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    O Pensamento da Violncia em Walter Benjamin e Jacques Derrida 1

    Idelber AvelarTulane University

    Prembulo

    Alguns meses antes da morte de Jacques Derrida, eu o contactara para

    dizer que havia preparado um texto com fortes restries leitura de WalterBenjamin proposta por ele em Fora de lei2. Ao compor o artigo, eu havia tentado

    me manter rigorosamente fiel s lies da desconstruo, experincia que

    permanece to fundamental para mim hoje como na poca dos meus primeiros

    contatos com os textos de Derrida, h vinte anos. Derrida, com a infinita

    generosidade e prdiga memria que lhe eram caractersticas, lembrava-se de

    um breve contato que havamos tido em Duke University, pelos idos de 1995, e

    respondeu que estava ansioso para ler minhas crticas que eu asmandasse logo

    que estivessem prontas. Na verdade, o texto em ingls j estava terminado, mas

    como o livro onde o artigo apareceria estava no prelo, decidi esperar um pouco

    mais para enviar-lhe a verso publicada, menos pela vaidade de ver o texto

    encadernado do que pelo desejo de escrever-lhe uma carinhosa dedicatria na

    1 Agradeo a Ana Maria Gonalves a reviso cuidadosa de uma verso anterior deste artigo.

    2 Jacques Derrida, Force de loi:Le fondement mystique de lautorit. Paris: Galile, 1994. Todas

    as citaes desta obra se faro no corpo do texto, com o nmero da pgina entre parnteses. So minhas

    odas as tradues de fontes citadas em outras lnguas.

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    primeira pgina. A espera foi fatal. O livro saiu, mas no a tempo de que eu o

    enviasse a Derrida. No segundo semestre de 2004, quando se publicava em

    ingls o livro que contm uma verso mais extensa deste artigo3, eu, assim como

    toda a comunidade de leitores, alunos e admiradores de Derrida, recebemos o

    golpe violento (apesar de no inesperado) que foi a notcia de sua morte. O

    arrependimento de no lhe haver enviado a verso manuscrita do texto doeu

    fundo, porque algo me dizia que Derrida reconheceria que procedem pelo menos

    algumas das crticas aqui formuladas. Eis aqui, ento, em portugus, o texto ao

    qual o destino no quis que Derrida tivesse acesso, e sobre o qual eu jamais

    saberei o que ele teria pensado. A ele, in memoriam, com a conscincia de que a

    verdadeira desconstruo se d sempre na alegria, mesmo enquanto nos

    enfrentamos infinita tarefa do luto.

    Benjamin e a violncia

    Para a crtica da violncia4 um texto escrito por Walter Benjamin entre

    o fim de 1920 e o comeo de 1921, aos 28 anos de idade, na esteira de seu

    compromisso com o movimento estudantil, sua reviso crtica do kantianismo e

    seu engajamento com a teoria da arte do romantismo alemo 5. Marcado pelo

    3 Idelber Avelar, The Letter of Violence: Essays on Narrative, Ethics, and Politics. New York:Palgrave, 2004.

    4 Zur Kritik der Gewalt. Gesammelte Shriften II-1. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1997. 179-

    203. Todas as citaes desta obra se faro no corpo do texto, com o nmero da pgina entre parnteses.

    5 Ao escrever esse texto Walter Benjamin j havia composto alguns de seus ensaios juvenis mais

    ilustres, Sobre a linguagem em geral e a linguagem dos homens (1916), Sobre o programa da filosofia

    vindoura (1917) e a tese doutoral publicada em 1920 sobre O conceito de crtica no romantismo alemo .

    O ensaio sobre a violncia d testemunho da tentativa de integrar as incurses anteriores na filosofia da

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    contato do autor com as Reflexes sobre a violncia, de Georges Sorel 6, o texto

    benjaminiano procede por oposies, fazendo proliferar vertiginosamente as

    dicotomias. Elas se multiplicam, compondo um texto que avana quase que por

    cissiparidade. O texto inicia prometendo um exame da relao da violncia com

    os campos da lei e da justia. Obviamente, para Benjamin, estes no se

    confundem: se a justia o critrio dos fins, a legalidade o critrio dos meios

    (180). Aqui, o problema mais elementar seria o da diferena entre fins e meios.

    A esfera (Bereich) dos fins est excluda do estudo, diz Benjamin, j que o

    fundamental quando se discute o tema da violncia sua justificao como um

    meio. Primeira dicotomia, ento: se a violncia um meio, impe-se a pergunta

    sobre se, em cada caso, ela seria um meio para atingir fins justos ou injustos. Mas

    reduzir a pergunta a isto no ajuda a respond-la, argumenta Benjamin, j que a

    a reflexo sobre a violncia se reduziria a um critrio para os casos de seus usos.

    Tudo, em outras palavras, se esgotaria no juzo sobre os fins. Um critrio mais

    exato necessrio, diz Benjamin, para discriminar entre os prprios meios.

    A ausncia de um critrio para pensar os meios seria um dos pecados de

    uma corrente da filosofia legal: o direito natural, para o qual a violncia um

    produto da natureza, s condenvel se usada para fins injustos. O beco sem sada

    oposto e simtrico acossaria a corrente antagnica, o direito positivo, que s pode

    pensar a legalidade dos meios, no a justia dos fins. Se o direito natural tenta,

    linguagem s recm-despertas preocupaes polticas. Para uma boa cronologia dessa poca da vida de

    Benjamin, ver Marcus Bullock and Michael W. Jennings, Chronology 1892-1926. Selected Writings.

    Vol. 1:1913-1926. Cambridge, Mass. e Londres: Harvard UP, 1996. 490-515.6 Georges Sorel,Reflexions sur la violence. 1908. Paris: M. Riviere et Cie., 1972.

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    pela justia dos fins, justificar os meios, o direito positivo tenta garantir a

    justia dos fins pela justificao dos meios (180). Uma corrente parte da

    premissa da naturalidade da violncia e, a partir dessa premissa, reduz a

    justificao dos meios justia dos fins. Reduz o justo ao ajustado. A outra

    corrente se dedica puramente a julgar a justificao dos meios e avali-los dentro

    de fins cuja justia est constituda de antemo. Reduz o justo ao legal. Se o

    direito positivo cego incondicionalidade [Unbedingtheit] dos fins, o direito

    natural cego contingncia [Bedingtheit] dos meios (181). A tarefa da crtica

    encontrar, ento, um ponto de vista exterior filosofia legal positiva mas

    tambm ao direito natural (181-2). Para construir esse ponto de vista, Benjamin

    recorda os usos legais da violncia, incluindo-se a os momentos em que o Estado

    renuncia, parcialmente, ao seu monoplio sobre o uso legal da violncia. Um

    desses casos o direito greve.

    O que uma greve? Pode-se dizer que a recusa ao trabalho um ato de

    violncia? Sem dvida, prope Benjamin, desde que a leiamos do ponto de vista

    daqueles que recorrem a ela. H uma relao antittica entre a leitura do Estado,

    que permite a greve mas mantm o poder de declar-la ilegal, e a leitura dos que

    recorrem greve, que no podem seno v-la como o direito ao uso da

    violncia/fora [Gewalt] para atingir certos fins (184). Na parfrase que faz

    Derrida de todo o texto benjaminiano, falta essa explicitao de como a greve, em

    Benjamin, violncia e no-violncia ao mesmo tempo. A est a impossibilidade

    de uma lngua que nomeie a violncia j do prprio ato de greve. A greve ser

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    sempre lida das duas maneiras simultaneamente, antes da distino entre a

    violncia implcita ou potencial do ato de greve e a violncia explcita da greve

    geral revolucionria (dicotomia que, bem v Derrida, no pura, facilmente

    separvel etc.). Primera reduo da parfrase de Derrida, ento: desaparece a

    fratura interna prpria ao conceito de violncia de Benjamin, fratura

    emblematizada no momento em que o direito de greve se torna prxis.

    Lida do ponto de vista do trabalhador, a greve j, desde sempre,

    violncia. A omisso desse momento de ciso constitutiva no texto de Benjamin

    no , em Fora de lei, de Derrida, uma omisso entre outras. De alguma maneira

    permite aqui j vamos adiantando a hiptese a aproximao com Heidegger e

    a caracterizao de Para a crtica da violncia como um texto demasiado

    heideggeriano (146). J veremos o que poderia significar heideggeriano nesses

    contextos (o do ensaio de Benjamin em 1921, 5 anos antes da publicao de Ser e

    tempo e 18 anos antes do comeo da Segunda Guerra, e o do texto de Derrida,

    1989, dois anos depois do comeo da Intifada contra a ocupao israelense). Em

    todo caso, ao parafrasear essa passagem, Derrida insiste que no se pode fazer

    uma clara separao entre a greve e a greve geral revolucionria, como se este

    fosse um dado que o texto benjaminiano omitisse. Insiste nesse ponto enquanto

    omite o antagonismo que torna inevitvel a inseparabilidade dos dois em

    Benjamin: o carter da greve como, desde sempre, violncia e no-violncia,

    irredutivelmente as duas coisas ao mesmo tempo, dependendo do lugar de

    leitura social.

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    O prximo corte em Para a crtica da violncia a separao entre a

    violncia preservadora do direito [die rechtserhaltende Gewalt] e a violncia

    fundadora do direito [die rechtsetzungende Gewalt]. Contra esse ato que o Estado

    no caracteriza como inicialmente violento, a greve, mas quepara o trabalhador desde

    sempre um ato de violncia, o Estado pode lanar mo da violncia legalizada como

    instrumento preservador da lei. H, por um lado, a ciso entre a violncia

    revolucionria, fundadora de outro direito, e a violncia preservadora do direito,

    que opera dentro da legalidade existente. H, por outro lado, o corte que tem

    lugar na prpria condio de possibilidade da violncia, sua caracterizao ao

    mesmo tempo como violncia, quando lida do ponto de vista do trabalhador, e

    no violncia, quando lida do ponto de vista do Estado. Seu nascimento

    cindido entre o ser e o no ser. Em outras palavras, h, por um lado, a dicotomia

    entre a violncia-origem-do-direito e a violncia-modo-de-reproduo-cotidiana-

    do-direito. Mas essa dicotomia (impura e instvel) torna-se possvel pelo carter

    inerentemente cindido, duplo da prpria violncia, no momento de sua

    emergncia. Derrida, em sua anlise, escolhe enfatizar a dicotomia derivada (a

    que separa duas formas de violncia) e termina obviando dicotomia fundante

    (no a que separa distintas formas de violncia, mas a que cinde a violncia mesma,

    no momento de sua constituio).

    Mesmo que impura e instvel, mesmo que sujeita a contaminaes

    mtuas, a separao entre a violncia fundadora do direito e a violncia

    preservadora do direito incortornvel no pensamento de Benjamin. Como nota

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    Derrida, essa dicotomia no se confunde com a diferena entre a violncia da

    greve (para o trabalhador) e a violncia (episdica, ocasional, mas sempre

    possvel) do Estado contra a greve, para defender a legalidade existente. Se

    certo que o Estado, quando intervm, o faz para manter uma lei, no certo que

    a violncia da greve tenha necessariamente a meta de instalar outra lei. No,

    pelo menos, at que se transforme em greve geral revolucionria. Posto que a

    greve, em si mesma, no vista pelo patro como um ato de violncia, por que o

    Estado recorreria violncia explcita contra ela? Pelo medo, diz Benjamin, de que

    a greve se converta em greve geral revolucionria, instaladora de outra

    legalidade. A violncia preservadora do direito no pode operar, ento, seno

    como antecipao de uma violncia virtual, possvel, futura, que viria a derrot-

    la e instalar outra legalidade. No h qualquer razo essencial para apostar que

    a violncia da greve se transformar em violncia fundadora de outro direito;

    mas a manuteno da lei no pode se arriscar. Lana mo, de antemo, da

    violncia.

    Mas seria a violncia revolucionria sempre equivalente violncia

    fundadora de direito? Seria a rechtsetzungende Gewalt sempre revolucionria?

    No, diz Benjamin, e isso demonstrvel ao examinarmos uma violncia que no

    um exemplo entre outros: a violncia militar. Por um lado, o militarismo a

    subordinao dos cidados lei; entra para manter uma legalidade existente. Por

    outro lado, o militarismo a compulso [Zwang] ao uso universal da violncia

    como meio para fins do Estado(186), fins que incluem a construo de novas

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    legalidades. Da a existncia de algo inerentemente fundador de direito na

    violncia militar. O exemplo privilegiado da inseparabilidade entre as violncias

    preservadora e fundadora do direito, para Benjamin, seria a violncia militar.

    Este fato significativo e tem conseqncias importantes.

    Quando, em sistemas legais primitivos, se estabelece a pena de morte para

    crimes contra a propriedade, no se trata ali de um mero preservar a lei. Trata-se

    de impor outra lei. O exemplo privilegiado do momento fundador de lei da

    violncia militar a promulgao da pena de morte para crimes contra a

    propriedade. Para Benjamin, o momento da rasura do limite entre a violncia da

    preservao e a da fundao do direito a entrada da pena de morte para punir o

    ataque propriedade. Essa instalao revelaria algo podre [etwas Morsches] na lei.

    Assim como a possvel greve geral revolucionria fundadora de lei, tambm o

    , para Benjamin, a violncia militar, alegorizada na violncia que mata

    legalmente ao punir crimes contra a propriedade, tal punio representando o

    momento em que essa violncia se converte em legalidade. A instalao da pena

    de morte para crimes contra a propriedade seria aqui a alegoria da fundao do

    direito. Isso significa que uma vez instalada essa punio no aparato estatal, toda

    violncia legal ocorrer com fins de preservar a lei? E que toda instalao de uma

    nova legalidade vir de foras revolucionrias, de possveis greves gerais? De

    nenhuma maneira, responde Benjamin. O Estado desenvolveu um aparato onde

    se suspende a diferena entre as violncias fundadora e preservadora de lei.

    Dentro da prpria legalidade h um aparato que no s mantm, mas que cria a

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    legalidade: a polcia. Se a violncia fundadora de um novo direito tem que

    provar o seu valor como fora vitoriosa, e a violncia preservadora do direito

    est sujeita restrio de que ela deve servir a fins constitudos de antemo, ou

    seja, no pode se colocar novos fins, a violncia policial est, para Benjamin,

    emancipada de ambas condies (189). Nem tem que provar seu valor

    enquanto fora vitoriosa, nem tampouco tem que se resignar a operar dentro da

    legalidade existente. Em incontveis casos a polcia intervm por razes de

    segurana [Sicherheit wegen] em contextos onde no h tal situao legal clara

    (189). Tais casos so to incontveis que definem a essncia da violncia policial,

    se que esta possui uma essncia Benjamin define-a como sem forma

    [gestaltlos] . . . em nenhum lugar tangvel, pervasiva, espectral [gespenstlische]

    (189), ou seja, ele a define de maneira notavelmente semelhante ao espectro

    teorizado por Derrida em Espectros de Marx7.

    Se a policia usa a violncia para fins legais, ela o faz com a autoridade

    simultnea de decidir a natureza destes fins. Em todo caso, para Benjamin, a

    polcia seria a violncia legalizada que, no entanto, no est circunscrita dentro de

    qualquer direito. a voz da lei, mas no se deixa circunscrever por ela. Tem por

    funo manter a lei, mas o faz, em incontveis casos, fora da lei existente,

    instalando outra lei. Certamente, para Benjamin, no se pode diferenciar

    nitidamente os dois tipos de violncia: o aparato encarregado de faz-lo no

    7 Jacques Derrida, Spectres de Marx : letat de la dette, le travail du deuil et la nouvelle

    Internationale. Paris: Galile, 1993. Sobre Espectros de Marx, ver o belo artigo de Fredric Jameson,

    Marx's Purloined Letter.New Left Review 209: (1995): 75-109. Ver tambm o meu Marx, en inminencia

    y urgencia.Revista de Crtica Cultural 11 (1995): 63-6.

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    pode seno violar constantemente esses limites, no pode seno operar fora da

    lei. A manuteno da lei seu exterior. A manuteno da lei, por definio,

    recorre a um l-fora com respeito lei. A manuteno da lei por definio ilegal.

    No s injusta, mas tambm ilegal.

    Para Benjamin, a decadncia de uma instituio ocorreria quando ela se

    esquece da violncia que lhe deu origem. Este seria o caso do parlamento. O

    parlamento, segundo Benjamin, no permaneceu consciente das foras

    revolucionrias s quais deve sua existncia. Parafraseando esse trecho, Derrida

    fala do texto de Benjamin como partcipe de uma grande onda [vague] anti-

    parlamentar et anti-Aufklrung (69). Para a crtica da violncia se alinha, nos

    parece, com algo que nunca pde ser onda, e que se manteve como uma tradio

    subterrnea: a tradio da crtica do esquecimento. A declarao acerca do

    carter amnsico do parlamento no redutvel a uma suposta posio anti-

    parlamentar de Benjamin que, afinal de contas, reconhece que o florescimento

    do parlamento pode ser desejvel e gratificante. No se trata de um ataque ao

    parlamento e sim, para simplificar ao mximo, de um lembrete: uma

    ingenuidade acreditar que o parlamento a anttese da violncia. No se pode jamais

    associ-lo ao lugar da no-violncia, j que ele , por definio, o espao de

    esquecimento da violncia - e portanto, para um Benjamin que j conhecia Freud,

    lugar de uma violncia muito particular: a represso neurtica da memria da

    violncia.

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    Chegamos ao momento do ensaio de Benjamin em que se coloca a

    pergunta: ser possvel alguma resoluo no violenta dos conflitos? (191). A

    resposta de Benjamin paradoxal. Sim, com certeza. As relaes pessoais nos

    mostram uma variedade de exemplos. A diferena, assinala Benjamin, que nas

    relaes pessoais a opo pela no violncia vem do medo das desvantagens

    mtuas que surgiriam do confronto violento. Nos conflitos polticos a regra

    que no sejam de antemo visveis, aos atores sociais, os efeitos da violncia que

    se abateriam tanto sobre os vencedores como sobre os vencidos. O paradoxo se

    manifesta quando Benjamin tenta localizar, no terreno social, qual seria o

    equivalente das relaes pacficas entre os indivduos. Para responder essa

    pergunta, Benjamin recorre a outra dicotomia, j no entre a violncia da greve e

    a violncia anti-greve do Estado, e sim a violncia de dois tipos de greve,

    dicotomia que Benjamin herda de Georges Sorel. Esses dois tipos seriam a greve

    poltica e a greve proletria geral. A greve poltica, depois do ganho material, da

    transformao das condies materiais dos trabalhadores, coloca sobre a mesa a

    questo da volta ao trabalho. A greve proletria geral, a que destri o poder do

    Estado, se instala fora de toda legalidade. Ao contrrio da greve poltica, ela se

    coloca a tarefa de destruir todo o poder estatal. Aqui entra o comentrio

    paradoxal de Benjamin: a greve geral revolucionria seria, pelo prprio fato de

    no propor outra legalidade, e sim de destruir a legalidade, a greve

    verdadeiramente no violenta. Quanto mais geral e revolucionria, menos

    violenta. Em outras palavras, a noo de revoluo, de destruio do aparato

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    estatal no associada, em Benjamin, violncia, e sim ao momento utpico da

    no violncia.

    Concluso de Benjamin: a resoluo no violenta dos conflitos s possvel na

    medida em que no se exclua, de antemo, a violncia. Para esclarecer esse paradoxo

    ele volta dicotomia estabelecida no princpio do ensaio, entre o direito natural e

    o direito positivo. Deixamos essa distino no momento em que estabelecemos

    que enquanto o direito natural tenta, pela justia dos fins, justificar os meios, o

    direito positivo tenta garantir a justia dos fins pela justificao dos meios. O

    direito natural reduz o justo ao ajustado, confunde a justia com a necessidade. O

    direito positivo reduz o justo ao legal, confunde justia com a lei. Ambos mantm

    a referncia a uma relao supostamente necessria entre o justo dos fins e o

    justificado dos meios. O que aconteceria se vislumbrssemos uma violncia que,

    usando meios justificados, estivesse em conflito irreconcilivel com a justia dos

    fins? Ou que surgisse uma violncia que j no fosse um meio para um certo fim,

    e sim algo absolutamente diferente, ainda no pensado? Em outras palavras, o que

    aconteceria com uma violncia irredutvel dialtica entre fins e meios?

    Para tentar definir esse lugar indizvel, Benjamin recorre a um adjetivo

    que freqentemente aparece em sua obra inicial como nome do inomevel: a

    violncia completamente alheia dialtica entre fins e meios seria, ao contrrio

    da violncia legal que Benjamin chama mtica, uma violncia divina. Diz

    Benjamin: se a violncia mtica fundadora do direito, a violncia divina

    destruidora de todo direito(199). A violncia divina seria, para Benjamin,

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    aniquiladora. S a banalidade da violncia mtica, diz Benjamin, reconhecvel

    cotidianamente pelos homens. A violncia mtica, fundadora do direito, seria,

    para Benjamin, perniciosa, assim como perniciosa a violncia administrativa,

    preservadora do direito que lhe serve. violncia divina poderamos chamar

    violncia soberana, waltende, quase um homfono de Walter, nome de batismo

    de Benjamin, belo fechamento do ensaio de Benjamin, e ponto de partida do

    Fora de lei, de Derrida.

    Ao parafrasear esse trecho Derrida diz o seguinte: depois h a distino

    entre a violncia fundadora do direito, dita mtica (sub-entendido: grega, me

    parece) e a violncia destruidora da direito, dita divina (sub-entendido: judaica,

    me parece) (79). Derrida acrescenta um me parece quase que como uma

    denegao: as palavras grega e judaica no aparecem no ensaio de Benjamin

    no contexto da distino entre violncia mtica e violncia divina, ou em

    qualquer outro contexto. verdade que Benjamin remete a violncia mtica ao

    relato de Niobe e a violncia divina a uma leitura do quinto mandamento da

    Biblia. Mas a converso desses relatos em atributos, adjetivos nacionais, uma

    operao que realiza o texto derridiano reconhecendo, alm do mais, que o faz,

    com o curioso me parece. Ela no parte do texto de Benjamin.

    O que significa aqui reduzir dois relatos singulares condio de

    alegorias nacionais? A segunda parte de Fora de lei, que lida com o texto

    benjaminiano, apresentada na Universidade de Califrnia em Los Angeles, em

    1990, num colquio intitulado O nazismo e a soluo final. O coloquio sobre

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    a soluo final, mas Derrida l o texto de Benjamin, de 1921: O que teria

    pensado Benjamin, ou pelo menos qual pensamento de Benjamin est

    virtualmente formado ou articulado nesse ensaio (e antecipvel?) sobre o tema

    da soluo final? (70). Confesso que foi a primeira e nica vez que encontrei,

    num ensaio de Derrida, esta construo condicional prolptica: o que teria

    pensado X de Z? O que diz, prolepticamente, este texto, sobre esse outro

    fenmeno, vinte anos posterior? A pergunta que guia o texto de Derrida

    externa ao texto de Benjamin; ela movida diretamente pelo seu marco de

    apresentao. Isto vindo, claro, do pensador que mais nos ensinou, nos ltimos

    quarenta anos, a formular perguntas rigorosamente internas aos textos que

    lemos.

    Para introduzir essa pergunta, Derrida oferece uma caracterizao do

    ensaio de Benjamin como texto que teria pertencido a uma onda anti-

    parlamentar e anti-Aufklrung sobre a qual o Nazismo ter subido superfcie e

    surfado (69). Mas no ensaio de Benjamin no h meno Ilustrao, e uma

    anlise rigorosa tornaria muito problemtica, no melhor dos casos, sua

    caracterizao como texto anti-Ilustrao trata-se de um texto que oferece

    marteladas de razo crtica ao mtico tema da violncia. A meno de Benjamin

    ao parlamento, como vimos, se d num contexto de crtica do esquecimento da

    instituio parlamentar com respeito violncia que a funda, e em nenhum

    momento se deixa caracterizar como simplesmente anti-parlamentar. Todo o

    contrrio: o texto uma interveno contra o esquecimento no parlamento.

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    Derrida parece igualar a crtica do esquecimento na instituio, a crtica da

    instituio enquanto esquecimento, a uma simples corroborao da violncia

    anti-parlamentar.

    Derrida abre o texto justificando a leitura do ensaio de Benjamin no

    contexto do colquio:

    Este texto inquieto, enigmtico, terrivelmente equvoco, acreditoeu, est de antemo (mas pode se dizer aqui de antemo?)assombrado pelo tema da destruio radical, da exterminao, daaniquilao total, e em primeiro lugar a aniquilao do direito,seno da justia; e entre esses direitos, os direitos humanos (droits

    de lhomme), pelo menos tal como estes podem ser interpretadosdentro de uma tradio jusnaturalista do tipo grego ou do tipoAufklrung. De propsito digo que este texto est assombradopelos temas da violncia exterminadora . . . (67-8)

    Interessa-nos aqui a confuso entre aniquilao e violncia no vnculo entre a

    primeira e a segunda frases. O texto de Benjamin sim, se articula a partir da

    revoluo como aniquilao de toda lei (e neste sentido o texto fala de

    destruio), mas como vimos, esse momento para Benjamin (o fim de toda lei) o

    momento utpico da no violncia, momento anlogo ao que o prprio Derrida, em

    outras obras, chamaria de promessa ou dom. Em Benjamin opera um

    axioma: quanto mais revoluo, menos violncia. Na leitura que faz Derrida em

    Fora de lei opera uma associao de idias entre revoluo e violncia que

    mascara o carter inerentemente cindido desta ltima no ensaio de Benjamin. Ao

    comentar o momento da destruio em Benjamin (que nesse ensaio sempre co-

    extensivo destruio da lei, do Estado), Derrida acrescenta um seno a

    aniquilao da justia como possvel tema do texto texto que trata, como

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    vimos, da aniquilao da lei. Seria impossvel perguntar se para Benjamin a

    aniquilao de lei poderia disseminar-se a ponto de ameaar a prpria justia,

    como o faz Derrida; esta pergunta impensvel em Benjamin porque para este a

    promessa de justia implica a destruio da lei, destruio que, recordemos, no

    um sinnimo de violncia, e sim o contrrio: o signo da prpria possibilidade

    da no violncia, na medida em que ela se encarne numa revoluo genuna.

    Quanto mais revolucionria, mais desprovida de violncia.

    A caracterizao do ensaio de Benjamin nesse marco se instala atravs da

    referncia a outro texto de Derrida, onde as alegorizaes nacionais dos relatos se

    anunciam no prprio ttulo: Interpretations at War: Kant, o judeu, e o alemo8,

    apresentado em Jerusalm em 1988, durante a primeira Intifada contra a

    ocupao israelense. O resumo do argumento, distribudo antes da palestra, se

    intitula A psique judaico-alem: os exemplos de Hermann Cohem e Franz

    Rosenzweig. Trata-se de uma leitura de dois pensadores judeus no sionistas,

    sendo que Rosenzweig, inclusive, era hostil ao projeto de um estado israelense.

    Para as vrias mesas do congresso no se convidou nenhum palestino. Derrida

    menciona o fato na introduo de sua fala, manifesta sua preocupao ante os

    organizadores, Wolfgang Iser e Sanford Budick, condena as violncias do

    terrorismo e das foras policiais e reafirma sua amizade a palestinos e

    israelenses. As questionveis comparabilidade e isomorfia entre a violncia

    terrorrista desesperada e os metdicos massacres do exrcito de ocupao, na

    8 Jacques Derrida, Interpretations at War: Kant, the Jew, the German. 1991. Acts of Religion.

    Ed. Gil Anidjar. London: Routledge, 2002.

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    introduo de Derrida, no so alheias s distores que sofreria o ensaio de

    Benjamin em suas mos. Tambm em Interpretaes em guerra Derrida fala de

    seus objetos de anlise (Cohen e Rosenzweig) como antecipadores de

    Heidegger ou do que alguns descreveram como o encontro com o magistrio

    de Heidegger durante os anos imediatamente posteriores guerra. As leituras

    que se seguem, iluminadoras da obra de Rosenzweig e Cohen, no dispensam

    com a pergunta inicial que os estabelece como antecipadores de Heidegger, em

    todo caso antecipadores de uma temtica que amadureceria e floresceria com a

    obra que Heidegger escreveria nos anos 20. A estrutura da pergunta, de novo,

    prolptica, teleolgica e privilegia uma lente heideggeriana.

    Em ambos os ensaios a referncia a Heidegger confere o eixo central ao

    postulado de uma psique que Derrida nomeia judaico-alem. Cohen,

    Rosenzweig, Scholem, Adorno, Arendt e Benjamin, so todos eles lidos, de

    alguma maneira, a partir de Heidegger e a partir da ausncia de outro elemento,

    qui alegorizvel na figura do palestino ausente do congresso de Jerusalm no

    qual fala Derrida. Em Fora de lei trata-se de certas afinidades, limitadas mas

    determinveis entre o texto de Benjamin e certos textos de Carl Schmitt, e

    mesmo de Heidegger (73). Entre tais afinidades Derrida contaria a hostilidade

    democracia parlamentar, mesmo democracia enquanto tal, no s em razo

    da hostilidade ao Aufklrung, de uma certa interpretao do polemos, da guerra,

    da violncia e da linguagem (73). Mesmo fazendo a bvia ressalva de que a

    Destruktion heideggeriana no pode ser confundida com o conceito de

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    destruio que tambm se encontrava no centro do pensamento benjaminiano

    (73), Derrida prope perguntar-se o que significa, o que prepara ou antecipa

    entre as duas guerras uma temtica to obsessiva (73).

    A referncia temtica da destruio em Benjamin como uma obsesso

    curiosa, j que sem dvida trata-se de uma noo que est bem longe de ser

    ubqua em Benjamin. A noo de destruio entra no ensaio para nomear o

    momento da violncia divina, soberana, waltende, ou seja, a violncia que

    realiza uma destruio muito particular, a da lei. Em outras palavras no h, em

    Benjamin, uma associao entre violncia e destruio, pelo menos nunca se

    reduz aquela ao desta. Por outro lado essa obsesso, para Derrida,

    antecipa ou prepara algo entre as guerras. Este algo se deixaria ler, supe-se.

    Deixar-se-ia nomear: por que no cham-lo pelo nome, o Nazismo, eufemizado

    por Derrida como aquilo que se prepara entre as duas guerrras. Buscar-se-ia

    ento aquilo que, no texto de Benjamin de 1921, antecipa ou prepara a resposta

    que a prpria formulao demanda, ou seja, o Nazismo, ou como prefere

    Derrida, a onda sobre a qual o Nazismo subiu superfcie e surfou. Eis aqui o

    exemplo claro de uma interrogao a um texto que no obedece s rigorosas e

    necessrias pautas ticas formuladas pelo prprio Derrida, em Para uma tica

    da discusso, a ltima rplica a Searle 9.

    9 Ver Jacques Derrida,Limited inc. Baltimore : Johns Hopkins University Press, 1977.

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    Determinado por essa pergunta prolptica exterior ao texto, Derrida passa

    a uma concluso em forma de uma interrogao que nos parece monstruosa.

    Valha a extensa citao, a partir da qual faremos um comentrio final.

    [Benjamin] provavelmente teria tomado a soluo final como aconseqncia extrema de uma lgica do Nazismo que . . . teriacorrespondido a uma radicalizao mltipla:

    1. a radicalizao do mal vinculado queda na linguagem dacomunicao, da representao, da informao [...]

    2. a radicalizao totalitria de uma lgica do Estado [...]3. a corrupo radical mas tambm fatal da democracia parlamentar e

    representativa por uma polcia moderna que inseparvel dela [...]4. uma radicalizao e uma extenso total do mtico, da violncia mtica

    (139-40).

    Omitamos, por incontveis, as razes que levaram Benjamin a no pensar o

    Nazismo como nenhuma dessas coisas. Do ponto de vista benjaminiano, por certo,

    o Nazismo jamais equivaleria violncia mtica, ou ao mtico enquanto tal, nem

    muito menos a uma corrupo da democracia pela fora policial. O que pensou

    Benjamin sobre o Nazismo est dito e explcito para quem quiser ler, em vrios

    lugares, mas muito especialmente em seu testamentrio Sobre o conceito de

    histria, texto omitido por Derrida num ensaio de oitenta pginas sobre o

    espao no qual Benjamin teria armado seu discurso sobre o Nazismo e a

    soluo final. No se trata de cobrar que Derrida lesse outro texto, mas especular

    sobre o que Benjamin teria pensado sobre o Nazismo sem referir esse texto me

    parece bastante grave.

    O fechamento do texto de Derrida se ancora na especulao:

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    Benjamin teria qui julgado vo e sem pertinncia, em todo casosem uma pertinncia comensurvel com o evento, todo processojurdico do Nazismo e de suas responsabilidades, todo aparato dejulgamento, toda historiografia ainda homognea com o espao noqual o Nazismo se desenvolveu, at e a soluo final (142-3).

    Essa especulao literalmente irremissvel a qualquer texto assinado por

    Benjamin, antes de 1921 ou depois. O que, na obra de Benjamin, autorizaria a

    percepo de que ele teria achado vo e sem pertinncia um julgamento

    jurdico do nazismo? Depois dessa escandalosa suposio, Derrida afirma que

    esse texto, como muitos outros de Benjamin, ainda demasiado heideggeriano,

    demasiado messinico-marxista ou arqueo-escatolgico para mim (146). Tratar-

    se-ia, para Derrida, de julgar a possvel cumplicidade entre todos esses

    discursos e o pior (aqui a soluo final). Essa possvel cumplicidade um

    fantasma possibilitado pela leitura retrospectiva do texto benjaminino a partir do

    tema da soluo final, posterior a ele em 20 anos. Para Derrida, isso definiria uma

    tarefa e uma responsabilidade cujo tema eu no fui capaz de ler nem na

    destruio benjaminiana nem na Destruktion heideggeriana (146).

    Reveladoramente, ao conceito heideggeriano, Derrida concede a nobreza da

    citao na lngua original.

    Fechamento apropriado para um texto que parecia tentar responder a uma

    tarefa que permaneceu pendente em Derrida, de uma pendncia cada vez mais

    irresolvel: pensar o legado de Walter Benjamin, ser digno dessa herana, ser

    capaz de assumi-la. Ao lado, margem deste no fui capaz de ler com o qual

    Derrida fecha seu texto, eu acrescentaria interrogaes que me parecem fazer

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    mais justia ao seu texto, pelo menos, que aquela que pde fazer Derrida ao texto

    de Benjamin. Sabemos que na esteira da desmontagem da primazia metafsica

    do futuro presente em todo o pensamento sobre o porvir, desenvolve-se na obra

    de Derrida uma temtica inspirada nas noes de promessa, do dom e da justia

    por vir, figuras de um futuro j no redutvel presena 10. Em toda essa

    elaborao, em todo o rigor de seu desenho, no chama a ateno a ausncia

    quase absoluta de uma reflexo sobre o pensador moderno que mais incisiva e

    urgentemente vinculou a possibilidade mesma do pensamento e da prxis ao

    ndice de uma redeno, possibilidade de uma promessa que mantivesse a

    estreita abertura da porta do porvir? No se sente ali a falta do pensador que

    mais radicalmente subtraiu a promessa ditadura da presena, ao insistir

    desesperadamente na possibilidade de seu fracasso como promessa?

    Na medida em que, para Derrida, a temtica da promessa se vincula

    estreitamente com o pensamento do dom, com o doar, com a oferta, at que

    ponto a reflexo sobre esse dom a partir da temtica heideggeriana do haver

    enquanto doar ou seja, toda a insistncia de Heidegger sobre a literalidade do

    es gibt no sufoca e silencia, na leitura de Derrida, a referncia benjaminiana ao

    j sido que nunca acedeu ao haver? No haveria algo no pensamento

    benjaminiano sobre o dom que em Benjamin inseparvel de uma reflexo

    10 Listar todas as obras derridianas em que se desenvolve essa temtica exigiria praticamente um

    elenco completo de suas publicaes das ltimas dcadas de sua vida, mas como marcos incontornveis,

    consulte-se:Donner le Temps. 1. La Fausse Monnaie. Paris: Galile, 1992. Politiques de lamiti, Paris:

    Galile. 1994.De lhospitalit. Paris: Calmann-Lvy,1998

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    sobre aquele que recebe, aquele que sabe escutar o murmrio de tudo o que foi

    escravizado no passado que complicaria essa reduo?

    Ao falar do entre-guerras Derrida recorre noo de psique judaico-

    alem. Mesmo com a ressalva de que psique aqui no alude a uma suposta

    psicologia coletiva, no seria a denegao a um ndice de que se recorre aqui

    idealizao de um esprito de poca no qual a recorrncia de certos termos em

    alguns autores reduzido, num raciocnio prolptico, a um antecipadamente

    confirmado anncio do que viria. Ao aludir, por exemplo, aos calafrios que,

    quando se pensa nas cmaras de gs e nos fornos crematrios, teramos ao ver,

    no texto benjaminiano de 1921, a meno a uma exterminao sem sangue, ou

    seja, ao arrancar a figura de tal destruio de seu papel no texto benjaminiano e

    justap-lo ao Holocausto, no estaramos optando por no ler o que disse

    Benjamin sobre o Nazismo? No s o que disse explicitamente nos textos

    posteriores, mas tambm o que anunciou em Para a crtica da violncia, um

    ensaio dedicado, ao fim e ao cabo, a pensar as condies de possibilidade da

    violncia?

    Quais so as condies de possibilidade da eliso de tudo isso em

    Jerusalm, em 1988, no congresso onde no pde entrar o palestino? Em

    Interpretaes em guerra teriam a alegorizao nacional da figura do alemo e

    do judeu na psique judaico-alem ou a alegorizao nacional das figuras do

    grego e do judeu em Fora de lei que Derrida localiza em um ensaio

    benjaminiano onde estas duas palavras no aparecem algo a ver com o palestino

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    que no pde aceder ao espao no qual falou Derrida? Teria algo a ver com a

    impossibilidade de nomear essa figura, essa nacionalidade irrepresentvel, esse

    exterior a todo Estado? Seria o palestino o l-fora constitutivo do judeu e do

    grego, tal como invocados por Derrida na leitura de um texto onde no aparecem

    estas palavras? Ao rotular como judaica e grega as violncias divina e mtica

    que teoriza Benjamin, no estaria Derrida sub-titulando seu ensaio,

    implicitamente, Como no ler o Holacausto na Intifada? Como, ao se

    perguntar por aquilo que 1921 teria antecipado de 1941, cegar-se ante o que 1921

    lhe reclama, lhe demanda a 1988?

    A pergunta no me parece injusta com o texto de Derrida. Para usar uma

    expresso cara a ele, no se trata de um exemplo entre outros, o exemplo da

    violncia das foras de ocupao. Trata-se da manifestao contempornea

    paradigmtica do que Benjamin chamaria a violncia da legalidade que

    continuamente ignora suas prprias leis, j que ela est dotada da prerrogativa

    de redefinir continuamente os limites da prpria lei. Esta seria, para o Benjamin

    do ensaio de 1921, a caracterizao da violncia policial, militarista, a violncia

    que suspende a distino entre a manuteno da lei e a instalao da lei, j que

    ela pode impor uma nova legalidade cada vez que transgride os limites da

    legalidade constituda. No assistimos hoje a manifestao desta suspenso

    completa da dicotomia entre manuteno e instalao da lei na converso do

    imprio em permanente mquina de guerra que opera fora de toda lei prvia,

    que cria uma nova lei a cada ato repressivo? Se para essa converso, Jerusalm

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    no uma cidade entre outras e a populao palestina no uma vtima entre

    outras, no poderamos aventurar a hiptese de que cegar-se ante o texto de

    Benjamin, recusar-se a l-lo, ou l-lo distorcido por uma lente heideggeriana

    em outras palavras, no ser digno da tarefa dessa herana no seria, de

    nenhuma maneira, uma omisso ou uma distoro entre outras, e sim o nome da

    nossa derrota?

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