CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR...

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Uma publicação do Projeto de Formação de Professores Indígenas3º Grau Indígena

Editor- Prof. Dr. Elias Januário

Consultor AntropológicoProf. Ms. Luís Donisete Benzi Grupioni

Comissão Editorial- Prof. Ms. Antônio Francisco Malheiros- Profª. Drª. Carmen Lúcia da Silva- Prof. Dr. Elias Januário- Prof. Edson de Oliveira Santos Bakairi- Profª. Francisca Novantino Paresi- Profª. Ms. Jocineide Macedo Karim- Prof. Lucas ´Ruri´õ- Prof. Ms. Luís Donisete Benzi Grupioni- Prof. Dr. Marcus Antonio Rezende Maia- Profª. Drª. Roseli de Alvarenga Corrêa

Cadernos de Educação Escolar Indígena3º Grau Indígena - v. 3, n. 1, 2004

Barra do Bugres - MT

As informações contidas nos artigos são de inteira responsabilidade de seusrespectivos autores.

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PROJETO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS 3º GRAU INDÍGENA

Barra do Bugres - MT 2004

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Série Periódicos

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Catalogação: Cleide de Albuquerque MoreiraBibliotecária/CRB 1100

Revisão: Elias JanuárioRevisão Final: Karla Bento de Carvalho

Consultor: Luís Donisete Benzi Grupioni

Projeto Gráfico/Diagramação: Fernando Selleri SilvaFotos: Elias Januário

UNEMAT - Universidade do Estado de Mato GrossoCampus Universitário de Barra do Bugres

Projeto 3º Grau IndígenaCaixa Postal nº 92

78390-000 - Barra do Bugres/MT - BrasilTelefone: (65) 361-1964

www.unemat.br/indigena - [email protected]

Dados internacionais de catalogaçãoBiblioteca “Curt Nimuendajú”

FUNAI - Fundação Nacional do ÍndioCGDOC - Coordeanção-Geral de Documentação

SEPS Q. 702/902 - Ed. Lex - 1º Andar70390-025 - Brasília/DF - Brasil

Telefone: (61) 313-3730/[email protected]

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Professores na EducaçãoTravessa B, S/N - Centro Político Administrativo

78055-917 - Cuiabá/MT - BrasilTelefone: (65) 613-1021

CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA - 3º GRAU IN-DÍGENA. Barra do Bugres: UNEMAT, v. 3, n. 1, 2004.

ISSN 1677-0277

1. Educação Escolar Indígena I. Universidade do Estado de Mato Gros-so II. Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso III. Coorde-nação-Geral de Documentação / FUNAI.

CDU 572.95 (81) : 37

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SUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIOSUMÁRIO

Apresentação ............................................................................................ 7

Línguas indígenas e comprometimento lingüístico no Brasil:situação, necessidades e soluções ...................................................... 9Bruna Franchetto

Os saberes na vida de um professor-educador .............................. 27Maria Aparecida Rezende

Educação Escolar Indígena: notas de uma experiência com oensino da Matemática ......................................................................... 37Jurandina Barbosa Sales

A construção do currículo no 3º Grau Indígena: a Etapa deEstudo Presencial ................................................................................ 43Elias Januário

Matemática na V Etapa do 3º Grau Indígena .................................. 57Maria Zoraide M. C. Soares e Equipe de Matemática

Diretor de escola indígena: uma conquista entre os Bororo ....... 64Bruno Tavie Bororo

Das Leis para a prática: impasses e persistências no campo daeducação escolar indígena no país ................................................... 69Luís Donisete Benzi Grupioni

Educação e povoação indomexicana: direitos, iniqüidades eprojeto intercultural ............................................................................ 78Héctor Muñoz Cruz

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Os processos próprios de ensino e aprendizagem e a escolaindígena ................................................................................................ 94Clarice Cohn

Formação do professor indígena: uma experiência com aslinguagens artística e corporal no Projeto Tucum/MT ............... 112Beleni Grando

Retratos de professores indígenas em formação ......................... 128Sirlene Bendazzoli

Educação escolar indígena específica e diferenciada: umaabordagem discursiva ....................................................................... 153Lucimar Luisa Ferreira

Entrevista com Rony Walter Azoinayce Paresi ............................ 158Elias Januário

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APRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃOAPRESENTAÇÃO

“Na sociedade indígena, educar é viver a vida no dia-a-dia da co-munidade. Plantar, escutar dos velhos as histórias das tradições orais, par-ticipar das cerimônias coletivas, caminhar pelo cerrado, caçar, enfim, tudoque envolve o fazer no cotidiano. Para isso, não existe professor, todo adultoensina e também aprende. Aprende-se a partir da experiência dos outros eda própria experiência. Aprende-se fazendo, brincando, o que tornainseparáveis o saber, a vida e o trabalho. Sabe-se que toda mudança, todainovação gera resistência, principalmente quando se trata de educação parapovos diferentes com grande diversidade cultural. Mas a resistência tam-bém é uma forma de luta, de aprendizado e de transformação” (Lucas ‘Ruri’õ,Professor Xavante).

As experiências na formação de professores indígenas nosdiferentes níveis de ensino e as reflexões acerca das políticas públi-cas voltadas para a educação escolar indígena específica, diferencia-da e intercultural, têm sido o eixo temático do Cadernos de Educa-ção Escolar Indígena. Neste cenário, este terceiro volume coloca emrelevo práticas e concepções atuais que fazem pensar e repensar pon-tos importantes do ensino e aprendizagem entre os povos indígenas.

Para o Projeto 3º Grau Indígena, esta publicação representao desdobramento de ações que acontecem nas salas de aula, na me-dida em que faz emergir aspectos relevantes da prática pedagógicados cursos de licenciatura, fomentando reflexões antropológicas,pedagógicas e lingüísticas no contexto da formação de professoresindígenas.

Os artigos publicados neste volume estão organizados emdois blocos que se articulam em torno da temática Formação de Pro-fessores Indígenas. Os primeiros seis artigos mostram passos impor-tantes das ações desenvolvidas no 3º Grau Indígena, fornecendo sub-sídios para refletir e pavimentar esse novo caminho aberto que é oensino superior para povos indígenas.

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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

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Os seis artigos seguintes compõem um quadro importantecom relatos de experiências institucionais em nível de magistério ereflexões significativas da legislação e de conceitos norteadores daeducação escolar indígena no Brasil e na América Latina.

A abertura de uma seção para a publicação de entrevistaspretende oportunizar um espaço para conhecer, a partir da históriade vida de lideranças e professores indígenas, questões que possibi-lite ao leitor ampliar o entendimento da luta, resistência e conquistasdo movimento dos professores e de suas organizações pelaimplementação de uma educação escolar indígena específica, dife-renciada e de qualidade nas escolas das aldeias.

Prof. Dr. Elias JanuárioCoordenador do 3º Grau Indígena

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LÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTOLÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTOLÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTOLÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTOLÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTOLINGÜÍSTICO NO BRASIL: SITUAÇÃO,LINGÜÍSTICO NO BRASIL: SITUAÇÃO,LINGÜÍSTICO NO BRASIL: SITUAÇÃO,LINGÜÍSTICO NO BRASIL: SITUAÇÃO,LINGÜÍSTICO NO BRASIL: SITUAÇÃO,NECESSIDADES E SOLUÇÕESNECESSIDADES E SOLUÇÕESNECESSIDADES E SOLUÇÕESNECESSIDADES E SOLUÇÕESNECESSIDADES E SOLUÇÕES

Bruna Franchetto*

As línguas nativas que são faladas, hoje, no Brasil, são aindapouco conhecidas. O propósito deste artigo é oferecer informaçõesbásicas sobre elas e explorar algumas questões importantes para apesquisa e para as políticas educacional e lingüística. A primeira partedo artigo é um relato da situação enfrentada pelas línguas indíge-nas, com informações quantitativas e uma avaliação das ameaças quepairam sobre as mesmas, ou seja, uma avaliação do comprometimentolingüístico que as afeta. Nos quinhentos anos que se seguiram à che-gada dos Europeus, aproximadamente 85% das línguas indígenasdo Brasil foi perdido.

No entanto, o Brasil continua sendo um país com a mais altadensidade lingüística (muitas línguas diferentes num mesmo território)

* Drª. em Lingüística, Museu Nacional - Processo FUJB-UFRJ n. 6.729-6, docente naárea de Línguas, Artes e Literaturas do 3º Grau Indígena.

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e uma das mais baixas concentrações demográficas por língua (mui-tas línguas têm poucos falantes). Muitos lingüistas têm testemunha-do a crise e a perda dessas línguas. Muitos falam de “línguas emperigo” ou de “línguas em perigo de extinção”. Nós usamos, aqui, aexpressão “comprometimento lingüístico”, que quer dizer, pratica-mente, a mesma coisa. Na verdade, qualquer língua minoritária emuma situação de dominação colonial deveria ser considerada “emperigo (de extinção)” ou “comprometida”. Mesmo as línguas aindaaparentemente seguras podem mostrar sinais de crise, que podem,com o tempo, resultar em extinção lingüística (e cultural). Pensamos,contudo, que há pelo menos duas maneiras para ajudar a manter avitalidade dessas línguas: o apoio ao trabalho de documentação, so-bretudo quando ela é participativa, ou seja quando ela conta com aparticipação efetiva da população indígena, e a implementação depolíticas positivas por parte do Estado.

A segunda parte do artigo avalia a produção de conhecimen-tos sobre as línguas indígenas no Brasil, mostrando o que foi e o queestá sendo feito. Houve um avanço considerável das pesquisas, ape-sar da escassez de recursos e de condições adequadas para a realiza-ção dos estudos. A terceira e quarta partes do artigo examinam algu-mas das questões relativas às políticas educacional e lingüística noBrasil. A parte final contém uma síntese das necessidades e das solu-ções para que haja o desenvolvimento quantitativo e qualitativo de-sejado da documentação lingüística, apoiando, acima de tudo, ospesquisadores, as instituições e as iniciativas em nível nacional e re-gional, sobretudo quando o trabalho é feito junto com as populaçõesinteressadas.

Línguas indígenas e comprometimento lingüístico no Brasil

A lingüista Colette Grinevald (1998) calcula o número totalde línguas nativas na América do Sul em mais de 400, maior que oresto das Américas, com uma grande variedade genética - são 118famílias - e um número considerável de línguas isoladas. Uma vari-edade genética semelhante existe em Nova Guiné.

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LÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTO LINGÜÍSTICO NO BRASIL...

Outro lingüista (Rodrigues, 1993) estima que, às vésperas daconquista, 1.273 línguas eram faladas nas terras baixas da Américado Sul. Assim, em quinhentos anos, aproximadamente 85% destaslínguas se perdeu.

Uma visão desse passado está no mapa etno-histórico pro-duzido pelo etnólogo Curt Nimuendajú (IBGE, 1981) nos anos 40 (sé-culo XX), com o objetivo de fornecer um panorama das populaçõesindígenas no Brasil. Nimuendajú usou somente documentos históri-cos escritos pelos colonizadores. No mapa se vê o território brasileirocompletamente coberto por áreas e pontos coloridos, que represen-tam troncos, famílias, agrupamentos lingüísticos e línguas isoladas.No mapa há espaços vazios especialmente ao longo dos rios princi-pais, o que indica áreas despovoadas já durante os primeiros temposda colonização. No contexto sul-americano, o Brasil continua sendohoje o país com a mais alta densidade lingüística, em outras pala-vras, o país com a maior diversidade genética. O Brasil tem, também,uma das mais baixas concentrações demográficas por língua.

No Brasil existem, aproximadamente, 180 línguas, a grandemaioria concentrada na região amazônica, faladas por uma popula-ção hoje estimada em 350.000 pessoas, formando 206 etnias. Estaslínguas são distribuídas em 41 famílias, 2 troncos e, aproximadamente,10 línguas isoladas (Rodrigues, 1993). O número de falantes oscila deum máximo de 20.000/10.000 (Guarani, Tikuna, Terena, Macuxi eKaingang) aos dedos de uma mão, ou até mesmo um só falante. Amédia é de menos de 200 falantes por língua. O número total poderácrescer com o aumento de descrições de novas línguas e de línguasaté agora documentadas apenas parcialmente.

Nos anos 80, pesquisadores do Museu Goeldi encontraramos dois últimos falantes de Puruborá e redescobriram o Kujubim. Em1987, o Zo’e foi acrescentado à família Tupi-Guarani. Em 1995, umgrupo solitário foi identificado como sendo composto de falantes doaté então desconhecido Kanoé. Grenand e Grenand (1993) listam 52grupos amazônicos ainda sem contato e cujas línguas podem revelarnovos agrupamentos genéticos ou novos membros de famílias outroncos. As classificações lingüísticas também sofrem constantesmodificações dependendo do aumento das descrições fornecidas pornovos estudos.

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O trabalho de comparação entre as línguas permite fazer hi-póteses sobre a pré-história e a historia indígenas. Números e classi-ficações podem também ser modificados à medida que diferençasentre dialetos e línguas se tornam mais claramente definidas. Não éuma tarefa fácil saber se dois idiomas são línguas distintas ou vari-antes dialetais de uma mesma língua.

Além da nossa ignorância, para falar com clareza da situaçãoatual das línguas indígenas é preciso conhecer também os problemaspolíticos e ideológicos, internos e externos aos povos indígenas.

A lingüista Luciana Storto (1996) relata a situação encontra-da no estado de Rondônia: 65% das línguas estão em sério perigodevido ao fato de que as crianças não as usam mais e que sobrevi-vem apenas poucos falantes; 52% delas não são mais faladas pelascrianças; somente 35% podem ser consideradas, no momento, aindavitais.

Muitos lingüistas que se dedicam ao estudo dessas línguastestemunham processos mais ou menos notáveis de perda lingüísti-ca. Há casos de quase extinção no alto Xingu, por exemplo, um siste-ma inter-tribal onde são faladas línguas geneticamente distintas. Hásomente 30 falantes de Trumai (uma língua isolada), enquanto oYawalapiti (Arawak) sobrevive com menos de 10 falantes em umaaldeia multilíngüe dominada por outras línguas do alto Xingu e peloportuguês (Franchetto 2001; França 2000). Outras línguas do altoXingu aparentam uma vitalidade integral; mesmo assim, há sinaiscríticos do começo de uma fase de instabilidade. Pensemos no queacontece nas aldeias. A escola é considerada o lugar onde a línguados brancos deve ser aprendida; os jovens são fascinados por todasas coisas que vêm do mundo das cidades, procuram falar cada vezmais português e se afastam das tradições orais. A televisão tomou olugar do tempo da transmissão de conhecimentos através das narra-tivas, que eram contadas diariamente dentro da casa ao anoitecer ouna “casa dos homens”, o centro ritual e político da aldeia. É como seuma tempestade de novos conhecimentos estivesse destruindo to-das as coisas associadas à geração mais velha.

O lingüista Denny Moore (2003) nos dá um panorama recen-te e cuidadoso da situação das línguas indígenas ainda faladas no

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LÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTO LINGÜÍSTICO NO BRASIL...

Brasil. Mesmo assim, há alguns erros no levantamento de Moore,erros que poderão ser corrigidos num trabalho coletivo produzidopelas comunidades indígenas junto com a comunidade lingüísticabrasileira. Nós podemos também observar discrepâncias entre docu-mentos brasileiros e informações e números mostrados no Atlas deLínguas do Mundo em Perigo de Desaparecer, publicado pela Unesco(Wurm, 2001). Pelo menos 50 das 164 línguas indígenas brasileiraslistadas por Moore deveriam ser consideradas línguas próximas dodesaparecimento e com documentação inadequada ou inexistente.Metade das 39 línguas faladas por grupos com mais que 1000 indiví-duos podem ser consideradas em sério perigo, 109 línguas são fala-das por grupos com menos de 500 indivíduos e muitas delas estãosofrendo um empobrecimento crescente de seu patrimônio lingüísticoe cultural. Uma primeira necessidade é evidente: realizar uma novae mais séria coleta de informações sobre as situações de perda lin-güística no Brasil. Este trabalho deve ser feito por todos aqueles queestudam as línguas indígenas brasileiras.

Os dados obtidos através das respostas a um questionáriocom 37 perguntas, distribuído em julho de 2002 para os 200 alunosdo 3º Grau Indígena, no campus de Barra do Bugres da UNEMAT,fornecem uma ilustração reveladora da situação que creio seja geral.As informações coletadas referem-se aos nove fatores que podem serusados para avaliar a vitalidade de uma língua, fatores listados nodocumento “Vitalidade e Comprometimento Lingüísticos”, apresen-tado e discutido durante o encontro promovido pela Unesco, emmarço de 2003.

Nenhum dos 200 alunos - a maioria professores de escolasindígenas - é monolíngüe em sua própria língua materna, por razõesóbvias. Oito alunos são representantes de grupos étnicos cuja línguanativa já está extinta. São estes últimos os descendentes de povosque habitavam a costa atlântica na época da conquista e que sofre-ram o primeiro e devastador impacto da colonização européia. De-zoito alunos não são mais falantes de sua língua materna. O únicoaluno da etnia Trumai, por exemplo, é um jovem que está se dedi-cando à aprendizagem e ao estudo de sua língua materna. O Trumaié uma língua isolada e realmente comprometida: existem hoje ape-nas 30 falantes e as crianças não mais aprendem a língua, preferindo

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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

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falar português, embora alguns deles também falem outras línguasxinguanas, como o Kamayará, o Aweti ou o Suyá (Monod-Bequelin eGuirardello, 2001; Guirardello, 2002). 44 alunos do curso são bilín-gües (língua indígena e português), mas já usam predominantemen-te o português em casa. 74 são bilíngües e usam em casa ambas aslínguas. 49 alunos são bilíngües incipientes: usam a língua nativa emcasa e nos domínios públicos internos, mas o português nos domíni-os públicos externos, e começam a usar várias palavras do portugu-ês, para indicar novos objetos e novos eventos, mesmo quando falamem sua língua materna.

Em resumo, no curso da primeira universidade indígena nóstemos representantes de 6 povos cujas línguas já não existem mais, 8línguas na beira da extinção e 9 línguas em sério perigo, mostrandouma típica ruptura de geração: os pais falam a língua nativa com osavós, mas o português com filhos e netos, sendo que o português estáse tornando cada vez mais dominante nos espaços da vida domésti-ca. 13 línguas devem ser consideradas em situação de risco. Por ou-tro lado, sabemos que povos cuja língua original não mais existe es-tão tentando, dramaticamente e de maneira própria, reaver uma sualíngua identitária, virtual, simbólica ou real. Procuram documentos,listas de palavras, gramáticas produzidas no período colonial; dis-põem-se a estudar o que pode ser recuperado, para, com isso, sabermais de sua história. Há casos de iniciativas nos quais se procuranum povo vizinho, que ainda fala a língua nativa, a fonte para a apren-dizagem de uma nova língua. São experiências isoladas, surgidasespontaneamente ou induzidas de fora, que, de qualquer maneira,refletem a idéia de que falar uma língua indígena é uma característi-ca vital para recuperar ou manter viva uma “identidade indígena”,condição para garantir direitos territoriais, sociais e políticos. Em umnível geral, no Brasil não há nenhum programa consistente emonitorado para a revitalização lingüística, onde ela é ainda possí-vel, nem qualquer tipo de acompanhamento e análise das experiên-cias espontâneas que podem estar ocorrendo.

Retomando os resultados da pesquisa entre os alunos do 3ºGrau Indígena, abordando brevemente a situação das línguas indí-genas nas escolas, temos o seguinte quadro: o português é a línguausada por muitos professores, mesmo quando os alunos não falam

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LÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTO LINGÜÍSTICO NO BRASIL...

português; somente 20 entre 114 professores ensinam usando a lín-gua materna dos seus alunos. Alguns professores disseram que usamlíngua indígena e português ao mesmo tempo, mesmo se as criançasna escola falam somente a língua materna, resultando em uma situa-ção típica e surreal, onde o professor, que ainda não domina bem oportuguês, tenta ensinar habilidades de leitura em português paraalunos que não falam português.

Devo dizer que não estou de acordo com a definição de “lín-gua em perigo” usada, hoje, por muitos lingüistas. Ao invés de con-siderar como ameaçadas somente as línguas reduzidas a um últimofalante, ou a poucos últimos falantes, eu preferiria dizer que não hálíngua indígena segura no Brasil. São todas línguas minoritárias edominadas e a maioria é faladas por grupos bem pequenos. Podería-mos retornar ao caso das línguas que estão ainda vitais, mas que co-meçam a mostrar os sintomas do começo de uma crise, muito prova-velmente sem retorno. Retomando o documento da Unesco “Vitali-dade e Comprometimento Lingüísticos”, nós podemos dizer quenessas línguas está ocorrendo uma mudança do estágio denominado“seguro” para o estágio denominado “inseguro-instável”. É umamudança do “uso universal” para uma situação de multilingüismo.Considere-se, por exemplo, a situação em que a língua indígena éusada em novos contextos, como na escola, junto com a língua naci-onal (dominante), mas ela está completamente ausente nos novos eimportantes meios de informação, como a televisão, o rádio, a internet.Nós estamos em um momento em que, mesmo se os membros deuma comunidade indígena apóiam a manutenção da língua, os jo-vens, cada vez mais, percebem a língua dominante como mais pode-rosa em termos de seus desejos para o futuro. Eles querem tornar-seadvogados, doutores e engenheiros, em vez de chefes, pajés, conta-dores ou cantores. Quando estamos diante de uma situação dessetipo, é este o momento ideal para começar a documentação lingüísti-ca e cultural, um trabalho que inclui, também, formas de intervençãoem apoio à preservação lingüística e cultural. São essas situações quepodem responder positivamente a projetos de pesquisa participativa.

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CADERNOS DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA

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Como nós sabemos o que sabemos sobre as línguas indígenas

É a grande diversidade de línguas que faz com que o desa-parecimento de qualquer uma dela seja uma perda irreversível.

A documentação da diversidade lingüística é necessária pararesponder a questões centrais sobre a natureza da linguagem huma-na (Hale, 1998). É também muito importante para documentar a di-versidade cultural, incluindo o que varia e o que é invariante nasculturas, bem como os conhecimentos de natureza ecológica. Para oslingüistas essa perda significa não conseguir reconstruir a pré-histó-ria lingüística de um povo e não conseguir determinar a natureza,extensão e limites das possibilidades lingüísticas humanas, tanto emtermos da estrutura das línguas como do comportamento comunica-tivo, da expressão e criatividade poética. As conseqüências da perdalingüística são mais sérias e complexas para os povos indígenas en-quanto minorias afastadas de qualquer instância de poder.

Sabemos que a relação entre etnia e identidade lingüística,cultural e política é uma questão muito complexa. Não há duvida,porém, que o desaparecimento de uma língua resulta em sérios pre-juízos para a saúde intelectual de um povo, para suas tradições orais,suas formas artísticas (poética, música, oratória), para o conhecimento,sua ontologia e sua perspectiva cosmológica. Diversidade lingüísti-ca e diversidade cultural certamente andam juntas; assim, podemosdizer que a perda de uma língua é uma espécie de catástrofe, local euniversal.

Um levantamento feito por Storto e Moore em 1991 mostrouque de 80 a 100 línguas indígenas brasileiras têm sido objeto de al-gum tipo de descrição, significando que quase a metade das línguasindígenas continua sem nenhum tipo de documentação. Os autoresestimaram que 10% dessas línguas possuíam uma descrição grama-tical satisfatória. Havia, no início dos anos 90, somente 12 pesquisa-dores com doutorado no Brasil dedicados ao estudo dessas línguas esó 8 universidades onde as línguas indígenas estavam presentes emseus programas de pós-graduação. O SIL (Summer Institute ofLinguistics), uma missão evangélica, trabalhou com 40 línguas, masnão contribuiu na formação de nenhum pesquisador brasileiro. 59

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LÍNGUAS INDÍGENAS E COMPROMETIMENTO LINGÜÍSTICO NO BRASIL...

línguas foram investigadas por lingüistas não missionários. Entre 1985(Rodrigues, 1985) e 1991 houve um aumento de 36% no número deprojetos de pesquisa. Entre 1987 e 1991, o Programa Especial de Pes-quisa Científica das Línguas Indígenas Brasileiras, criado pelo Con-selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)forneceu subsídios para cursos intensivos e pesquisas de campo.

Os resultados de um levantamento realizado por mim em1995 (Franchetto, 2000a, 2000b) revelou a existência de aproximada-mente 120 pesquisadores (80% ativos e outros 12 pesquisadores mis-sionários em instituições brasileiras). Observou-se um aumento daparticipação de graduandos e de pós-graduandos. O número de pes-quisadores estrangeiros representava mais ou menos 10% do total.Entre 1991 e 1995 houve um aumento de 40% no número de línguasestudadas. Na mesma época, notava que pouco mais de 30 entre apro-ximadamente 180 línguas podiam ser tidas como possuindo uma do-cumentação ou descrição satisfatória (uma gramática de referência,com textos e um léxico). 114 línguas tinham fragmentos de descriçãofonológica ou sintática, o resto continuava no limbo do desconheci-do. Obviamente é um pouco simplista classificar as línguas comotendo nenhuma documentação ou alguma documentação ou comosendo bem documentadas. Nos levantamentos sobre a produção deconhecimentos na área chamada de ‘lingüística indígena’, a qualida-de do trabalho de análise não é geralmente considerada; simples-mente se atesta a simples existência de algum tipo de material. Aquestão da qualidade da documentação ou da descrição lingüísticacomeçou a ser discutida só recentemente, graças à acumulação denovos conhecimentos e novos dados, à maior atenção dada às teoriasque fundamentam os modelos descritivos, ao aumento do númerode pesquisadores, à circulação e publicação de resultados de pesqui-sa, e, finalmente, graças ao desenvolvimento de metodologias etecnologias para arquivar e processar os dados.

De acordo com uma nova estimativa, ainda imprecisa, em-preendida em 2002 (Franchetto, 2001), há uma boa descrição de ape-nas 19% das línguas nativas do Brasil, algumas descrições fragmentá-rias de 64% e nada para 13% dessas línguas. No entanto, o Brasil é umdos países mais desenvolvidos em termos de lingüística. Como Moorediz, a investigação científica desenvolveu-se em passos aceleradosnos últimos 15 anos. O apoio de instituições como, por exemplo, a

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Fundação Volkswagen, através do programa DOBES, que permite ofuncionamento de 4 projetos de documentação no Brasil, está tendoum impacto excepcional na qualidade da documentação.

Um crescente número de povos indígenas no Brasil exigecontrole sobre os termos e condições que regulamentam as pesqui-sas. Na maioria dos casos, projetos de pesquisa lingüística são agoraconduzidos de acordo com as práticas e princípios recomendadospelos documentos da UNESCO. Nós temos uma experiência acumu-lada de projetos realizados neste espírito. Não foi por acaso que têmsido pesquisadores brasileiros os que levantam questões de ordemética e jurídica implicadas na documentação. Desde pelo menos 1980,os povos indígenas e seus aliados estão ativamente envolvidos emprogramas ligados aos direitos humanos, saúde e defesa de territorial.Muitas associações e federações indígenas locais foram formadas,entre eles associações de professores indígenas. A maioria dos lin-güistas que trabalham no Brasil com línguas indígenas não fazemsomente uma lingüística teórica e descritiva. Nós estamos em cam-po, em constante comunicação com as pessoas com as quais estamostrabalhando. Consultores indígenas, jovens, chefes e pajés, estãofreqüentemente em nossas casas. Temos recursos humanos, mas fal-tam, muitas vezes, uma infra-estrutura mínima, laboratórios, equi-pamentos e, por último, mas não menos importante, os fundos ne-cessários para fazer trabalho de campo, um empreendimento muitocaro no Brasil.

Entusiasmo evangelizador foi e continua sendo a base dointeresse lingüístico de muitas missões de fé, encabeçadas pelo SIL,hoje rebatizado no Brasil como ‘Sociedade Internacional de Lingüís-tica’. Estas missões e seus lingüistas carregam o trágico lema “cultu-ras destruídas, línguas salvas”. Após anos de estudo, conseguem es-vaziar palavras e frases de uma língua indígena de seus conteúdospara torná-las recipientes de outros conteúdos, uma nova semânticapara comunidades passivas e esmagadas pelo rolo compressor daconversão para a civilização.

O SIL foi uma importante figura na implementação da pes-quisa de línguas indígenas no Brasil, entre o fim dos anos 50 e osanos 70. Essa instituição possuiu até recentemente uma posição dedestaque no cenário da lingüística internacional no panorama das

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pesquisas sobre línguas indígenas (tendo seus próprios recursos parapublicar em língua inglesa). Entretanto, a lingüística no Brasil estágradualmente se libertando da referência missionária, perseguindoo desenvolvimento de modelos descritivos e explicativos, bem comoa aplicação de seus conhecimentos em prol de projetos políticos quedignifiquem a sobrevivência das línguas nativas.

Um desenvolvimento gradual e progressivo na área da lin-güística brasileira tornou-se perceptível a partir dos anos 90, comuma interessante diversificação de abordagens teóricas, a convivên-cia de diferentes paradigmas num saudável pluralismo científico. Háuma discussão cada vez mais madura entre pesquisa descritiva e te-órica e retoma-se a investigação histórica e comparativa. Assim, porexemplo, resultados importantes são aguardados do projeto “TupiComparativo”, em andamento no Museu Paraense Emílio Goeldi,do grupo de pesquisa sobre línguas da família Pano existente no Se-tor de Lingüística (Departamento de Antropologia) do Museu Naci-onal, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), dos projetos dedocumentação de línguas do Alto Xingu e da língua Enawenê-Nawê,em andamento no Museu Nacional da UFRJ e na Universidade deCampinas (UNICAMP), fornecendo valiosos conhecimentos sobre apré-história da Amazônia meridional. Já existem projetosmultidisciplinares, com a participação de etnólogos, arqueólogos elingüistas (Alto Xingu).

De acordo com um relatório recente (Seki, 2000), em 1998 onúmero de línguas objeto de algum tipo de estudo por não-missio-nários aumentou para aproximadamente 80. Observou-se um peque-no declínio das atividades do SIL (30 línguas em estudo e 8 projetosconsiderados concluídos). É interessante observar o aumento no nú-mero de línguas já investigadas por missionários e re-examinadaspor lingüistas brasileiros.

Graças ao levantamento de publicações, materiais inéditos,dissertações e teses, feito pela lingüista Lucy Seki, podemos averi-guar um aumento significativo, pelo menos quantitativo, da produ-ção dos pesquisadores brasileiros. Uma série de gramáticas de refe-rência, extensas e cuidadosas, começa a ser disponível para um pú-blico mais amplo.

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A situação institucional tem, infelizmente, melhorado muitopouco. Novamente de acordo com Seki, no fim dos anos 90 haviasomente 12 dos 66 programas de pós-graduação em lingüística in-cluíam linhas de pesquisa sobre línguas indígenas. O quadro não émelhor hoje. Como ponto positivo, podemos acrescentar que hojecomeçam a aparecer informações mais confiáveis em websites oficiaise não-oficiais, como também em publicações governamentais e cien-tíficas.

Em suma, muito está sendo feito no Brasil, fora da redomamissionária, se pensarmos na penúria de 20 anos atrás. Há ainda muitomais a ser feito. Há ainda muito poucos trabalhos descritivos com-pletos, como gramáticas referenciais. Em áreas como a documenta-ção de gêneros de discurso, artes verbais, coletâneas de textos de tra-dições orais e dicionários, as lacunas são enormes. O mesmo se apli-ca aos estudos sociolingüísticos, indispensável para a compreensãodas complexas situações de bilingüismo, multilingüismo e compro-metimento lingüístico.

No campo das línguas indígenas, o lingüista é uma figura dedupla identidade. Espera-se que ele seja um pesquisador, consultorde programas educacionais, fonólogo e responsável pela criação deortografias, para línguas de tradição oral, professor e editor de mate-riais didáticos em língua indígena. Ela ou ele recebe demandas deorganizações não-governamentais, do Estado e dos índios. Oenvolvimento em projetos educacionais implica não somente a apli-cação de conhecimentos científicos, mas também, e sobretudo, deve,hoje, ser baseado na capacidade de rever criticamente o modelo do-minante da educação bilíngüe, ainda, em muitos casos, dependenteda ideologia missionária, voltada para a civilização e a integração.

Por outro lado, vários povos indígenas já percebem o perigoque suas línguas enfrentam e estão, conseqüentemente, interessadosem revitalizá-las. Nesse tipo de situação, os índios procuram interagircom lingüistas capazes de dedicar-se à documentação de suas línguas.

Nesse tipo de tarefa - documentar uma língua em projetojunto com os índios e desenvolver o trabalho na direção da preserva-ção - nos faltam idéias e estratégias. Como diz Grinevald (1998), esselingüista é como uma orquestra composta por uma só pessoa: esselingüista deve ser competentes em todos os campos da lingüística

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descritiva, ser familiar com as principais teorias que podem guiar suasinterpretações e explicações, saber o suficiente sobre lingüística apli-cada para ser capaz de participar na alfabetização ou reativar proje-tos de língua em crise, sem cair na armadilha de pensar que os proble-mas podem ser resolvidos por meio das escolas. Esse super-lingüistadeve comprometer-se a fazer pesquisa com os índios, ser sensível eprofissional, e, finalmente, deve estar ciente que fazer lingüística numaárea indígena não significa simplesmente fazer uma breve viagem dealgumas semanas. Os índios certamente agradecem todos os esforçose iniciativas que permitam o surgimento desse novo pesquisador. Esselingüista deixaria para trás o amadorismo e a subalternidade; a socie-dade em geral aprenderia mais, passando a preocupar-se com a pro-teção de uma parte de seu rico patrimônio cultural, que permanecedesconhecido ou na sombra dos estereótipos.

Línguas indígenas e educação

A partir dos anos 90 do século passado, o Estado brasileiroadotou como princípio e filosofia uma educação escolar indígena bi-língüe, inter-cultural, diferenciada e específica, estabelecendo, nessecampo, uma legislação bastante avançada.

As conquistas foram importantes. Houve um acentuado de-senvolvimento no estabelecimento de ortografias de línguas indíge-nas e de programas educacionais bilíngües, onde professores indíge-nas e seus consultores tiveram um papel ativo como produtores dematerial escrito didático e para-didático, para que a alfabetizaçãofosse em língua materna nas escolas da aldeia e para que as línguasindígenas fossem usadas no ensino e no aprendizado escolares, comcurrículo e calendários adaptados às características culturais de cadagrupo étnico. Podemos ver uma considerável diversidade e flexibili-dade nas experiências vividas nas escolas indígenas.

Desde 1993, o Ministério da Educação (MEC) desempenhouum papel de coordenação da educação escolar indígena em nível naci-onal. Em 2000, o Comitê de Educação Escolar Indígena – organismoconsultor do MEC, constituído por representantes de organizaçõesgovernamentais e não-governamentais, de instituições científicas, de

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universidades públicas e de associações indígenas – foi substituídopor um conselho permanente, composto exclusivamente de repre-sentantes dos segmentos do movimento indígena, tal como as associ-ações de professores que existem em várias regiões do país. Entre-tanto, permanece uma contradição entre o discurso oficial, muitofreqüentemente apenas retórico, e as práticas locais, que muitas ve-zes continuam sendo discriminatórias e são deixadas nas mãos depessoas não qualificadas (Franchetto, 2002b).

Tomando como referência as partes do documento daUNESCO dedicadas a “políticas e atitudes lingüísticas”, “políticas eatitudes lingüísticas governamentais e institucionais“ e “comprome-timento e vitalidade lingüísticas”, nós poderíamos dizer que, em umnível governamental, o Brasil está em um estágio de “apoio diferen-ciado”. Se as línguas não dominantes são formalmente protegidaspelo governo, há claras diferenças nos contextos em que a língua do-minante oficial e as línguas não dominantes (protegidas) são usadas.Grupos indígenas são encorajados a manter e usar sua língua emdomínios internos ou em ocasiões rituais, mas esse estímulo não étão explícito para o uso nas escolas e há uma clara oposição comrelação ao uso das línguas indígenas na mídia. Na grande maioriadas situações locais, a população mais próxima das áreas indígenasquer que os índios sejam assimilados passiva ou ativamente. Em ter-mos da presença das línguas indígenas na mídia, nós estamos no ní-vel da assimilação forçada; até agora, só a língua nacional ou domi-nante é admitida como veículo de informação e de entretenimento.

Línguas indígenas e política lingüística

Enquanto podemos ver algum resultado positivo em relaçãoà política educacional nacional, estamos ainda em um estágio muitoinicial em termos de política lingüística nacional.

A Constituição e o Estatuto do Índio, que vigorou até umtempo atrás, reconhecem, ainda que muito timidamente, que o Brasilé uma nação pluricultural e plurilíngüe, mas muito ainda resta a serfeito se nós desejarmos alcançar objetivos tal como:

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(1) Liberdade para criar meios de comunicação oral e escri-ta para além de materiais educacionais de circulação local. Refiro-me a rádio, televisão e jornais em língua indígena, dadas as injunçõesda chamada ‘soberania nacional’.

(2) O reconhecimento oficial das línguas minoritárias. Atéagora houve somente uma iniciativa, muito recente, que promoveu àcondição de ‘línguas oficiais’ o Tukano, o Baniwa e o Nheengatu, nomunicípio de São Gabriel da Cachoeira (Rio Negro, Noroeste daAmazônia). Até este primeiro passo teve que lidar com problemascomo a seleção de algumas línguas, com a exclusão de outras em umcontexto de grande diversidade lingüística, a padronização de vari-antes escritas, a presença ativa na mídia e a ausência de reflexão so-bre os processos de tradução.

Necessidades e soluções: algumas propostas

Pensamos que a primeira tarefa é a de apoiar a pesquisa, queresulta na documentação lingüística, com gramáticas, léxicos e cole-tâneas de textos, de diferentes gêneros e tradições orais, transcritos,traduzidos e analisados. Insisto na necessidade de um apoio concre-to ao trabalho empreendido por lingüistas brasileiros ou associadosa universidades e centros de pesquisa brasileiros. Isto inclui o treina-mento de lingüistas indígenas, capacitando-os a estudar, documen-tar e arquivar materiais das suas próprias línguas. O apoio financei-ro é necessário para a aquisição de equipamentos adequados para otrabalho de campo e para publicar os resultados das pesquisas, as-sim como para atender as demandas das comunidades indígenas.

Em segundo lugar, seria importante criar centros de pesqui-sa locais e regionais, iniciativas necessárias para um país com umterritório tão vasto e com tão grande diversidade, lingüística e social,pelas muitas histórias diferentes das relações entre populações indí-genas e não-indígenas.

Em terceiro lugar, seria necessário apoiar reuniões de traba-lho locais e cursos de treinamento locais.

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Um quarto ponto diz respeito à recuperação dos arquivos dedocumentos audiovisuais e escritos existentes em várias instituiçõesbrasileiras, junto com sua organização e divulgação.

Finalmente, é necessário apoiar projetos para a possívelrevitalização de línguas que são ainda faladas por indivíduos da ge-ração mais velha, assim como acompanhar iniciativas de grupos queperderam suas línguas originais, mas que iniciaram algum tipo debusca de seu passado lingüístico. Não devemos esquecer, contudo,que o apoio estrategicamente mais eficaz é aquele destinado a umadocumentação participativa associada com formas de intervençãopositiva, com o objetivo de fortalecer línguas ainda aparentemente“saudáveis” ou “seguras”, mas que já mostram sinais de uma criseque poderá resultar, muito rapidamente, em perdas lingüísticas eculturais irreversíveis.

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