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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA 39 Editorial Franciscana BRAGA - 2010

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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

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Editorial Franciscana BRAGA - 2010

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Ficha Técnica

Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 39 - 2010 Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

I — Estudos

1. José Arregui, ofm

— A Oração diante do Crucifixo de S. Damião

‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒ ................................ 5

2. Jacques Dalarum, ofm

— Francisco e Clara, masculino/feminino em Assis

no século XIII ......................................................................... 27

3. Maria Clara Stuchi, osc

— A vocação e missão das Irmãs Pobres ..................................... 43

4. Papa Bento XVI

— Três Catequeses sobre:

Santa Clara, Beata Ângela de Folinho e Santa Isabel da Hungria ...... 61

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I — Estudos

A ORAÇÃO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO ‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒

José Arregui, ofm*

————— * Artigo das Selecciones de Franciscanismo XXXIX (2010) 65-85.

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A ORAÇÃO DIANTE DO CRUCIFIXO DE S. DAMIÃO

‒ Releitura para uma “nova” espiritualidade ‒

Ó glorioso Deus altíssimo,

ilumina as trevas do meu coração,

concede-me uma fé verdadeira,

uma esperança firme e um amor perfeita;

Mostra-me, Senhor, o sentido (reto) e conhecimento,

a fim de que possa cumprir

o sagrado encargo que na verdade

acabas de dar-me. Ámen1.

Proponho um comentário simples e livre desta “Oração diante do

Crucifixo de S. Damião” de S. Francisco de Assis, que não deseja ser

mais que simples indicações de uma releitura a partir das categorias

culturais e espirituais da actualidade.

A oração chegou-nos na língua materna de Francisco, o italiano

incipiente da época. É sugestivo o facto de que as únicas orações do

Poverello que se conservam em italiano sejam esta e o cântico do Irmão

Sol. A primeira evoca-nos o princípio vacilante da sua busca espiritual. A

segunda transporta-nos aos últimos tempos da vida terrena, unindo-se a

todas as criaturas num louvor ao Deus da vida, qual andorinha que não

cessa de cantar enquanto voa e sobe cada vez mais alto. Ambas têm uma

profunda relação com aquela bendita capela de S. Damião, nos arredores

————— 1 Citaremos os Escritos de S. Francisco e Santa Clara a partir da edição da Editorial

Franciscana: FONTES FRANCISCANAS I (FFI), Escritos, biografias, Documentos, 3ª

ed. Ed. Franciscana, Braga 2005; FONTES FRANCISCANAS II (FFII), Escritos,

biografias, documentos, Ed. Franciscana, Braga 1996.

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de Assis. Fala do que ele busca e vive, do sofrimento e da alegria e fá-lo

na sua língua materna.

A oração diante do Crucifixo de S. Damião remete-nos directa-

mente para 1205-1206, anos em que Francisco, com 25/26 anos, busca

um rumo para a sua vida. É um tempo de indecisão e procura, num pro-

cesso de discernimento. Não sabe o que quer, mas vai percebendo cada

vez melhor o que não quer ser: nem cavaleiro, nem comerciante. O

encontro com os leprosos tocou-o profundamente. Representam os últi-

mos, mesmo que não sejam os únicos. E sente fortemente que o seu

destino não pode separar-se destes abandonados. Quando contempla

Jesus crucificado, vê-os a eles. E quando dá com os olhos neles, vê Jesus

crucificado.

Na realidade, a busca de Francisco não durou só dois anos, mas

toda a sua vida, que não foi muito longa (morreu com 45 anos). Viveu

sempre em discernimento, na busca permanente da vontade de Deus,

vontade esta que não está predeterminada e que nunca nos vem ditada de

fora, mas que brota da raiz mesma do próprio querer e dos quereres

alheios. Formalmente é um texto sumamente polido e estilizado, de uma

precisão de vocabulário e de um tal ritmo, que supõe uma elaboração

muito cuidada. Certamente que não a compôs aos 24 anos. Sabemos que

a recitou ao longo da vida e a aconselhava os seus irmãos, para que a

recitassem.

Francisco viveu em cheio ‒ fins do século XII, princípios de século

XIII ‒ numa época de encruzilhada histórica, cultural, social e eclesial.

Que se tornou também numa encruzilhada espiritual. Intuiu que um novo

tempo estava a nascer e busca uma forma de vida e uma espiritualidade

para novos tempos. Busca algo diferente. Quer outra Igreja. Vislumbra

outro mundo. E também “outro” Deus. Sente-se atraído por outra forma

de vida, uma outra maneira de seguir Jesus, um estilo de vida diferente da

dos monges e dos “leicos”, algo entre mosteiro e “mundo”, entre a “vida

religiosa” de então e a “vida secular”. E reza, pelo descampado, a cami-

nho dos leprosos, na solidão habitada da ermida semidestruída de São

Damião, perante o belo ícone de Jesus crucificado, de estilo bizantino-

-úmbrio. Reza com as palavras que lhe saem do coração e da mente. A

experiência espiritual transforma-se em palavras e as palavras soam a

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suspiros que irradiam vida, animam-nos a olhar e a sentir em profundi-

dade e a buscar com a liberdade de espírito as nossas próprias palavras.

É uma oração profundamente actual, muito própria para este tempo

de busca. É frequente dizer-se que a nossa época é de mudança cultural,

um câmbio de paradigma, a emergência de uma nova era. Alguns estudio-

sos falam num tempo axial. Panikkar diria que nos encontramos no

epicentro de uma mutação cultural como poucas se deram na história

humana. Alguns, inclusivamente, atrevem-se a dizer que esta mudança é

similar à que se produziu na passagem do paleolítico ao neolítico. Outros

vão mais longe e afirmam ‒ reportando-se a Darwin ‒ que é um passo

semelhante ao que se produziu há dois milhões de anos, na passagem dos

primatas ao ser humano2.

Nesta época, a espiritualidade não só não vai desaparecer, mas vai

recobrar novo vigor e crescente actualidade. Os homens e as mulheres da

nova geração necessitam e buscam espiritualidade, como necessitam e

buscam alento, paz, interioridade, beleza, profundidade e harmonia inte-

gral. Mas as profundas transformações culturais implicam e requerem

transformações profundas na espiritualidade tradicional, nas categorias

teológicas, na maneira de ler a Bíblia, de entender a Deus e na forma de

olhar as outras religiões.

A religião tem futuro, mas não necessariamente as religiões que

hoje conhecemos. Muitos dados fazem pensar que a cristandade, com a

visão tradicional dos dogmas, da instituição clerical e hierárquica, se está

a esgotar e carece de futuro, porque se tornou incompreensível à cultura

actual. «Muitos grupos, muitas instituições aparecem e desaparecem. No

entanto, há um sentimento busca. Jesus não fundou nenhuma religião,

deixando assim a porta aberta para que os seus discípulos criassem a reli-

gião mais adaptada à sua cultura, o que se fez inconscientemente, ou seja,

sem que ninguém soubesse que se estava a construir uma religião nova.

Por isso, essa religião que conhecemos e praticamos formou-se dentro do

Império romano, e é uma realidade histórica. Outras podem aparecer.

Estamos no começo da história do mundo e da evangelização. Até agora

o cristianismo só penetrou numa cultura (com duas variantes), a partir do

————— 2 Cf. MARTINEZ LOZANO, E., “La crisis del sujeto en un câmbio de época”, no XVII

Fórum Religioso popular de Vitoria (2009).

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que havia no Império romano. Podemos considerar que seja só um

começo, uma primeira etapa»3.

«Precisamos de uma religião. Mas nada exige que seja a mesma no

Ocidente, na África, na Índia, na China ou no Japão. Nesses países há

muita simpatia pelo cristianismo, mas pouca simpatia pelas Igrejas. É um

sinal para o futuro»4.

Situo-me nesta perspectiva, e é a partir daqui que apresento algu-

mas reflexões livres à volta desta bela oração. É uma oração que nos con-

vida a redescobrir a paz na pergunta, a paz na busca de novas linguagens

e paradigmas de espiritualidade. É uma oração própria do nosso tempo,

de mudança epocal e de “nova espiritualidade”. Não me proponho ler e

compreender Francisco a partir da sua época, mas a partir da nossa. Não

me interessa tanto descobrir a imagem de Deus e as categorias espirituais

que Francisco usou no seu tempo, mas imagens e categorias que se

enquadrem na actualidade. Toda a leitura é uma reinterpretação a partir

de uma perspectiva nova. A questão que me interessa é: que significa

espiritualidade hoje? A qual espiritualidade nos chama hoje o Espírito. A

que transformações espirituais nos chama a profunda transformação

cultural que vivemos?

1. Ó glorioso Deus altíssimo

Assim começa Francisco a oração e assim começará muitas outras:

dirigindo-se a Deus com admiração e encanto. Invocando e encantando-

-se. A invocação e o encanto, a fonte e a profundidade da espiritualidade,

constituem o mais genuíno da experiência religiosa. É a dimensão mística

que, ao lado da compaixão “política”, é o essencial de toda a religião. A

invocação e o encanto são o mais importante e o mais autêntico da

oração. O que pensamos, o que dizemos e o que pedimos não é tão

importante.

Francisco tem uma imagem de Deus e utiliza uns termos concretos

para O designar. Serve-se de imagens e termos próprios da sua cultura.

Mas isso não é o essencial. Quando fala de Deus, Francisco faz falar por

dentro todas as imagens e categorias. Designa a Deus “alto e glorioso”.

————— 3 COMBLIN, J., http: //servicioskoinonia.org.relat 4 Ibid

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“Altus” em latim significa alto e profundo ao mesmo tempo. Francisco

fala da altura de Deus, mas é impressionante que insista sobretudo na

descida de Deus, na sua proximidade humana, na solidariedade crucifi-

cada. Deus é para Francisco “Jesus pobre e crucificado”. Imagina Deus

nas alturas e nem podia imaginá-lo de outra maneira, tendo em conta a

cosmovisão de então (com o céu em cima e a terra em baixo), mas, na

realidade, situa Deus sobretudo na descida, na proximidade. Numa época

em que, tanto na sociedade feudal e imperial como na Igreja clerical

(também ela feudal e imperial) tudo remete para o poder, é muito

significativo que Francisco nos fale tão insistentemente da “humildade”

de Deus. Deus está sobretudo na descida, no mais pequeno e no mais

profundo de todas as criaturas.

Deus também é qualificado de “glorioso”. Que significa “glorioso”?

Sugere-nos o sentido de “celeste”, “excelso”, “espectacular”, “gran-

dioso”, “importante”… No entanto, para Francisco a “glória” de Deus

revela-se sobretudo no pequeno e insignificante. A glória de Deus é a

irradiação da sua divindade, da sua beleza e bondade no mundo. Mas

onde se reflecte no mundo a beleza e a bondade de Deus? Reflecte-se em

todas as criaturas, também nas mais humildes e insignificantes, sobretudo

nas mais humildes e insignificantes. Irradia sobretudo no rosto de Jesus

pobre e amigo dos pequenos, no corpo crucificado de Jesus, irmão de

todos os crucificados. Deus fez-se pobre e humilde, e aí revela a sua

maior glória.

Quem é Deus para nós? Que imagem fazemos de Deus? Atrevo-me

a dizer que continuamos a imaginar Deus com os rasgos milenários da

velha cultura agrária e piramidal, como “Deus do céu”, como Senhor

altíssimo, como rei soberano. Continuamos a aplicar a Deus os atributos

clássicos que a filosofia ou teologia natural aplicava ao Senhor supremo,

ao ente cósmico superior. Continuamos a chamar a Deus de omnipotente,

imutável, impassível. Imaginamos Deus como Pai, Legislador, e Juiz

supremo, que intervém no mundo quando quer, para fazer aquilo que

quer, que tem um projecto predeterminado para cada um, que se revela

quando melhor lhe aprouver, que se cala muitas vezes, que permite a dor

por alguma razão que não se entende, que escolhe uns e exclui outros,

que castiga quando quer e que perdoa quando quer.

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Para muita gente ‒ e para muitos crentes ‒, com razão, esse Deus

não existe. Já morreu. Se alguma vez existiu, morreu em Jesus, morreu

na Cruz de Jesus e, muito antes, em todas as cruzes. Na realidade, nunca

existiu, nós é que o imaginamos assim. Mas já não é possível continuar a

imaginá-lo dessa maneira. Nietzsche selou a sua morte na cultura actual.

O Deus da filosofia e da teologia tradicional que continuamos a imaginar

já morreu há muito tempo: morreu na linguagem, morreu no pensamento

e morreu no imaginário. De facto, a gente já não crê nele. Até a maioria

das crianças que anda na catequese deixaram de crer nele desde os cinco

anos. E é normal, pois esse deus nunca existiu. O deus que os ateus

negam simplesmente não existe. Negam, porque o imaginam como

alguém “incredível”. E Deus nunca é como o imaginamos, nem os que

dizem crer ‒ “se compreendes, não é Deus”, diz santo Agostinho ‒, pelo

menos como o imaginam aqueles que não acreditam em Deus. Deus é

maior e mais pequeno, é presença terna, é coração que ama, é palavra

reveladora, é manifestação bela, é bondade transformadora, é o tu de

todo o eu, é o eu mais íntimo de todo o ser.

Muitos falam de “espiritualidade sem Deus” (Compte-Sponville” ou

de uma “espiritualidade laica” (M.Corbi), e entende-se o que querem

dizer. Mas parece-me preferível restaurar a imagem de “Deus”. Como

podemos afirmar a espiritualidade e negar a Deus, que é “Espírito” que

tudo anima, e renova a face da terra? Onde há espiritualidade, onde há

encanto frente à realidade, onde há olhar para o mistério, sentidos para a

beleza, onde há coração para o reconhecimento e compaixão, aí está

Deus. Onde está Deus, ali há espírito e espiritualidade. E está em todas as

religiões, e para lá de todas as religiões. Todas as religiões não são mais

que linguagens do Espírito universal. Quando deixam de o ser, só têm

uma alternativa: ou se transformam ou desaparecem.

«Como milhões de plantas e de espécies animais, muitas religiões se

extinguiram ao longo do tempo. Estudando este fenómeno de

obsolescência, o teólogo alemão Wolfhart Pannenberg fez esta pungente

observação: “As religiões morrem, quando as suas luzes falham”, isto é,

quando a sua doutrina já não ilumina a vida, tal como os seus membros,

de facto, a vivem5.»

————— 5 JOHNSON, E., La búsqueda del Dios vivo. Sal Terrae, Santander 2008, 42.

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Não queremos, nem podemos deixar de crer em Deus no nosso

tempo. Mas não devemos ter medo de nos desprender nas velhas ima-

gens, na medida em que não nos parecem belas, credíveis, sugestivas e

libertadoras. Não temos de nos aferrar a categorias e imagens, que não

nos enchem o coração e a mente. Temos de “inventar” imagens e metáfo-

ras de Deus, que nos permitam respirar e que nos libertem da angústia e

nos deixem viver em paz. Há muita gente ‒ cada vez mais ‒ que não sabe

se acredita ou não em Deus, porque quer acreditar em “algo” ou

“alguém” ‒ como parece evidente ‒, mas não acredita num ser supremo

que rege os destinos do mundo a partir do alto, segundo o seu desígnio e

a sua vontade inescrutável.

O nosso tempo convida-nos a rever a maior parte das nossas repre-

sentações de Deus, tanto nas imagens como nos conceitos. Grande parte

da teologia busca há muitos anos outra linguagem para Deus. «Os

conceitos de Deus ultrapassados, simples e obsoletos já não satisfazem.

No entanto, novas ideias oriundas de diversos contextos culturais,

recolhidas pela teologia, parecem muito mais estimulantes», escreve E.

Johnson6. Ao longo dos capítulos do seu livro, o autor recolhe de entre as

teologias de hoje aquelas imagens de Deus que respondem melhor aos

anseios espirituais do nosso tempo: o Deus crucificado da compaixão, o

Deus libertador da vida, Deus em feminino, Deus que rompe as cadeias, o

Deus que faz festa com o ser humano, o Deus generoso das religiões, o

Espírito criador num mundo em evolução, a Trindade: o Deus vivo do

amor. E afirma: «A fé cristã atual não crê num novo Deus, mas, ao

encontrar-se perante situações insólitas, busca a presença activa do Espí-

rito divino, precisamente implicado nelas…». «Ó beleza sempre antiga e

sempre nova, tarde Te amei», exclamava santo Agostinho7.»

Volvamos à invocação encantada e agradecida de Francisco. Nisso

consiste o mais verdadeiro da espiritualidade. É a expressão de uma

espiritualidade mística. Não é uma fé preponderantemente institucional,

uma ideologia ou uma moral, mas uma fé profundamente mística, que

está para além de todas as crenças, dos ritos e das normas. O cristianismo

‒ apesar de muitas resistências institucionais ‒ está a despedir-se da

————— 6 Ibid, 18. 7 Ibid, 17.

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figura moral e dogmática tradicional, e a deixar-se impulsionar a ser,

sobretudo, um caminho de espiritualidade mística. Necessitamos de uma

espiritualidade mística, que não é nutrida por fenómenos paranormais,

mas pela «experiência de Deus em todas as experiências» (R. Panikar, E.

Schillebeeckx), pela experiência do ser e do estar cada vez mais

profundamente enraizados no mistério de Deus, como mistério que nos

envolve e nos origina, nos fundamenta e nos regenera, nos ama terna-

mente e cura as feridas e conflitos ligados a todo o que conhecemos e

chamamos “amor”.

Não é o Deus da metafísica. Não é um Deus exterior e distante.

Não é “outro” em relação a nós, como um qualquer de nós, é “outro” em

relação aos outros. É “totalmente outro”, e, portanto, é “não-outro”

(Nicolau de Cusa). É o crucificado numa pequena ermida semidestruída

dos arredores de Assis. É o Deus no âmago da nossa temporalidade, da

nossa caducidade e finitude, da morte (E. Jüngel). Aí está Deus. O Deus

que é compaixão no âmago de toda a dor.

Sublinharia, todavia, outro rasgo ao qual a cultura actual é especial-

mente sensível e que considero muito verdadeiro, no sentido de revela-

dor, sugestivo, fecundo e transformador: o Deus da comunhão ecológica

de todos os seres. Deus está no coração do mundo, é o coração do

mundo e de todas as criaturas sem distinção hierárquica. Francisco intuiu-

-o, adiantando-se aos tempos. Ele viveu, como é natural, numa cosmo-

visão antropocêntrica, partilhou duma cultura e de uma teologia

profundamente geocêntrica e antropocêntrica, na qual o ser humano era

apresentado como cume da criação e o motivo último de toda a acção

divina e de toda a “história de salvação”. No entanto, para lá dessa

cosmovisão teológica, Francisco não se sentia superior às outras criatu-

ras, não se sentia coroa e centro da criação. Sentia-se simplesmente

irmão, profundamente irmão de todos os seres. Irmão do sol, do fogo, do

ar, da madre terra, do lobo, da morte que é irmã inseparável da vida. Diz-

-nos Celano que “abraçava os seres criados com um amor e um entu-

siasmo jamais vistos ” (2C 165,7) e que “a força do amor fizera-o irmão

de todas as criaturas” (2C 175,1).

Deus é a relação, a inter-relação, o respeito e o cuidado de tudo

quanto existe, desde as partículas sub-atómicas às galáxias em expansão.

É bom crer em Deus que está em toda a parte, o “Deus em quem vive-

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mos, nos movemos e existimos” (Act 17, 28). Um Deus que não é parte

do mundo nem a totalidade, mas que também não é algo ou alguém exte-

rior e separado dele. Um Deus que é a “Totalidade” na relação entre as

partes do todo (K. Scmitz-Morman), a “forma” que tudo informa, a

“alma” que tudo anima, a “memória” que tudo mantém vivo no coração

da vida.

Por conseguinte, uma espiritualidade do nosso tempo há-de ser

profundamente ecológica, uma espiritualidade ecológica da comunhão

universal, do respeito e do cuidado por todos os seres. Como escreve L.

Boff: «Quando falo de espiritualidade penso num novo sentido de ser,

num novo sonho colectivo, entrelaçado de vários infinitos, como a

cooperação, a solidariedade, o respeito por cada ser, o cuidado por toda

a vida, a harmonia da natureza, o amor à mãe terra, a pluralidade de

expressões do sagrado»8.

2. Ilumina as trevas do meu coração

Contrariando uma imagem bastante divulgada, Francisco padeceu

da amargura e do medo das trevas. Ele, jovem alegre e rico, de uma

cidade luminosa, situada numa colina voltada ao sol, frente a um vale

esplêndido… experimentou a angústia da escuridão. Viveu no corpo e na

alma o negrume da noite. “As trevas do meu coração”. E isso não

aconteceu só nos anos de busca vocacional, mas ao longo da sua vida,

sobretudo no final da vida, quando o seu corpo era uma chaga, e quando

a sua fraternidade se afastava daquilo que tinha sonhado, e muitos irmãos

o abandonavam.

Por isso, ora. Não deixa de reconhecer as suas trevas, olha as som-

bras de frente e aceita sentir o fundo da noite que o rodeia. E canta como

uma andorinha, até ao último suspiro.

Volvamos ao nosso tempo. A nossa época não se caracteriza pela

tranquilidade. Daniel Innerarity fala de uma “obscuridade irredutível” ou

do “fim das evidências e da visibilidade”, ou da “falta de perspectivas” da

realidade no seu conjunto e da sociedade em particular9. Efectivamente,

nada é seguro. E Innerarity tem razão, quando afirma: «Quem apresenta

————— 8 Crisis y exemplos-semilla, em Atrio, a 3/4/2009. 9 INNERARITY, D., La sociedad invisible, Espasa, Madrid 2004, introdução.

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o que diz como algo irrefutável e verdadeiro, ou não é sincero, ou não

diz nada de interessante10

».

O que pode oferecer a espiritualidade numa época de desorientação

como a nossa? Deverá pôr luz onde há escuridão. Mas não poderá fazê-

-lo à base de certezas doutrinais e morais. A espiritualidade autêntica não

oferece respostas seguras a todas as perguntas, a nenhuma pergunta. A

espiritualidade oferece, sim, a liberdade e a ousadia para voltar a questio-

nar todas as respostas, para continuar na busca, para prosseguir cami-

nhando na noite. A espiritualidade consiste em entrar confiadamente no

mistério que envolve toda a realidade e acolhe cada um como um ser

único. A espiritualidade consiste em nos sentirmos a salvo no meio da

noite, acompanhados na intempérie pela presença de Deus, como nuvem

obscura e luminosa. A espiritualidade consiste em caminhar em paz sem

ver nem saber, sem se deixar paralisar pelo medo e insegurança, sem que-

rer aferrar-se a certezas, sabendo-nos sustentados por Deus, apesar do

vazio.

A espiritualidade é saber guiar-se de noite «sem outra luz nem guia/

a não ser a que no coração ardia. De noite iremos, de noite, / pois para

encontrar a fonte/, só a sede nos ilumina» (Luis Rosales).

A espiritualidade partilha as obscuridades, as perplexidades e

inumeráveis fragilidades de todos os homens e mulheres. A espiritualidade

recebe alento, precisamente, das pessoas desalentadas que connosco

caminham, e deixa-se alumiar pela lâmpada preciosa que levam oculta no

seu interior as pessoas desorientadas, que partilham connosco a terra da

partida e a terra da chegada da nossa peregrinação. Desta maneira a

espiritualidade infunde alento aos homens e às mulheres de hoje num

mundo cada vez mais complexo, cada vez mais sensível às ameaças, cada

vez mais inseguro, cada vez com mais medo das trevas de tantas sombras

que o cercam.

Uma espiritualidade assim abre muralhas e fronteiras. Não permite

que nos convertamos em seitas. Cura-nos da amargura e impede que nos

consideremos superiores aos outros. Faz-nos humildes receptores da luz

que oferecemos. Abre-nos ao outro e ao consolo de Deus presente em

————— 10 Ibidem, 22

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todos e faz de nós paracletos e consoladores. Acende uma chamazinha de

luz e de calor nas trevas mais espessas do coração e é uma bênção.

3. Concede-me uma fé verdadeira, uma esperança firme

e um amor perfeita

Da invocação e do encanto, Francisco passa á suplica. Nós que nos

sentimos tão necessitados, compreendemos Francisco que pede que o

“ilumine” que lhe “dê”. Porque pede Francisco? Porque se sente radical-

mente pobre e indigente. Quis ser mendicante e viver de esmolas, depois

de dar de esmola tudo o que possuía e tudo o que poderia possuir no

futuro. Deus não é somente o que dá em todo aquele que dá, mas é tam-

bém o que pede em todo aquele que pede.

Francisco suplica a Deus. Toda a petição a Deus é o reconheci-

mento da nossa limitação, da consciência radical da nossa indigência.

Francisco reconhece que necessita de Deus. Ao pedir que Deus o ilumine,

reconhece as suas trevas interiores; ao pedir uma fé recta, esperança certa

e caridade perfeita, reconhece que se sente inseguro na sua fé, vacilante

na sua esperança, imperfeito no seu amor. Por isso pede.

Ora a Deus em forma de súplica humilde, de petição confiada. Tam-

bém aqui há que distinguir a forma e o sentido autêntico. O sentido

verdadeiro não se encerra no enunciado. O sentido profundo da petição

de Francisco ‒ nem é sequer a fé, a esperança e a caridade perfeita,

enquanto objecto de petição ‒ nem o facto de pedir como tal. Ao sentir-

-se radicalmente necessitado, exprime perante Deus uma confiança ainda

mais radical. E, ao exprimir perante Deus uma confiança radical, a sua

vida abre-se, para que Deus surja, como a terra se abre para que brotem

as plantas e os frutos. O essencial da petição é que a vida se abra para

Deus, e manifeste e opere a sua acção transformadora.

Que sentido tem a petição de um crente? Não pede para que Deus

conheça as nossas necessidades. Também não pede para que Deus faça o

que de outra forma não faria, ou para evitar algo que de outra forma

aconteceria. A oração não transforma Deus, mas o crente que reza. Reza-

mos para exprimir a nossa necessidade e a nossa confiança. Oramos para

acolher e agradecer. Oramos para nos transformarmos. Oramos para dei-

xar que Deus seja em nós e em todas as coisas. É como se Deus estivesse

pedindo em nós e nós sentirmos que não podemos deixar de atender a

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chamada do Grande Esmoler. Recordemos as comovedoras orações de

Etty Hillesum, nas quais ela nada pede, antes promete humildemente aju-

dar Deus, prisioneiro em todos os corações e em todos os cárceres, como

aqueles infelizes prisioneiros condenados a Auschwitz: “Tu, meu Deus,

não podes ajudar-nos. Eu te ajudarei, Senhor, e assim me ajudarei».

Quando ajudamos a Deus, deixamos que Deus nos ajuda a partir de nós

mesmos, pois nos tornamos providência de Deus para nós e para todas as

criaturas.

Concede-me uma fé verdadeira (reta). Francisco viveu sempre

preocupado com a fé recta, com ortodoxia. Isso percebe-se a partir da

situação social e eclesial do seu tempo. Foram tempos de grandes muta-

ções culturais e sociais, tempo de inquietação e insegurança, de necessi-

dade de reformas a todos os níveis. Eram frequentes os pregadores

ambulantes que apelavam a reformas. Os cátaros tinham-se instalado no

Vale de Espoleto, perto de Assis. E havia muitos outros movimentos,

alguns na fronteira da ortodoxia e do sistema vigente, e outros clara-

mente condenados como hereges, como os cátaros.

A quem seguir? Francisco, por um lado, não se identificava em

absoluto com a instituição eclesial no seu conjunto: uma Igreja clerical,

hierárquica, poderosa, ora aliada, ora em guerra com o imperador. Apesar

disso, Francisco não quer, nem pode distanciar-se no mínimo que seja

daquela estrutura eclesial e teológica: não questione a “doutrina oficial”,

nem o clero, nem a hierarquia, apesar de muitos e flagrantes abusos.

Pensa e está intimamente convencido de que a fé no seguimento de Jesus

se joga na fidelidade aos sacerdotes, por mais indignos que sejam. Decidi-

damente, ele busca outra coisa, mas a sua mentalidade não lhe permite

libertar-se daquelas formas. E parece identificar fidelidade à Igreja com

fidelidade ao sistema clerical, a fé com a doutrina dogmática, o segui-

mento de Jesus com a doutrina sacramental tradicional.

Hoje, o ambiente cultural e espiritual é diferente do de Francisco.

Muita gente, dentro e fora da Igreja cristã, começa a tomar consciência ‒

uma consciência colectiva ‒ de que a fé não se refere a crenças dogmáti-

cas, à prática ritual dos sacramentos, à adesão institucional a um sistema

clerical. Ao contrário de Francisco podemos e devemos pensar que a

“rectidão da fé” não depende da sintonia mental com umas fórmulas dog-

máticas. A fé não é reta, porque se acredita firmemente em todos os

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dogmas, porque mantém umas crenças inabaláveis ou porque se resume a

umas fórmulas seguras. Não é aqui que se joga a fé, a rectidão da fé. Não

é a este nível que se joga a glória de Deus. A fé é recta quando o coração

confia, desnudo e livre, quando se abandona como criança nos braços da

mãe, quando não se tem necessidade de saber nem de explicar nada,

quando não se teme pensar com liberdade, quando a confiança profunda

permite duvidar de tudo.

Não se trata de incorrer num relativismo superficial e irresponsável,

mas de apostarmos verdadeiramente na confiança vital profunda, para

além de todo o sistema de crenças e certezas. “A fé não tem objecto”,

como insiste o sábio e místico R. Pannikar. Isto é: o objecto da fé não são

as ideias ou o significado das fórmulas da fé. O objecto da fé é Deus

como mistério para além das palavras, das imagens e das fórmulas. A fé

recta consiste em aprender a confiar em Deus, mesmo caminhando no

vale das trevas. Por isso, como bem escreveu E. Biser, já há muitos anos,

«a verdadeira antítese da fé não é a incredulidade, mas o medo»11

. A

heresia autêntica e perigosa não tem a ver com a doutrina, mas com a

confiança. A pior heresia é a “heresia emocional”, isto é, a falta de

alegria, apesar de todas as trevas.

É para aqui que aponta a base mística de todas as religiões. É isso

que nos une, para além dos credos e dos códigos. Nisto consiste a

“espiritualidade integral” de que fala Jäger: «O termo espiritualidade inte-

gral refere-se à busca do fundo comum, que está subjacente em todos os

caminhos espirituais autênticos, num esforço de encontrar e defender

tudo o que nos une, eliminando as barreiras e indo ao âmago da prática,

com a diversidade que esta apresenta. Este centro, que é base comum, é a

experiência mística que se deve desenvolver como perspectiva em todos

os aspectos e níveis da existência humana. Por isso é espiritualidade inte-

gral, que não substitui nem acrescenta nada aos diferentes caminhos,

antes realiza um esforço de união e de encontro.

Propomos uma nova forma de ver as buscas essenciais do ser

humano. Partimos de uma perspectiva não dogmática, de aceitação e

tolerância do que é autêntico dos diferentes caminhos e tradições espiri-

tuais, e que se pode incorporar na prática de todos os níveis da vida

————— 11 BISER, E. Pronóstico de la fe, Herder, Barcelona 1994

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humana: corpo, energia, emoções, espírito e mente, como um todo único

que somos, numa convergência transconfessional que chamamos

espiritualidade integral. Para isso temos de reavaliar os pressupostos de

base. Vivemos um momento excepcional no Ocidente. É um momento de

crise geracional, que muitos classificaram como mudança epocal. Assisti-

mos a novos fundamentalismos que se misturam nas culturas, em busca

de confrontação, dando lugar a dogmas e a bloqueios culturais»12

.

“Esperança certa”. Pode a esperança ser segura? Parece um con-

trassenso. E é um contrassenso. A certeza da esperança não é da mesma

ordem das nossas certezas ordinárias. Não é a certeza de que algo vai

acontecer num futuro mais ou menos longínquo. É antes a certeza ou a

decisão ou a determinação da atitude vital, o compromisso com o futuro.

Que futuro? O futuro que Deus é para a nossa vida, e que nós devemos

encarnar, actualizar e antecipar essa presença. É uma forma de viver que

abre sempre uma brecha de novidade no que é antigo, é uma antecipação

do futuro que torna presente aquilo que esperamos.

Não se trata de ser optimista ou pessimista a respeito do hipotético

futuro mais ou menos incerto. Trata-se sim de «recuperar o futuro» na

nossa forma de ver e de viver o presente13

. Não podemos decidir hoje

sem pensar no futuro, que queremos deixar à próxima geração humana e

às gerações de todas as espécies. Não vivemos numa época de optimismo

com respeito ao futuro. Às vezes parece até que o futuro desaparece do

horizonte do presente, ele também ameaçado.

Francisco de Assis tinha um temperamento optimista, mas na sua

vida não faltaram circunstâncias que purificaram o seu optimismo. Em

qualquer caso, a sua esperança não consistiu no seu optimismo, mas na

forma inovadora de vida, criadora de futuro.

A espiritualidade é inseparável desta atitude de esperança antecipa-

dora. Esta espiritualidade e esta esperança não nos fazem optimistas, mas

mais fiéis e confiantes. A fé não nos dá um suplemento de segurança em

relação ao futuro, antes nos impele a criá-lo. Esperar é isto. Esperar é

————— 12 Cf. SAN JOSÉ, P., «Espiritualidad integral. Antecedentes y consecuencias», em

Atrio.com (Maio de 1009). 13 Cf. INNERARTTY, D., recuperar el porvenir, em El País (17-05-2009)

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fazer que chegue o futuro que desejamos. A esperança certa é encarregar-

-se do futuro com determinação.

Esta determinação requer uma grande confiança e uma grande

generosidade. A generosidade que se apoia na confiança e a aumenta, a

confiança que nasce da generosidade e a suscita. Aí está a sabedoria. A

sabedoria da vida que Diego Garcia exprime, citando a frase lapidar gra-

vada no palácio Rajoy de Santiago de Compostela: «Trabalha como se

vivesses sempre, vive como se morresses amanhã». É assim a sabedoria

da esperança.

Nesta esperança, que é confiança e determinação, não conta o

êxito. Não importa que fracassemos na nossa aposta. Também Jesus

fracassou e sabia que ia fracassar, mas seguiu em frente, «esperando con-

tra toda a esperança». E o essencial é que não esperava nenhuma

intervenção milagrosa de Deus à última hora, que mudasse a situação. O

essencial é que Jesus se manteve fiel ao seu compromisso pelo reino dos

Céus até ao fim. Mesmo que fracassasse a causa era grande e merecia a

pena; talvez a causa exigisse o fracasso como aconteceu com todos os

mártires. Os mártires fracassaram? Jesus fracassou? A fé pascal afirma

que Deus está com todos os mártires e que todos os mártires estão em

Deus, que Deus esteve com Jesus até ao fim e “para além” do fim, que

Jesus vive em Deus e que, apesar do aparente fracasso, a bondade e a

vida são mais fortes que o sinédrio e o império, porque Deus é vida e

bondade.

«amor perfeita». O que conta é a caridade, o amor. (Caritas) é a

tradução latina do ágape grego, enquanto amor traduz mais a filia grega;

assim, caridade foi entendido como “amor superior” e tem uma conota-

ção mais religiosa que amor, mas podemos entendê-los perfeitamente

como sinónimos. Apesar de serem termos desgastados pelo uso e cheios

de equívocos, não podemos renunciar a eles. Somos o que amamos.

Somos enquanto amamos. Todas as grandes mulheres e homens espiri-

tuais de todos os tempos, independentemente dos seus compromissos

religiosos, souberam isso. Jesus sabia-o e ensinou-o. Francisco também o

soube e ensinou.

O mais importante é a caridade ou o amor, é sentir as feridas do

outro como a sua própria ferida, é sentir-se responsável pelo destino do

outro a partir da compaixão, é cuidar do outro ‒ de toda a criatura ‒ por-

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que tem necessidade de mim. E porque eu não posso ser sem o outro;

não posso ser feliz sem o amar. E o outro não existe sem mim, sem que

eu o ame e sem que o outro me ame também.

A caridade, como no fundo também a ética, só pode ser concreta: é

deixar-me atrair pelo outro, por toda a criatura, pela sua maravilha e

pelas feridas que tem; é unir o meu destino ao seu, porque quero, porque

gosto, porque quero e gosto ( e muitas vezes mesmo que não goste, pois

o nosso gosto ainda não é totalmente divino); é fazer-me próximo, sentir-

-me companheiro e samaritano de quem necessita de mim, alegrar-me

com aquele que está alegre e compadecer-me de toda a criatura que

sofre.

A caridade ou o amor não é um comportamento que simplesmente

responde a um imperativo ético ou a razões filosóficas ou a sublimes

razões teológicas (o valor da pessoa, a semelhança de Deus…). Não. A

caridade ou o amor é uma praxis que se inspira na presença carnal do

outro com a sua graça e as suas feridas. A razão é simplesmente o outro

com a sua realidade concreta, a sua indigência.

Foi assim o comportamento de Jesus. Foi bom, simplesmente. Foi

bom de forma criativa. A “bondade criativa” foi a característica de Jesus

(J.A.Marina). Livre e criativa foi também a bondade de Francisco.

Assim ora Francisco. Assim pede. Eu não sei se a oração de petição

tem sentido. O sentido, em qualquer caso, não está tanto na petição como

tal, mas na atitude do que pede. Não pedimos a um Deus passivo e

arbitrário que intervenha. A forma de petição sugere que Deus pode dar

ou não dar: pode dar fé ou não dar, dar esperança ou negá-la, dar-nos

caridade ou negá-la. Mas Deus é pura e plena doação e graça, e não pode

não dar-se, como nós não podemos deixar de respirar. Assim, Deus

revela-se em tudo, Deus actua em tudo, dá-se totalmente em tudo. Ele é

dynamis que late em toda a realidade. É a presença operativa, criadora,

transformadora, que habita tudo quanto é, desde as partículas mais ínfi-

mas até às galáxias. E a realidade, sempre aberta, inacabada e inter-

-relacionada, necessita que a presença de Deus emirja e se realize desde

as suas entranhas.

Que é orar? Orar não é pedir, mas expressar perante Deus, em

Deus, o nosso ser mais profundo com palavras ou silêncio. Orar é

aprofundar a consciência de que existimos em Deus e de que Deus é o

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alento mais profundo do nosso ser. Orar é deixar que o coração se encha

de confiança, de esperança, se comova de caridade e de ternura.

Francisco orava assim, apesar da forma de petição que usava na sua

oração. A oração transformou-o, foi a forma de deixar que Deus o trans-

formasse por dentro, foi a forma de se fazer cada vez mais livre e divino,

mais confiante e bom.

4. Sentido e conhecimento

Ao lado das três virtudes teologais, é sugestivo que Francisco peça

sentido e conhecimento. Pede luz interior para discernir. Luz para distin-

guir o que Deus quer. Mas a vontade de Deus não é um projecto que

Deus tenha escrito, mas um caminho que vamos fazendo entre sombras e

escolhos. Deus não dita nada desde fora. Deus vai-se abrindo desde o

coração da criatura, desde o coração do átomo e de todo o organismo, de

todo o ser humano. Deus abre-se como uma semente se abre desde as

entranhas da terra, atraído pela luz e empurrada por um impulso miste-

rioso. Quando a vida cresce, é Deus que cresce na vida.

Para isso, é preciso que se desperte o sentido e o conhecimento.

Hoje diríamos “discernimento”. Francisco não se cansa de insistir nisto.

É muito actual esta insistência de Francisco no discernimento inte-

rior. Diz-se que vivemos em tempo de gnose. É verdade que muitos

movimentos da “nova espiritualidade” apresentam elementos “gnósticos”:

o anseio de interioridade, o acento no despertar da consciência profunda,

a busca de libertação através de uma maneira nova de se olhar e de olhar

toda a realidade… A gnose foi um poderoso movimento nos primeiros

anos do cristianismo, que a Igreja não soube integrar e que reprimiu com

afinco como a maior ameaça da fé. Mais ou menos reprimida, a gnose

sempre esteve presente no cristianismo, particularmente nas correntes

místicas. Manifestou-se poderosamente na Idade Média, no movimento

cátaro ‒ violentamente perseguido e afogado em sangue ‒ e em outros

movimentos da reforma espiritual do tempo de S. Francisco. O gnosti-

cismo volta hoje com força e contém muitas intuições válidas para a

espiritualidade do século XXI. Seria mau reprimi-las como gnósticas.

Podemos compreender nessa linha a insistência de Francisco no

sentido e conhecimento interior. O sentido e o conhecimento como luz

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interior que nos permite sentir o alento divino em nós e em todas as

criaturas. O sentido e o conhecimento que nos permite confiar profunda-

mente em nós, no próximo e em todos os seres.

O sentido e o conhecimento não têm a ver com uma interioridade

espiritualista, mas com uma sensibilidade integral. De maneira especial,

tem a ver com a espiritualidade de todos os sentidos. É importante que

curemos do maniqueísmo que maltratou em nós a sensibilidade, a

sensualidade, e todos os sentidos. A espiritualidade tem como meta

«libertar o corpo das repressões da alma, das repressões da moral, e das

humilhações devidas ao ódio a nós mesmos, para conseguir a verdadeira

saúde»14

. O conhecer e o sentir são inseparáveis. E não somente a nível

psicológico e gnoseológico, mas também a nível teológico. Deus sente

em todos os sentidos e todos os sentidos sentem a Deus em todas as coi-

sas: a vista vê Deus em todas as formas, o ouvido ouve Deus em todos os

sons e todos os silêncios, o olfacto percebe Deus em todos os aromas, o

tacto toca Deus em todas as carícias, o gosto saboreia Deus em todos os

sabores da vida. A espiritualidade há-de ser, pois, necessariamente uma

espiritualidade do corpo»15

. Amamos como corpo, confiamos como

corpo, oramos como corpo. Para sermos espirituais necessitamos de rela-

xamento, para nos libertar das tensões físicas e mentais, e respirar bem,

sentirmos bem o nosso corpo, o que não quer dizer que tenhamos de ter

um corpo perfeito ou de gozar de uma saúde perfeita.

Ana Mendiola, uma mulher basca, professora de dança, longe da

Igreja, mas profundamente espiritual, escreve: «Neste caminhar, busquei

os conceitos para lhes despertar a consciência da natureza dos elementos,

percebendo que cada elemento ia ligado a uma força que o nutre, for-

mando parte do nosso organismo vital, e ligado ao universo como parte

de um Todo. Procurei, assim, despertar uma nova consciência e

compreensão de nós mesmos, e desse espaço supostamente vazio que é o

nosso sentir, (o visível e o invisível). Tendo em conta o tempo que nos é

dado viver, onde a produtividade parece ser o único objectivo, onde o

ócio e o lazer nos amolecem, tive necessidade de buscar essa mudança,

essa actividade dos nossos sentidos como renovação destes em redes

————— 14 MOLTMANN, J., El Espíritu de la vida. Sígueme, Salamanca 1998, p. 110. 15 MOLTMANN, J., El Espírito Santo y la teologia de la vida. Sígueme, Salamanca

2000, p. 102

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activas e despertas para uma nova consciência colectiva; cada sentido

leva-nos à harmonia: a minha visão, o meu tacto, o meu ouvido, o meu

gosto, o meu olfacto, na medida em que estão sensibilizados, levam-me a

olhar o mundo com outros olhos, descobrindo e elevando a beleza inte-

rior de cada ser humano»16

.

Estas palavras têm pleno sentido para a nossa espiritualidade.

4. Para cumprir o sagrado e encargo (mandamento)

Também é significativo que Francisco termine a oração falando em

cumprir e em mandamento (encargo). Quem compreende mal estes ter-

mos cai muitas vezes no moralismo. Naturalmente, Francisco está

condicionado pelo vocabulário e pensamento da teologia moral do seu

tempo, pela visão pessimista do mundo e do corpo, pela espiritualidade

moralista. Mas a visão de Francisco não é pessimista. A sua espirituali-

dade não é, nada moralista.

Cumprir é muito mais que mera praxis. Na verdade é uma praxis,

mas uma praxis que nasce de dentro pelo sentido e conhecimento, pela

sensibilidade, pela gratuidade, pela ternura e vontade de cuidar. Podemos

traduzir por viver. Trata-se de viver. Cumprir não é acatar os mandamen-

tos, observar as leis eclesiásticas, submeter-se a uma ordem. Francisco foi

uma pessoa extremamente livre, liberta por dentro. Ele que tanto insistia

na obediência, não se deixou atar nem sequer pela fraternidade criada por

ele. Passou grande parte da sua vida na solidão, guiado pela luz interior,

muitas vezes vacilante. Cumprir é ser fiel a essa luz interior. É viver no

querer de Deus a partir do sentido e do conhecimento.

O mandamento de Deus ‒ Francisco usa o singular e não o plural

“mandamentos” ‒ é o mandamento da vida, é o mandamento do Evange-

lho, enquanto boa notícia. O cristianismo não é ‒ nenhuma religião o é no

fundo ‒ um conjunto de crenças, nem sequer um código de conduta. A

verdade do Evangelho é a vida em todas as suas expressões. A vida

necessita de suportes, mas aspira a ser livre, para se dar totalmente.

Não se trata de um mandamento que vem de fora. Certamente que

a alteridade é indubitável. Ninguém inventa a sua própria luz. A luz vem-

-nos de fora. E vem sempre através da interpelação do outro, do outro

————— 16 Cf. revista Hemen 22 (2009).

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quando está alegre e do outro quando sofre. Mas esse chamamento deve-

-nos prender por dentro. De outra forma domina-nos e fecha-nos e vai-

-nos levando à morte lenta, vai-se extinguindo em nós o espírito, o alento

vital. O mandamento é a chamada que nos vem do vivente, do ferido, do

outro, do que necessita o meu cuidado. Esse chamamento deve-se enrai-

zar por dentro em formas de compaixão, convertendo-se em impulso que

brota do interior. Deus não manda nada. Deus não é um senhor que

impõe leis ou pede contas. O chamamento de Deus não é mais que a lei

vital, a lei da vida que quer desenvolver-se e ser feliz.

No fundo, para além dos seus esquemas teológicos mais ou menos

moralistas, é isso a que Francisco chama “santo e veraz mandamento”.

Dois adjectivos. Que significa santo. Não significa moralmente intocável,

mas verdadeiramente são, livre, generoso, aberto, confiante. Santo é são.

Santo é feliz. Só a bondade pode ser feliz. Só a bondade pode ser santa,

boa. Só assim o mandamento é verdadeiro, verídico. A verdade não con-

siste na adequação de uma ideia ou de uma conduta com uma norma

imutável. A verdade é criativa, é um caminho de libertação e de graça.

Assim a oração termina com a palavra mandamento. Mas a última

palavra só adquire sentido à luz da primeira expressão: “Ó”. De outra

forma o mandamento converte-se em jugo. O mandamento de Deus,

vem-nos através do rosto do necessitado, mas surge dentro de nós mes-

mos, como um impulso de vida que acompanha a admiração, a gratui-

dade, a compaixão, a confiança livre. Assim a vida comprometida

converte-se na outra face do encanto, da admiração mística. A mística

torna-se prática, e toda a praxis se torna mística (dizei com obras o amor

que vos vai no coração, escreveu santa Clara no seu Testamento).

É esta a espiritualidade que viveu Jesus e que não cessa de renovar

a história. Essa a espiritualidade que viveu Francisco nos alvores de uma

nova cultura. É esta a espiritualidade que estamos chamados a viver hoje

num mundo em profunda transformação, à procura de respiração.

Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

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FRANCISCO E CLARA,

MASCULINO/FEMININO EM ASSIS

DURANTE O SÉCULO XIII

Jacques Dalarun, ofm

*

————— * Artigo publicado em Èvangile Aujourd’hui, n. 215 (2007) 27-38, com o título

“François et Claire, Masculin/Féminin à Assise au XII siècle”.

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FRANCISCO E CLARA, MASCULINO/FEMININO EM ASSIS

DURANTE O SÉCULO XIII

Entre 1210 e 1212, Assis foi palco de uma série de encontros pri-

vados, secretos, que, no entanto, teriam grandes repercussões na história

da santidade cristã17

. O jovem teria cerca de trinta anos e a jovem entre

dezasseis e dezoito anos. Ela pertencia à classe das famílias nobres que

viviam perto da catedral de São Rufino. Ele, filho de um comerciante de

panos, procedia do povo.

O testemunho mais completo sobre este encontro é-nos dado por

Beatriz, irmã de santa Clara, quando depôs para o Processo de Canoniza-

ção, em 1255.

“A Irmã Beatriz, filha de Favarone, religiosa do Mosteiro de São

Damião, declarou sob juramento que foi irmã carnal de madona Clara,

de santa memória, cuja vida foi quase angelical, porque foi virgem

durante toda a vida. E as suas obras de santidade eram tão evidentes

que a fama das suas virtudes se divulgou entre todos os que a

conheciam.

Disse depois que, conhecendo São Francisco a fama da sua santi-

dade, se encontrou com ela várias vezes para lhe falar do Evangelho. E

de tal forma foi tocada pela mensagem, que renunciou ao mundo e a

todas as coisas terrenas, entregando-se ao serviço do Senhor logo que

foi possível.

Vendeu toda a sua herança e parte da herança da testemunha, e

deu tudo aos pobres. ————— 17 Cf. LCL 5-6

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Em seguida, São Francisco cortou-lhe os cabelos diante do altar

da igreja da Virgem Maria, chamada da Porciúncula, e levou-a à igreja

de São Paulo das Abadessas. Foi aí que os parentes a procuraram para

a levar. Mas Clara agarrou-se às toalhas do altar e, mostrando-lhes os

cabelos cortados, não cedeu aos seus intentos. Continuou ali, não

regressando com eles a casa. Mais tarde foi levada por São Francisco,

Frei Filipe e Frei Bernardo à igreja de Santo Ângelo de Panzo. Foi dali

que saiu para a igreja de São Damião, lugar onde o Senhor lhe deu

mais irmãs, que se colocaram sob a sua tutela”18

.

ALGUMAS QUESTÕES

Esta relação entre Francisco e Clara excitou alguns espíritos. Nos

fins do século XIX, o grande historiador do franciscanismo Paulo Saba-

tier não passou sem celebrar, numa exaltação romântica, os “amores de

Francisco e Clara”. Facilmente reduzimos o que é singular ao comum, o

que é raro ao conhecido, o que é desconcertante ao tranquilizador. Qual

foi, exactamente, a natureza da relação que, sem dúvida, tiveram os dois

santos de Assis? Duma maneira geral, que visão tinha Francisco das

mulheres e que visão tinha Clara dos homens? De que maneira a sua

identidade sexuada ‒ entendida essencialmente como uma construção

cultural da época ‒ influenciou a sua maneira de viver a exigência evan-

gélica que ambos se propuseram seguir?

Fundado nas fontes dignas de confiança, sem preconceitos, tentarei

dar resposta a estas questões. Em primeiro lugar terei em conta os

Escritos de Francisco e as Legendas mais antigas que lhe foram dedica-

das, tomando nota das citações que aí se fazem sobre Clara, as mulheres,

o feminino e os movimentos feministas da época. Depois farei o mesmo

nas fontes relativas a Clara. Assim podemos delimitar com mais exactidão

o que une e o que distingue os dois santos de Assis.

————— 18

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OS ESCRITOS DE FRANCISCO

Ao ler os escritos de Francisco, apesar de tudo, relativamente abun-

dantes e onde até encontramos cartas dirigidas a dois dos seus irmãos,

Leão e António de Lisboa, surpreende-nos que não encontremos

nenhuma carta dirigida a Clara. Ficar por esta observação, verificar só

este silêncio, não seria bom método. É possível que algumas cartas se

tenham extraviado. Acresce que não é dado nenhum tratamento especial

às irmãs de Clara, às senhoras pobres de S. Damião. Tudo se resume a

poucas linhas escritas pelo pai espiritual e incluídas na Regra de Clara, e

um poema no dialecto da Úmbria, o Audite poverella, de autenticidade

discutível, que parece ter sido composto para elas.

As legendas mais antigas e mais fiáveis que narram a vida de Fran-

cisco não são muito mais prolixas. As Legendas de Celano ‒ Primeira

Legenda, Segunda Legenda e Tratado de Milagres ‒ o Anónimo Peru-

sino, a Legenda dos Três Companheiros e a Legenda Perusina, só por

três vezes evocam a virgem de Assis.

AS DATAS

Como interpretar tanta discrição em relação a santa Clara?

Em primeiro lugar pelas datas. Francisco nasce em 1182, em 1206

distribui os bens pelos pobres e converte-se, morre em 1226 e é canoni-

zado em 1228. Clara nasce em 1194, entra na religião em 1212 e retira-se

para S. Damião, morre em 1253 e é canonizada em 1255.

Já é notável que Tomás de Celano, na Legenda Primeira de 1228 se

tenha referido às virtudes de uma jovem de trinta e quatro anos, ainda na

força da vida. Na realidade, Clara compartilhou alguns dias da vida de

Francisco, mantém uma relação de quinze anos com ele e recorda durante

vinte e seis anos os ensinamentos de um defunto que é santo. Além disso,

temos de constatar que Francisco em 1226, segundo as fontes conserva-

das, não tinha escrito uma palavra a Clara nem sobre Clara, e ela não

tinha escrito nem uma palavra dirigida a ele, ou sobre ele…

Em relação às mulheres em geral, os estratos sociais em que o

Poverello se movia, colocavam-no em situações contraditórias. Precisa-

mos de paciência para as compreender e desatar os nós e ordená-las

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cronologicamente, tanto através dos Escritos como através das Legendas

que lhe foram dedicadas. Não se podem deslindar todas as incoerências

detectadas ‒ quando se trata de mulheres os homens entram sempre em

contradições. Além disso, devemos ter em conta que muitas destas con-

tradições, não reflectem sempre o pensamento de Francisco. Muitas

vezes revelam a opinião dos autores das várias Legendas, que, ao privile-

giar um certo ponto de vista, embora pretendam evidenciar a experiência

do fundador, às vezes também se servem da imagem do fundador para

tomar partido na disputa entre as várias tendências, que se combatiam

numa determinada época.

A CULTURA CORTESÃ

As quatro Legendas quando recordam os seus sonhos de cavaleiro,

os de um snob em busca de promoção social, colocavam em primeiro

lugar as solidariedades e os afectos do filho do comerciante de Assis. No

Anónimo Perusino e na Legenda dos Três Companheiros, conservaram a

recordação mais viva: eram um grupo de soldados que assustavam mães

e filhas.

Os vestígios da cultura cortesã do jogral de Deus, dos quais a

Legenda Perusina é a mais fiel depositário, incitavam-no a honrar a

mulher à distância, a fazer dela a sua dama para celebrar melhor, segundo

as normas do modelo cortesão, o amor do Senhor. Assim, a Virgem

pobre encontra-se no coração da sua devoção, seguindo-se dos modelos

terrestres, as senhoras pobres de S. Damião. O feminino era valorado por

Francisco em alegorias morais, tais como a da dama Pobreza, homena-

gem rendida à experiência de pobreza extrema.

AS GRANDES FIGURAS EVANGÉLICAS

Com efeito, o Evangelho tinha-se enxertado no modelo cortesão,

cujo descobrimento foi para Francisco uma revelação fulgurante, tal

como recorda no seu Testamento, nos últimos anos de sua vida. As gran-

des figuras evangélicas não são ignoradas: Maria certamente, mas mais

ainda Madalena, a pecadora arrependida, amada com ternura por Cristo e

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na qual Francisco encontra o reflexo na nobre viúva romana Jacoba de

Settesoli. A Legenda Perusina19

relata uma cena de uma grande densi-

dade dramática, o “privilégio de amor”, de que gozou a viúva de Roma,

até ao momento de sua morte, muito mais do que a virgem de Assis.

Mas, porque será que chama a esta mulher “Frei Jacoba”. Será porque os

seus afectos mais íntimos só poderiam ser dirigidas a um irmão? Ou será

que os companheiros, ao compilaram as memórias, vinte anos depois de

sua morte, reprovassem de tal forma aquela amizade tão afectuosa que o

fundador tinha por uma mulher, que sentiram a obrigação de lhe negar a

feminilidade?

A literatura cortesã e os ensinamentos do Evangelho abriam ao

penitente perspectivas originais. O Evangelho mostrava-lhes o caminho

dos primeiros transformados em últimos, dos ricos escolhendo a pobreza

para aceder a riquezas mais sublimes. Dos maiores feitos menores para

crescer por causa da sua humilhação, dos chefes que aceitam governar

numa atitude de serviço saudável. Os escritos de Francisco espelham este

mundo de valores totalmente invertidos. Tentava-se naturalmente seguir

de perto os passos do Altíssimo, que se fez Baixíssimo, para usar o título

do livro admirável de Christian Bobin. Francisco, contemporâneo dos

romances de Béroul e de Chrétien de Troyes, canta em francês para cele-

brar os louvores de Deus ou simplesmente para dar curso à sua alegria.

Na Legenda Perusina compara seus irmãos com os valentes cavaleiros de

Carlos Magno20

. Além disso, Francisco ouviu narrar a história de Tristão

que, disfarçado de leproso, de mendigo, duas das figuras que lhe eram

particularmente queridas, não vacilou em fazer-se cavaleiro da sua dama.

Isso causou escândalo, porque, por detrás da figura literária, Béroul faz

um discurso sub-reptício sobre a transgressão das posturas eróticas.

UM MOVIMENTO FEMINISTA

Na obra do “novo louco” de Assis, nota-se o início de um movi-

mento feminista; não é a Legenda Perusina que foca esse aspecto, mas o

Anónimo Perusino e a Legenda dos Três Companheiros, fiéis testemu-

————— 19 Cf. LP 101. 20 Cf. LP 72.

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nhas deste sistema em que grupos de mulheres, guerreiras ou religiosas,

afugentam as mulheres e só se queriam entre varões.

A imagem da alma pecadora, simbolizada por Madalena nos escri-

tos dos Padres, mas para falar da parte feminina presente em todo o

homem, que é praticamente a sua alma, aliás pecadora, Francisco faz-se

de mulher para aceder à redenção. Também para imitar, evidentemente

em menor escala, a este Deus que não vacilou em fazer-se homem, faz-se

mulher. Mulier haec erat Franciscus21

, vê-se obrigado a explicar o pobre

Tomás de Celano para interpretar uma parábola onde uma mulher pobre

tomada pelo rei no deserto e que depois envia os seus filhos à corte.

Francisco é uma mulher, porque é uma mãe: a pobreza grávida do

rei, a mãe galinha que junta todos os pintainhos debaixo de suas asas para

transmitir melhor a protecção da nossa mãe Igreja22

. Ao contrário da

figura paterna personificada em Pedro Bernardone, que favorece uma

interpretação esmagadora, é o doce governo da mãe o que proporciona a

Francisco a resposta à pergunta que o atormenta, desde que compreen-

deu que não podia rejeitar o cuidado da comunidade que Deus fez crescer

à sua volta: como passar da intuição á instituição, segundo o expressivo

título de Théophile Desbonnests, como dirigir sem esmagar, governar

sem dominar, aceitar os cargos rejeitando o poder, o que é extremamente

aborrecido. No italiano de Francisco, “governar” também é servir, socor-

rer as necessidades dos outros, como a mãe governa os seus filhos, como

“nossa irmã a madre terra que nos sustenta e governa”. E quando o

Poverello fala do feminino, ou quando escreve aos seus irmãos mais que-

ridos, como a Leão, “como uma mãe”, não fala de mulheres reais, antes

usa uma alegoria que diz respeito a ele mesmo.

A CULTURA MONÁSTICA

O estrato mais próximo da cultura de Francisco, aquele com o qual

mais de perto teve de se confrontar para elaborar os aspectos da sua fra-

ternidade, que pouco a pouco se foi transformando em ordem, é a cultura

monástica, a regra beneditina, e sobretudo as Vidas dos Padres do

deserto. O Anónimo Perusino e a Legenda dos Três Companheiros

————— 21 Cf. 2C 16-17; TC 50-51; AP 35. 22 Cf. 2C 24; TC 63.

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dizem-nos que os irmãos faziam a sua leitura no capítulo. Aqui a lição é

simples e brutal: desconfiança das mulheres, para quem se pr opõe

governar uma comunidade de homens. Mesmo uma paciência de

arqueólogo não descobre nas versões sucessivas da regra de Francisco,

tanto na primeira como na segunda, os vestígios de um tempo ditoso e

reprimido em que os irmãos e as irmãs menores vivessem a mesma itine-

rância, levassem a cabo a mesma busca. As mulheres foram colocadas

muito rapidamente em S. Damião, inofensivas, quais damas distantes,

excluídas da fraternidade.

E quando uma vez, muito contra sua von tade, como nos diz a

Segunda Legenda de Celano23

, Francisco decide pregar às irmãs de S.

Damião que ansiavam pela sua palavra vivificante, entra sem pronunciar

palavra perante a assembleia e, sem sequer olhar para elas, desenha um

círculo de cinza entre elas e ele, deita o resto da cinza sobre a cabeça,

entoa o Miserere e sai, deixando-as estupefactas. Depois da morte de

Francisco, só alguns dos primeiros companheiros, Ângelo, Leão, Juní-

pero, Filipe Longo, Elias, guardavam, como num jardim secreto, a nos-

talgia do tempo em que irmãos e irmãs, homens e mulheres, tinham um

único espírito, pulsavam com o mesmo coração.

OS ESCRITOS DE CLARA

Clara também guardava no seu interior a recordação deste amanhe-

cer. Nos seus escritos, muito menos abundantes que os de Francisco, cita

numerosas vezes o seu pai espiritual: cita-o por treze vezes, se tomarmos

em conta as obras consideradas autênticas, descontando o Testamento

onde o nome de Francisco aparece em cada parágrafo, quase como uma

jaculatória. Poderíamos pensar na imagem do par místico, ou até na

imagem da virgem abandonada sonhando com o galã insensível. Mas

observando bem, vemos que Clara utiliza o nome de Francisco com

discernimento, melhor dito, com habilidade.

Na terceira carta, do ano 1228, dirigida a Inês de Praga, filha do rei

da Boémia, convertida ao mesmo estilo de vida religiosa de São Damião,

Clara cita Francisco por duas vezes, uma atrás da outra. Nas duas primei-————— 23 Cf. 2C 207.

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ras cartas, Clara não teve necessidade de se socorrer da autoridade de

Francisco para guiar esta filha de rei nos progressos da sua vida espiri-

tual. Clara refere-se a Francisco unicamente para esclarecer uma questão

relacionada com os dias de festa, nos quais era permitido suavizar o jejum

seguido pelas irmãs, tanto em Assis como em Praga. Não se sabe bem se

esta carta foi escrita pouco tempo depois de Gregório IX tentar estender

à Ordem de São Damião o rigor drástico dos jejuns cistercienses. Evocar

a Francisco nesta situação concreta, é usá-lo como contrapeso à autori-

dade pontifícia para melhor afirmar a originalidade de Clara.

Na sua regra, redigida nos últimos anos de sua vida e aprovada in

extremis por Inocêncio IV, em 1253, a virgem de Assis invoca o seu pai

espiritual, mas só em dois lugares precisos. No primeiro capítulo para lhe

atribuir modestamente esta “forma de vida”, mas na realidade escrita por

ela; e no sexto capítulo para realçar a opção pela pobreza que, em relação

à outra forma de vida monástica, constituía então a originalidade absoluta

do convento de S. Damião, mesmo tendo em conta a Ordem do mesmo

nome24

. Até ali, a abadessa não sentiu a necessidade de recorrer a Fran-

cisco para definir os detalhes da vida monástica de suas irmãs. Só quando

o perigo vem de Roma, ela recorre à autoridade de Francisco.

O papado não tinha facilitado o seu apoio à experiência de Clara.

Tentou criar um modelo para o centro de Itália e depois para outras lati-

tudes, constituindo a “Ordem de São Damião”, mas da se demarcou o

mosteiro de São Damião, afirmando a sua especificidade. Esta confusão

de títulos teve certamente origem no cardeal Hugolino, futuro papa Gre-

gório IX, e serviu para confundir os historiadores durante muito tempo.

————— 24 Houve muitas tentativas de reunir as várias comunidades de consagradas, de

beguinas, numa mesma Regra, onde se incluía também a comunidade de S. Damião.

A Regra de Hugolino, de 1218, era para todas as “Monjas Pobres Reclusas” (FFII, p.

309). A Regra de Inocêncio IV, de 1247, era dirigida às abadessas e monjas da

Ordem de S. Damião (FFII, p.325). A intenção era colocar todas essas comunidades

sob a dependência espiritual de S. Damião. Clara sempre se demarcou dessa

tentativa, afirmando a originalidade da Ordem das Irmãs Pobres.

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A DIPLOMACIA DE CLARA

Efectivamente, tanto Gregório IX como Inocêncio IV, se

preocuparam por levar a regra de S. Bento a estas comunidades de

jovens e mulheres procedentes na sua maioria dos meios aristocráticos e

de as separar o mais possível dos Frades Menores. Destes, alguns ainda

recordavam os primeiros tempos do são convívio com as irmãs. Mas

outros começam a protestar contra o cuidado e a solicitude para com as

mulheres reclusas que os distraiam, pensavam eles, de tarefas mais meri-

tórias. Livrar-se das damas pobres, esquecer o Testamento do fundador e

a pobreza radical, foram temas tratados na bula Quo elongati que Gregó-

rio IX deve ter redactado em 1230, como resposta a um grupo influente

da Ordem masculina.

Perante estes esforços de normalização, para salvaguardar a

originalidade de São Damião, Clara utiliza na sua Regra a memória de

Francisco, entretanto elevado às honras dos altares. Isto não significa que

Clara deturpe a sua mensagem, antes pelo contrário. Usa as palavras do

defunto para melhor defender o que para ela era o núcleo irredutível do

seu modelo e que tinha sido confirmado a 17 de Setembro de 1228 por

Gregório IX no Privilégio da Pobreza: a “altíssima pobreza”, esta forma

de pobreza meritória, que é realmente um privilégio. Ao inserir no texto

as palavras que o santo escreveu a ela e a suas irmãs, Clara atribuía a sua

“forma de vida” a Francisco, aceitando considerá-lo fundador de uma

Ordem feminina, com a qual na realidade ele não se tinha preocupado

muito. Assim conseguia algo até então inaudito: que uma mulher, pela

primeira vez, escrevesse a Regra, sob a qual deveriam viver as suas

irmãs.

O cardeal Reinaldo, a 16 de Setembro de 1252, e depois Inocêncio

IV, pensavam ou fingiram que aprovavam a “forma de vida” de S. Fran-

cisco para as mulheres. Na realidade confirmaram a audácia da “plantazi-

nha”. Dez anos mais tarde, Urbano IV utilizava o mesmo subterfúgio,

mas ao contrário: dava a todos os mosteiros que se inspiravam em São

Damião o nome de “Ordem de Santa Clara”, e aproveitava para escrever

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mais uma Regra feminina à sua maneira25

. Na realidade foi necessário

esperar pelo Concílio Vaticano II, para que a maioria das clarissas redes-

cobrisse a Regra desta mulher, que lhe deu o nome.

A VISÃO ATÍPICA DE CLARA

No processo de canonização de Clara, levado a cabo no Outono de

1253, do qual felizmente temos uma versão italiana, a irmã Filipa relata

um estranho sonho de Clara: parece-lhe que leva a Francisco uma bacia e

uma toalha para lhe secar as mãos. Sobe até ele por uma escada muito

alta, mas sem esforço. Chegando à altura de Francisco, este puxa por um

mamilo do seu peito e convida-a: “vem, toma e sorve”. Clara obedece.

Francisco diz-lhe que o faça outra vez, e o que ela saboreava era de uma

doçura deleitável. O mamilo de Francisco, ficando na boca de Clara,

parecia-lhe de ouro tão claro que se via reflectida nele como num

espelho26

.

Um episódio destes, que o autor da Legenda se abstém de reprodu-

zir, presta-se a múltiplas leituras. Naturalmente que se deve ver aqui a

expressão simbólica da paternidade espiritual de Francisco, contado no

estilo da maternidade espiritual que lhe era tão próprio. Mas em 1238,

numa carta dirigida a Inês de Praga27

, Gregório IX tinha oposto ao ali-

————— 25 A Regra de Urbano IV é de 1263. CF. FFII, p. 343. 26 Cf. PCL 3, 27 Trata.se da Crata “Angelis gaudium” de 1238 (cf. BF I, 262), dirigida A Inês de

Praga, onde se lê: “Na verdade, filha da bênção e da graça, quando nós tínhamos

menor responsabilidade, a dilecta filha em Cristo, Clara, abadessa do Mosteiro de

São Damião, em Assis, e outras senhoras devotas, abandonando as vaidades do

mundo, optaram por servir o Senhor na observância de vida numa comunidade

religiosa. O beato Francisco compôs-lhes a “Forma Vitae” que não é um prato

forte, mas leite, como convinha a quem inicia uma vida nova. Há pouco tempo, o

prior do Hospital de São Francisco de Praga, homem discreto e zeloso, apresentou-

-me uma carta a pedir humildemente que nós confirmássemos com autoridade

apostólica a Forma de Vida que tem por base a dita “Forma Vitae” e alguns

capítulos da Regra da Ordem de São Damião. Nós, depois de séria reflexão, não

achamos oportuno aceitar este teu pedido”. Desta forma Gregório IX recusava a

aprovação da regra escrita por santa Inês de Praga, que seria a primeira regra escrita

por uma mulher. Essa honra veio a caber a santa Clara.

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mento sólido, que o papado dava às irmãs no seu esforço de legislação,

ao leite dos ensinamentos mais fluidos de Francisco. Com este sonho,

Clara afirma, sem reticências, a sua preferência.

CLARA, A ESPOSA DE CRISTO

Assinalamos como aquela que está viva sonha com um defunto, que

lhe abre o caminho para a felicidade no mais Além. Ao anunciar, em

1253, o falecimento de Clara por meio de uma carta encíclica, as irmãs de

São Damião qualificam a morte de paraninfo,28

que permite à alma reu-

nir-se ao esposo celeste. “Paraninfo fidelíssimo” é como a Legenda define

a Francisco, que introduz a jovem virgem perante o seu esposo real.

A alma gémea, com a qual a virgem de Assis deseja unir-se, não é

evidentemente a de Francisco. Ele não é mais que o heraldo, o embaixa-

dor de um Rei, que é Rei da pobreza. O rigor e a criatividade, que per-

mitem dirigir tudo a Cristo numa prodigiosa reductio ad unum, são de

admirar. Os testemunhos do processo ‒ a maioria são irmãs com mais de

quarenta anos de vida, sob a orientação de Clara ‒ nunca afirmam que

Clara simplesmente comungava: comungava o sacramento do Corpo do

Senhor Jesus Cristo29

. Quando num mesmo dia tem a alegria de receber a

eucaristia e a visita de Inocêncio IV, alegra-se de receber Cristo e seu

Vigário. Cura os enfermos com o sinal da cruz, rezando a oração do

Senhor, isto é, o Pai-Nosso. Fiel ao espírito de Francisco, que ensinava a

viver das próprias mãos, tece panos para fabricar corporais, que tocavam

o corpo de Senhor.

Em relação aos místicos, que se multiplicaram nas gerações seguin-

tes, Clara não é a amante exaltada do Senhor, é sua esposa, real e quoti-

diana, a que assiste desde o Natal até à Cruz, a esta paixão que recorda

sem cessar.

—————

28 Cf. Circ. 2. 29 PC 2, 11; 9, 10;

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OS HOMENS NA VIDA DE CLARA

Limitar o discurso de Clara sobre os homens a Francisco e a Cristo

pode parecer singularmente redutor. Mas esta redução voluntária é sua.

A Legenda de Clara não esconde que a abadessa do mosteiro material-

mente ínfimo de São Damião teve relações com quatro papas: Inocêncio

III, Gregório IX, Inocêncio IV e Alexandre IV, que a canonizou. Clara

cita Fr. Elias numa carta. Além disso tem o cuidado de se rodear de uma

hierarquia de irmãos menores: cardeal protector, visitador, capelão e um

irmão leigo.

O processo de canonização evoca a proximidade quotidiana dos

irmãos esmoleres, encarregados de pedir esmola para as monjas de clau-

sura. Relata também este facto tristemente significativo: Quando uma vez

se dá conta da falta de azeite no mosteiro, pede a um irmão que vá pedir

azeite. Este responde, zangado, que bastava que lhe entregasse as bilhas

lavadas, o que Clara mesmo fez30

. Estes modos grosseiros, que não eram

maliciosos, devem-lhe ter lembrado o comportamento dos homens da

casa paterna, cavaleiros, cuja arrogância se podia desencadear brutal-

mente contra as filhas, que reagiam ao seu poder absoluto.

Mas, o mais profundamente revelador é o facto de Clara em

nenhuma situação ter classificado ou julgado estes homens, inclusiva-

mente quando um conflito os põe contra ela, como aconteceu repetidas

vezes com Gregório IX31

. Mesmo quando ameaçaram fisicamente o mos-

teiro e as irmãs, como sucedeu em 1240 com as tropas sarracenas de

Frederico II, e no ano seguinte com as de Vital de Aversa.

No fundo, Clara não parece ter alguma concepção particular do

masculino, nem mesmo do feminino, apesar do plural que usa em seus

escritos, que a liga indissoluvelmente a suas irmãs, quando Francisco lhe

dá campo livre para afirmação do seu ego. Clara não sente, pois, nem a

necessidade nem o desejo de aplicar a si mesma ou aos outros a imagem

de um género ou do género inverso. Clara ignora toda a categoria rece-

bida e todo o esforço de categorização ideológica, social, sexual. Trata-

————— 30 Cf. PC 1, 15. 31 Cf. LCL 14.

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-se simplesmente de pessoas, referidas a uma Pessoa, a segunda, que as

pode incluir a todas.

UMA DIFERENÇA EXEMPLAR

Francisco de Assis é certamente um dos que mais influenciou as

revoluções mentais que fizeram que a cultura europeia seja o que é. A

audácia daquele que a Legenda Perusina designa como “um novo louco

no mundo”32

é extreme muito original na forma como lida com as catego-

rias, tanto de classes como de sexos. Tal como quando se despiu perante

o bispo de Assis, Francisco atrai sempre os olhares e ocupa todo o

cenário.

Clara, encerrada desde os dezoito anos atrás dos muros do mos-

teiro de São Damião donde não volta a sair, é infinitamente mais discreta,

e o peso do tempo concedia-lhe muito menos espaço para ir até ao fim

com o seu propósito. As fontes que conservam a sua memória não reve-

lam muitos dos aspectos mais profundos do seu mistério. É possível, no

entanto, vislumbrar o suficiente, de forma a reconhecer-lhe uma singula-

ridade menos relevante, mas tão radical como a de Francisco. Nestas

formas tão diversas de viver as mesmas exigências, vacilamos, todavia,

em afirmar qual foi a participação de cada uma destas personalidades de

excepção, qual o peso das obrigações específicas que este tempo medie-

val fez recair sobre cada um ‒ de maneira especial as obrigações excessi-

vas que pesavam sobre cada sexo ‒ qual foi o encargo das identidades

femininas e masculinas, imagens que se enfrentaram segundo o género

que estas obrigações ajudaram a forjar, a não ser que a obrigação princi-

pal não tivesse estas mesmas imagens.

Não há nenhuma simetria entre a “masculinidade” de Francisco e a

“feminilidade” de Clara. Ele supera as divergências das categorias sociais,

culturais, sexuais, desviando-as, desorganizando-as. Ela ignora-as. É

claro que, como filha de cavaleiro da média nobreza urbana, em relação

constante com cardeais e papas, não conheça a sua rigidez e os seus

códigos. Mas em cada indivíduo, sobretudo no seu inspirador, Clara vê ————— 32 LP 114, 6.

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imediatamente a transparência de Cristo. Assim a pobreza de Francisco e

Clara, ainda que uma seja filha da outra, não têm o mesmo sabor. Para

ele, a pobreza é um caminho para Deus que passa pela identificação com

as categorias dos mais miseráveis das criaturas. Para Clara, a sua opção

pela pobreza é uma participação directa da natureza profunda de Cristo,

que é a pobreza. Quando o marido é pobre, a mulher não possui nada.

Aqui radica tudo. Para quê perder tempo com inversões metafóricas de

géneros, quando se tem a dupla sorte de pertencer de nascimento ao sexo

mais desprezado, mas que permite uma união imediata com o Esposo do

Cântico dos Cânticos, e com o Filho da Virgem.

“Em feminino, não há nada”, dizia Jean-Pierre Lécaud numa célebre

réplica ao Masculino/Feminino de Jean-Luc Godard. Clara de Assis

anuncia o aforismo com sete séculos de antecedência. É um nada que é o

contrário de vazio. Nada que estorve, nada que esconda, nada que oculte

o outro. O feminino de Clara é um nada que não é o contrário de nada.

Desdenhando as categorias, nas quais se comprazem os varões, e que nas

melhores condições discutem e se guerreiam, é transparência e imediatez

entre o individual e o universal, entre o indivíduo e o universo. Clara,

escrevia Damian Vorreux, é um “coração desembaraçado”.

Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

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A VOCAÇÃO E A MISSÃO DAS IRMÃS POBRES

DE SANTA CLARA NO MOMENTO ACTUAL DA

IGREJA E DO MUNDO

Ir. Maria Chiara Stuchi, osc

*

————— * Conferência proferida pela autora no I Congresso de Presidentes das Federações de

Irmãs Clarissas, Assis 26-I-2008.

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A VOCAÇÃO E A MISSÃO DAS IRMÃS POBRES DE SANTA CLARA

NO MOMENTO ACTUAL DA IGREJA E DO MUNDO

No Espelho de Perfeição há um relato que me parece esclarecedor

para percebermos o sentido desta exposição. Francisco descreve o verda-

deiro frade menor como aquele que reúne em si as qualidades próprias de

alguns irmãos: a fé e o amor de Bernardo, a simplicidade e pureza de

Leão, a cortesia de Ângelo, etc1.

Francisco apresenta um paradigma concreto do frade menor, com o

qual os demais irmãos se deveriam conformar. Descreve pessoas concre-

tas, com talentos únicos e particulares, expressando assim que a riqueza

da fraternidade está na convergência de cada um para o bem comum, o

————— 1 “E dizia que seria verdadeiro Frade Menor aquele que reunisse nele as virtudes dos

santos frades, a saber: a fé de Fr. Bernardo, tão perfeita como o amor à pobreza; a

simplicidade e a pureza de Fr. Leão, que foi realmente um homem de coração puro;

a afabilidade de Fr. Ângelo, o primeiro cavaleiro a entrar na Ordem, e que era

adornado de grande mansidão e benignidade; a presença distinta e o bom senso de

Fr. Masseu, com a sua agradável e devota conversação; a perfeitíssima contemplação

de Fr. Gil, sempre com o espírito arrebatado em Deus; a actividade constante e

virtuosa de Fr. Rufino, que rezava incessantemente; até a dormir e a trabalhar, o seu

espírito estava com o Senhor; a paciência de Fr. Junípero, que atingiu um alto grau

de perfeição, porque ele tinha plena consciência da evidente realidade da sua própria

baixeza e um ardente desejo de imitar a Cristo Crucificado; o vigor corporal e

espiritual de Fr. João dos Louvores, que foi o maior atleta entre os homens do seu

tempo; a caridade de Fr. Rogério, cuja vida inteira e conversação eram inspiradas

por uma fervorosa caridade; enfim, a inquietação de Fr. Lucílio, que foi sempre uma

pessoa de total desapego e não queria estar no mesmo lugar por mais de um mês.

Quando começava a afeiçoar-se a algum lugar, logo se afastava e dizia: «Morada

permanente só a temos no céu» (EP 85).

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bem que é a vida segundo o santo Evangelho. Cada um tem dentro de si uma

chama, e todos juntos contribuem para alimentar a chama da fraternidade.

Tenho a sensação que Clara hoje nos diz o mesmo a nós. Quem é

hoje a irmã pobre de santa Clara? Qual é a sua vocação, a sua missão no

nosso tempo, na nossa Igreja, no nosso mundo?

O papa Alexandre IV, na Bula de Canonização, procura explicar

quem é Clara de Assis através da imagem da árvore com ramos que se

alargam, e sob cuja sombra acudiram e continuam a acudir muitas segui-

doras de muitas partes do mundo2. Podemos dizer hoje que estes ramos

se alargaram aos cinco continentes, que deitaram folhas em todo o

mundo, onde brotaram flores e amadureceram frutos. Por isso, de qual-

quer parte do mundo pode responder-se, sempre de novo, à pergunta

sobre a vocação e a missão da irmã pobre de Santa Clara.

Surge a necessidade vital de nos escutarmos reciprocamente. Deve-

mos escutar a história das origens; devemos escutar a compreensão que

temos hoje do nosso carisma e partilhar as experiências vividas e os

sonhos que guardamos em nós. Na realidade, a irmã pobre, hoje, tem o

rosto de inumeráveis povos, fala muitas línguas, exprime os calores e os

sabores de numerosas culturas.

A minha comunicação articula-se em três partes. Na primeira, trata-

rei de expor algumas coordenadas em que nos movemos como habitantes

deste mundo, marcado por luzes e sombras, com algumas tendências que

nos impõem, às quais devemos responder evangelicamente. A questão

poderia ser: Como é o mundo em que vivemos? Precisamos de conhecer

o mundo em que nos movemos, para viver a nossa vocação: a Forma de

vida de Clara.

Na segunda parte, comentarei em síntese os pontos cardeais da

Forma de vida de Clara, que para nós são as lentes com que olhamos o

mundo, e neste a Igreja, a família Franciscana, as nossas comunidades e a

nós mesmas. Daqui tiraremos os critérios de referência e de valoração

para rever a nossa vida e tomar novas opções. A questão pode ser: Qual

foi a opção fundamental de Clara? A Forma de vida que nos deixou é o

espelho em que nos olhamos.

Na terceira parte, quero pôr em destaque os aspectos e os âmbitos,

onde actualmente encarna o carisma clareano. Obviamente, só alguns ————— 2 BLC 9.

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aspectos. A questão poderia ser: Por que vida optamos? E consequente-

mente, como actuar? Trata-se da realização, de concretizar a maneira de

viver a que cada uma de nós foi chamada.

1-O mundo em que vivemos

Vivemos numa época da história do mundo e da Igreja caracteri-

zada por desafios e exigências novas. São desafios “de última hora”, com

uma aceleração tão descontrolada que produzem confusão e desordem

generalizadas e se propagam de modo visivelmente crescente no âmbito

social, político e económico de uma cultura secularizada e distante das

raízes de tradição cristã.

Uma das ameaças eminentes é “o paganismo cinzento da vida

quotidiana da Igreja, dos cristãos, onde aparentemente tudo continua

normal, mas que na realidade a fé se esgota e cai na mesquinhez3.

1.1. A primeira atitude que devemos assumir com fidelidade e

audácia perante a realidade que nos rodeia com toda a sua complexidade

é a de “voltar a começar em Cristo”4, na pessoa do Senhor Jesus, pobre e

humilde, com adesão de fé, que nos leva à esperança, confiança e alegria.

Seguindo a exortação de S. Paulo de não nos afligirmos como os

que não têm esperança (1Ts 4, 13), podemos olhar as grandes mudanças

que acontecem na Igreja e no mundo com a visão de Jesus: sem angústia,

nem medo, nem perturbação.

Esta visão da realidade, neste espaço vital da nossa vocação no

tempo que nos é dado viver, ao contrário do sentido/sem sentido da

opressão que esmaga, estimula-nos a recomeçar a partir de Cristo, da

contemplação do seu rosto, do acolhimento do seu Evangelho que anun-

ciamos e proclamamos, com simplicidade e humildade, ancoradas na

profecia da esperança e do gozo: a Ressurreição.

O Senhor pede-nos para sermos humildes e para termos um olhar

não fragmentado, não disperso. Devemos ser capazes de fazer a síntese,

de construir e de amar a verdade; o Senhor pede-nos um coração indi-

————— 3 RATZINGER, J., Situación actual de la fe y de la teologia, Conferência pronunciada

em Guadalajara, Mexico, 1996 (www. Aciprensa.com/Docum/rat96.htm). 4 JOÃO PAULO II , Novo millenio ineunte, 28-29.

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viso, unificado, capaz de harmonizar a partir de dentro, com a arte da

comunhão, as antinomias, as contradições e os elementos que a realidade

apresenta na sua multiculturalidade de luzes e sombras.

1.2. Nesta perspectiva, o “ver” implica ao mesmo tempo a solici-

tude para discernir livre e responsavelmente os sinais dos tempos à luz do

Espírito Santo; o redescobrir confiadamente o sentido unitário e total da

realidade, superando os critérios parciais e unilaterais, ligados exclusiva-

mente a interesses económicos e/ou políticos; voltar a ter como ponto de

partida a Cristo, Palavra e Sabedoria de Deus (1Co 1, 30), optando com

audácia pelo caminho da profecia da salvação no Ressuscitado. “Só

aquele que reconhece a Deus, conhece a realidade e pode responder-lhe

de forma adequada e verdadeiramente humana”5, e só através desta com-

preensão dos vários significados e processos da realidade se fará a síntese

e se terá uma compreensão unitária.

1.3. Com efeito, luzes e sombras caracterizam o nosso mundo

cheio de mutações surpreendentes, que chegam de forma rápida e verti-

ginosa a todos os lugares. Geralmente identificam-se com os fenómenos

da globalização, que se estende a todos os âmbitos da vida social, do

político ao económico, do científico ao tecnológico, e até do artístico ao

desportivo.

Limitamo-nos a analisar alguns deles, que, a meu ver, têm maior

relevância para a nossa reflexão.

1.3.1. A nível mais profundo da sociedade, emerge uma subjectivi-

dade a roçar o hedonismo e o narcisismo. Quando o eu se torna o ponto

de referência das relações humanas, incluso as afectivas, estas chegam a

ser instrumentalizadas. Efectivamente, a afirmação do próprio eu, da

própria felicidade, ilusória e efémera, nasce de uma indiferença cada vez

maior pelo outro, reduzindo-se a relação a momentos fugidios, sem um

compromisso verdadeiro e duradoiro. O direito individual prefere a reali-

zação dos próprios desejos à preocupação pelo bem comum, com pre-

juízo da solidariedade para com os pobres e os mais vulneráveis. A

————— 5 BENTO XVI, Discurso inaugural da V Conferência geral do episcopado Latino-

-americano e das Caraíbas, 3 (13 de Maio de 2007).

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indiferença causada pelo egoísmo é uma das feridas mais profundas infli-

gidas à própria dignidade humana.

Paradoxalmente, sem ser surpreendente, a perca da dignidade (ou a

ameaça de a perder) é o ponto de partida para um processo positivo de

reafirmação do valor fundamental e insubstituível da pessoa, do sentido

da vida e da transcendência.

A necessidade de construir o seu próprio destino e de encontrar

uma razão para a própria existência, abre novos horizontes, que valori-

zam o indivíduo como pessoa, o seu desejo de se encontrar com os

outros para partilhar e confrontar as próprias vivências, para ler juntos os

acontecimentos e juntos construir a história. A diversidade deixa de ser

ameaça e torna-se em dom para superar os conflitos e as oposições, que

convergem na síntese de um destino histórico comum, respeitoso da dig-

nidade e da liberdade de todos e de cada um.

1.3.2. As indicações de Bento XVI sobre os aspectos positivos e

negativos da globalização, ajudam-nos a compreender de maneira acer-

tada o processo evolutivo e regressivo provocado. Se por um lado é um

fenómeno de “um entremeado de relações a nível planetário e uma con-

quista da família humana”, por outro lado, sublinha o Santo Padre,

“como em todos os campos da actividade humana, a globalização deve

reger-se também pela ética, colocando tudo ao serviço da pessoa

humana, criada à imagem e semelhança de Deus”6.

Considere-se, por exemplo, a economia, que quando privilegia os

valores da eficiência e da produtividade, do lucro e da competição, não

favorece o desenvolvimento dos bens mais importantes da vida, como a

verdade, a justiça, a dignidade e os direitos humanos. Enquanto concen-

tra o poder e as riquezas nas mãos de poucos, contribui para aumentar a

pobreza. Por outro lado, as novas tecnologias, contribuem de forma ine-

vitável para a exclusão e a precariedade no trabalho. Assim surge um

novo analfabetismo que tem origem na ignorância induzida.

1.3.3. A globalização, pois, sem uma aspiração profunda à unidade

e à solidariedade, converte-se numa arma letal, destruidora. É um mundo

————— 6 BENTO XVI, Discurso inaugural da V Conferência geral do episcopado Latino-

-americano e das Caraíbas, 2.

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onde se criam em cadeia condições nocivas à vida humana, reguladas pela

exploração, pela escravatura e pela exclusão social.

O mal produz o mal: milhões de pessoas e famílias sem trabalho,

sem terra, na miséria e fome; milhões de refugiados, perseguidos pela

guerra, pelo terrorismo e por toda a forma de violência…

1.3.4. Também a natureza geme e sofre; o ecossistema é contami-

nado pelos interesses económicos e políticos das grandes multinacionais.

Não obstante, nesta realidade onde o mal parece dominar, divisa-se,

às vezes muito tenuemente, a chama dos que, em diversos âmbitos,

ouvem e acolhem a chamada a proteger e a conservar a natureza criada

por Deus, não permitindo que o nosso mundo seja uma terra cada vez

mais degradada e degradante7. É a voz, às vezes muito débil, e ainda

pouco escutada e considerada, de tantas associações e grupos de voluntá-

rios, e tantos movimentos e organizações, que se afanam para que real-

mente tudo volte a estar ao serviço do homem e sua dignidade.

2. Clara, o nosso espelho

Deixemo-nos iluminar pela experiência e pela palavra de Clara. Per-

guntemo-nos: De que maneira viveu Clara neste mundo, como se inseriu

nele como um fermento de vida, qual manancial para os desertos huma-

nos, e luz que ilumina as trevas8, também as trevas do nosso tempo?

2.1. Vida segundo o santo Evangelho: a opção fundamental

Clara quer viver o santo Evangelho. Este é o seu propósito, esta é a

sua forma de vida: “A forma de vida da Ordem das Irmãs Pobres, que S.

Francisco instituiu, é esta: Observar o santo Evangelho de Nosso Senhor

Jesus Cristo, vivendo em obediência, sem próprio e em castidade”9.

O Evangelho é Jesus. Clara entendeu muito bem, olhando Fran-

cisco, tal como recorda no princípio do teu Testamento, no contexto de

acção de graças ao Pai das misericórdias pelo dom da vocação específica:

“O Filho de Deus fez-se nosso caminho, como nos mostrou e ensinou

————— 7 João Paulo II, Homilia em Punta Arenas, Chile, 1987. 8 BLC 11-12. 9 RCL 1, 1-2.

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pela palavra e pelo exemplo o nosso bem-aventurado Pai São Francisco,

seu apaixonado imitador”10

. O Evangelho vivido e pregado por Francisco

está presente no início da conversão de Clara e define a sua identidade.

Clara é uma cristã. Sem glosa.

Jesus, caminho, verdade e vida, é a Boa Notícia anunciada aos

pobres, aos oprimidos, aos excluídos. Francisco mostra-o e ensina-o a Clara

com palavras e obras, que nascem umas vezes do contacto com os

marginalizados da vida, como os leprosos, outras do silêncio dos eremitérios.

Clara esquadrinhou constantemente o essencial do rosto de Jesus

que Francisco desvelou, até assumir os seus rasgos11

. Com a emoção de

sempre, recordamos a resposta de Clara, pouco antes de morrer, falando

a Fr. Reinaldo: “Querido irmão, desde que me foi dado conhecer a graça

do meu Senhor Jesus Cristo por meio do seu servo Francisco, nenhuma

pena me foi molesta, nenhuma penitência me pareceu severa, nem

nenhuma doença me foi difícil de suportar”12

.

A graça de que fala Clara é toda a vida terrena de Jesus: Jesus que

nasce na pobreza, que experimenta uma vida exigente, onde o sofrimento

e o gozo marcam o quotidiano, terminando os seus dias sobre a terra

pregado numa cruz, como um malfeitor entre malfeitores… este Jesus

manifesta ‒ sobretudo no momento supremo do Calvário ‒ o amor agá-

pico e erótico de Deus, na linguagem de Bento XVI13

, que nos interpela:

“Vós que passais, contemplai e vede se há dor semelhante à minha dor”14

.

Este Jesus é o santo Evangelho, é a Boa Notícia: Deus ama os

homens e quer que se salvem, quer entrar em comunhão com o ser

humano, para que tenha vida em abundância. Clara responde a este Jesus

e exorta: “Respondamos com uma só voz e um só espírito a este grito:

„A pensar nisto sem cessar, minha alma desfalece dentro de mim‟”15

.

Qual a resposta que damos no momento actual?

2.2. Vida evangélica na altíssima pobreza: o espaço de comunhão

————— 10 TCL 5. 11 4CCL 15. 12

LCL 44. 13 Nota 13. 14 4CCL 25. 15 4CCL 26.

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Se Clara encontra no Evangelho a sua identidade, é na pobreza de

Jesus que descobre o específico da sua Forma de vida: “… se dignem

conduzir o pequenino rebanho, que na sua Igreja santa, o Senhor e Pai

gerou com a palavra e o exemplo do bem-aventurado Pai Francisco, no

seguimento da pobreza e humildade do seu dilecto Filho e da gloriosa

Virgem sua mãe, e o levem a observar sempre a santa pobreza…”16

.

A Igreja reconhece-nos como aquelas que seguem a pobreza e a

humildade de Jesus. Se faltamos neste serviço de memória e testemunho

de Jesus pobre e humilde, a nossa presença não tem sentido.

2.2.1. Recordemos, através de dois factos, o quanto era importante para

Clara o ser e o viver pobre.

a) Pede ao Papa o Privilégio de Pobreza, o privilégio de não ter

privilégios. Pede ajuda ao Papa, mesmo ajuda formal. Pede uma

aprovação escrita, autorizada, para garantir a ela e suas irmãs

(presentes e futuras, não esqueçamos), a melhor condição para

viver o santo Evangelho. Quer estar segura de não ser obrigada a

ter seguranças.

b) No testamento declara ter-se comprometido livremente, e repete-

-o várias vezes com “nossa senhora a santíssima pobreza”17

, ela e

suas irmãs. Clara, mulher medieval, que respirou a cultura cor-

tesã, sabe que deve fazer tudo por essa Senhora tão especial. A

sua opção é consciente, desejada e madura. Não se trata de um

impulso emotivo de momento: “… frequentemente renovemos a

nossa adesão voluntária à nossa senhora, a santíssima pobreza, a

fim de que depois de minha morte, as irmãs, tnto as presentes

como as futuras, de nenhuma maneira dela se apartem»18

.

2.2.2. A pobreza tem um duplo efeito prático:

‒ garante a permanência na marginalidade, atitude que não assusta,

que não deixa margem para equívocos tanto nas palavras como nas atitudes,

————— 16 TCL 46-47. 17 TCL 39. 18 Ibid.

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‒ dá sempre a prioridade ao outro e ao Outro, numa atitude perma-

nente de acolhimento e gratuidade.

E tudo acontece como e com Jesus, que foi pobre no seu nasci-

mento, pobre viveu e nu permaneceu na cruz19

. Por isso respondia ao

papa, que insistia para que recebesse rendas: “Santíssimo Padre, por

nenhum preço quero ser dispensada de viver o seguimento de Cristo para

todo o sempre”20

.

Pobre como e com Jesus. E por isso pobre como e com os irmãos.

Parece-me eloquente um detalhe do episódio sobejamente conhecido da

multiplicação do pão. Do único pão que havia na comunidade formada

por cinquenta irmãs, Clara ordena à irmã encarregada do serviço da des-

pensa, de enviar metade aos irmãos e de cortar a outra metade em cin-

quenta pedaços, um para cada irmã. E houve pão em abundância para

todos21

.

2.2.3. A pobreza só é fecunda, quando aqueles que a abraçam se

tornam solidários. É assim a pobreza de Jesus, que se fez pobre por nós,

para nos enriquecer através da sua pobreza (2Co 8, 9). Não partilhou

connosco o supérfluo, mas o dom excelso de sua vida divina. Clara não

partilhou com os irmãos o supérfluo, mas o indispensável.

Na sua pobreza, Jesus tornou credível a imensa bondade de Deus.

Na sua pobreza, Clara é credível quando nos recorda, animando-nos: «Na

verdade, é uma troca maravilhosa e digna de todo o louvor renunciar aos

bens temporais e preferir os eternos, perder o que é terreno, para merecer

o que é celeste, renunciar a um para ganhar cem e possuir para sempre a

vida bem-aventurada”22

.

————— 19

Cf. TCL 45. 20 LCL 14. 21 Cf. LCL 15. 22 1CCL 30.

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2.3. Vida evangélica em santa unidade: uma sinfonia executada

pelo Espírito Santo.

O episódio do milagre do pão abundante permite-nos compreender

como o ser pobre abre espaço interior para o acolhimento dos irmãos e

irmãs, e ajuda a forma de nutrir a comunhão.

Clara e as irmãs crescem na santa unidade, tendo ante seus olhos o

ponto de partida e o objectivo final do viver em comunidade, “de diversas

regiões e províncias congregadas”23

.

2.3.1. O ponto de partida é reconhecer que cada uma é filha do Pai,

por ele doada às outras24

e guiada pelo Espírito Santo25

. Por respeito à

divina inspiração que a todos move, consegue-se a escuta recíproca, gra-

ças à qual a fraternidade entende como deve avançar na observância do

Santo Evangelho. Nisto não há hierarquia de valores. Deus é livre de dar

a luz da sua sabedoria26

. Desta maneira, a santa unidade constrói-se e

mantém-se no exercício da corresponsabilidade, da qual ninguém está

dispensado, pois na fraternidade clareana não tem sentido a renúncia à

própria responsabilidade. Efectivamente, a fraternidade vive da atenção e

da confiança recíprocas e da partilha dos dons.

2.3.2. A meta é o bem comum. Clara exorta a procurar a confluên-

cia dos corações, das mentes e das vontades, como forma de passar ‒

como diríamos hoje ‒ do eu ao nós27

. Cada irmã, acolhida na sua unici-

dade, é convidada a mostrar-se em toda a sua verdade, certa de encontrar

na outra irmã aquela que lhe dá o necessário para viver, isto é, para ser

autêntica segundo os projectos de Deus. “Confiadamente manifeste uma

à outra as suas necessidades, pois, se a mãe ama e cria com tanto amor a

————— 23 ExAu 1. 24 “…juntamente com as poucas irmãs que o Senhor me tinha dado” (TCL 25). 25 “Se alguém, por inspiração divina, vier ter connosco, com intenção de abraçar esta

vida” (RCL 2,1); “Pois que, por divina inspiração divina vos fizestes filhas e servas

do altíssimo e soberano Rei e Pai celestial, e vos tornastes esposas do Espírito Santo,

abraçando uma vida conforme a perfeição do Santo Evangelho” (RCL 6,3). 26

“Com efeito, muitas vezes é ao mais pequenino que o Senhor revela aquilo que mais

convém” (RCL 4, 18). 27 CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E SOCIEDADES DE VIDA

APOSTÓLICA, A VIDA FRATERNA EM COMUNIDADE, 39-42.

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sua filha carnal, com quanto mais carinho não deve cada qual amar e aju-

dar a sua irmã espiritual”28

.

Desta forma consegue-se a dedicação personalizada, que Clara

manifesta para com as irmãs, como testemunham os milagres realizados a

favor das irmãs. A mesma dedicação se verifica nas disposições relacio-

nadas com o hábito e com o dinheiro recebido29

. Mas o respeito e a promo-

ção da unicidade da pessoa não são um fim em si mesmo. Cada uma das

irmãs está chamada a ser para a fraternidade, a buscar e a desejar o que é a

utilidade comum e a contribuir para que a comunidade caminhe unida.

Se há uma opção preferencial, deve ser pela irmã doente, porque

ela é por excelência o sacramento de Jesus pobre. Clara acolhe as doentes

e quer que sejam acolhidas pelas demais com grande ternura. Todas estão

chamadas a ser próximas umas das outras, evitando que algo de mal lhes

aconteça30

. As curas contadas pelas irmãs no Processo de Canonização,

realizadas com o sinal da cruz traçado por Clara, indicam-nos a via da

libertação: a Cruz de Jesus, ou melhor, o amor que dá a própria vida, é a

forma de vida concreta a que as irmãs estão chamadas na sua relação com

as doentes. Uma realidade e um símbolo para reflectir.

2.3.3. Enquanto todas escutam a Palavra de Deus e a pregação que

se seguiu, uma irmã goza da visão do Menino Jesus. Compreende que

Jesus está no meio de todos os que “escutam como devem”, isto é, estão

unidos em nome de Jesus31

. A escuta obediente da Palavra de Deus ali-

menta e faz crescer a fraternidade, ensinando a superar os subjectivismos

e reforçando cada uma no serviço devotado ao bem comum.

2.3.4. A unidade do amor recíproco32

é a pérola preciosa que se

deve guardar a todo o custo, e que só se alcança quando se “vendem” as

ideias, projectos e expectativas próprios. O serviço da Abadessa, a

estrutura da vida comunitária (capítulos), o trabalho, a atenção às irmãs

doentes, os conflitos nas relações fraternas… são os vários aspectos da

————— 28 RCL 8, 15-16. 29 «A abadessa providencie com discrição quanto às roupas, segundo a natureza da

pessoa, o local, o tempo e as regiões frias, como vir que é necessário» (RCL 2, 17). 30 Cf. RCL 8, 12-14. 31 Cf. PC 10, 8; Mt 18, 20. 32 Cf. RCL 10, 7.

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vida diária das irmãs, que devem ser programados e vividos com este

único critério, que é a essência do Evangelho de Jesus.

É necessário deixar-se animar por este amor divino, pelo Espírito

que o Crucificado derramou e que opera naqueles que vivem a pobreza e

a humildade de Jesus. Recordemos as palavras de Francisco: “Nunca

devemos estar acima dos outros, mas antes devemos ser servos e sujeitos

a toda a humana criatura por amor de Deus. E todos os que assim proce-

derem e perseverarem até ao fim, sobre eles repousará o Espírito do

Senhor, e neles fará sua morada e mansão”33

. Devemos desejar sobretudo

o Espírito do Senhor e a sua santa operação34

. Graças ao sopro que nos

anima por dentro, chegamos a ser capazes de nos amar e de nos formar

mutuamente, amando-nos cada vez mais35

. A santa unidade é criativa e

engendra vida.

2.4. Vida orante

A Forma de vida em si testemunha que o coração de Clara está diri-

gido ao Senhor36

.

2.4.1. O espaço de oração era a sua respiração. Na oração litúrgica

faz-se voz da Igreja e da humanidade; na oração pessoal nutre a relação

de amizade com o Senhor; na meditação entra em sintonia com o coração

do Senhor e modela o seu interior.

A oração forma um certo estilo de vida e ensina a ser vigilantes,

para que nas ocupações da vida quotidiana não haja incoerência entre a

oração e a vida.

2.4.2. A oração unifica a pessoa, favorecendo a convergência das

faculdades na relação com Jesus.

————— 33 2CF 47-48. 34 2R 10, 8. 35 “Amando-vos umas às outras com o amor de Cristo, manifestai em obras o amor

que vos vai no coração, a fim de que, movidas por este exemplo, as irmãs se sintam

estimuladas a crescer cada vez mais no amor de Deus e na mútua caridade” (TCL

59-60). 36 Cf. 2R 22, 19-20.

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Esta oração é activa, é operante, porque é a oração de Jesus37

.

Abraça todas as criaturas próximas e distantes, porque nela palpita o

amor de Jesus38

.

3. CUMPRI A MINHA PARTE, QUE CRISTO VOS ENSINE A VOSSA39

Reconhecemo-nos entre aquelas irmãs futuras, a quem Clara com

frequência dirige os seus escritos. Queremos hoje fazer o esforço de

acolher com urgência os sinais do nosso tempo, como oportunidade para

compreender como dar hoje nos nossos dias rosto e encarnar a Forma de

vida de Clara, que professámos.

3.1. A complexidade e a fragmentação que caracterizam as rela-

ções, tanto entre as pessoas como entre os povos, interpelam-nos sobre a

urgência de voltar a centrar em Deus o nosso ser e o nosso fazer. A nossa

existência, em todas as suas dimensões, deve modelar-se sobre o primado

da fé; sem esta, a caridade pode confundir-se unicamente com a busca de

um equilíbrio psicológico. Assim o que é relativo e instrumental con-

verte-se em absoluto.

3.2. A reflexão partilhada da Palavra de Deus é ponto de partida. É

daí que emanam e se informam os outros instrumentos, que estruturam e

constroem a vida fraterna, como, por exemplo, os momentos de encon-

tro, os capítulos conventuais, as revisões de vida, os tempos de recreio.

São instrumentos para utilizar e valorizar, de acordo com a fisionomia da

cada fraternidade, sem se deixar deter pelo cansaço que pode aparecer,

sendo criativos, ‒ quando for necessário ‒ inventando novas formas para

os valorizar.

————— 37 “Queridas irmãs, recebemos diariamente muitos benefícios desta cidade. Seria

ingratidão da nossa parte, se, num momento de aflição, não a socorrêssemos,

segundo as nossas possibilidades”, diz Clara a suas irmãs, aquando do assédio de

Assis pelas tropas de Vital de Aversa (LCL 23). 38

“Nesta contemplação não esqueças a tua pobre mãe. Tenho-te presente no meu

coração, duma maneira muito especial, como a mais querida de todas” (4CCL 33-

-34). 39 Cf. LM 14, 3.

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3.3. O cuidado da qualidade das relações na comunidade,

amadurecida pelo perdão oferecido e acolhido, é fundamental. Somos

mulheres cristãs clarissas: são termos relacionados e unidos entre si, dos

quais nenhum pode faltar; em algumas comunidades estes aspectos são

muito sensíveis. Como transformar a riqueza das experiências pessoais

em bem comum, sem imposições nem particularismos e sem diminuir o

carisma comum?

3.5. Devemos aprender a utilizar o instrumento básico, que é o diá-

logo. Faz-nos bem reconhecer que instintivamente não sabemos dialogar,

e que precisamos de criar condições para aprender. Os processos de for-

mação humana, que tanto se desenvolveram no nosso tempo, graças ao

impulso dado pelo Vaticano II, são um caminho que deve continuar, com

a finalidade de harmonizar a pessoa e a fraternidade no serviço do Senhor

Jesus. De contrário, como podemos ser essas mulheres “especialistas em

humanidade”, “sinais de comunhão”40

, que a Igreja quer que sejamos.

Neste espírito sentimo-nos hoje interpeladas no sentido de ampliar

o horizonte do nosso contributo no diálogo entre os cristãos e irmãos de

outras religiões. Este esforço requer oração, e é um empenho que nos

convida a dar o nosso contribuição àquele ecumenismo espiritual, com-

ponente insubstituível no caminho até à unidade das Igrejas. Este esforço

também contribui para aprofundar o conhecimento e para expressar, na

medida das nossas possibilidades, o respeito e a consideração pelas reli-

giões não cristãs, dando uma atenção particular aos irmãos hebreus, de

acordo com o espírito de Assis, que no ano de 1986, João Paulo II voltou

a propor a todo o mundo.

3.6. Terminámos há pouco as celebrações do oitavo centenário da

fundação da Ordem dos Frades Menores e começámos a celebrar o cen-

tenário da conversão de Clara e da fundação da nossa Ordem. Vamos ser

chamadas a fazer memória da graça das origens e a voltar com um olhar

contemplativo às raízes do nosso carisma. Devemo-nos interrogar sobre a

fidelidade e coerência em relação ao dom da nossa vocação. Na oração e

no diálogo podemos amadurecer ideias novas, que nos abram a projectos

arrojados que tenham o vigor da novidade evangélica. ————— 40 JOÃO PAULO II, Vita consecrata, 6.

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Recordando o vigor e a ternura de Clara, podemos ser, hoje, uma

presença de valores opostos à mentalidade reinante, que nós infelizmente

também respiramos, onde se privilegia a aparência, a eficácia e o êxito a

qualquer preço, e a acumulação em prejuízo dos outros.

3.7. Fr. Giacommo Bini recordava, num encontro de irmãs, que a

vida religiosa ou é profética ou não existe, e desafiava-nos: “Façamos

algum gesto profético! Cabe-vos a vós, como mosteiro ou como federa-

ção, ser proféticas”. E o Ministro Geral, pela festa de Santa Clara, em

2005, escrevia: “É urgente recuperar a profecia que um dia foi confiada

pelo Espírito Santo a Francisco e Clara. A busca do sentido da vossa

identidade, que vos vincula a viver o Evangelho na altíssima pobreza e na

unidade de espírito, se é autêntica, não vos paralisa, pelo contrário,

coloca-vos no caminho do Espírito. Como responder hoje ao Senhor e

aos irmãos e irmãs, que nos interpelam. Como „refundar‟ a nossa vida”.

3.8. Como dar forma à altíssima pobreza no país de consumidores?

Não nos devemos ficar só por um providencial sentimento de inquieta-

ção, quando constatamos que vivemos para os pobres, mas não como os

numerosos pobres, que todos os dias batem à porta dos nossos mostei-

ros. Clara não quis ter nenhum privilégio, e nós às vezes ficamos no

mínimo desapontadas e às vezes encolerizadas, quando nos tratam com

menos consideração.

No mundo ocidental, mesmo entre os cientistas, fala-se da necessi-

dade de um certo emagrecimento: experimentar a beleza e a qualidade de

vida que não vem do ter, mas na limitação das exigências materiais. Fala-

-se, no sentido “laico”, de “novos ascetas”. Francisco e os irmãos recor-

dam-nos: “E aqueles que vinham a viver esta vida, davam aos pobres

tudo o que possuíam, e contentavam-se com uma só túnica, remendada

por dentro e por fora se assim queriam, com um cordão e bragas. E nada

mais queriam ter”41

?

Por que não tratar nos nossos encontros fraternos do impacto que

tem no nosso estilo de vida as opções já feitas por muitos, cristãos ou

não, que dizem respeito ao consumo sustentável, as questões da justiça, a

atenção dada aos ecossistemas em que estamos envolvidos? Como Clara ————— 41 T 16-17.

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devemos encontrar o modo de expressar a fé num Deus bom, criador e

salvador de tudo o que existe, assumindo a responsabilidade pelos outros

e pelo meio ambiente, como nos convidou João Paulo II na mensagem da

Jornada Mundial da Paz de 1990. Uma existência sóbria, capaz de uma

autêntica solidariedade, anuncia mais do que as palavras, que o nosso

Deus é Senhor da vida.

3.9. O fenómeno da globalização em que se move hoje a comuni-

dade humana pode ser uma oportunidade para as clarissas. Não esqueça-

mos que o Evangelho se difundiu rapidamente, graças também à eficiente

rede de comunicações construídas pelo império romano, então domi-

nante. Há muitos anos Fr. Hermann Schalück dizia que a Igreja e os Ins-

titutos religiosos são organizações “globais”, e que, por isso, devem

promover uma comunicação local e universal, em virtude do serviço e da

proclamação do Evangelho, uma comunicação que vive da comunhão

com o Espírito Santo.

Existe um espaço aberto à criatividade, fruto do Espírito do

Senhor, para realizar e testemunhar hoje a santa unidade: entre nós, entre

as nossas comunidades no âmbito federal, nacional, internacional e inter-

continental. Ali, onde a reorganização dos mosteiros é uma realidade já

experimentada, a santa unidade significa fazer a experiência de acolher e

de ser acolhidas, de ir a outros mosteiros para aumentar a vitalidade, de

formar novas comunidades com irmãs de mosteiros diferentes. Ali, onde

a comunidade ou a federação tem dificuldades em assegurar recursos

para a formação permanente e inicial, com pessoas competentes nas

diversas disciplinas, devem desenvolver-se formas de colaboração inter-

comunitária, federal ou interfederal.

As iniciativas que englobam estudos, reflexões comuns, colabora-

ção e discussão, cresceram em todos os sentidos. Há que criar espaços de

comunhão e colaboração entre as comunidades e federações.

As exigências da santa unidade estendem-se também a toda a famí-

lia franciscana. Em muitos lugares esta reciprocidade vital com os irmãos

da Primeira Ordem e com os irmãos e irmãs da Ordem Franciscana

Secular estão muito desenvolvidas.

A Igreja local é o regaço, onde a vida de santa unidade dá frutos

mais imediatos. É ali que estamos chamadas a testemunhar a presença de

Deus e ser “escolas de oração”, e dar o nosso contributo específico para

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crescer na espiritualidade de comunhão, e manter vivo entre os irmãos o

desejo de Deus e do seu Reino.

Conclusão

A história de Clara e das Irmãs de S. Damião foi uma história sem-

pre aberta. Hoje escrevemos a nossa história, graças à sua visão, que

abarcava também o futuro, o futuro de Deus.

A experiência de Clara e de suas irmãs foi uma história de alegria

evangélica, o gozo de quem descobre todos os dias que é protegida com

a ternura da misericórdia de providência do Pai. Esta alegria foi difusiva e

cativou outras, de longe e de perto, gente de Assis e Inês de Praga.

A nossa experiência, as nossas diversas experiências têm e terão as

mesmas características: abrirão caminhos de vida nova e darão a conhe-

cer a verdadeira alegria ‒ experiência pascal ‒ dos discípulos do Crucifi-

cado e ressuscitado. O nosso mundo, acredite ou não, necessita disso.

Deixando-nos inspirar por Clara42

, talvez devamos ser “uma forta-

leza de paciência” num mundo que tem medo de espaços de indecisão e

que só aprecia resultados imediatos.

Devemo-nos esforçar por ser “mediadores de paz” num mundo que

sofre divisões, lacerações e conflitos.

Num mundo que padece com o gelo das relações formais e instru-

mentalizadas, e que desfigura o amor através do mito do êxito, devemos

ser “comunhão de amizade” e “fogo de caridade”.

O caminho a seguir abre-se perante nós, e é o mesmo que Francisco

indicou a Clara com palavras e obras: o Filho de Deus que se fez nosso

caminho.

Em louvor e glória de Cristo e de seus pobrezinhos Francisco e

Clara de Assis.

Tradução da responsabilidade dos Cadernos de Espiritualidade Franciscana

————— 42 BLC 14

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II — Documentos

Três catequeses de Bento XVI

CLARA DE ASSIS

Uma das Santas mais amadas é, sem dúvida, Santa Clara de Assis, que viveu

no século XIII, contemporânea de São Francisco. O seu testemunho mostra-nos como a

Igreja inteira é devedora a mulheres intrépidas e ricas de fé como ela, capazes de dar

um impulso decisivo para a renovação da Igreja.

Portanto, quem era Clara de Assis? Para responder a esta pergunta, dispomos

de fontes seguras: não apenas das antigas biografias, como a de Tomás de Celano, mas

também das Atas do processo de canonização promovido pelo Papa, passados poucos

meses depois da morte de Clara, e que contém os testemunhos daqueles que viveram

ao seu lado durante muito tempo.

Tendo nascido em 1193, Clara pertencia a uma família aristocrática e rica.

Renunciou à nobreza e à riqueza para viver humilde e pobre, seguindo a forma de vida

proposta por Francisco de Assis. Embora os seus parentes, como acontecia nessa

época, começassem a programar para ela um matrimónio com uma personalidade

importante, Clara, com 18 anos de idade, num gesto audaz inspirado pelo profundo

desejo de seguir Cristo e pela admiração que tinha por Francisco, deixou a casa

paterna e, em companhia de uma das suas amigas, Bona de Guelfuccio, uniu-se

secretamente aos frades menores na pequena igreja da Porciúncula. Era a tarde do

Domingo de Ramos de 1211. Na comoção geral, foi levado a cabo um gesto profun-

damente simbólico: enquanto os seus companheiros seguravam nas mãos algumas

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tochas acesas, Francisco cortou-lhe os cabelos, e Clara vestiu o rude hábito peniten-

cial. A partir daquele momento, ela tornou-se a virgem esposa de Cristo, humilde e

pobre, consagrando-se totalmente a Ele. Como Clara e as suas companheiras, inúme-

ras mulheres ao longo da história ficaram fascinadas pelo amor a Cristo, que, na

beleza da sua Pessoa divina, enche o seu coração. E a Igreja inteira, por intermédio da

mística vocação nupcial das virgens consagradas, mostra-se como sempre será: a

Esposa bonita e pura de Cristo.

Numa das quatro cartas que Clara enviou a Santa Inês de Praga, filha do rei da

Boémia, que desejava seguir os seus passos, fala de Cristo, seu amado Esposo, com

expressões nupciais que podem causar admiração, mas que comovem: «Amando-O,

sereis casta, abraçando-O, ficareis mais pura, acolhendo-O, sereis virgem. O seu poder

é mais forte, a sua generosidade mais excelsa, o seu aspeto mais formoso, o seu amor

mais suave, e as suas graças de maior encanto. Ele vos segura em seus braços e orna-

menta de pedras preciosas o vosso peito e enfeita de joias inestimáveis as vossas ore-

lhas e vos envolve de pérolas cintilantes, coroando-vos com a coroa de ouro, marcada

com o sinal da santidade» (FFII 1CCL 8-11).

Principalmente no início da sua experiência religiosa, Clara encontrou em

Francisco de Assis não apenas um mestre, cujos ensinamentos devia seguir, mas

inclusive um amigo fraterno. A amizade entre estes dois santos constitui um aspeto

muito bonito e importante. Com efeito, quando se encontram duas almas puras e

inflamadas pelo mesmo amor a Deus, elas aurem da amizade recíproca um estímulo

extremamente forte para percorrer o caminho da perfeição. A amizade é um dos sen-

timentos humanos mais nobres e elevados, que a graça divina purifica e transfigura.

Como São Francisco e Santa Clara, também outros santos viveram uma profunda ami-

zade no caminho rumo à perfeição cristã, como São Francisco de Sales e Santa Joana

Francisca de Chantal. E é precisamente São Francisco de Sales que escreve: «É bom

poder amar na terra como se ama no céu, e aprendermos a amar neste mundo como

havemos de fazer eternamente no outro. Aqui não me refiro ao simples amor de cari-

dade, porque temos de ter este amor por todos os homens; refiro-me à amizade

espiritual, no âmbito da qual duas, três ou mais pessoas permutam entre si a devoção e

os afetos espirituais, tornando-se realmente um só espírito» (Introdução à vida

devota, III, 19).

Depois de ter transcorrido um período de alguns meses no interior de outras

comunidades monásticas, resistindo às pressões dos seus familiares, que inicialmente

não aprovaram a sua escolha, Clara estabeleceu-se com as primeiras companheiras na

igreja de São Damião, onde os frades menores tinham organizado um pequeno con-

vento para si mesmos. Naquele mosteiro ela viveu por mais de quarenta anos, até à

morte, ocorrida em 1253. Dispomos de uma descrição de primeira mão sobre o modo

como estas mulheres viviam naqueles anos, nos primórdios do movimento francis-

cano. Trata-se do relatório admirado de um bispo flamengo em visita à Itália, D.

Tiago de Vitry, que afirma ter-se encontrado com um grande número de homens e

mulheres, de todas as classes sociais, «a renunciar a todos os bens e a deixar, por amor

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de Cristo, a vida mundana. Eram vulgarmente chamados irmãos menores e irmãs

menores. Tanto o senhor papa como os cardeais professam uma grande estima por

estes irmãos… As mulheres… põem tudo em comum e residem nos arrabaldes das

cidades em hospícios e recolhimentos. Tiram o sustento do trabalho de suas mãos,

recusando tudo o que seja lucro ou paga. E as grandes provas de veneração que lhes

tributam os clérigos e leigos, em vez de os alegrar, consideram-nas um fardo que as

desgosta e contraria» (FFI p.1385-86).

Tiago de Vitry tinha reconhecido com perspicácia uma característica da espi-

ritualidade franciscana, à qual Clara era muito sensível: a radicalidade da pobreza,

associada à confiança total na Providência divina. Por este motivo, ela agiu com

grande determinação, obtendo da parte do Papa Gregório IX ou, provavelmente, já do

Papa Inocêncio III, o chamado Privilegium paupertatis (cf. FFII, 291-295). Com base

nisto, Clara e as suas companheiras de São Damião não podiam possuir qualquer pro-

priedade material. Tratava-se de uma exceção verdadeiramente extraordinária em

relação ao direito canónico então em vigor, e as autoridades eclesiásticas daquela

época concederam-no, valorizando os frutos de santidade evangélica, que reconheciam

no estilo de vida de Clara e das suas irmãs. Isto demonstra que, também na Idade

Média o papel das mulheres não era secundário, mas considerável. A este propósito, é

útil recordar que Clara foi a primeira mulher na história da Igreja que compôs uma

Regra escrita, submetida à aprovação do Papa, para que o carisma de Francisco de

Assis fosse conservado em todas as comunidades femininas, que se iam estabelecendo

em grande número já naquela época e que desejavam inspirar-se no exemplo de Fran-

cisco e de Clara.

No convento de São Damião, Clara praticou de maneira heroica as virtudes que

deveriam distinguir cada cristão: a humildade, o espírito de piedade e de penitência, a

caridade. Apesar de ser a superiora, ela queria servir pessoalmente as irmãs enfermas,

sujeitando-se, inclusive, a tarefas extremamente humildes: com efeito, a caridade

ultrapassa qualquer resistência, e quem ama realiza todo o sacrifício com alegria. A

sua fé na presença real da Eucaristia era tão grande que, por duas vezes, se verificou

um acontecimento milagroso. Só com a ostensão do Santíssimo Sacramento, ela afu-

gentou os soldados mercenários sarracenos, que estavam prestes a invadir o convento

de São Damião e a devastar a cidade de Assis.

Também estes episódios, assim como outros milagres dos quais se conservava a

memória, impeliram o Papa Alexandre IV a canonizá-la logo dois anos após a sua

morte, em 1255, delineando um seu elogio na Bula de canonização, em que lemos:

«Como era grande a força desta luz, e como era forte a claridade do seu brilho! Apesar

de encerrada no segredo do claustro, esta luz irradiava para o exterior; embora reco-

lhida nas paredes de um mosteiro, esta luz era projetada para todo o mundo; protegida

no interior, irradiava para o exterior. Escondia-se Clara, mas patenteava-se a vida.

Calava-se Clara, mas era proclamada a sua fama» (FFII, BCL 4). E é precisamente

assim, estimados amigos! São os Santos que mudam o mundo para melhor, que o

transformam de forma duradoura, infundindo as energias que unicamente o amor ins-

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pirado pelo Evangelho pode suscitar. Os Santos são os grandes benfeitores da huma-

nidade!

A espiritualidade de Santa Clara, a síntese da sua proposta de santidade é con-

densada na quarta Carta a Santa Inês de Praga. Santa Clara recorre a uma imagem

muito difundida na Idade Média, de ascendências patrísticas: o espelho. E convida a

sua amiga de Praga a refletir-se naquele espelho de perfeição de todas as virtudes, que

é o próprio Senhor. Ela escreve: «Feliz daquela a quem foi dado gozar desta íntima

união, e que aderiu com todas as fibras do seu coração Àquele, cuja beleza é contem-

plada por todos os santos do exército celeste, cujo amor nos encanta, cuja contempla-

ção nos vivifica, cuja bondade e benignidade nos basta. A sua doçura satisfaz-nos

plenamente, e a sua recordação ilumina-nos com suavidade. O seu odor ressuscita os

mortos, e a sua visão beatífica santifica os habitantes da Jerusalém celeste. Ele é o

esplendor da eterna glória (cf. Heb 1, 13), a luz da eterna luz, o espelho sem mancha

(cf. Sab 7, 26). Contempla diariamente este espelho, ó rainha e esposa de Jesus Cristo.

Observa nele o teu rosto, para que a grande variedade de virtudes que embeleza o teu

interior e exterior seja como manto de flores, tal como convém à filha e esposa do Rei

supremo. Neste espelho poderás contemplar, com a graça de Deus, como resplandece a

bem-aventurada pobreza, a santa humildade e a inefável caridade (FFII, 4CCL 9-18).

Gratos a Deus que nos doa os Santos, que falam ao nosso coração e nos ofere-

cem um exemplo de vida cristã a imitar, gostaria de concluir com as mesmas palavras

de bênção, que Santa Clara compôs para as suas irmãs de hábito, e que ainda hoje as

Clarissas, desempenhando um papel precioso na Igreja com a sua oração e a sua obra,

conservam com grande devoção. São expressões em que sobressai toda a ternura da

sua maternidade espiritual: «Eu vos abençoo na minha vida e após a minha morte,

quanto posso e mais do que posso, com todas as bênçãos que o Pai das misericórdias

concedeu ou venha a conceder aos seus filhos e filhas no Céu e na terra, e com as

quais um pai ou uma mãe espiritual abençoa ou abençoará seus filhos e filhas espiri-

tuais. Amém!» (FF II, BCL 11-13).

Quarta-feira, 15 de setembro de 2010

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BEATA ÂNGELA DE FOLIGNO

Hoje gostaria de vos falar sobre a Beata Ângela de Foligno, uma grande mística

medieval que viveu no século XIII. Geralmente ficamos fascinados diante dos ápices da

experiência de união com Deus que ela conseguiu alcançar, mas talvez sejam conside-

rados demasiado pouco os primeiros passos, a sua conversão e o longo caminho que a

levou desde o ponto de partida, o «grande medo do inferno», até à meta, que é a união

total com a Trindade. A primeira parte da vida de Ângela não é certamente a de uma

fervorosa discípula do Senhor. Tendo nascido por volta de 1248 numa família abas-

tada, ela permaneceu órfã de pai e foi educada pela mãe de modo bastante superficial.

Muito cedo, foi introduzida nos ambientes mundanos da cidade de Foligno, onde

conheceu um homem com o qual casou aos vinte anos e do qual teve alguns filhos.

Levava uma vida despreocupada, a ponto de se permitir desprezar os chamados

«penitentes» ‒ muito difundidos naquela época ‒ ou seja, aqueles que para seguir

Cristo vendiam os próprios bens e viviam na oração, no jejum, no serviço à Igreja e na

caridade.

Alguns acontecimentos, como o violento tremor de terra de 1279, um furacão, a

prolongada guerra contra Perúsia e as suas duras consequências incidem na vida de

Ângela, que progressivamente adquire consciência dos próprios pecados, até chegar a

um passo decisivo: invoca São Francisco, que lhe aparece em visão, para lhe pedir

conselho em vista de uma boa confissão geral que devia realizar. Estamos no ano de

1285. Ângela confessa-se a um frade em São Feliciano. Três anos mais tarde, o cami-

nho da conversão conhece mais uma mudança: a dissolução dos vínculos afetivos,

porque, em poucos meses, à morte da mãe seguem-se a do marido e de todos os seus

filhos. Então, vende os seus bens e, em 1291, adere à Terceira Ordem de São Fran-

cisco. Faleceu em Foligno, no dia 4 de janeiro de 1309.

O livro da Beata Ângela de Foligno, em que está contida a documentação a

propósito da nossa Beata, narra esta conversão; indica os meios necessários para isto:

a penitência, a humildade e as tribulações, e descreve as suas passagens, a sucessão

das experiências de Ângela, que começaram em 1285. Recordando-as, depois de as ter

vivido, ela procurou narrá-las através do Frade confessor, que as transcreveu, procu-

rando sucessivamente dispô-las em etapas, às quais chamou «passos ou mudanças»,

mas sem conseguir? ordená-las plenamente (cf. Il Libro della beata Angela da

Foligno, Cinisello Balsamo 1990, pág. 51). Isto porque a experiência de união para a

Beata Ângela é um envolvimento total dos sentidos espirituais e corporais e, daquilo

que ela «compreende» durante os seus êxtases, só permanece, por assim dizer, uma

«sombra» na sua mente. «Ouvi verdadeiramente estas palavras ‒ confessa ela depois

de um arrebatamento místico ‒ mas aquilo que eu vi e compreendi, e que Ele [ou seja,

Deus] me mostrou, não sei nem posso dizê-lo de qualquer modo; não obstante, revela-

ria de bom grado aquilo que entendi com as palavras que ouvi, mas foi um abismo

absolutamente inefável». Ângela de Foligno apresenta a sua «vivência» mística, sem a

elaborar com a mente, uma vez que são iluminações divinas que se comunicam à sua

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alma de maneira repentina e inesperada. O próprio Frade confessor tem dificuldade

em descrever tais acontecimentos, «também por causa da sua grande e admirável dis-

crição em relação aos dons divinos» (Ibid., pág. 194). À dificuldade que Ângela tem

de descrever a sua experiência mística, acrescenta-se, inclusive, a dificuldade para os

seus ouvintes de a compreender. Uma situação que indica claramente como o único e

verdadeiro Mestre, Jesus, vive no coração de cada crente e deseja tomar posse total do

mesmo. Assim ocorreu em Ângela, que escrevia a um dos seus filhos espirituais:

«Meu filho, se tu visses o meu coração, serias absolutamente obrigado a fazer tudo

quanto Deus deseja, porque o meu coração é o de Deus, e o coração de Deus é o meu».

Ressoam aqui as palavras de São Paulo: «Já não sou eu que vivo; é Cristo que vive em

mim» (Gl 2, 20).

Então, consideremos aqui unicamente alguns «passos» do rico caminho espiri-

tual da nossa Beata. O primeiro, na realidade, é uma premissa: «Foi o conhecimento

do pecado ‒ como ela mesma esclarece ‒ a seguir ao qual a alma teve um grande medo

de ser condenada; neste passo, chorou amargamente» (Il Libro della beata Angela da

Foligno, pág. 39). Este «medo» do inferno corresponde ao tipo de fé que Ângela tinha

no momento da sua «conversão»; uma fé ainda pobre de caridade, ou seja, do amor de

Deus. Arrependimento, medo do inferno e penitência abrem a Ângela a perspetiva do

doloroso «caminho da cruz» que, do oitavo ao décimo quinto passo, a levará depois

pelo «caminho do amor». O Frade confessor narra: «Então, a fiel disse-me: tive esta

revelação divina: “Depois daquilo que foi escrito, manda escrever que quem quiser

conservar a graça não deve afastar os olhos da alma da Cruz, tanto na alegria como na

tristeza que lhe concedo ou permito”» (Ibid., pág. 143). Mas nesta fase Ângela ainda

«não sente o amor»; ela afirma: «A alma sente vergonha e amargura, e ainda não

experimenta o amor, mas sim a dor» (Ibid., pág. 39), e sente-se insatisfeita.

Ângela sente que deve dar algo a Deus para reparar os seus pecados, mas len-

tamente compreende que nada tem para lhe oferecer, aliás, que «não é nada» diante

dele; entende que não será a sua vontade que lhe dará o amor de Deus, porque ela só

pode dar-lhe o seu «nada», o «desamor». Como ela mesma dirá: apenas «o amor ver-

dadeiro e puro, que vem de Deus, está na alma e faz com que ela reconheça os pró-

prios defeitos e a bondade divina [...] Tal amor leva a alma a Cristo e ela compreende

com segurança que não se pode verificar nem haver qualquer engano. A tal amor não

se pode misturar algo deste mundo» (Ibid., págs. 124-125). Abrir-se única e total-

mente ao amor de Deus, que tem a máxima expressão em Cristo: «Ó meu Deus ‒ reza

ela ‒ tornai-me digna de conhecer o mistério excelso, que o vosso amor ardentíssimo e

inefável realizou, juntamente com o amor pela Trindade, ou seja, o mistério altíssimo

da vossa santíssima encarnação por nós [...] Oh, amor incompreensível! Acima deste

amor, que fez com que o meu Deus se tenha feito homem para me fazer Deus, não

existe amor maior» (Ibid., pág. 295). Todavia, o coração de Ângela traz sempre as

feridas do pecado; mesmo depois de uma confissão bem feita, ela sentia-se perdoada

mas ainda angustiada pelo pecado, livre mas condicionada pelo passado, absolvida

mas carente de penitência. E, inclusive, o pensamento do inferno a acompanha, pois

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quanto mais a alma progredir pelo caminho da perfeição cristã, tanto mais ela se há de

convencer não só que é «indigna», mas que é merecedora do inferno.

E eis que, ao longo do seu caminho místico, Ângela compreende de modo pro-

fundo a realidade central: aquilo que a salvará da sua «indignidade» e do «mereci-

mento do inferno» não será a sua «união com Deus», nem a sua posse da «verdade»,

mas sim Jesus crucificado, «a sua crucifixão por mim», o seu amor. No oitavo passo

ela diz: «Contudo, eu ainda não entendia se era um bem maior a minha libertação dos

pecados e do inferno e a conversão à penitência, ou então a sua crucifixão por mim»

(Ibid., pág. 41). Trata-se do equilíbrio instável entre amor e dor, que ela sentia em

todo o seu difícil caminho rumo à perfeição. Precisamente por isso, contempla de pre-

ferência Cristo crucificado, porque em tal visão ela vê realizado o equilíbrio perfeito:

na cruz está o homem-Deus, num supremo gesto de sofrimento, que é um ato supremo

de amor. Na terceira Instrução, a Beata insiste sobre esta contemplação, afirmando:

«Quanto mais perfeita e puramente virmos, tanto mais perfeita a e puramente amare-

mos [...] Por isso, quanto mais virmos Deus e o homem Jesus Cristo, tanto mais sere-

mos transformados nele através do amor [...] Aquilo que eu disse do amor [...] digo-o

também da dor: quanto mais a alma contempla a dor inefável de Deus e do homem

Jesus Cristo, tanto mais sofre e é transformada em dor» (Ibid., págs. 190-191). Identi-

ficar-se, transformar-se no amor e nos sofrimentos de Cristo crucificado, identificar-se

com Ele. A conversão de Ângela, que teve início com aquela Confissão de 1285, só

alcançará o amadurecimento, quando o perdão de Deus aparecer na sua alma como a

dádiva gratuita de amor do Pai, nascente de amor: «Ninguém pode desculpar-se ‒

afirma ela ‒, porque todos podem amar a Deus, e Ele só pede à alma que o ame, uma

vez que Ele a ama e é o seu amor» (Ibid., pág. 76).

No itinerário espiritual de Ângela, a passagem da conversão para a experiência

mística, daquilo que se pode expressar para o que é inefável, tem lugar através do Cru-

cificado. É o «Deus-homem apaixonado» que se torna o seu «mestre de perfeição».

Toda a sua experiência mística consiste, portanto, em tender para uma «semelhança»

perfeita com Ele, mediante purificações e transformações cada vez mais profundas e

radicais. Ângela dedica-se a este maravilhoso empreendimento inteiramente, de alma

e corpo, sem se poupar a penitências e tribulações, desde o início até ao fim, desejando

morrer com todos os sofrimentos padecidos pelo Deus-homem crucificado, para ser

transformada totalmente nele: «Ó filhos de Deus ‒ recomendava ela ‒ transformai-vos

totalmente no Deus-homem apaixonado, que vos amou a ponto de se dignar morrer

por vós com uma morte extremamente ignominiosa, total e inefavelmente dolorosa, de

modo penosíssimo e amarguíssimo. E isto somente por amor a ti, ó homem!» (Ibid.,

pág. 247). Esta identificação significa também viver aquilo que Jesus viveu: pobreza,

desprezo e dor, porque ‒ como ela afirma ‒ «através da pobreza temporal, a alma

encontrará riquezas eternas; mediante o desprezo e a vergonha, ela alcançará a suma

honra e uma glória excelsa; através de um pouco de penitência, feita com esforço e

dor, possuirá com infinita docilidade e consolação o sumo Bem, Deus eterno» (Ibid.,

pág. 293).

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Da conversão à união mística com Cristo crucificado, ao inefável. Um caminho

elevadíssimo, cujo segredo é a oração constante: «Quanto mais rezares ‒ afirma ela ‒

tanto mais serás iluminado; quanto mais fores iluminado, tanto mais profunda e inten-

samente verás o sumo Bem, o Ser sumamente bom; quanto mais profunda e intensa-

mente O vires, tanto mais O amarás; quanto mais O amares, tanto mais serás feliz; e

quanto mais fores feliz, tanto mais compreenderás e serás capaz de o compreender.

Em seguida, chegarás à plenitude da luz, porque entenderás que não podes compreen-

der» (Ibid., pág. 184).

Estimados irmãos e irmãs, a vida da Beata Ângela começa com uma existência

mundana, bastante distante de Deus. Mas depois, o encontro com a figura de São

Francisco e, finalmente, o encontro com Cristo crucificado, desperta a alma para a

presença de Deus, para o facto de que somente com Deus a existência se torna verda-

deiramente vida, porque se torna, na dor pelo pecado, amor e alegria. E assim nos fala

a Beata Ângela. Hoje todos nós corremos o perigo de viver como se Deus não exis-

tisse: Ele parece tão distante da vida contemporânea. Mas Deus tem mil modos, para

cada um o seu, de se fazer presente na alma, de mostrar que existe, que me conhece e

me ama. E a Beata Ângela quer chamar a nossa atenção para estes sinais, com os

quais o Senhor sensibiliza a nossa alma, atentos à presença de Deus, para aprender-

mos assim o caminho com Deus e rumo a Deus, na comunhão com Cristo crucificado.

Oremos ao Senhor, para que nos torne atentos aos sinais da sua presença, que nos

ensine a viver realmente.

Quarta-feira, 13 de outubro de 2010

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SANTA ISABEL DA HUNGRIA

Hoje gostaria de vos falar de uma das mulheres da Idade Média que suscitou

maior admiração: trata-se de Santa Isabel da Hungria, chamada também Isabel da

Turíngia.

Nasceu em 1207. Os historiadores debatem sobre o lugar. Seu pai era André II,

rico e poderoso rei da Hungria que, para fortalecer os laços políticos, casou com a

condessa alemã Gertrudes de Andechs-Merânia, irmã de Santa Edviges, que era

esposa do duque da Silésia. Isabel viveu na Corte húngara só os primeiros quatro anos

da sua infância, com uma irmã e três irmãos. Gostava dos jogos, da música e da

dança; recitava fielmente as suas preces e já prestava atenção especial aos pobres, os

quais ajudava com uma boa palavra ou com um gesto carinhoso.

A sua infância feliz foi bruscamente interrompida, quando da longínqua Turín-

gia chegaram alguns cavaleiros, com a finalidade de a levar para a sua nova sede, na

Alemanha central. Com efeito, segundo a tradição dessa época, seu pai decidiu que

Isabel se tornasse princesa da Turíngia. O adminidtrador dessa região era um dos

soberanos mais ricos e influentes da Europa no início do século XIII, e o seu castelo era

centro de magnificência e cultura. Mas, por detrás das festas e da aparente glória,

escondiam-se as ambições dos príncipes feudais, muitas vezes em guerra entre si e em

conflito com as autoridades reais e imperiais. Neste contexto, o conde Hermann aco-

lheu de bom grado o noivado entre seu filho Ludovico e a princesa húngara. Isabel

partiu da sua pátria com um rico dote e um grande séquito, inclusive com as suas ser-

vas pessoais, duas das quais foram suas amigas fiéis até ao fim. Foram elas que nos

deixaram preciosas informações sobre a infância e a vida da Santa.

Após uma longa viagem, chegaram a Eisenach, para depois subirem à fortaleza

de Wartburg, o castelo maciço acima da cidade. Ali se celebrou o noivado entre Ludo-

vico e Isabel. Nos anos seguintes, enquanto Ludovico aprendia a profissão de cava-

leiro, Isabel e as suas companheiras estudavam alemão, francês, latim, música,

literatura e bordado. Embora o noivado tenha sido decidido por motivos políticos,

entre os dois jovens nasceu um amor sincero, animado pela fé e pelo desejo de cumprir

a vontade de Deus. Aos 18 anos, Ludovico, depois da morte do pai, começou a reinar

na Turíngia. Mas Isabel tornou-se objeto de murmúrios, porque o seu modo de se

comportar não correspondia à vida cortesã. Assim, também a celebração do matrimó-

nio não foi pomposa, e as despesas para o banquete foram parcialmente destinadas aos

pobres. Na sua profunda sensibilidade, Isabel via as contradições entre a fé professada

e a prática cristã. Não suportava os comprometimentos. Certa vez, ao entrar na igreja

na solenidade da Assunção, tirou a coroa, depô-la diante da cruz e permaneceu pros-

trada no chão com o rosto coberto. Quando a sogra a repreendeu por aquele gesto, ela

retorquiu: «Como posso eu, criatura miserável, continuar a trazer uma coroa de digni-

dade terrena, quando vejo o meu Rei Jesus Cristo coroado de espinhos?». Do mesmo

modo como se comportava diante de Deus, também o fazia em relação aos súbditos.

Entre os Ditos das quatro servas encontramos este testemunho: «Não consumia ali-

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mentos, se antes não estivesse certa de que provinham das propriedades e dos bens

legítimos do marido. Enquanto se abstinha dos bens conquistados ilicitamente, esfor-

çava-se também por indemnizar aqueles que tinham suportado violência» (nn. 25 e

37). Um verdadeiro exemplo para todos aqueles que desempenham funções de guia: o

exercício da autoridade, a todos os níveis, deve ser vivido como serviço à justiça e à

caridade, na busca constante do bem comum.

Isabel praticava assiduamente as obras de misericórdia: dava de beber e de

comer a quem batia à sua porta, oferecia roupas, pagava as dívidas, cuidava dos

enfermos e enterrava os mortos. Quando descia do seu castelo, ia muitas vezes com as

suas servas às casas dos pobres, levando pão, carne, farinha e outros alimentos. Entre-

gava pessoalmente a comida, e controlava com atenção as roupas e os leitos dos

pobres. Este comportamento foi referido ao marido, que não só não se lamentou, mas

respondeu aos acusadores: «Enquanto ela não vender o meu castelo, estou feliz!». É

neste contexto que se insere o milagre do pão transformado em rosas: quando Isabel ia

pelo caminho com o seu avental cheio de pão para os pobres, encontrou o marido que

lhe perguntou o que ali levava. Ela abriu o avental e, em vez de pão, apareceram rosas

magníficas. Este símbolo de caridade está presente muitas vezes nas representações de

Santa Isabel.

O seu matrimónio foi profundamente feliz: Isabel ajudava o cônjuge a elevar as

suas qualidades humanas a nível sobrenatural, e ele, em contrapartida, protegia a

esposa na sua generosidade aos pobres e nas suas práticas religiosas. Cada vez mais

admirado pela grande fé da sua esposa, Ludovico, referindo-se à sua atenção aos

pobres, disse-lhe: «Amada Isabel, foi Cristo que lavaste, alimentaste e cuidaste». Um

claro testemunho do modo como a fé e o amor a Deus e ao próximo fortalecem a vida

familiar e tornam ainda mais profunda a união matrimonial.

O jovem casal encontrou apoio espiritual nos Frades Menores, que, a partir de

1222, se difundiram na Turíngia. Entre eles, Isabel escolheu frei Rogério como diretor

espiritual. Quando ele lhe narrou a vicissitude da conversão do jovem e rico comer-

ciante Francisco de Assis, Isabel entusiasmou-se então no seu caminho de vida cristã.

A partir desse momento, decidiu-se ainda mais a seguir Cristo pobre e crucificado,

presente nos pobres. Mesmo quando nasceu o primeiro filho, seguido depois por

outros dois, a nossa Santa nunca descuidou as suas obras de caridade. Além disso,

ajudou os Frades Menores a construir em Halberstadt um convento, do qual frei Rogé-

rio se tornou superior. Assim, a direção espiritual de Isabel passou para frei Conrado

de Marburgo.

Uma dura prova foi o adeus ao marido, no final de junho de 1227, quando

Ludovico IV se associou à cruzada do imperador Frederico II, recordando à esposa que

se tratava de uma tradição para os soberanos da Turíngia. Isabel respondeu: «Não te

impedirei. Entreguei-me totalmente a Deus, e agora devo dar-lhe também a ti».

Porém, a febre dizimou as tropas, e o próprio Ludovico adoeceu e faleceu com 27 anos

em Otranto, antes de embarcar, em setembro de 1227. Quando recebeu a notícia, Isa-

bel ficou tão amargurada que se retirou em solidão, mas depois, fortalecida pela ora-

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ção e consolada pela esperança de o rever no Céu, recomeçou a interessar-se pelos

assuntos do reino. Contudo, outra prova a esperava: o seu cunhado usurpou o governo

da Turíngia, declarando-se autêntico herdeiro de Ludovico e acusando Isabel de ser

uma mulher piedosa mas incompetente no governo. A jovem viúva, com os três filhos,

foi expulsa do castelo de Wartburg e pôs-se em busca de um lugar onde se refugiar. Só

duas servas permaneceram ao seu lado, a acompanharam e confiaram os três filhos aos

cuidados dos amigos de Ludovico. Peregrinando pelas aldeias, Isabel trabalhava onde

era acolhida, assistia os doentes, fiava e costurava. Durante este calvário suportado

com grande fé, com paciência e dedicação a Deus, alguns parentes, que lhe tinham

permanecido fiéis e consideravam ilegítimo o governo do cunhado, reabilitaram o seu

nome. Assim, Isabel, no início de 1228, pôde receber uma renda apropriada para se

retirar no castelo de família em Marburgo, onde habitava também o seu director espi-

ritual, frei Conrado. Foi ele que referiu ao Papa Gregório IX o seguinte acontecimento:

«Na Sexta-Feira Santa de 1228, pondo as mãos no altar da capela da sua cidade de

Eisenach, onde tinha acolhido os Frades Menores, na presença de alguns frades e

familiares, Isabel renunciou à própria vontade e a todas as vaidades do mundo. Ela

queria renunciar também a todas as posses, mas eu desaconselhei-a por amor aos

pobres. Pouco tempo mais tarde, construiu um hospital, recolheu doentes e inválidos, e

serviu à sua mesa os mais miseráveis e desamparados. Quando a repreendi por estes

gestos, Isabel respondeu que dos pobres recebia uma especial graça e humildade»

(Epistula magistri Conradi, 14-17).

Podemos entrever nesta afirmação uma certa experiência mística, semelhante à

que viveu São Francisco: com efeito, no seu Testamento o Pobrezinho de Assis decla-

rou que, servindo os leprosos, aquilo que antes era amargo se transformou em doçura

da alma e do corpo (cf. Testamentum, 1-3). Isabel transcorreu os últimos três anos no

hospital por ela fundado, servindo os doentes e velando os moribundos. Procurava

desempenhar sempre os serviços mais humildes e os trabalhos mais repugnantes. Isa-

bel tornou-se aquela que poderíamos definir como uma mulher consagrada no meio do

mundo (soror in saeculo) e, com outras suas amigas vestidas de hábitos cinzentos,

formou uma comunidade religiosa. Não é por acaso que é Padroeira da Terceira

Ordem Regular de São Francisco e da Ordem Franciscana Secular.

Em novembro de 1231 foi atingida por uma febre forte. Quando a notícia da

sua enfermidade se propagou, muitas pessoas acorreram para a ver. Depois de cerca de

dez dias, pediu que as portas fossem fechadas, para permanecer sozinha com Deus. Na

noite de 17 de Novembro adormeceu docemente no Senhor. Os testemunhos sobre a

sua santidade foram tão numerosos e tais, que, passados apenas quatro anos, o Papa

Gregório IX proclamou-a Santa e, nesse mesmo ano, foi consagrada a bela igreja

construída em sua honra, em Marburgo.

Estimados irmãos e irmãs, na figura de Santa Isabel da Hungria vemos como a

fé e a amizade com Cristo criam o sentido da justiça, da igualdade de todos, dos

direitos dos outros, e criam o amor e a caridade. E desta caridade nascem inclusive a

esperança e a certeza de que somos amados por Cristo, e que o amor de Cristo nos

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espera, tornando-nos assim capazes de imitar Cristo e de O ver nos outros. Santa

Isabel convida-nos a redescobrir Cristo, a amá-lo, a ter fé, e deste modo a encontrar a

verdadeira justiça e o amor, assim como a alegria de que um dia seremos imersos no

Amor divino, na alegria da eternidade com Deus.

Quarta-feira, 20 de outubro de 2010