpelocaminhodasalvao?Fazeis maisquevenderCristoemaisatquemat-Lo.Oquefazeis,cristos,(e aqui vacilo em vos chamar cristos) tornar to intil a vida de Cristo como seElenotivessevividonunca.Einfinitamentepiornoexistirqueviver no muito maisquetrintaanose morrerde morte to injustaeterrvel.Pois que,seosalgozesqueOmataramnopuderamevitaraSuaressurreio, vs o fazeis por no permitir que Cristo viva em vs. Os atenienses, a quem S. Paulo chamou os mais religiosos dos homens (eistoaindaqueadorassemmuitosfalsosdeusesaquemdevotamente prestavamculto),tinhamnumaltarvazioumainscriosomente:Agnosto Teo, o que na lngua dos Gregos o mesmo que dizer na nossa: Deusdesconhecido.Davam,assim,porimperfeitaouincompletaasua f, e Deus lhes enviou Paulo paro os instruir em Cristo. Eles no sabiam nem onome,nemopoder,nemabondadedonicoDeusverdadeiro,donico SenhoreCriadordoUniverso, masbemsedirsesedisserque,nofundo dosseuscoraes,Oadoravamj. EquantoscristoshquedoseuDeus sabem pouco mais que o nome, no lhes importando conhec-Lo e am-Lo e ador-Lo e obedecer-Lhe como convm salvao das almas e harmonia do Mundo! Que no seja este o vosso caso, nem que, sabendo que h um s Deus e Cristo o Seu Verbo feito homem, nada mais vos sirva de sinal como cristos. Sereis, se assim fordes, muito menos merecedores da salvao que os atenienses. SantoAgostinhonosdizquepodemosamaraDeusefazeroque quisermos.Desortequeparecequetemosaquiumsanto,eumsbio,a dizer-nos o que basta para agradar a Deus, e servir o Diabo quando for caso que nos convenha. Pois se possvel amar Deus e fazer tudo o que se quer, no mais havemos de vigiar os maus instintos e os ruins impulsos. Mas quem hque,amandoveramentealgum,lhesejaadverso?Debaldeoprocurais se o tentardes. Quem ama no ofende, e quem no ofende no peca. Assim que amar a Deus nos afasta do pecado, pois ningum que O ame O ofende, naSuaDivinaPessoaounahumanadoshomensnossosirmos.Eaquilo que disse 24 FranciscadeRimini(queoseuamoratinhapostonoInferno) impossvelrepetirseoamorentrenseDeus,poispeloamoraDeus ningumseperde.Nopodemperder-seosqueOamam,nempodem perder-se outros por causa desse amor. SejaqueconfessaisaCristoporSenhor.E,nomais,queteravossa vidadecrist?Sevospedidoamor,esvosdefendeiscomaf;sevos sopedidasobras,esrespondeiscompalavras;sevospedidaa perfeio,es vosdesculpaiscomserdeshomens. Deusjulgarosgentios como gentios, e os cristos como cristos. E a todosjulgar como justos ou pecadores. No vos adianteis a ocupar os primeiros lugares, porque o Senhor do banquete pode fechar-vos a porta que no soubestes merecer que se vos abrisse. Porventura no devemos confiar na misericrdia de Deus? Perguntaisbem,maseuvosdesengano.E,aindaquevindoavsum pouco como Jonas a Nnive, no vos anuncio um castigo do Senhor. Sois vs mesmosquevoscastigais,secaminhaisparaaperdioeterna.Eto alegrementeo fazeis,tonesciamenteeconsentis,quenem vosdaisconta doperigoemqueestais.Maisvosvaleraentogozaravidacomovos aprouvesse, porque, perdidos que estais (e falo queles que o esto por no quererem emendar-se) de nada vos servem os poucos gozos a que vos no dais e as penitncias que fazeis, para simular que sois cristos. Fora eu como vs (que sou pecador, mas Deus sabe quanto no quisera ser!) e no me preocuparia com rezas e devoes, com jejuns e abstinncias nosdiasdepreceito.Nem viriaouvirumpregadoraquenodariaouvidos. S temos esta vida, que fugaz, para ganhar a outra, que eterna. Se duas vidastemos(aprimeira,quetodepressaseacaba,eaoutra,quesem fim),aomenosumahaveriaeudegozarcomomelhorquisesse.Euvos desengano,pois.NoconfieisdemasiadonamisericrdiadeDeus.Cuidais quesouherege,porqueodigo?Cuidaisqueenlouqueci,porqueoafirmo? CuidaisquesouignorantedasEscriturasporqueestousegurodequevos enganaiscomessaconfiana?Ouvioqueestescritonolivrodo Eclesistico,ejulgai-medepois.Etnedicas:MiseratioDominimagnaest, multitudinispeccatorummeorummiserebitur.Nodigas:Amisericrdiado Senhor grande, Ele ter compaixo da multido dos meus pecados. Espanta-voseassusta-vosqueassimseja?Seno osabeis,devereis ao menos t-lo imaginado. EstaisprevenidospelaSagradaEscritura:Initiumsapientiae,timor Domine. E se o temor de Deus o princpio da mais alta sabedoria, da nica everdadeiraenotvelentretodas,ouviaindaoutroconselhodofilhode Sirac,tambmelecomonomesantodeJesus:Anteobitumtuumoperare justitiam, quoniam non est apud inferos invenire cibum. isto, meus irmos, ou esta a hora em que deveis praticar a justia. No a deixeis para depois davossamorte,porquesepulturanochegaalimentoavossasalmas. Ainda no confiais no que vos digo? Ainda vos no fiais de mim? AindacuidaisquevosespantoeassustocomoInfernoparavosfazer temerosos, como muitos pregadores gostam de fazer que o auditrio seja, e bomqueofaam?Eu,porm,novosquerotemerosos,senoconfiantes; nodesesperadosdaeternidade,senocheiosdeesperananela;no desiludidos da vida, seno aborrecidos do pecado. Que justia haveis de praticar antes da morte? No sabeis que justia essaeoqueela?Eu vosensinoemum momento.Vedesaquelehomem oumulherquevivejuntoavs?Vedestodososhomens,emulheres,e crianas,evelhos,eenfermosqueconheceis?Cuidaiquecadaumdeles sois vs mesmos e tratai com eles como havereis de querer que eles, sendo vs e vs sendo eles, tratassem convosco. Omnia ergo quaecumque vultus ut faciant vobis homines, et vos facite illis. Estaajustia.EstaanicaviaparaqueDeuspossaser misericordiosoconvoscoeperdoaramultidodosvossospecados.Eque morte essa antes da qual havereis de praticar a justia? Antesdamortedocorpo,certamente.Maseuvosadmoestomui seriamente que estejais alerta: fazei-o antes de outra morte mil vezes mil pior que ela. Muitos deixam para os dias em que esto desenganados da vida, e sabemjquevomorrer,todasasboasobrasquedeveriamterfeitoem outrotempo.Edispememtestamentotantosmilrisaospobres,tantos cruzadosaumaigreja,tantosmoiosdeterraaumconvento,tantode esmolas para muitas missas por sua alma. Eu vos digo, porm: tarde j. Se assim fazeis, ou se assim pensais fazer, tereis gozado a vida com tudo o que pudestes, e depois, quando nada vos fizer falta, o dareis para perdo do que pecastes.Sede vsos juzes,e julgaise isto justiaouseocamelopode passar pelo buraco da agulha. Que disse o anjo S. Rafael a Tobias? Bona est oratio cum jejunio. Que boa a orao com o jejum; e melhor a esmola que ostesourosqueseacumulam.Eteleemosinamagisquamtesaurariauri recondere.SendoRafaelumdosseteanjosqueapresentamaDeusas oraesdoscrentes,sabiadoquefalava.E maisdisseaindaacercadesse assunto: quoniam eleemosina a morte liberat, et ipsa, quae purgat peccata, et facit inam. Que a esmola limpa todos os pecados e livra da morte aquele que apratica.Estascoisassehodefazeremvida,equandoseacrainda longaeamortelonge,enoquandoa velhice janunciao fimque,sendo sempre incerto quanto ao tempo em que h de vir, certo que na velhice em breve chegar. E jovem era Tobias a quem o anjo louvou o esprito de orao ecaridade.Masseningumpodelivrar-sedamorte,dequemortefalava Rafael?Nodeoutrasenoadaalma.Temospois,cristos,queamorte antesdaqualhaveisdepraticarajustiaamortedaalma.Masacasoa 25 alma morre? Para muitos melhor fora que morresse de morte verdadeira, ou quefossemseuscorposdesalmados.Morreaalmaquandooshomensse acostumam tanto ao pecado que no querem ou no podem deixar de pecar. Morreaalmaquandooshomenspensam:gozareia vidaedeixareiparaos ltimosdosmeusdiasarrepender-mee fazerpenitncia. Essaalma,nemo mesmoCristo,queressuscitouLzarodepoisdesepultadodurantequatro dias,podertorn-lavida.Lzaro,porestarmorto,nopodiaopor-se vontadedeDeus,emcasodenoquererserressuscitado,masumaalma morta,numcorpovivo,aindapensa,aindatemvontade,easuavontade no cumprir a vontade de Deus. Fiat voluntas tua. Vs orais assim? Melhor vos fora dizer como Acaz: Non petam et non tentabo Dominum. No pedirei, e no tentarei o Senhor. Pois se ofazeis,enocumprisavontadedoSenhor,pecaisgr