Cadernos de Telheiras

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Cadernosde

Telheiras

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NOTA DE ABERTURAInauguram agora os Cadernos Culturais de Telheiras a sua Segunda Série. Separa-a da primeira o tempo, a dimensão e o volume de infor-mação existente.Com efeito, naqueles já recuados dez anos muito se suspeitava sobre a história de Telheiras, mas pouco se possuía. Telheiras constituía um bairro novo da capital, coroando como centro histórico a antiga povoação que lhe transmitiu o topónimo, mais preocupado, como se aventava lógico, pela urbanística, arquitectura e outros problemas correlacionados. Faltava conhecer as origens e seus pormenores.Agora que a simbiose entre populações de diversas origens e escalões se operou e que desistiram as oposições entre os antigos habitantes e os recém-chegados, o bairro de Telheiras, como um todo, orgulha-se do centro histórico, da variedade de arquitectura e da beleza airosa da paisagem. Devia implementar-se, agora então, o conhecimento da vasta e, com o Príncipe de Cândia, única História do local. Para essa necessidade se vocacionou o Centro Cultural de Telheiras, ajudado por toda a Organização da Revista e com a colaboração de antigos habitantes e das entidades culturais da Freguesia e do Bairro. E assim se encontra a génese da nova série dos Cadernos Culturais.Pretendem constituir um Fórum da Organização, do Bairro, da Freguesia e de todos aqueles, individuais ou colectivos, que nele pretendam apresentar trabalhos, ideias, vivências, descobertas… ou simplesmente o prazer de os ler. Domina-os o rigor científico e o universo do sonho na simplicidade e humildade dos recursos, quer humanos, quer económicos. Não se compreenderia de outro modo, numa época de esquizoidia intelectual e cultural, a nova série dos Cadernos Culturais.Encontra-se, assim, esta revista aberta a todos e a tudo, crente de que com o contributo geral, independente da idade ou do saber, se pode tornar um veículo cultural próprio e paradigmático que a todos pro-mova e exalte a Organização, o Bairro e a Freguesia em que existe.

Andrade Lemos

TelheirasCadernos Culturais

2ª Série Nº 1NOVEMBRO 2008

DirectoraManuela Rego

EditorRodrigues Vaz

Colaboraram neste númeroAna Lúcia Cortinhas, Cecília Hen-

riques da Conceição, Celeste Pereira, Cristina Meneses Reis, Eduardo

Sucena, Elisabete Pilar Rodrigues da Rocha, Fernando Andrade

Lemos, Fernando António Monteiro de Almeida Casqueira, Fernando

Pinto, José António Silva, Madalena Larcher, Manuel Barbosa da Costa Freitas, Mariana Calderón, Mário Contumélias, Onivaldo Dutra de

Oliveira, Rosa Trindade Ferreira, Rui Rosas da Silva, Vanda Meneses

CapaRaquel Castelo

(Sobre Desenho de Luís Gonzaga Pereira. In: Monumentos sacros de

Lisboa […] em 1833)BNP COD. 215

Foto da CapaJosé António Silva

Paginação e MaquetagemAndré Santos

Redacção e AdministraçãoRua Prof. Queiroz Veloso, 126

Tel. 217597543 * 1600-xxx LISBOA

PropriedadeCentro Cultural de Telheiras, CCEQ,

ESEQ

Corpo Directivo do Centro Cultural de Telheiras

PresidenteFernando Afonso A. Lemos

SecretárioEng. Jorge Guimarães

TesoureiroAntónio Vilar

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SUMáRiONOTA DE ABERTURA

DE TELHEIRASO Barão e Visconde de Telheiraspor Celeste Pereira, Fernando Andrade Lemos e Ana Lúcia CortinhasVariações sobre um vocábulo – Telheiras, território retórico, terreno relacional e simbólico por Mário ContuméliasTelheiras Antes/Depoispor Ana Lúcia CortinhasO Convento de Nossa Senhora da Porta do Céupor Madalena Larcher

DO LUMIARMemória Paroquial do Lumiarpor José António SilvaNarrativas simbólicas: possíveis formas arquetípicas no edificado do Lumiarpor Fernando António Monteiro de Almeida CasqueiraRua da Castiça, 2por Rosa da Trindade FerreiraAs Rainhas na toponímia do Lumiarpor Elisabete Pilar Rodrigues da Rocha

DOS CENTENÁRIOSUm olhar sobre Machado de Assis (1839-1908)por Cecília Henriques da ConceiçãoA doutrina Escotista da Imaculada Conceiçãopor Manuel Barbosa da Costa FreitasO menino António Vieirapor Fernando Pinto

MISCELÂNEASobre o horizonte apelativo e volúvel da New Agepor P. Rui Rosas da SilvaRecordando Mário Meneses Santospor Vanda Meneses Santos e Cristina Meneses ReisO obelisco e a ermida de Nossa Senhora do Montepor Eduardo Sucena

CRIATIVIDADELugar da Poesiapor Celeste PereiraLugar do Teatropor Onivaldo Dutra de OliveiraA ETPL, uma Escola exemplar em Telheiraspor Mariana Calderón

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O Barão e Visconde de TelheirasVariações sobre um vocábulo

Telheiras (Antes/Depois) O Convento de Nossa Senhora

da Porta do Céu de t

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O BARÃO E ViSCONDE DE TELHEiRAS Celeste Pereira Fernando Andrade Lemos Ana Lúcia Cortinhas

I - O Baronato e Viscondato de Telheiras1 . O Barão e Visconde

a . Os Antepassados primeiros

No século XIX, Telheiras possui Baronato e Viscon-dado. Ocupou as duas honras José Balbino de Barbosa e Araújo, a quem sucedeu a filha, D. Isabel Maria Verquain de Barbosa e Araújo.Pelos Barbosa ligava-se com uma das famílias mais antigas e nobres da Península. De forma alguma se deverá entender o seu título como mais um numerário dos de 1820, tão ironizados por Almeida Garrett.Com efeito, o primeiro antepassado, no tempo de Ber-mudes II de Leão, foi D. Teobaldo Nunes. Cavaleiro das hostes reais, teve um filho, D. Nuno de Cellanova, honrado com o título de Conde, que veio habitar em Portugal para o couto de Barbosa, em S. Miguel de Rãs, Penafiel.Este D. Nuno, por sua vez, teve um filho chamado D. Sancho Nunes de Barbosa – nome já acrescentado do topónimo – que fundou a linhagem dos Barbosa.D. Sancho, parente ainda de S. Rosendo, criou a Quin-ta do Mosteiro de Cete. A sua família ligou-se com a do primeiro rei português e com a de Egas Moniz, pois matrimoniou-se, em segundas núpcias, com D. Teresa Mendes, sobrinha de Egas Moniz. O seu sangue espar-giu-se sobre muitas e variadas outras famílias nobres. A partir de finais da Idade Média, sobretudo nos séculos XIII e XIV, a família caiu em importânciaAs armas que identificavam os Barbosa eram, con-forme o Armorial Lusitano , de prata com banda azul carregada com 3 crescentes de ouro e ladeada de dois leões apontados e trepantes de púrpura, armados e lampassados de vermelho. Timbre: um leão do escudo, sainte.

b . Os Antepassados próximos

José Balbino de Barbosa e Araújo era neto, por via pa-terna, de António Barbosa Pereira, fidalgo cavaleiro da Real Casa de D. João VI. O monarca transitou o foro de Fidalgo Cavaleiro para o seu filho, José António de Barbosa e Araújo, em 20 de Março de 1821. Avance-se, desde já, que este foro transitou, oito dias depois, para José Balbino de Barbosa e Araújo. (R:G:M. D. João VI, Livro 18, f. 45)O pai do 1º Barão de Telheiras, Fidalgo da Casa Real, nasceu a 10 de Março de 1752 e faleceu em Junho de 1833. Formado em Cânones pela Universidade de Coimbra, casou em 16 de Fevereiro de 1786 com D. Maria Engrácia Pereira da Rocha. Exerceu os cargos de promotor e desembargador da Relação Eclesiástica, de Lisboa, e da Nunciatura , de advogado da Casa da Suplicação em Lisboa e, na época em que morreu, igualmente detinha a supervivência da Propriedade do Ofício de Escrivão da Comarca de Lamego, cargo que D. João VI transmitiu ao filho por Decreto de 3 de Maio de 1819, sendo Despachado pelo Desembargo do Paço de 1823 (R.G.M., Livro 17, f. 255 V).Escreveu duas peças de oratória forense: Allegação de facto e de direito, em defeza de Antonio José Cabral de Mello Pinto, sobre a morte de sua mulher D. Maria dos Prazeres de Abreu Soares, Lisboa, 1822, e Alle-gação em defeza dos chamados conspiradores da rua Formosa, Lisboa, 1823.A mãe, D. Maria Engrácia, nasceu a 16 de Abril de 1761, filha de Diogo Pereira Soares, Cavaleiro da Ordem de Cristo, e de D. Catarina Januária da Rocha, e morreu a 15 de Dezembro de 1809.

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Tiveram dois filhos: José Balbino, que veio a ser o Barão de Telheiras, e D. Maria Antónia, que ficou viúva de António Pedro Simões, Desembargador da Casa da Suplicação. Faleceu em 1831.

c . José Balbino de Barbosa e Araújo

Nasceu em Lisboa a 31 de Maio de 1787. No período da juventude, durante os estudos, denotou uma forte sensibilidade para as Letras, sobretudo para a Poesia. Durante as invasões francesas, talvez como ocupação de tempo, talvez por reacção patriótica, compilou poesia portuguesa numa obra em 3 pequenos volumes a que chamou Colecção de Poesias Inéditas dos Mel-hores Autores Portugueses e que deu à luz, respectiva-mente, nos anos de 1808, 1810 e 1811.Trata-se de uma obra relevante no campo da Literatu-ra, verdadeira manifestação do que depois, já no século XX, se veio a publicar, em Portugal, sob a epígrafe Os Poemas da Minha Vida, dado que alguns dos poetas, mencionados ou não, só nela se viram publicados. Só que esta obra de data dos primeiros anos da sua vida juvenil. Ficamos sem saber se este gosto literário con-tinuou (esperamos que sim) e, sobretudo, quais foram os poetas que depois admirou.Em 1815-1816 começa a parte mais importante da sua vida. Napoleão caíra; a corte Portuguesa encontrava-se no Brasil. José Balbino viu-se distinguido ao ser nomeado o correio que levaria a D. João VI os Despa-chos do Conde do Funchal a comunicar a queda do Imperador francês e a paz consequente.E na Corte, no Brasil, inicia-se o seu cursus honorum. Ainda em 1815 ocupou o cargo de Oficial da Secre-taria de Estado dos Negócios do Brasil; em 14 de Julho de 1819 vê-se Proprietário do Ofício de Escrivão da Câmara da Guarda; em 28 de Março de 1821, D. João VI concede-lhe o Foro de Fidalgo Cavaleiro da Real Casa; em 16 de Abril do ano seguinte é nomeado Moço da Câmara Honorário; nesse mesmo ano ocupa o cargo de Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios do Reino; em 14 de Julho de 1823 exerceu o múnus de Moço da Câmara do Número; em 13 de Agosto do mesmo ano vê-se agraciado com a Proprie-dade do Ofício de Escrivão da Provedoria da Comarca de Lamego.Entretanto, por volta de 1818, casou com D. Maria Luísa Verquain, nascida a 9 de Setembro de 1790, filha de João Baptista Verquain, Governador de Solor e Timor, Capitão–de-Mar-e-Guerra da Armada Real na Índia, e de D. Francisca Maria Correa de Sá.

D. Maria II agraciou-o com as funções de Guarda-Roupa e de Porteiro da real Câmara da Rainha e encarregou-o dos Negócios de Portugal junto do Rei de Inglaterra. Pelo Documento do Registo Geral de Mercês desta Rainha, datado de 11 de Fevereiro de 1836, fica a saber-se que prestava serviço há mais de vinte e dois annos tanto na Secretaria d’Estado dos Negocios do Reino, como nos dos Negocios Es-trangeiros, e Marinha. Nas duas primeiras Secretarias foi promovido à sua Direcção em 1832. Neste mesmo Documento foi nomeado Barão de Telheiras.Segundo as Actas do Conselho da Presidência , em 1834, fez a oferta de mapas e silabários para uma das Escolas de Lisboa, pertencentes às Casas de Asilo da Infância Desvalida, de particular empenho da Rainha.Pertenceu à Comissão Administrativa do Depósito Geral das Livrarias Quadros etc dos Extinctos Conven-tos. Em 1837 desempenhou as funções de Presidente Interino e foi ele quem tomou posse dos Quadros, Retábulos e Imagens que, nesse ano, ainda se encon-travam na Igreja do Convento de Telheiras. Um desses quadros era o Retrato do Príncipe de Cândia .Finalmente o Decreto de 17 de Fevereiro de 1845, nas vésperas da sua morte, a Rainha concedeu-lhe o título de Visconde de Telheiras.Possui várias comendadorias e oficialatos, entre outras distinções, quer nacionais, quer estrangeiras: Comen-dador da Ordem de Cristo, Comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa a partir de 1 de Dezembro de 1834, Comendador da Ordem de Carlos III (Espanha), Comendador da Ordem de Ernesto Pio (Saxónia); Oficial da Legião de Honra (França), Oficial da Ordem de Leopoldo da Bélgica, entre outras.A sua vida, conforme a documentação apresentada, pautou-se pela inteligência, pelo zelo e pela assidui-dade. Trouxe vantagem ao país, a sua acção, tendo agradado a todo o Governo.Foi partidário do Liberalismo, dando decididas provas, entre as quais o seu comportamento no cerco do Porto. Caracterizou-o, em suma, o escrupuloso cum-primento do dever e a fidelidade à sua idiossincrasia.d

d. A Filha

O título de Barão de Telheiras foi concedido a José Balbino por duas vidas. Dado que não possuía de-scendência masculina, a Rainha, pelo Alvará de 15 de Fevereiro de 1836 determina que a segunda vida fosse transmitida à filha, D. Isabel Maria Verquain de

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Barbosa e Araújo.Nascida a 9 de Março de 1819, veio a casar em Paris com Philippe François-Thimothe Petit, que era tam-bém Cavaleiro da Ordem de Cristo. Adubou prole mas perdeu-se-lhe o rasto.

e . O Túmulo e a sua Problemática

José Balbino de Barbosa e Araújo faleceu em Lisboa a 26 de Maio de 1846. Nesse ano a viúva mandou erigir o túmulo no Cemitério dos Prazeres, jazigo nº 531, Rua 27.

O monumento consta de várias partes. A encimá-lo uma urna cinerária em pedra. Segue-se, descendo, um tronco triangular com o Brasão e a inscrição:

AQUI JAZJOSÉ BALBINO DE BARBOSA E ARAUJOBARÃO E VISCONDE DE TELHEIRASDO CONSELHO DE SUA MAGESTADE FIDELISSIMASEU GUARDA ROUPA PORTEIRO DA REAL CAMARACOMMENDADOR DAS ORDENSDE CHRISTO DA CONCEIÇÃO DE CARLOS III EM ESPANHA E DE ERNESTO PIO SAXONIAOFFICIALDA LEGIÃO DE HONRA EM FRANÇA E DA DE LEOPOLDO I NA BELGICASECRETARIO GERAL DO MINISTERIO DO REINOQUE NASCEU EM 31 DE MARÇO DE 1787 FALLECEO EM 26 DE MAIO 1846

Todo este conjunto se apoia sobre uma arca tumularia com apoio que tem a seguinte inscrição:

MANDOU ERIGIR ESTE MONUMENTO SUA SAUDOSA ESPOSAA VISCONDESSA DO MESMO TITULO, D. MARIA LUIZA VERQUAIN,QUE NASCEU EM 9 DE SETEMBRO DE 1790;FILHA DEJOÃO BAPTISTA VERQUAIN, GOVERNADOR DE SOLOR E TIMORE CAPITÃO DE MAR E GUERRA DA ARMADA REAL NA INDIA,

E DE D. FRANCISCA MARIA CORRÊA DE SÁFILHA ÚNICA – D. IZABEL MARIA.

O seu Brasão no monumento fúnebre acrescenta ao dos Barbosa uma fita, em redor do escudo, de que pendem 5 condecorações, e uma outra, mais curta e no interior desta à ponta do escudo, de que pende a Cruz de Cristo Na sua obra Subsídios para a Heráldica Tumular Mod-erna Olisiponense, Ruy Duque Travassos Valdez, a pá-ginas 85, com o nº 79, reproduz o Brasão do Visconde de Telheiras. Mas o leão do lado esquerdo encontra-se em sentido inverso ao que figura no túmulo.Só que…Consultado o Livro de Sepultamentos existente na Secretaria do Cemitério chega-se às seguintes con-clusões:1. que o monumento, conforme nele consta, foi com-prado pela Viscondessa em 1846, ano do falecimento do Visconde;2. que o Visconde de Telheiras nunca nele foi deposi-tado;3. que, no seu interior, se encontram o corpo de Emília do Carmo Branco, falecida em 1893 e as ossadas de José Júlio Branco e Agnelo Santos Rita Branco, ambas aí colocadas em 1900.

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A partir daqui várias interrogações se colocam. Onde se encontrarão os corpos do Visconde e da Viscondes-sa? No jazigo da família Corrêa de Sá? Em Paris, cidade onde a filha viveu?Por outro lado, quem é a família Branco cujos restos se encontram depositados? Familiares, serviçais, Procura-dor da Filha?Pensamos que a resposta a tais perguntas exige uma investigação que, à primeira vista não se afigura fácil.O visconde de Telheiras, actualmente tão ignorado, vê-se alvo de desaparecimento que, esperamos seja momentâneo, para se poder solucionar todos os aspec-tos e momentos da História de Telheiras.

II – Acervo Documental

REGISTO GERAL DE MERCÊS

D. JOÃO VI

Livro 18 f. 45

Jozé An.to de Barbosa e Araujo

Eu El Rey Faço Saber a vós Ign.co da Costa Quintel- / la do meu Cons.º, e do de Guerra, Min.º e Secr.º de Est.º dos / Neg.os do R.no, e q. servir de meu Mor-domo Mor: Que / Hey por bem, e me práz fazer m.cê a Jozé An.to de Barbosa / e Araujo, f.º legitimo de An.to Barboza Pr.ª, Fid.º / Cavellr.º da m.ª R.l Caza, de o tomar no m.mo Foro de Fid.º Ca- / vallr.º della com 1$600 rs. de Moradia por mez, e hum al- / queire de Cevada p.r dia, paga seg.do Orden.ça, q. he a Mora- / dia Ordinaria do d.º Foro de Fid.º Cavallr.o, q. lhe compete / p.r seus assendentes. R.º de Janr.º em 20 de M.ço de 1821. / Rey = R. p.r Desp.º do Ill.mo e Ex.mo Ign.co da Costa Quin- / tella, q. serve de Mordomo Mor de 17 de M.ço

Livro 13 f. 247

Jozé Balbino de Barb.ª e Araujo

D. João por Graça de D.s Rey do R.no Unido de Portugal, / Brazil, e Alg.es etcª. Faço saber aos q. esta m.ª Carta vi- / rem, q. por parte de Jozé Balbino de Barboza e / Araujo, me foi aprezentada huma m.ª Prov.am assig- / nada p.los meus Dezr.es do Paço, e passada p.la m.ª Chan- / cellaria Mor da Corte e R.no, da q.l o traslado he o seg.te. = / Segue-se a Prov.am q. está reg.

da no Lº 12 do Principe / Reg.te a f. 9 Vº, debaixo do Ttº de Jozé An.to Barboza / e Arº; e depois della seg-uese = Pedindo-me o dº Jozé / Balbino de Barboza e Araujo, q. porq.to p.la sobredª / Prov.am, eu lhe havia feito m.cê da Propried.e do Off º da (sic) Es- / crivão da Câmara da Cid.e da Guarda, lhe fizesse a outra / de m.dar passar-lhe a Carta da Propried.e do m.mo Off º E visto / seu requerim.to, Prov.am refferida, e p.r confiar delle Supp.e / q. em tudo de q. o encarregar me servirá bem, e fielm.te / como ao meu Serviço, e bem das Partes cumpre, e por / lhe fazer m.cê: Hey p.r bem, e o dou daqui em diante / por Proprietrº do dº Off º de Escr.am da Câmara da Cid.e / da Guarda, assim, e da manrª q. elle o deva ser, e como / o forão os mais Pro-prietr.os seus antecessores q. o m.mo / Off º servirão, o q.l Off º elle terá, e servirá em q.to / eu o houver p.r bem, e não m.dar o contrº, e esta m.ce / lhe faço com a Clausulla Geral. Lxª 14 de Junho / de 1819 = Fran.co Jozé de Faria Guião = M.el Vi- / cente Teix.ra de Carvº = Passouse p.r Despº do Dezº do / Paço de 28 de Mayo de 1819.

Livro 14 f. 50 V

Jozé Balbino de Bar- / boza e Araujo

D. João p.r Graça de D.s Rey do R.no Unido de Portu-gal, / Brazil, e Alg.es etcª. Faço saber, q. attendendo ao q. me Re- / presentou Jozé Balbino de Barboza e Arº, Off.al da / Secrª de Estado dos Negocios do Brazil: Hey p.r bem com- / ceder-lhe faculd.e pª nomear Ser-ventuario pª o Off º de / Escr.am da Câmara da Cid.e da Guarda, de q. he Proprietrº, / sendo a pessoa p.r elle nomeada apta, e approvada p.la / Meza do Dezº do Paço. Lxª 15 de Mayo de 1819 = / Fran.co Jozé de Faria Guião = M.el An.to da Fonceca / e Gouvea = P.r Decr.º de S. Mag.de de 24 de Mayo / de 1815, e Despº de Dezº do Paço de 6 de Mayo de / 1819.

Livro 18 f. 45

Jozé Balbino de Barboza e Araujo

Eu ElRey Faço saber a vós Ign.co da Costa Quintella, de / meu Consº, e do de Guerra, Minº, e Secrº de Estº dos Nego- / cios do R.no, e q. servir de meu Mordomo Mor: Que / Hey p.r bem, e me práz fazer m.ce a Jozé Balbino de / Barboza e Arº f º legº de Jozé An.to de Barboza e Arº,, e Neto de An.to Barboza Prª Fid.os Cavallr.os da mª / R.l Caza, de o tomar no m.mo Foro Foro de Fidº Cavallrº della, com 1$600 rs. da Moradia

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p.r mez, e hum alqr.e de Ce- / vada p.r dia paga seg.do a Orden.ça q. he a Moradia Orde- / naria do dº Foro de Fidº Cavallrº, q lhe compete, p.r / seus ascendentes. Rº de Janrº 28 de M.ço de 1821. Rey / P. p.r Despº do Ill.mo e Ex.mo Ign.co da Costa Quintel / la, q. serve de Mordomo Mor de 27 de M.ço de 1821.

Livro 17 f. 211 V

Jozé Balbino de Barboza / e Araujo

D. João p.r Graça de D.s Rey do R.no Unido de / Portugal, Brazil, e Alg.es etcª Faço saber a vós D. / Alvaro An.to de Noronha e Abranches Castello / Branco, do meu Consº, Marquez de Torres Novas, / Comm.dor das Ordens de N. S.r Jezus Christo, e da de / N. Snrª da Conc.am, Grão Cruz da Torre Espada, / Gentil Homem da mª R.l Camara, e meu Mor- / domo Mor: Que Hey p.r bem fazer m.cê a Jozé Bal- / bino de Barboza e Arº, de o tomar p.r meu Moço da / Câmara Honorario, sem vencim.to algum de mª R.l / Faz.da, e Sóm.te gozará de todas as honras, priv.os, e izenço- / ens q. tem os mais Moços da Câmara do Nº Lxª / 16 de Abril de 1822 = Rey = P. p.r Portrª do Ill.mo / e Ex.mo Marquez Mordomo Mor de 6 de M.ço de 1822.

Livro 16 f. 214

Jozé Balbino Barboza / e Araujo

D. João p.r Graça de D.s / Rey do R.no Unido de Por-tugal, Brazil, e Alg.es etcª Fa / ço saber aos q. esta mª Carta virem, q. tendo approvado por / Decreto de 29 de Junho do corr.te aº, a Proposta q. em ob / servancia dos paragrafos 10, e 12 da Ley de 12 do sobredº / mez, me aprezentou o Conselho dos Ministros, e Secreta / rios de Estado pª Off.os mayores, Off.os Amanuenses da / primrª Classe, e Portr.as dos respectivos Secre-tarios Houve p,r bem nomear pª Off.al da Secretaria de Estado dos Nego / cios do R.no a Jozé Balbino de Barboza e Araujo, q. / ja era Off.al da m.ma Secrª de Estado; o q.l no dº exercicio go / zará do vencim.to e Direitos q. p.r elle lhe competem em / virtude da men-cionada Ley; e prestará Juram.to na Chan / cellaria de bem, e fielm.te servir o refferido Emprego. E por / firmeza de tudo lhe mandei passar esta carta p.r mim / assignada, passada p.la Chancellaria, e Sellada com o Sel / lo do Estado Pagou de Novos Direitos 350$000 rs. Dada / no Palacio de Queluz aos 2 de Novembro de 1822. Elrey, / com Guarda.

Livro 17 f. 211 V

Eu ElRey Faço saber a vós D. Alvaro An.to de No- / ronha Abranches Castello Branco do meu Consº Mar-quez de Torres Novas, Comm.or das Ordens de N. Sr. Jezus Christo, e / de N. Snrª da Conc.am, Grão Cruz da Torre Espada, Gen- / til-Homem de mª R.l Camara, e meu Mordomo Mor: / Que Hey p.r bem, e me práz fazer m.cê a Jozé Balbino de / Barboza e Araujo, de tomar p.r meu Moço da Cama- / ra do Nº com 406 rs de Moradia p.r Mez, e tres quar- / tos de cevada p.r dia, paga seg.do Orden.ça, e 8$000 rs de / M.ce, e Vestear-ia Ordinrª p.r Anno como vencem os mais / Moços da Camara do Nº Lxª 14 de Julho de 1823 = Rey = P. p.r Portrª do Ill.mo e Ex.mo Marquez Mordomo Mor / de 24 de Junho de 1823.

Livro 17 f. 255 V

Jozé Balbino Barboza / e Araujo

D. João p.r Graça de Deos Rey do R.no Unido de Portu- / gal, Brazil, e Alg.es etcª Faço saber, q. toman-do / em Consider.am a intelligencia, assiduid.e, e zello com q. me / serve o sobredº, Off.al da Secrª de Estº dos Neg.os do R.no / Hey p.r bem fazer-lhe m.cê da Supervivencia da Propried.e do / Off º de Escr.am da Provedoria da Com.ca de Lamego, pª se lhe veri- / ficar p.r morte de seu Pay Jozé An.to de Barboza e Arau- / jo. E Mando à Meza do Dezº do Paço o examine, e seu / digo do Paço q. mostrando o Supp.e p.r C.am autentica ser fa- / lecido o dº Pay o examine, e lhe fara passar Carta / em frª do dº Off º, q. se acha lottada na q.tia de 406$200 rs., pa- / gando primrº os Dir.tos ordenados, e esta m.cê lhe faço com a / Clauzulla g.al Lxª 13 de Agosto de 1823 = An.to Gomes Ri- / beiro = Fran.co J.e de Faria Guião = P.r Decrº de S. Mag.e / de 3 de Mayo de 1819, e Despº do Dezº do Paço de 7 de / Ag.to de 1823.

D. Maria II

Livro 4, F. 270 V – 271

Dona Maria por Graça de Deos, Rainha de Por / tugal Algarves, Seus Dominios = Faço Saber aos / que esta minha Carta virem, que Merecendo Me / particular consideração os zelosos e relevantes Ser / viços que Jose Balbino de Barbosa e Araujo, do / Meu concelho, Fidalgo Cavalleiro da Minha Real / Caza, e Meu

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Guarda Roupa, tem prestado por / mais de vinte e dois annos tanto na Secretaria d’Es / tado dos Negocios do Reino, como nos dos Negocios / Estrangeiros, e Marinha, desempenhando no decur / so deste longo periodo diversos, e muito importantes / commissões do Serviço Publico com plena Satisfa / cão do governo e reconhecida vantagem Nacional, / Attendendo tão bem a que na infausta epocha / da Usurpação se distin-guio entre os Meus fieis / súbditos pelas mais decedi-das provas da sua adhe / são ás Instituições Liberais da Monarchia, e fideli / dade á Minha Real Pessoa, e Dynastia exercendo / com desempenho cabal, e nunca desmentido as fun / cções de Secretario d’Embaixada e de Encarregado / dos Negocios de Portugal na Corte de Londres, e fi / nalmente considerando que da direcção das Se / cretarias d’Estado dos Negocios do Reino, e dos Ne / gocios Estrangeiros, desde o anno de mil oito cen / tos trinta e dois até ao presente, e com especiali / dade na Cidade do Porto prestou durante o Cerco / serviços mui importantes = Hey por bem por todos / estes motivos, e em remuneração de tão longos, e / valiosos Serviços Faser Mercê ao Sobredito Jose / Balbino de Barbosa e Araujo do Titulo de Barão / de Tilheiras em duas vidas verificando-se a se / gunda em Sua filha Dona Izabel Maria de Bar / bosa e Araujo na falta de filho varão havido de / legitimo mat-rimonio = E Mando que o Sobre / dito conselheiro Jose Balbino de Barbosa e Ara / ujo Se chame d’ora em diante Barão de Telhei / ras, e que com o dito Titulo gose de todas as honras / prorogativas e que a eminên-cia que por elle lhe per / tencem, e que tem, a de que usão e sempre usarão os / Barões destes Reinos, sem mingoa, ou quebra // (271) alguma = E por firmeza do que dito hé lhe Man / dei dár esta Carta por Mim assignada e Sellada / com o Sello pendente das Armas Reaes = Pagou / de Novos e Velhos Direitos dusentos e seis mil reis que se / carregarão ao Thesoureiro delles a folhas dezasseis / do Livro Segundo da Sua renda como constou de um / conhecimento em forma pelo mesmo Thesoureiro / assignado, e pelo Escrivão do Seu cargo = Dada no / Palacio das Necessidades em dose de Fevereiro de / mil oito centos trinta e seis = A Rainha com guar / da = Luis da Silva Mousinho de Albuquerque = Car / ta pela qual Vossa Magestade Há por bem Faser / Mercê ao Concelheiro Jose Balbino de Barbosa / Araujo do Titulo de Barão de Telheiras pela for / ma retro declarada = Para Vossa Magestade vêr = / Por Decreto de onze de Fevereiro de 1836 = João / de Roboredo a fez = Lugar do Sello pendente / Registado a folhas dusentas trinta e seis do Li / vro

primeiro de Cartas, Alvarás e Patentes = Secreta / ria de Estado dos Negocios do Reino em quinze de Fever-iro de 1836 = Jose Pedro Seromênho = / Conferida em 17 de Fevereiro de 1836 /

Basto

Livro 4, F. 269 V – 270

Eu a Rainha Faço Saber aos que este Meu Alvará / Virem, que merecendo-Me particular consideração / os zelozos e relevantes Serviços, que Jose Balbino de / Barbosa e Araujo do Meu Concelho, Fidalgo Cava- / lheiro da Minha Real Casa, e Meu Guarda Roupa / tem prestado por mais de vinte e dois annos, tanto / na Secretaria d’Estado dos Negocios do Reino, co / mo nas dos Negocios Estrangeiros, e Marinha, desem / penhando no de curso deste longo periodo diver / sas e muito importantes commissões do Serviço Pu / blico com plena satisfação do Governo e reconhe / cida vantagem Nacional = Attendendo tão bem / o que na infausta epocha da Usurpação Se dis / tinguio entre os Meus fieis Súbditos pelas mais / decididas provas da Sua adhesão ás Instituições Li / beraes da Monarchia, e fidelidade á Minha Real / Pessoa, e Dy-nastia, exercendo com desempenho ca / bal, e nunca desmentido as funções de Secretario / d’Embaixada, e d’Encarregado de Negocios de Por / tugal na Côrte de Londres, e finalmente conside- / rando que na direc-cão das Secretarias d’Estado / (270) dos Negocios do Reino e dos Negocios Estrangei / ros desde o anno de mil oito centos trinta e dois até / ao presente, e com especialidade na Cidade do Porto / prestou durante o Cerco Serviços mui importantes / Houve por bem por todos estes motivos, e em remune / ração de tão longos e valiosos Serviços, Fazer Mercê / ao Sobredito Jose Balbino de Barbosa e Araujo, do / Titulo de Barão de Tilheiras em duas vidas, ve / rificando-se a segunda em sua filha Dona Izabel / Maria de Barbosa e Araujo na falta de filho varão / havido do legitimo matrimo-nio, e para que em tem / po competente Se haja de passar á mencionada Do / na Izabel Maria de Barbosa e Araujo a Carta de / verificação da Segunda vida de que Fui Servida / Faser-lhe Mercê no referido Titulo nos termos re / tro expressados, lhe Mando passar este Alvará de / lembrança = Pagou de Novos e Velhos Direitos mil / e oitenta reis que Se carregarão ao The-soureiro de / lle a folhas dezasseis do Livro Segundo da Sua re / ceita, como constou de um conhecimento em forma / pelo mesmo Thesoureiro assignado, e pelo

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Escrivão / do Seu Cargo = Dado no Palacio das Ne-cessidades / em dose de Fevereiro de mil oito centos e trinta e seis / A Rainha com guarda = Luis da Silva Mousinho de / Albuquerque = Alvará de Lembrança pelo qual / Vossa Magestade Há por bem que em tempo com / petente se passe a Dona Izabel Maria de Barbosa / e Araujo Carta de verificação devida no Titulo de / Barão de Tilheiras, pela forma e nos termos retro de / clarados = Para Vossa Magestade ver = Por Decreto / de onze de Fevereiro de mil e oito centos e trinta e seis / = Jose Joaquim Coelho de Campos o fez = Registado a folhas duzentas e trinta e seis verso do Livro pri / meiro de Cartas, Alvarás, e Patentes = Secretaria / d’Estado dos Negocios do Reino em quinze de Fe / vereiro de mil oito centos e trinta e seis = / Jose Pedro Seromênho = Conferida em 17 / de Fever.º de 1836

Basto

Livro 27, f. 16 – 16 v

Dona Maria por Graça de Deos Rainha de / Portugal, Algarves, e Seus Dominios, Faço saber / aos que esta Minha Carta virem, que, Queren- / do nesta fausta occasião do Meu Feliz Succes- / so Dar ao Barão de Tilheiras do Meu Conse- / lho um novo, e authentico testemunho de Be- / nevolencia, em attenção aos seus bons e zelo- / sos Serviços, e ás evidentes provas, que constan- / temente Me tem dado da sua acrisolada fi / delidade e do disvelado interesse que toma / pela pros-peridade da Minha Real Caza: / Hei por bem Fazer-lhe Mercê do Titulo de / Visconde de Tilheiras, e Mando que o sobredi- / to Barão de Tilheiras se chame d’ora em / diante Visconde de Tilheiras, e que com o dito / Titulo Góse de todas as distinações, prerogati- / vas e preeminências que assim lhe competi- / rem sem quebra ou minguamento algum / E por firmeza do que dito é lhe Mandei / passar esta Carta, que vai por Mim assi- / gnada e sellada com o Sello pendente das / Armas Reaes. Pagou de Direitos quatro cen- / tos mil reis, como constou de um recibo em / forma numero cento e vinte e tres passado / (16 v) passado na Secre-taria de Estado dos Negocios / da Fazenda em data de hoje. Dada no Palacio / de Belem em vinte e sete de Fevereiro de mil oito / centos quarenta e cinco = An-tonio Bernar- / do da Costa Cabral = Carta pela qual

Basto

III – A Colectânea Poética1 . O PREFÁCIO DO EDITOR

O Barão e Visconde de Telheiras faz preceder a sua Colectânea de um Prefácio, cujo teor é o seguinte:O Muito que perderia a Nação Portugueza com a falta de publicação das presentes Poesias, todas de abalisados engenhos, foi hum forçoso motivo, que nos obrigou a dallas ao prélo. O nome de seus Autores peça maior parte he já tão conhecido, que não pre-cisamos dizer cousa alguma em abono do seu mereci-mento. Compõe-se esta Collecção principalmente de Poesias Ineditas, e isso mesmo deixa ver o seu titulo. Colligirão-se com tudo tambem algumas impressas, mas que já se tem feito raras, as quaes por isso não podémos dispensar-nos de colligir, sem incorrermos em a nota de ingratos á Patria, e aos manes de seus Autores. Por quanto privariamos a estes da gloria que lhes cabe pelos seus trabalhos litterarios, senão os ar-rancassemos das garras do esquecimento que já os hia tomando, e não dariamos áquella o prazer de acolher novamente em seu seio as mais bellas producções dos seus mais mimosos filhos. O Público fará judicioso conceito da nossa escolha, e não deixará de approvar a boa intenção de lhe sermos uteis, fim principal a que nos havemos proposto.2 . OS AUTORES MAIS COLIGIDOS

Em primeiro lugar deve reparar-se no facto seguinte: o maior número de produções não se encontram com o autor assinalado. A razão só poderá ser suspeitada: talvez por não o saber ou por não se lembrar. Não estariam muito em voga, também?Para alguns foi, no entanto, possível encontrar o autor.

Vossa / Magestade Há por bem Fazer Mercê ao Conse- / lheiro Barão de Tilheiras do Titulo de Visconde / de Tilheiras pela forma acima declarada = Para Vossa Magestade Vêr = Por Decreto de 17 de / Fevereiro de 1845. = Antonio Maximo Cubeiro de / Azevedo Gentil a fez. = Logar do Sello pendente = / Registada a f. 213 do Livro 8º de Cartas, Alvarás, / e Patentes. Secretaria de Estado dos Negocios / do Reino em 3 de Março de 1845 = Antonio / de Barros e Vasconcel-los. = Conferida em 3 / de Março de 1845.

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As notas efectuadas no Levantamento que se segue esclarecem a fonte e a origem atribuível. Para os de-mais só um excelente e pormenorizado conhecimento da Literatura, ou a obra do acaso poderá desvendar os nomes.O que interessa, porém, é salientar que se trata de uma

Colectânea que obedece ao gosto juvenil do Barão de Telheiras e ao seu desejo de salvar do esquecimento estros que, pelos mais variados motivos, a eles se encontra votado. Assim esta obra, possivelmente um vade mecum do Organizador, assume uma relevante importância.O gosto que preside à Compilação é formado pelo Neo-classicismo ou Arcadismo, um gosto igualmente pré-romântico, como se pode constatar pelos autores

mencionados. Muito naturalmente, a colectânea reporta-nos a vivências poéticas imediatamente anteri-ores ao Romantismo.

Pode, então, enumerar-se o conjunto de autores e com-posições citados:

António Dinis da Cruz e Silva - 47 composições;José Anastácio da Cunha - 20composições;Francisco Manuel do Nascimento - 19 composições;José Basílioda Gama - 7 + 1 composições; Cláudio Manuel da Costa - 3 composições;Outros - 15 composições;Anónimos - 48 composições;TOTAL - 160 composições;

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Volume TítuloPáginas Autor Enunciado Autor IndicadoI 5-9

10-1112-1314-1516-2121-2323-2626-3131-3334-3737-3940-4242-43

4445-4647-4849-5051-5555-5757-5960-6262-6465-6969-7272-7676-7980-83

8485

86-8990-96

97-107107-109110-114115-118119-121

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128-133134-135136-141

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143144

145-146

147-152153-156

Ao Senhor Rei D. José I. OdeOde“““““““““““““““““““““““““EpigramaEpigrama. O Doutor MédicoOdeOdeQuitubiaA Espera Amorosa. IdílioSaudadesOdeAusência. Idílio A Solidão Oração Universal Soneto“ Idílio. Márcia InconstanteMorrer de Amor. Ode. Tradução de uma Cena da ‘Venic(e ?) Belvidera, e JafiersTradução de uns Versos InglesesEpitáfioSonetoMonólogo de Alzira de Vol-taire Acto III. Cena IA Existência de Deus. OdeA Vasco da Gama. Ode

José Basílio da GamaAntónio Dinis da Cruz e Silva“““““““““““““““““““““““““

Francisco Manuel do NascimentoJosé Basílio da GamaCláudio Manuel da CostaJosé Basílio da GamaJosé Anastácio da CunhaJosé Anastácio da Cunha“José Anastácio da Cunha““José Basílio da Gama“José Anastácio da Cunha““““““

José Basílio da Gama

15

Volume TítuloPáginas Autor Enunciado Autor IndicadoI

II

157-158

159-160161-164165-168169-171172-174

175176-181182-183184-187

188-1913-6

7

89

10111213

14-15

1617

18-1920-2122-27

2829

30-3132-3334-3536-3738-3940-4142-4344-45

4647

48-5050-5253-5556-5858-6262-6768-7071-73

À Tradução das Metamor-foses de Ovídio feita por Almeno. OdeOde A Avareza. OdeNaufrágio. OdeCançãoA Fortuna. OdeSonetoO Templo de Neptuno. IdílioQuadra com GlosaAo Ill.mo e Ex.mo Senhor D. Rodrigo de Sousa Coutinho. OdeOitava com GlosaSaudação à ArcádiaTradução da Ode XXX do Livro I de Q. Horácio FlacoSoneto““““MadrigalEpicédio. A uma Senhora MoribundaSonetoSonetoOdeQuadra com GlosaIdílio NatalícioOdeSonetoQuadra com Glosa“““““““SonetoSonetoOde“““““SonhoEpicédio. À morte de José Francisco Leal, Lente de

José Anastácio da Cunha

Theodoro de Sousa Mal-donado

Manoel Ignacio da Silva Alvarenga

Gonçalo Vicente PortelaJoaquim Ignacio de SeixasCláudio Manoel da Costa

Francisco Manoel do Nascimento

Francisco Manoel do Nascimento

Francisco Manoel do Nascimento

Francisco Manoel do NascimentoAntónio Diniz da Cruz e Silva“““““

Joaquim Ignacio de Seixas Brandão

Domingos Monteiro de Albuquerque Amaral

Domingos Monteiro de

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Volume TítuloPáginas Autor Enunciado Autor IndicadoII

III

74-8081-8283-8485-86

8788-95

96-101

102-108

109-119

120-129

130-133134-136137-138139-140141-153154-155156-158159-160161-162

163164

165

166-167169-173

174-179180-183

184-186187-188189-190

1-1819-2829-3031-35

3637

Medicina da Universidade de CoimbraOdeQuadra com Glosa““SonetoÀs Artes. Poema que a Sociedade Literária do Rio de Janeiro recitou no dia dos Anos de Sua Majestade FidelíssimaA Sua Alteza Real o príncipe Regente Nosso Senhor. OdeÀ Inauguração da Estátua Equestre do Senhor Rei D. José I. OdeAo Ill.mo e Ex.mo Sebastião José de Carvalho Marquês de Pombal &c. OdeAo Ill.mo e Ex.mo D. Rodrigo de Sousa Coutinho. OdeA Duarte Pacheco. OdeOdeSextinasQuadrasCançoneta““““Canção A uma Velha que presumira de bons olhos. EpigramaEpigrama XIX. Do L. I de MarcialIdílioÀ Imaculada Conceição de Maria Santíssima Senhora Nossa. OdeDitiramboO Génio do Museu. SonhoOde a FilintoQuadra com GlosaQuadra com GlosaDitiramboProtheo. IdílioQuadra com GlosaA Afonso de Albuquerque. OdeSoneto“

Cláudio Manoel da Costa

Manoel Ignacio da Silva Alvarenga

Francisco Manoel do Nascimento

Francisco Manoel do NascimentoFrancisco Manoel do Nascimento

António Diniz da Cruz e Silva““Alfeno Cynthio

António Diniz da Cruz e SilvaDomingos Maximiano Torres

João Ignacio da Silva AlavarengaJosé Basílio da Gama“

José Anastácio da Cunha“““““

Albuquerque Amaral Viscondessa de Balsemão , D. Catarina

Ricardo Raimundo Nogueira

Francisco Xavier Mon-teiro de Barros

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Volume TítuloPáginas Autor Enunciado Autor IndicadoIII 38-42

43-4647-5253-5757-6464-6869-7373-7676-83

84858687888990 91929394

95-103103-109109-114115-125125-132132-137

138-152

152-156157-163164-169

169-180

Canção. O CiúmeHino à AmizadeSoneto com GlosaOdeNoite sem SonoO AbraçoO PresságioA DespedidaA Uma Infeliz NotíciaSoneto“““ “““““““Anfriso. IdílioProtheo. Idílio PiscatórioIdílio. Elpino e FilondasTirinto. Idílio VenatórioJolas. Idílio PiscatórioÈgloga. Elpino Nonacriense aos Pastores da Arcádia na Primeira Conferência, que foi a 19 de Julho de 1757Idílio Pastoril aos felicíssimos desposórios do Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Manoel Bernardo de Mello e Castro com a Ilustríssima e Excelentíssima Senhora D. Domingas de NoronhaA Mariposa. MetamorfoseO Cauhy. MetamorfoseO Cristal e o Topázio. Meta-morfoseAuliza, Ergasto e Dameta

Francisco Manoel do Nascimento““““““““““António Diniz da Cruz e Silva“ “ “““ “ “ “

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BiBLiOGRAFiA

Actas do Conselho da Presidência, 1834

Armorial Lusitano Genea lógia e Heráldica, 3ª ed., Ed. Enciclopédia, Lisboa, 1987

Collecção de Poesias Ineditas dos Melhores Autores Portuguezes, Impressão Régia, Lisboa, 1809…

CASTRO, Manuel de, Resenha das Famílias Titulares do Reino de Portugal Acompanhada das Notícias Biographicas de Alguns Individuos das Mesmas Famílias, Imprensa Nacional, Lisboa, 1838

Livro dos Sepultamentos do Cemitério dos Prazeres, Lisboa

Portugal – Dicionário Histórico, Geográfico, Heráldico, Biográfico, Numismático e Artístico, João Romano Torres, 1904-15

GEPB, art. “Telheiras (Visconde e Barão)”

MACHADO, Diogo Barbosa, Bibliotheca Lusitana, Atlântida Editora, Coimbra, 1965

PEREIRA, Maria Celeste, LEMOS, Fernando A. A., FERREIRA, Rosa Trindade, Docu-mentos Inéditos para a História de Telheiras e Seu Convento, Centro Cultural de Telheiras, Lisboa, 2007

SILVA. Inocêncio F., Diccionario Bibliographico Puguez, Imprensa Nacional, Lisboa, 1858 (e seguintes)

SOUSA, Manuel de, As Origens dos Apelidos das Famílias Portuguesas, Sporpress, Mem Martins, s/d

TAVARES, José, As Metamorfoses de António Dinis da Crus e Silva, Coimbra Ed. L.da, Coimbra, 1944

VALDEZ, Ruy Duque Travassos, Subsídios para a Heráldica Tumular Moderna Olisipon-ense, 2ª ed., Livraria Esquina, Porto, 1994

Internet:Google. barão de telheiras

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VARiAçõES SOBRE UM VOCáBULO

Telheiras, território retórico terreno relacional e simbólico Mário Costumélas

O text acima é um excerto da tradução de Fernando Pessoa (1924) do conto “The Raven”, de Edgar Alan Poe. Adiante perceberão que não o evoco com o intuito de ensombrar a vossa manhã com o talento, a um tempo magnífico e terrível de Poe, aqui tão bem servido pela mestria de Fernando Pessoa.Já agora, autorizar-me-ão que, á semelhança do mesmo Edgar Alan Poe, personalize esta intervenção fazendo-a na primeira pessoa do singular, assim me dispensando da distância que a Academia costuma recomendar que o investigador produza em relação ao texto.Porque é na qualidade de investigador social que aqui estou, para vos falar um pouco da reflexão que venho fazendo sobre o universo de Telheiras, vulgarmente entendido como um dos bairros recentes de Lisboa. Um pouco como quem reflecte em voz alta, ainda uma última vez, antes de passar à escrita o resultado do seu trabalho. Será, prometo, uma intervenção curta. O problema...À partida, o objectivo específico da minha investigação,

iniciada de forma estruturada há meia dúzia de anos, estava “em encontrar, interrogando Telheiras (um bairro recente, sem História, pensava eu então...), um subsídio significativo para a resposta às perguntas: o que é hoje um bairro; como se produz/inventa; em que medida se aproxima/distancia ele do processo de construção de comunidade, enquanto individualidade pensada, sim, mas com uma correspondência prática no exercício das sociabilidades?” Havia aqui um problema – eram muitos os que se rec-lamavam de Telheiras, procurando definir-lhe limites que, para os primeiros habitantes, se restringiam a um triângulo delimitado pelas vias rápidas – Eixo Norte-Sul, Av. Padre Cruz, Segunda Circular – e que, para os que iam chegando, se alargava, ao mesmo tempo que crescia a construção e com esse crescimento. Os primeiros garantiam que Telheiras era o triângulo e só o triângulo, enquanto os outros diziam que Telhei-ras era, também, o local, o prédio onde viviam, mesmo que esses estivessem fora do referido triângulo. Todos

Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta! Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,

Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo! eu disse. «Parte! Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!

Não deixes pena que ateste a mentira que disseste! Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»

Disse o corvo, «Nunca mais».

(Excerto de “O Corvo”, Tradução de Fernando Pessoa (1924) do conto “The Raven”, de Edgar Alan Poe)

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afirmavam a existência do “bairro” e a sua pertença a ele. Contudo, não havia, e não há, qualquer delimita-ção administrativa clara, nem na Junta de Freguesia, nem na Câmara Municipal de Lisboa. Foi a constatação disto mesmo, desta inexistência de fronteiras administrativas, que me levou a colocar a hipótese de que Telheiras, enquanto bairro, não podia ser visto como um território morfológico, mas devia, isso sim, ser entendido como um território retórico. E, assim, o centro da questão estava em definir Telheiras como um bairro produzido por um conjunto de pro-cessos de comunicação, e só nela existente. A ideia de que era a comunicação que produzia a identidade dos sujeitos encontrava abrigo na afirmação de Breton (1997), de que “a identidade é as mais das vezes inventada por completo”. Mas, também aqui, subsistia o problema – um território retórico, um ter-reno comunicacional também precisa de fronteiras, as da língua, ou as da cultura que sejam, como factor de diferenciação. Porém, em Telheiras, território em construção, não eram visíveis as manifestações de uma cultura que produzisse uma identidade clara e não problemática. Onde estaria, então? que limites teria? o meu “ter-ritório retórico”, aqui entendendo “retórica” como uma ferramenta “capaz de anular as diferenças para criar a identidade” (Meyer, 1993/98).

Os objectos...A solução creio tê-la encontrado em dois momentos complementares. Num primeiro tempo, socorri-me de Roman Jakobson (1976). Na primeira das suas Seis Lições Sobre o Som e o Sentido, Jakobson discorre sobre o conto de Edgar Alan Poe, The Raven (percebem agora porque comecei citando o excerto), centrando-se no vocábulo Nevermore, o único que a ave pronuncia, para sublinhar o seu “conteúdo semân-tico muito rico”, quer “em significações virtuais”, quer “em significações particulares”, e que é por isso capaz de “nos transportar para o futuro”. Ora, no caso da minha investigação, eu lidava também com uma palavra rica de significados, precisamente “Telheiras”, cujas capacidades não ficavam (não ficam) aquém das enunciadas por Jakobson. Não procurando, embora, a investigação em curso seguir o caminho da fonologia, isso não implicava pôr de parte um esforço sociológico para lhe apreender o sentido...Num segundo tempo, Bourdieu (1997) revelou-se fundamental, ao lembrar que “nomear (...) é fazer ver, é criar, é trazer à existência”. Ora todo o trabalho

investigativo que já havia desenvolvido conduzia, invariavelmente, a um ponto de chegada, que era, também, o ponto de partida; afinal uma única palavra _ “Telheiras”. Palavra rica de conteúdo semântico, plena de sentido. É ela, em última análise, que faz ver alguma coisa a que se chama “bairro”, é ela que o traz à existência. Portanto, seria nela, enquanto conceito, que se substantivaria o objecto do meu estudo sociológico. Mas não em si mesma, já que, como ensina Luhmann (1992), “o sentido só se pode entender em função do contexto”.E o contexto, aqui, remetia e remete para um constante tecer de “processos de comunicação e de formação de representações simbólicas” (Costa, 1999), de significa-dos emergentes, na génese dos quais ressaltam actores, endógenos e exógenos ao “bairro”, e práticas sociais, cuja análise constituía, afinal, o objecto empírico do meu trabalho enquanto investigador. Entre estes actores sociais avultam a Associação de Residentes de Telheiras, a Empresa Pública de Urban-ização de Lisboa 1, o Centro Cultural de Telheiras, o “Jornal de Telheiras” e os outros Media locais, bem como os Media de expansão nacional que a Telheiras se vão referindo. São estes actores os mais visíveis construtores dos pro-cessos de comunicação formal que cruzam o “bairro”, e que estão na origem dos processos de comunicação in-formal, que atravessam os discursos do quotidiano dos actores individuais. São, por isso, eles, as suas acções e interacções e os seus produtos, que constituem o objecto propriamente empírico, sobre o qual tem incidido a pesquisa que tenho realizado no terreno.

Comunidade interpretativaSão estes actores, pode dizer-se institucionais, quem espalha a palavra, apropriada por outros actores colectivos e individuais, que num processo de dupla hermenêutica, a interpretam, e lhe reconstroem o sen-tido. Afinal, uma comunidade interpretativa dos que partilham a multiplicidade de sentidos que à palavra atribuem, sentidos que produzem acção e são por ela produzidos; constante produzir e reproduzir esses que enriquecem o conteúdo simbólico do termo, operacio-nalizando-o, pela apropriação dos actores, como um forte símbolo de pertença, um substantivo referente identitário. E esse define o território sem definir fronteiras; de resto, como sustenta Pina Cabral (1991), “uma forte associação da identidade social com o território não implica necessariamente uma definição absoluta de fronteiras”, porque o que importa é o

1 Só três exemplos da forma como a EPUL tem promocionado os seus produtos urbanísticos: “Construir o novo, conservando a memória” (promoção do Alto da Faia); “Sabia que existe uma aldeia na cidade?” (promoção da Quinta de S. Vicente); “Aldeia de Telheiras – um investimento no sossego” (Promoção do Núcleo Antigo de Telheiras).

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“princípio de identificação em jogo”. Esse princípio, de que fala o antropólogo citado, é, no caso, dado pelo vocábulo “Telheiras”, interpretado como “uma aldeia na cidade” (uma ideia tão interi-orizada, que é corrente ouvir dizer-se, em Telheiras, frases do tipo “amanhã não vou a Lisboa”), como “a aldeia dos doutores” ou o “bairro da massa cinzenta” (Expresso”12.06.93); ou, ainda, como a “aldeia que aprende” (Univa da ART2 ); como “um bairro” em que existe uma Associação, instituição de utilidade pública, que age no sentido de “promover o aperfeiçoamento social, cultural, físico e cívico dos seus membros residentes”3 ; “um bairro” que foi o primeiro de Lisboa a ter um jornal4 ; “um bairro”, enfim, que confere estatuto a quem lá mora e que, simultaneamente, con-stitui uma marca5 . É esta última característica que explicará a existência de uma “Renault de Telheiras”, na freguesia de Car-nide; ou de um complexo habitacional denominado “Telheiras Residence”, do outro lado da Segunda Circular; ou ainda de uma empresa de camionagem chamada “A Flor de Telheiras”, na Estrada da Torre, para citar só alguns exemplos.

Período de análise

Encontrados, deste modo, o objecto sociológico e o objecto empírico, faltava-me definir o período sobre o qual fazer incidir a análise. Para isso precisei romper com uma ideia avançada no princípio desta investiga-ção, precisamente a de que Telheiras seria “um bairro recente, sem História”. Não é! Em 1991, já lá vão 16 anos, Andrade Lemos lembrava, no Nº1 dos Cadernos Culturais de Telheiras, que, e cito, “a parte velha” (...) “não consegue esconder a sua vetustidade” e “mani-festa as ocupações celta e romana, abertamente”. É, de facto assim, mesmo que a ideia de “aldeia”, que constitui um dos sentidos centrais da palavra “Telhei-ras”, radique numa realidade historicamente próxima e só aparentemente tornada distante, face às mudanças radicais que ocorreram neste pedaço de território da freguesia do Lumiar. Até aos finais da década de 60, Telheiras podia ser realmente entendida como uma aldeia (aquilo a que veio a chamar-se mais tarde NAT – Núcleo Antigo de Telheiras), rodeada de quintas, que assegurava o seu sustento com base em actividades agrícolas. Nos finais da década de 60, a Câmara Municipal de Lisboa redefiniu Telheiras, no Plano Director Municipal, como uma zona de expansão residencial da cidade.

O desenvolvimento urbanístico engoliu as quintas, mas no ano 2000 ainda havia em Telheiras velhos agricultores, todos com mais de 70 anos, que dia após dia saíam das suas casas, no NAT, para cuidarem de hortas, que haviam plantado em terrenos onde as escavadoras ainda não tinham chegado, nem se iniciara a construção, como Ana Contumélias (2007) mostra em Um Quadradinho de Verde na Aldeia de Telheiras – Caso e Metáfora.Há, portanto, uma história recente, ainda viva na memória de algumas pessoas que, nos locais onde hoje se erguem edifícios e prédios de escritórios, experi-mentaram uma outra maneira de viver, outros estilos de vida, outros consumos, outros valores, um outro tipo de comunidade. Aquele onde o “Fernandel de Telheiras”, actor do grupo cénico da Academia Musical União Familiar de Telheiras”, se curvava (há 40 anos atrás) para agradecer os aplausos, pelo seu desempen-ho na peça onde se descrevia Telheiras desta forma: Tem uma formosa igreja/que chega a causar inveja/que por sorte Deus lhe deu/ E chegou a ganhar fama/Pois toda a gente lhe chama/Templo das Portas do Céu/... Este “Templo das Portas do Céu”, no convento de Telheiras, remete para uma História local ainda mais distanciada no tempo, quando, corria o ano de 1633. Então, D. João de Cândia, antigo príncipe de Ceytara e Catecorlas, Ceilão, agora nobre e prelado residente em Lisboa, resolve comprar no “tranquilo e bucólico arrabalde de Telheiras”6 , uma quinta com as suas casas de morada que transforma num convento, destinado à convalescença de frades franciscanos, com uma igreja votada a Nossa Senhora da Porta do Céu. O vocábulo “Telheiras” tem, pois, também um signifi-cado em termos da memória colectiva, embora mais difuso. Portanto, a análise de “Telheiras”, enquanto significante, não dispensa um recurso ao passado histórico e, sobretudo, ao uso que dele fazem os ac-tores que nomeiam o “bairro”, trazendo-o à existência (Bourdieu, 1997).Contudo, sem deixar de ter em conta o contributo histórico para a construção do sentido atribuído a Telheiras, mostrando como esta memória é apropriada e manipulada, a minha análise acabou por restringir-se a um período mais perto no tempo, compreendido entre 1996, data em que a presidente da ART, então a socióloga Ana Contumélias, já aqui citada, apresen-tou, ao “III Congresso da Associação Portuguesa de Sociologia”, uma comunicação intitulada “Construção Socio-ecológica de um local virtual – Telheiras, a

2 Unidade de Inserção na Vida Activa- Univa, criada pela Associação de Residentes de Telheiras, com o apoio do Instituto de Emprego e Formação Profissional, no ano de 1998. 3 A Associação de residentes de Telheiras, ART, consagrada como instituição de utilidade pública em Diário da República, II série, n.º 125, de 30 de Maio de 2000.4 Jornal de Telheiras, edições nºs 0, 1, 2, 3, 4, 5 e 6 do, entre Agosto de 1999 e Novembro de 2000.5 Costa, Juan (1993) sustenta que uma marca constitui uma “palavra-estímulo”, que “identifica um produto” e “determina uma conduta do público”, operando “uma transferência simbólica para o produto”.

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qualificação de um meio inovador urbano”, e o ano 2000, em que se publicou a última edição do “Jornal de Telheiras”…

OrientaçãoSe “Telheiras” é uma “invenção”, essa “invenção” é identitária e, como produto comunicacional, é capaz de “transportar para o futuro”, como diz Jakobson do vocábulo Nevermore. Nomear “Telheiras” produz sociedade, na medida em que igualmente produz uma

BiBLiOGRAFiA

Breton, Philippe, (1997/2001). A Palavra Manipulada. Lisboa: Caminho.

Bourdieu, Pierre, (1997). Sur la télévision. Paris : Liber éditions.

Cabral, João de Pina, (2000). “A difusão do limiar: margens, hegemonias e contradições”, volume temático Lisboa

Cidade de Margens, Análise Social. Lisboa: ICS.

Costa, António Firmino da, (1999). Sociedade de Bairro. Oeiras: Celta.

Costa, Joan (1992). Imagem pública, una ingenería social. Madrid: Fundesco

Contumélias, Ana (2007) Um Quadradinho de Verde na Aldeia de Telheiras – Caso e Metá-fora. Lisboa: Plátano

Jakobson, Roman (1976/1977). Seis Lições Sobre o Som e o Sentido. Lisboa: Moraes

Luhmann, N. (s/d-1992) A Improbabilidade da Comunicação. Lisboa: Veja

Meyer, Michel, (1993/98), Questões de Retórica: Linguagem, Razão, Sedução. Lisboa: Edições 70

Pessoa, Fernando (1924) “O Corvo”, Tradução do conto The Raven, de Edgar Alan Põe.

comunidade interpretativa, em que sujeitos urbanos se reconhecem, porque partilham visões do mundo, que permitem e ligam as relações. Talvez possa ser aqui, neste terreno relacional e sim-bólico, que o poder de uma palavra e da forma como ela é comunicada possa ajudar a perceber o que é hoje e como se produz um “bairro”. Essa é, pelo menos, a hipótese que tento provar com a investigação que tenho desenvolvido e de que aqui vos dei brevemente conta, cujo resultado estará concluído nos próximos meses.

6 J.M. Cordeiro de Sousa, “O Oratório de Telheiras (Breves notas para a sua história)”, in Cadernos Culturais, Nº1, Ed. Centro Cultural de Telheiras, Lisboa, 1991

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TELHEiRAS

AntesAntes DepoisDepois

A foto a preto e branco do par n.º 1 representa a Estrada de Telheiras, em 1940, reproduzindo estruturas que foram identificadas com as da Quinta do Pimenta ou da Florista. Ligava Telheiras ao Campo Grande, onde de se efectuava uma “feira de Homens” com o intuito de angariar trabalhadores de carácter rural.Na foto actual tirada nas imediações da entrada subterrânea do metro de Telheiras, ainda se pode ver um troço da calçada à portuguesa que constituíra o pavimento antigo. Como se pode ver as construções datam de finais da década de 80 (as da esquerda) e da década de 90 (a torre da direita). Esta parte, ainda se encontra em construção.Deve salientar-se, de momento, o facto curioso: os antigos e os actuais postes telefónicosOrIentAçÃO: W - e

Ana Lúcia Cortinhas

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A foto antiga reproduz o início da Estrada de Telheiras junto ao Campo Grande, em 1961. Nas imediações surgiu o primitivo Campo do Benfica até 1954.Hoje o espaço vê-se ocupado pelas instalações do metro do Campo Grande construído nos anos 90. Tudo mudou, mantendo-se a natural planície que aí existiu. O próprio início da Estrada de Telheiras já não existe actualmente. Iniciava-se no canto inferior direito da foto.OrIentAçÃO: W - e

A foto antiga, de 1961, representa o terreno de extracção de barros para cerâmica da Quinta de S. Vicente. Escava-va-se verticalmente a encosta.Com a construção do Bairro Camarário com o apoio monetário dos Estados Unidos, a partir da década de 75, o espaço entre o topo do Terreno, onde depois se ergueu a Estação de Captação a Purificação das Águas de Lisboa, EPAL, foi aterrado para se nele, poderem construir as habitações dúplex ou de um só piso.

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Quanto ao aterro, pode verificar-se na foto actual, a inclinação do terreno, além do tipo de casas que foram con-struídas. Inicialmente destinadas a pessoas reformadas e antigos habitantes da Quinta de S. Vicente, foram depois distribuídas pela C.M.L a pessoas de outras origens que necessitavam de casa. A Câmara Municipal de Lisboa procurou, neste Bairro fazer a inserção social dos habitantes distribuindo as casas a pessoas de condição social humilde (a parte inferior do bairro) e, na parte superior, a polícias e professores, entre outras.OrIentAçÃO: S - n

Na ligação da Azinhaga de Telheiras com a Estrada de Telheiras – a Azinhaga de Telheiras abria-se para poente, a partir da estrada – havia a ligação de terrenos de duas Quintas: a de Santo António e a de S. Vicente. Surgia, então uma elevação do terreno cm a direcção S – N., espécie de planalto. Neste planalto se edificou parte do eixo Norte-Sul e, no topo norte, o actual Carrefour. Esta foto a preto e branco data de 1961.Na foto moderna podem ver-se os últimos terrenos anteriores ao eixo Norte-Sul que passa antes dos prédios que surgem em segundo plano, do lado esquerdo da foto.A estrada, actual Rua Fernando Namora, segue, com poucas variações e endireitando-a a Azinhaga de Telheiras que ligava esta antiga povoação à Luz.Os prédios datam da década de 80. Os de segundo plano já pertencem ao século XXI.OrIentAçÃO: e - W

Entre a Quinta de S. Vicente e a Luz na Azinhaga de Telheiras abriam-se algumas vias secundárias. A foto reproduz um troço de uma dessas vias secundárias, em 1961.A partir da década de 90, inícios, a área começou urbanizar-se encontrando-se, ainda, a parte mais ocidental com alguns terrenos livres, sobretudo a parte Sul da actual Rua Fernando Namora.OrIentAçÃO: S – n

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Como ficou visto na foto n.º 5, a Azinhaga de Telheiras abria vários arruamentos ao longo do itinerário. O Parque dos Príncipes, a título de exemplo, e os arruamentos que se lhe seguem em direcção à Luz, encontram-se na dis-posição dessas vias secundárias, dado que a Azinhaga serpenteava mais a Sul, neste troço actual da Rua Fernando Namora já perto da Luz abria-se a velha Azinhaga da Torre do Fato.Os prédios que foto actual desvela pertencem à década de 90 e mostram uma dessas vias secundárias e o aproveit-amento urbanístico do terreno. Note-se o seu carácter horizontal sem grandes relevos.OrIentAçÃO: S – nW

A Segunda Circular veio separar a parte Sul de Telheiras da Norte, como se se tratasse de duas regiões distintas. No entanto, em 1961, tal não acontecia. A parte Sul de Telheiras entendia-se pela Quinta da Calçada e pelo Hipó-dromo do Campo Grande, ocupando todos os terrenos entre as duas regiões. O hipódromo, por exemplo, era a continuação da Quinta do Pimenta, ou das Flores.Actualmente o terreno que surge na foto é ocupado pela Escola Alemã de Lisboa, que data da década de 60

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(meados). A seu lado para Ocidente já se havia estabelecido desde a década de 30, e mais a Ocidente, com seus barracões, a Azinhaga das Galhardas, que Mário Zambujal caracterizou na “Crónica dos Bons Malandros”OrIentAçÃO: S - nW

A Quinta de S. Vicente caracteriza-se por ser plana, a não ser na parte norte. Essa característica transmitiu-se à urbanização que se verificou a partir da década de 60.Os prédios que a foto actual mostra dos finais da década de 80, na Rua Professor Francisco Gentil, o aproveita-mento que a EPUL destinou aos terrenos abundantes e frutícolas das instalações da Quinta de S. Vicente. Como curiosidade acrescenta-se a vida extremamente social que a Quinta desenvolvia, iniciando-se nela carreiras como as de Amália e Hermínia Silva – nos primeiros momentos, ainda como raparigas. Os utentes podiam levar comida, dispensando a cozinha da (que era maravilhosa - dizem); só deviam consumir o vinho da casa – era obrigatório.OrIentAçÃO: S - nW

Nesta foto de 61, relativa à Azinhaga de Telheiras, situavam-se árvores como estas que propiciaram vivências bastante particulares aos habitantes mais jovens de Telheiras.Em direcção E – W, na foto actual obtida junto da Escola Primária de Telheiras pode ver-se o serpentear e a largura da Azinhaga e várias modificações e adaptações que lhe foram feitas.Ao fundo, em terceiro plano surge o Parque dos PríncipesOrIentAçÃO: e – W

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No início, na ligação com Telheiras, as quintas continuavam em direcção à Luz. Um dos exemplos reside na foto de 1961.Tal início da Azinhaga encontra-se na ligação da Estrada de Telheiras e o desnível que se notava com a Rua Fer-nando Namora. Esse desnível entre o traçado das duas vias, actualmente toma o nome Rua Hermano Neves (parte Norte)A foto actual mostra essa área de ligação com os prédios de finais da década de 80.OrIentAçÃO: SW - n

Agradecimentos

Arquivo Fotográfico de LisboaInstituto Geográfico do Exército

Presidente do Centro Cultural de TelheirasTécnicas Superiores do Gabinete de Estudos Olissiponenses

O CONVENTO DE NOSSA SENHORA DA PORTA DO CéU

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COMUNICAÇÃO APRESENTADANUM SEMINÁRIO EM TOMAR

EM9 DE FEVEREIRO DE 2007

« Actualmente poucos são os habitantes de Lisboa que tenham visitado o Oratorio de Nossa Senhora das Portas do Céu e muito menos aquelles que conheçam as suas origens historicas. Não é elle um edificio de grande e primorosa architectura, mas a

circumstancia de ser fundado por um principe oriental, de remotas paragens, e de o ter escolhido para seu pantheon bastaria para o tornar recommendavel como digno de ser

classificado entre os monumentos nacionaes, senão de primeira ordem, pelo menos de segunda ou terceira. O curioso que ali penetrar deve lembrar-se que tem deante de si uma página de pedra que o transporta insensivelmente, numa saudosa phantasia, á

grande e perfumada ilha de Ceylão, onde o nosso dominio se exerceu por tantos annos.A religião, a historia, a litteratura, ligam-se pois numa trindade patriotica a fim de impo-rem ao nosso respeito e veneração a pequena egreja e o extincto convento de Telheiras,

hoje completamente transformado e accommodade á vida profana.»

Sousa Viterbo 1905

Madalena Larcher

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Fig. 1 – Fotografia da Igreja de telheiras

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INTRODUÇÃO

Esta monografia, focada em temas no campo da história e património, foi realizada no âmbito da dis-ciplina Seminário B, que teve como objectivo desen-volver a nossa capacidade de realização de um trabalho de investigação a partir de fontes inéditas, de maneira a conseguir tirar partido dessas fontes e saber estruturar o trabalho segundo as regras fundamentais para a sua elaboração.Após alguns dias de reflexão, surgiu a ideia de fazer do Convento de Telheiras o tema do meu trabalho, uma vez que se trata de um Convento outrora Franciscano, cuja igreja frequentei na minha infância. O Convento de Nossa Senhora da Porta do Céu constitui uma prova viva da cristianização portuguesa no Oriente, tendo sido fundado por um príncipe do Ceilão que veio para Portugal sob protecção dos Fran-ciscanos, dos quais recebeu o baptismo e a educação cristã.Quando iniciei a pesquisa fiquei desde logo surpreen-dida com a quantidade de documentação existente e com a riqueza da história que envolve este Oratório, pois tinha retida a imagem de um convento esquecido com uma igreja pobre e sem recheio.Foi aqui que recebi a catequese, numas salas do con-vento junto ao corpo da igreja, que me lembro estarem entulhadas de móveis. Recordo-me também de se fes-tejar os santos populares no largo da Igreja, animados por bailaricos e grelhados.As fontes bibliográficas que encontrei acerca do Convento de Nossa Senhora Porta Coeli, vão desde documentos muito antigos, contemporâneos do Convento, ou publicações um pouco mais recentes de cronistas como Frei Fernando de Soledade, Frei Ago-stinho de Santa Maria e Sousa Viterbo, que reúnem esses mesmos documentos e que de outra maneira, provavelmente, se teriam perdido sem chegar até nós, até bibliografia resultante de estudos actuais, incluindo tanto breves referências em revistas, como capítulos exclusivamente dedicados ao Convento.Este trabalho segue uma ordem cronológica que se divide em quatro momentos da história do Convento: a sua fundação; a morte do seu fundador D. João de Cândia; o seu declínio após a morte do mesmo e o seu estado actual.

CAP. I - Fundação do Convento e Igreja de Nossa Senhora da Porta do Céu

1. Portugal e o Ceilão

Foram indubitavelmente os portugueses - aven-tureiros, mercadores e missionários - que estabelece-ram no século XVI as pontes de relacionamento entre a Europa e o Oriente, criando laços que permaneceram atados até hoje. Foi a “era de ouro” da descoberta das rotas marítimas transcontinentais e do esboço de um novo tipo de Império definido por um conjunto de possessões ultramarinas. A partir da viagem pioneira de Vasco da Gama, em 1498, e ao longo de quase um século, os Portugueses concretizaram um ambicioso plano expansivo e com base em acções empreendidas a partir de Goa e Macau, quer sob a responsabilidade das autoridades que repre-sentavam a Coroa, quer geradas por interesses comer-ciais privados, muitos foram os negócios realizados ao longo das rotas marítimas que contornam o sul e este da Ásia.Juntamente com os comerciantes, com os exércitos e com os nobres foram os missionários, enviados pela Igreja para espalharem a fé por estas praças e converter os nativos, através da cristianização. Entre muitas outras possessões portuguesas no Ori-ente esteve a Ilha de Ceilão, com as suas três fortalezas de Colombo, Manar e Gale. Esta foi uma das partes do Oriente, em que ficaram os mais profundos vestígios da dominação portuguesa, falando-se ainda ali um dialecto que mostra bem a influência da nossa língua sobre a língua nativa. Conta a lenda que, cerca de 340 a.C., uma princesa haveria se juntado na floresta com um leão chamado Vijaia, tendo tido como fruto desta relação Sinhola, o qual, em 543 a.C., juntamente com setecentos mer-cenários da Índia, desembarcaram na ilha do Ceilão, subjugando a população local e fundando dinastia.Sousa Viterbo, no capitulo 12 do Arquivo Histórico intitulado Como os religiosos da nossa Ordem entra-ram no Reino de Cândia da Ilha de Ceilão, e dos reis que nele converteram e baptizaram, diz-nos que este reino “(…) fica quase no coração da ilha, cercado todo

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de grandes serranias mui ásperas (…)”, cuja conquista custou muitos exércitos.Segundo este mesmo autor nos conta, os primeiros a entrar no Ceilão foram o P. fr. Pascoal, comissário, e fr. Gonçalo, seu companheiro, no ano 1547, os quais foram muito bem recebidos pelo rei daquela ilha, de então, que se chamava Javira Pandar. Este rei facilitou em muito e entrada dos portugueses no seu reino, cedendo-lhes terreno para poderem construir uma igreja, que eles logo fundaram em vocação à Nossa Senhora da Conceição: « Fica este Reyno no interior da Ilha, fechado com grandes montes, que o moftrão quafi inexpugnavel; & suppofto deu boa entrada aos noffos Religiofos» desde que o Rei Javira Pandar « declarou q tinha af-feyção particular à Fé Catholica. Deu faculdade aos noffos Padres, para q pudeffem divulgar a fua doutrina por todo o ambito do Reyno, mas foy por muyto bom preço; porque o fez pelo grande intereffe que alcan-çava, logrando amifade, & foccorro dos Portuguezes. (…) » Assim foram muitos os nativos que se converteram, recebendo a água do baptismo. Mas esta facilidade em penetrar a fé católica nestas terras asiáticas foi bruscamente cortada pelo rei de Ceitavaca, Raju, que se levantou contra Madune, suc-essor de Javira Pandar no trono de Cândia. Dezassete anos esteve este poderoso Raju na posse do reino de Cândia, aspirando ser imperador e senhor absoluto de todos os reinos de Ceilão, até que a força do povo o expulsou do trono colocando no poder D. Francisco Visugo. Este acabou por ceder o reinado a Iama Singa Bandar, que recebeu no baptismo o nome de D. Filipe, por este ter o favor dos Portugueses. D. Filipe, criado e convertido à fé pelos Franciscanos, teve a ajuda destes para tomar então posse de Cândia. Raju, que se encon-trava em Ceitavaca, onde residia, ao saber do novo rei, ainda reagiu deslocando-se à Ilha para combater com o exército português, mas saiu derrotado. Assim, D. Filipe reinou pacificamente o reino de Cân-dia, sempre com o apoio dos Franciscanos que foram aos poucos implantando a doutrina cristã aos nativos da Ilha, e foi por morte deste rei, que subiu ao trono o seu único filho e herdeiro legítimo D. João, o futuro fundador do Convento de Telheiras. Esta ilha, « pela riqueza dos seus productos naturaes, tanto excitou a cobiça dos europeus, principalmente dos hollandezes e dos inglezes, que não descançaram emquanto nos não excluiram da sua posse.» Assim, aquando da ocupação filipina, os holandeses

apoderaram-se da ilha do Ceilão, e a pouco e pouco de muitos outros domínios portugueses, implantando uma violenta substituição ao tentarem abolir a in-fluência portuguesa que a ilha tinha nos mais diver-sos campos: perseguiram os cristãos, arruinaram as igrejas, decretaram a pena de morte para quem ousasse defender os missionários e proibiram o uso da língua portuguesa. Mas a presença e influência portuguesas no Oriente não se acantonaram nos limites do quadro temporal das “descobertas” e do curto período de império que se seguiu, persistindo traços históricos, étnicos e cul-turais da presença portuguesa.

2. Telheiras, na Freguesia do Lumiar

O lugar de Telheiras, na freguesia do Lumiar, era considerado arredores de Lisboa. Consistia numa zona rural, com ricas quintas e umas poucas dezenas de casas térreas, albergando ao todo, por volta de 1860, cerca de 150 pessoas. Só no século XX se incorporou na cidade, crescendo bastante a partir dos anos 80 e assim originando um bairro novo com famílias novas. O núcleo histórico actualmente designado por “Tel-heiras Velha”, onde se insere o Convento, inclui ainda algumas das casas do tempo, assim como vestígios de muitas quintas contíguas. Vejamos a definição encontrada, para Telheiras e para Lumiar, por Augusto Soares Pinho Leal no seu dicionário intitulado Portugal Antigo e Moderno, onde fala sobre todas as cidades, vilas e freguesias de Portugal. « Telheiras: aldeia, Extremadura, com 36 fogos, na freguezia do Lumiar, concelho dos Olivaes, comarca, edministrativo e patriarchado de Lisboa, d´onde dista 5 kilometros ao Noroeste.É composta de muitas quintas, algumas com excel-lentes casas de habitação.Tem o edifício arruinado, que foi mosteiro de religio-sos franciscanos, da Província de Portugal, dedicado a Nossa Senhora das Portas do Céu (…)»

« Lumiar: freguezia, Extremadura, comarca de Lisboa, conselho dos Olivaes, 6 kilometros ao N. de Lisboa, 350 fogos. Em 1757 tinha 450 fogos. Orago S. João Baptista. Patriarchado e districto administrativo de Lisboa. (…) É uma formosa povoação, 2 kilometros ao NO. Do

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Campo Grande, e muito visitada pela gente de Lisboa, sobre tudo no verão. É situada em planicie. Há de Lisboa para aqui carreira diaria de omnibus, e é a 4.ª estação do caminho de ferro Larmanjat.Há n´esta freguezia, grandes e luxuosas quintas, sendo as melhores, as dos srs. Duques de Palmella, dos srs. marquezes de Olhão e a que foi dos antigos marquezes de Angeja e é hoje do sr. Marquez de Angeja, conde Peniche.Na aldeia de Telheiras, d´esta freguezia, está o mosteiro da Porta do Ceu, que foi de frades francisca-nos (observantes). Foi fundado pelo principe negro D. João, senhor da Candia, na ilha do Ceylão, o qual aqui está sepultado em rico mausoleu. (….)O clima d´esta freguezia é muito saudavel e ameno, e o seu territorio abundante de boas aguas.»

3. Príncipe de Cândia, o Fundador

O Príncipe D. João de Ceytavaca de Cetercolas nasceu

em Ceilão (actualmente Sri Lanka), por volta do ano de 1578. Com apenas treze anos de idade, quando o seu pai D. Filipe faleceu em 1591, subiu ao trono de Cândia, reino da ilha de Ceilão, a que os latinos e portugueses chamavam de Trapobana devido ao seu formato de folha. D. João mal subiu ao trono, foi deposto por um vassalo, J. Ribeiro na sua «Fatalidade Historica da Ilha do Ceylão» diz-nos que é seu tio quem o persegue, sendo então acolhido à protecção dos franciscanos e, por ordem do General da conquista Cosme de Laftat, foi levado para Manar, uma pequena ilha a meio do canal, onde viviam os pescadores e comerciantes de pérolas, na companhia de Fr. Francisco do Oriente, que quase paternalmente dele cuidava. “ Este infeliz Príncipe nasceu em Ceilão, por 1578, e teve de abandonar o seu trono de marfim e pérolas, en-tre duas lutas políticas e religiosas; era criança ainda.” De Manar foi para Columbo, entrando no colégio de S. Francisco, juntando-se a seu primo D. Filipe de Ceyta-vaca. Daí seguiram para Goa instalando-se no Colégio dos Reis Magos em Bardez onde, permanecendo durante quinze anos, aprenderam a ler e escrever, estu-daram latim e receberam lições de bons costumes, com o objectivo de seguir uma vida eclesiástica.O Príncipe de Cândia foi baptizado, tomando o nome de D. João da Áustria, que passou a usar.Entretanto o tal “tio usurpador” insinuava aos portu-gueses, com quem convivera em Columbo, a pos-sibilidade de vir a legar-lhes os seus estados, com a condição de afastarem o sobrinho para Portugal, não o deixando voltar a Ceilão, e fazendo-o mesmo ingressar numa Ordem monástica para com mais segurança o obrigar a desistir dos sues direitos. Os Portugueses que se aproveitavam das discórdias en-tre os diversos potentados da antiga Taprobana favore-cendo uns e outros conforme as conveniências , para assim manterem a estabilidade do domínio naquelas praças do Oriente, “mandaram o pobre mancebo para o Reino” Marina Tavares Dias diz-nos, na sua Lisboa Desapare-cida, que D. João de Cândia veio para Lisboa por im-posição dos frades portugueses que o haviam tomado sob protecção e que este fez a viagem com a esperança de reclamar, junto dos espanhóis, na altura senhores de todo a península, o reino perdido. Parece que quando chegaram foram recebidos com todas as honras, por D. Francisco da Gama, Conde da Vidigueira, que já conheciam da Índia. A Fatalidade Histórica também refere as causas por

Fig. 2 – Mapa do Ceilão, in Cadernos Culturais do Centro Cultural de telheiras

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que o Príncipe viera para Portugal. Segundo este relato de J. Ribeiro fora devido às disposições testamentárias de seu tio, o imperador D. João Parea Pandar, « que pelo particulara mor que votava aos portuguezes, re-sidia com elles de ordinario em Columbo, onde veio a fallecer no anno de 1597, legando os seus domínios ao rei de Portugale pedindo para que seu sobrinho fôsse destinado á vida ecclesiastica.» Os dois primos prosseguiram os seus estudos em S. Francisco da Cidade. Mudaram-se, mais tarde, para S. Pedro, em Coimbra, onde terminaram a sua formação. Foi nesta cidade que faleceu o seu primo D. Filipe de Ceytavaca. Em 1610, D. João de Cândia vai a Lisboa, para logo de seguida partir para Madrid para receber ordens sacras, demorando-se por lá pelo menos até Fevereiro do ano seguinte , e ordenando-se presbítero.Regressou a Portugal, onde renunciou ao principado de Cândia de Cota, Ceytavaca e Cetecorlas e tomou hábitos em 1611, cingindo o cordão franciscano. Re-cebeu por isso do então Rei de Portugal, Filipe II, uma recompensa pela sua renúncia, quatro mil cruzados anuais em pensões eclesiásticas e uma tença, de mais de quatro mil cruzados. Alvará de 26 de Novembro de 1611, mandando pagar

ao príncipe DC. João quatro mil cruzados de tença na asa da Índia, pagamento transferido para os almox-arifados do reino por apostilla de 11 de Dezembro de 1614.Eu Elrei faso a saber aos que este alluara uirem que auemdo Respeito aos muitos meresimentos e cal-lidades que comcorem na pesoa de dom joam de Camdea filho de dom fillipe já defumto Rei que foi dos Reinos da Camdea uua e outros Reinos na ilha de seil-lam e pollo comtemtamento que tenho de se ordenar a ordes sacras e tomar o abito Clerical em que esta cõnstituido, pêra se nelle poder sustemtar conforme a autoridade do seu estado e por folgar de lhe fazer merse ei por bem e me pras de lha fazer, de coatro mil crusados de Remda ecclesiastica (…) Torre do Tombo – Chancellaria de D. Filippe II, Doa-ções, liv. 21, fl.228 v.Solicitou então uma autorização de residência, a qual lhe foi concedida, fixando-se num edifício da Rua da Mouraria, juntamente com os seus criados e escravos índios.

4. O Convento e Igreja de Nossa Senhora da Porta do Céu

Por volta de 1620, D. João da Áustria resolveu constru-ir um convento destinado à convalescença de clérigos menores, que se ergueu em data desconhecida. Esta Ordem tinha em contrapartida de conseguir uma licença régia. Para o efeito, comprou uma quinta, no caminho entre os campos de Alvalade e o sítio da Luz

Fig. 3 – Mapa antigo dos arredores de Lisboa, incluindo telheiras.

Fig. 4 – Mapa recente de telheiras com localização do Con-vento e Igreja de nossa Senhora da Porta do Céu.

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a Quinta do Ouvidor-Mor, em Telheiras , onde man-dou erigir o convento e uma igreja, sob a invocação de Nossa Senhora das Portas do Céu. Frei Agostinho de Santa Maria no seu Santuário Mariano diz que «o príncipe esperava, nessa invocação, agraciar a Virgem, para que à alma, em tempos pecadora, Ela franqueasse as portas do Paraíso» apesar dos seus pecados. Sobre a sua fundação Sousa Viterbo faz referência do seguinte modo:« Vejamos agora a escriptura de fundação da capella, instituinda no Oratorio de Nossa Senhora das Portas do Ceu, erigido pelo principe na sua quinta de Telhei-ras. Foi nas casas que elle aqui possuía e que eram por certo a sua residência de verão, que a 30 de Outubro de 1639 se celebrou o respectivo contracto entre elle, doador, de uma parte, e da outra os reverendos padres Aleixo da Visitação e João de S. Bernardino, da Ordem de S. Francisco, como representantes da província da Santa Observância de Portugal. As clausulas do contrato ficaram nitidamente definidas, sobretudo no que tocava ao numero dos religiosos, que deveriam ser outros tantos como as cinco capellanias, não podendo em tempo algum ser excedido.» E acrescenta ainda, acerca das condições delineadas

pelo Príncipe:« O principe reservava-se o direito do padroado, sendo ele o administrador emquanto vivo fôsse e por sua morte as pessoas que nomeasse. Para satisfazer to-dos os encargos pios, de que se haviam de desempen-har aquelles religiosos, dava-lhes de esmola a pensão annual de cem mil réis (…)No contracto se faz positiva referencia às duas sepul-turas da capella mór, numa das quaes seria enterrado o doador e na outra seu primo D. Filippe, cujos ossos estavam em deposito n´outro convento.A capella mór e o cruzeiro reservava-os o principe para si, podendo os frades fazer o uso que bem lhes parecesse das quatro capellas do corpo da egreja. Esta liberalidade não era todavia tão ampla que não ficasse sujeita a duas restricções importantes. Aos irmãos da confraria de S Vicente, do logar de Telheiras, seria concedido celebrar as suas festividades na capella da invocação do mesmo santo, que era a primeira á esquerda de quem entrava a porta do templo, podendo tambem utilisar-se da sacristia. Aos irmãos da con-fraria de Nossa Senhora da Porta do Ceu seria dada metade do corpo da egreja, do lado da Epistola para seus enterramentos.»

Fig. 5 – Fotografia da Imagem de nossa Senhora da Porta do Céu, padroeira da Igreja de telheiras.

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A Ordem dos Clérigos Menores tentou, até 1632, ob-ter licença régia, mas sem resultados e assim D. João de Áustria doou o Convento aos frades franciscanos. Alvará de 15 de Março de 1634, ordenando ao procurador da coroa que assistisse na causa entre i príncipe D. João e os religiosos menores.Eu elRei fasso saber aos que este aluara uirem que auendo respeito ao que na petissão atrás escrita me enuiou disser o procurador de minha coroa e uisto as causas que alegua ei por bem que elle assista na caussa que dom João prinsipe de candia trás com os religiosos menores como na dita petissam faz menssão o qual requerera por minha parte tudo o que alegua diguo tudo o que fisser a bem da dita caussa (…) - Torre do Tombo – Chancellaria de D. Filippe II, Doações, liv. 21, fl.228 v.Frei Agostinho da Santa Maria no seu Santuário Marianno fornece alguns pormenores acerca do esta-belecimento religioso fundado pelo Príncipe Negro, indicando-nos que ele mandará vir das Índias Ociden-tais a imagem da padroeira. Frei Agostinho diz:« No lugar de Telheiras, Termo de Lisboa, quasi hua lagoa para a parte do Occidente, edificou o Principe Dom João ( vulgarmente chamado o Principe Negro, que era senhor, & Principe de Candia, Reyno em a Ilha de Ceylão) hum convento dos Padres de São Francisco da Provincia de Portugal, pela grande devoção que tin-ha á Serafica Familia ( porque elles o instruirão na Fé) para canvalecença dos Religiosos enfermos. Foy feita esta obra com grandeza de Principe: porque tambem entre os Principes pretos influe o sangue nobre espiri-tos altos, & soberanos. A Igreja deste convento, que he magestosa, & de excellente architectura, & de rica pedraria, he dedicada a nossa Senhora das Portas do Ceo; titulo imposto pelo mesmo Principe, que queria obrigar a Rainha delle, lhe concedesse o poder entrar por essas portas. Há naquella Igreja quatro capellas muito bem ornadas, & as pinturas das primeirs duas, que ficão mais proximas ao Altar mór, são excelentes; porque forão ornadas em vida do mesmo Principe».Falando da Imagem acrescenta: « que dezejando o Padroeiro collocar no Altar mayor huma Imagem obra-da pela mais primoroso artifice que ouve no mundo; tendo noticias que nas Indias de Castella havia hum peritissimo, de lá mandou vir a Imagem da Senhora». Hoje não nos é possível comprovar esta magnificência relatada, contudo, recorrendo a fontes anteriores ao terramoto de 1755, podemos ver que os elogios não são poupados quando se referem a esta igreja conven-

tual. Segundo afirma Fr. Apollinário da Conceyção, a Igreja de Nossa Senhora da Porta do Céu estava entre as igrejas conventuais mais belas de Lisboa. Uma das capelas do lado do Evangelho tinha a invo-cação de Nossa Senhora do Governo que, tal como a de Nossa Senhora das Portas do Céu, era única em Portugal.

5. A Imagem de Nossa Senhora da Porta do Céu

Padroeira do Convento e Igreja, a imagem de Nossa Senhora da Porta do Céu, cuja festa se celebra a 4 de Outubro, tem uma chave de prata na mão direita que raramente estava no seu lugar, pois os paroquianos pediam-na emprestada quando doentes, para alívio dos seus padecimentos, quando em fase terminal, para os ajudar na passagem para o outro mundo. Na mão es-querda ostenta um Menino Jesus que já não é original, tendo-se perdido o primitivo quando a Imagem andou desaparecida por quase 100 anos numa casa particular.Esta escultura tem 1,10 m de altura, e apresenta uma extrema qualidade visível no tratamento pormeno-rizado dos elementos físicos como os cabelos, mãos e

Fig. 6 – Página do Livro da Irmandade de nossa Senhora da Porta do Céu e São João Baptista, in Arquivo Histórico Militar.

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feições, na rica policromia e nas carnações Como já foi acima referido, o Príncipe D. João mandou-a talhar na América Espanhola a um escultor afamado da época, mas actualmente desconhecido. “(...) o qual ( D. João de Cândia), tendo noticia de que nas Indias de Castella (America hespanhola) havia um primoroso esculptor, lhe encommendou a imagem da padroeira ( Nossa Senhora das Portas do Céu) que tem 1m,10 de alto e é bellissima.”

6. A Irmandade

Construído o convento e a sua igreja, foi também em honra de Nossa Senhora da Porta do Céu que D. João, em 1625, criou uma Irmandade que vigorou cerca de 150 anos, como se mostra pelas seguintes actas extraí-das dos manuscritos da época:Livro da Irmãdade de noffa Snra de porta Celi & do gloriofo S João baptifta, fitta na sua caza em tilheiras Inftituida pello Excelentiffimo Snõr o Princepe de Candea no anno de 1625. Este livro contém bastantes actas de admissão de irmãos, sendo a n.º 1 referente ao próprio Príncipe:Aos dous dias do mes de Fevereiro de 625 annos entrou por Irmão de Nossa Senhora da Porta Seli edo Gloriozo São João Baptista, o Ex.º Principe de Candea, sendo elle o próprio Instituidor e o primeiro Irmão della, sita na Igreja Nova da mesma Senhora e prom-eteu de guardar toda a Ordem do nosso compromisso e deu de entrada um dobramento e assignou de seu signal, comigo escrivão – Principe de Candea Estêvão Ferreira.Apenas poderiam ingressar nesta irmandade “ pessoas Illustres honradas e Christãos velhos, bem procedidos, de bom exemplo, e devotas (…)” segundo vem clara-mente referido no capitulo II do Livro da Irmandade.Esta Irmandade, sendo uma colectividade religiosa, ganhou muita importância pelas ilustres figuras que dela fizeram parte, como D. João V e D. José, com toda a família real, assim como as mais destacadas personalidades da fidalguia de então, desempenhando um papel muito importante no desenvolvimento de Telheiras, até aí uma área essencialmente rural. . Uma das figuras que mais sobressai nesta Irmandade é o seu escrivão, Sebastião José de Carvalho e Melo, que mais tarde ficou conhecido por Marques do Pombal, que teve um papel de força na preservação do Convento.Foram convidados os Reis Nossos Senhores para aceitarem o cargo de Juízes desta Irmandade, que

foram servidos mandar responder ao escrivão dela, pelo Porteiro da Câmara da Rainha Nossa Senhora, Luiz Caetano de Oliveira, o que consta do seu aviso, que é o que segue: - A Rainha Nossa Senhora me ordena diga a V. S.ª, que El-Rei Nosso Senhor e a mesma Senhora aceita o cargo da sua Irmandade. – Deus Guarde a V. S.ª. – Paço 5 de Junho de 1750. – Assinado, Luiz Caetano de Oliveira.No ano de 1751, tendo falecido D. João V, foi eleita juíza a rainha viúva e para escrivão o Barão-Conde, D. Luís Lobo, ficando como tesoureiro o Conselheiro Alexandre Metelo de Sousa Meneses.Em 1752 figura D. José como juiz e sua mãe como juíza, sendo escrivão o Marquês de Penalva e con-tinuando o mesmo tesoureiro. A mesa da Irmandade continuou com a mesma constituição até 1755, sendo agora eleito para o cargo de escrivão o secretário de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro marquês do Pombal. Não só as quotizações dos seus associados con-tribuíam para a sobrevivência desta Confraria, mas também todo o tipo de ofertas como azeite, cera e outros bens.Contudo, sendo uma colectividade de quotização voluntária, as suas receitas começaram a enfraquecer

Fig. 7 - Página do Livro da Irmandade de nossa Senhora da Porta do Céu e São João Baptista, in Arquivo Histórico Militar.

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em 1740 e resolveu por isso afixar editais na porta da igreja e nos lugares públicos, anunciando que perdoava metade das quotas em dívida a todos aqueles que pagassem de pronto o restante débito num prazo que haviam estabelecido. Depois de decorrido esse prazo e mais ainda o dobro do tempo sem que alguns dos associados tivessem satisfeito as suas quotas, resolveu expulsar os retardatários:Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mill setessentos e quarenta aos vinte e hum de Agosto do ditto anno em a mesa da Irmandade de Nossa Senhora da Porta do Ceo e Casas da guarda de mim escrivão da ditta Irmandade, estando nela juntos o tesoureiro Carlos Daleiro, o provedor geral da meza o dezembargador João Batista Bononi, o adjunto da mesa Carlos de Miranda Duarte Ribeiro, os procura-dores da Irmandade, Estevão Ferreira, José Lopes Camelo e Vicente dos Santos, sendo proposto que os editais que se haviam afixado na porta da Igreja e mais partes do ditto lugar, no qual edital por composição se perdoava a cada hum dos irmãos metade das Irmandades dos annos atrazados que estavam a dever, pagando logo a outra metade dentro do termo do ditto edital e que sendo não só passado o ditto termo mas ainda mais do que outro tanto tempo do que o dos editais se não achavam correntes com a Irmandade, mais do que somente António João, António Duarte, D. Ana Bononi, Bartolomeu João, atarina Francisca, Domingos Marques Garrido, Estevão Ferreira, Fran-cisco Pereira, Henrique de Sousa, João Ribeiro, José Duarte, Joana Maria, José Lopes Camelo, Manuel da Silva Laneiro, Mariana da Conceição, Manuel Pinto,

CAP. II – A Morte de D. João de Cândia

1. O Testamento

A 1 de Abril de 1642 D. João de Cândia morre, na sua residência Rua da Mouraria, com 64 anos de idade, sendo sepultado no carneiro que mandara abrir de-baixo do altar-mor. « No principio de abril de 642 faleceo D. João principe de Candia foi enterrado na sua hermida de Telheiras fez testam.to geral. testamentr.os D. Jaime Conego de S. tarem, João Gomes, o p.e m.el da costa, o p.e frei L.co.»

Sentindo-se gravemente doente, preparou-se para morrer tranquilamente e fez o seu testamento.Mais uma vez pode-se recorrer aos relatos de Sousa Viterbo que nos conta: « O Principe de Candia morava na rua Direita dentro das portas da Mouraria, freguezia de Santa Justa. Devia ser residencia luxuosa, consoante a sua pessoa e trato e o numero dos seus creados, entre os ques se contavam quatro escravos indios, a quem por sua morte deixou fôrros, além de mais tres, cuja procedencia não se especifica. Em 31 de março de 1642 estava elle deitado na sua cama, em seu perfeito juizo, mas tão gravemente enfermo, que não poude escrever nem assignar o seu testamento, dando no dia seguinte a alma ao Creador. As suas ultimas disposições testamentarias foram lançadas no papel por seu creado, Simão da Costa, que tambem assignou por elle. O tabellião chamado para lavrar o termo de approvação era Francisco Tavares,

Fig. 8 – Pedra de armas de D. João de Cândia que se encon-tra no Museu Arqueológico do Carmo.

Maria Francisca, Maria Jorge, Manuel Ferreira, Manuel João, Nicolau António, Teresa da Silva e Vicente dos Santos, se assentou por todos na mesa uniformemente, que fôssem excluídos e riscados todos os mais que haviam despresado o favor que a mesa, de fraternal caridade lhe fazia, de lhe perdoar metade do que esta-vam a dever, pagando logo a outra metade e como nem assim se haviam resolvido a se por correntes com a ditta Irmandade os haviam logo por excluídos dela por rebeldes e incorrigíveis e que não poderiam mais em tempo algum ser admitidos sem pagarem primeiro a desobediência e rebeldia (…) e eu Carlos de Miranda Duarte Ribeiro a fiz e assinei no dito dia. – Carlos de Miranda Duarte Ribeiro.

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que ajuntou mais algumas declarações do testador, entre as quaes uma relativa a uma divida de cento e cincoenta mil réis de Simôa de Gouveia.O testamento, aberto no dia seguinte áquelle em que foi cerrado, principia, como é de costume, por dis-por de tudo aquillo que se relaciona com o enterro e encommenda da alma. Quer que o seu cadáver seja levado na tumba da Misericórdia e depositado no seu jazigo de Telheiras. Nomeia para executores da sua ultima vontade a João Nunes de Carvalho, e D. Jayme de Ceylão e aos padres Manuel da Costa e Lourenço dos Martyres, seus capellães. (…) » E abramos aqui novamente a História Seráfica que nos fala da homenagem prestada ao falecido:“ Celebrarão as suas exéquias com pompa magnifica, & pregou nellas o Padre Fr. Manoel da Esperança, o qual sabia particularmente as acções da sua muyta piedade, & as explanou cõ aquella modestia, que pede semel-hante acto. Nem lhe faltaria materia para o louvor no que tocava aos Religiosos da nossa Ordem porque a casa do Principe sempre foy hospital dos enfermos desta Provincia, que do Convento de Lisboa, & dos de Riba-Tejo concorrião a ella, como a h~ua enfermaria, aonde se achavão abertos os braços da caridade. Era muyto temente a Deos, & devotíssimo de sua Mãy Santíssima (…). Tambem não engrandeceo pouco ao proprio nome com que as largas esmolas, que fazia aos necessitados, & bons exemplos que dava nos actos da sua vida, os quaes sempre corresponderão aos santos documentos, com que fora criado pelos nossos Reli-giosos. (…)” Diz Sousa Viterbo, e decerto teria fundamento para o dizer, que D. João, apesar de eclesiástico, «era dado aos galanteios» e aventuras amorosas, e que «mais de uma figura de mulher teria alegrado as suas recepções» no palácio lisboeta que supõe «ricamente adornado de ta-petes e de outros objectos de estimação», onde vivia.Acerca dos frutos destas relações o cronista conta-nos no Arquivo Histórico Português:« Institue por herdeira sua filha D. Maria de S. João, que era freira em Via Longa. Sua mãe chamava-se Suzanna de Abreu, acerca da qual não pude obter até agora mais pormenores desconfiando eu, a ajuizar pelo nome bíblico, que ella procedesse de alguma familia de christãos novos. (…) »« Volve ainda mais uma vez o principe os olhos moribundos para o convento de Via Longa e evoca a figurinha de uma noviça por nome Simôa Baptista, que não sei se teria algumas relações de parentesco com Simôa de Gouveia. Seria também de raça chingaleza?

O principe mostra-se reservado sobre este ponto, não usando para com ella da mesma fraqueza que teve para Maria de S. João. Não a declara filha, mas a suspeita é justificada e em harmonia com a tradição recolhida por João Ribeiro. Como quer que seja, elle manda que se vendam as casas da rua do Outeiro e que o seu producto seja applicado a pagar o dote conventual d´aquella noviça.Não fica por aqui o rol das pessoas do sexo feminino, que apparecem mencionadas no testamento. Ha mais uma. É Filippa da Rocha, a enfermeira que o tratou na sua derradeira doença e a quem manda que se retribua com trinta mil réis.» Pelo seu testamento e pela escritura de fundação da capela, vê-se que a fortuna de D. João devia ser avultada, daí o Frei Fernando Soledade, no 5º volume da História Seráfica, escrever que «a sua morte foi um lauto regabofe para muita gente», pois, «Pe-las mãos dos ministros ficaram todas as tapeçarias, peças de prata, e outras muitas alfaias preciosas, que ele tinha consagrado à igreja deste seu convento, as quais levaram dele com violência os ditos ministros, e

Fig. 10 – retrato de D. João de Cândia, in Arquivo Históri-co Português.

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sem obstarem os requerimentos dos religiosos, tudo repartiram e consumiram entre si.» .Nos começos do século XVIII os frades passaram os seus restos mortais para um pequeno mausoléu encas-trado na parede da capela-mor. Era o que nos atestava a seguinte inscrição, hoje desaparecida, que o Padre Seabra diz ter encontrado abandonada e desvalorizada nas imediações da igreja na sua “Visita à Igreja de Telheiras” em 1882 :

AQUI JAZ O ESM.O SR. D. JOÂO DE AVSTRIA PRINCIPE DE CANDIA FVNDADOR E PADROEIRO DESTE CONV.TO FALECEO NO MÊS DE MARÇO DE 1642 E FICOV EM DEPOZITO NO CARNEIRO DEBAIXO DO ALTAR MOR DONDE SE TRESLADARAM OS SEVS OSSOS PARA ESTA SVA SEPVLTVRA NO MÊS DE OVTVBRO DE 170…Uma lápida encimada por um brasão, assinalava o local. Este brasão, que Cordeiro de Sousa diz ter sido recolhido em 1927, é composto de “um sol, um leão rompante e uma torre encimada de cruz” , tudo cercado pela orla de castelos das armas de Portugal, e encontra-se hoje no Museu Arqueológico do Carmo. Certo escritor estrangeiro citado por Sousa Viterbo, interpretou assim esse brasão: O sol representaria a raça solar de que pretendem ser oriundos os reis de Ceilão; o leão rompante era a insígnia usada no estandarte real; a torre rematada pela cruz lembra que poderá aludir a um padrão levantado em Columbo por D. Lourenço de Almeida em 1506.

2. O Retrato do Príncipe Negro

O retrato de D. João existia no seu convento, se-gundo nos diz Frei Fernando da Soledade na História Seráfica: « Do principe conservamos na sacristia deste Oratorio huma vera effigie, que na estatura alta, proporção do corpo, gravidade do semblante mani-festa a sua fidalguia. Era pardo, como são todos os de Ceylão, mas nas feyções e cabello não se differençava dos europeus.».

Hoje não se sabe desta pintura. Sousa Viterbo afirma que esta foi recolhida na Biblioteca Nacional de Lis-boa, e que era lá que se encontrava na altura em que escreveu para o Arquivo Histórico Português: «É sobre tela, de corpo inteiro, em hábitos ecclesiasti-cos, medindo 172 X 103. No alto, do lado esquerdo do espectador, vê-se a seguinte legenda em tres linhas:

D. JOÃO, PRINCIPE DE CANDIA D. João d´Autria Prin-Cepe de Candia. Falle - Ceu em 2 de abril de 1664.

O anno está evidentemente errado, podendo este erro dar logar a mais de uma hypothese. É possivel que o retrato fôsse tirado do natural, pondo-se a inscripção depois da morte do principe, equivocando-se então o pintor. Não repugna tambem admitir que e tela seja copia de outra, ou talvez retocada.Apparece mensionada na pags 305 da obra de José Barbosa Canaes de Figueiredo Castello-Branco, Estu-dos biographicos ou noticia das pessoas retratadas nos quadros historicos pertencentes á Bibliotheca Nacio-nal de Lisboa, impressa nésta cidade em 1854. (…)O quadro acha-se muito escurecido pelo tempo, não podendo, por conseguinte, obter-se uma bôa repro-ducção photographica. O sr. Candido da Silva Junior limitou-se a copiar o busto, desenho que serviu para a estampa, que acompanha este artigo.»

Fig. 11 – Localização do largo D. João, Príncipe de Cândia em telheiras, in Imprensa Municipal da Câmara Municipal de Lisboa para a Comissão Municipal de toponímia.

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CAP. III – O Declínio do Convento Após a Morte do Fundador

Enquanto era vivo o seu fundador, tudo correu com perfeita regularidade, mas logo após a morte do Prínc-ipe a vida do Convento foi muito atribulada, devido às desavenças dos seus testamenteiros, que começaram logo a retirar do convento os melhores recheios, tais como pratas, tapeçarias, alfaias e outros valores; às quezílias entre os frades e consequentes despesas com a justiça; e também devido ao não cumprimento das condições exigidas por D. João de Cândia aquando da fundação deste espaço religioso, principalmente no que dizia respeito ao número de frades que podiam dele fazer parte. Mas muitos outros acontecimentos, muitos deles im-previsíveis ou inevitáveis, contribuíram para a instabili-dade do Convento de Nossa Senhora da Porta do Céu.

1. O Terramoto

Na manhã de 1 de Novembro, dia de Todos-os-Santos, o violento terramoto de 1755 fez-se sentir em Lisboa, causando graves danos na igreja e no convento, ficando estes em ruínas. Os frades ter-se-ão instalado numa barraca de madeira junto aos escombros, e aí, em três modestos altares, continuaram a assegurar o culto enquanto lhes não reconstruíram a igreja.

Sebastião José de carvalho e Melo, então Conde de Oeiras e ministro do Reino e que foi escrivão da Irmandade desde 1755 até 1760, visitou as ruínas do convento e fez com este fosse imediatamente recon-struído, tendo as obras terminado em 1768. «Tudo se fez com largueza», informa o cronista Sousa Viterbo, «na igreja eram para admirar a perfeição e asseio, o primoroso da pedraria de mármore, a dis-posição e ornato dos seus altares (…)». A igreja de gosto pós-maneirista conservou, no en-tanto, a traça singela das casas franciscanas. A porta é ladeada de pilastras e, a encimá-la, uma lápide em latim onde se lê a seguinte inscrição que deixa marca da reconstrução:

HOC MARIAE TEMPLUM COELIQUE PORTA UOC ATURHAEC TERRAE A MOTU PRAECIPITAT A DO-MUSCANDIAE UT HANC OLIM PRINCEPS STRUXIT JOSEPHCUM REGNAT PRIMUS NUNC RENOUAT A MANETHOC QUE OEIRENSIS COMITIS TUM NOMINE FULGETAETERNAE DIGNUM POSTERITATIS OPUS MDCCLXVIII

(Este templo é de Maria e chama-se a Porta do Céu. Esta casa, tal como foi antigamente construída pelo Príncipe de Cândia, foi derruída pelo terramoto. E

Fig. 12 – Lápide colocada na fachada principal da Igreja na restauração após o terramoto.

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agora que reina José Primeiro, não só está restaurada, mas é uma obra digna de eterna posteridade, que fulge com o nome do conde de Oeiras. MDCCLXVII)

Sobre estas palavras, num baixo-relevo, vê-se a cabeça de um anjo, de cujas asas pende, presa por uma fita, uma chave. Acima da porta, tem um alto janelão de verga encimada por frontão curvo com o escudo na-cional e a coroa real. De cada lado desta grande janela existem outras mais pequenas. A torre sineira, ligeira-mente recuada em relação à frontaria, é encimada por pináculos e rematada no centro em forma oitavada de gosto oriental. O claustro era obra de Frei Manuel da Esperança, cronista da Ordem. Na reconstrução feita após o terramoto, aproveitou-se muito da antiga igreja como, logo à entrada, um arco abatido que sustém o coro e, de cada lado, duas portas encimadas de frontão; marcando o lugar dos dois púlpitos tem uma moldura barroca na parede em curva e contracurva. As capelas têm arcos de volta inteira e a capela-mor tem o arco triunfal encimado pelo frontão e, neste, uma castela barroca com o duplo brasão de Portugal e da Irmandade de Nossa Senhora das Portas do Céu, tendo por cima a coroa real. Os restos mortais do príncipe foram transferidos para o chão, à entrada da capela-mor.Aquando da reconstrução as capelas do lado do Evan-gelho ficaram sendo de Nossa Senhora da Conceição e do Senhor Jesus da Boa Morte, ocupando o lugar que fora de Nossa Senhora do Governo e de S. Vicente, re-spectivamente. Ao Senhor Jesus da Boa Morte tiveram os habitantes de Telheiras grande devoção, chegando o seu culto a ser tão importante como o da Nossa Senhora das Portas do Céu. Do lado da Epístola: Nossa Senhora do Parto e São João Baptista, padroeiro do Lumiar. De todas estas invocações só resta a da padroeira, Nossa Senhora da Porta do Céu. 2. As Lutas Liberais

Durante as guerras liberais, em 1833, Telheiras estava em pleno campo de batalha. As tropas de D. Pedro haviam entrado em Lisboa a 24 de Julho de 1833 e D. Miguel cerca a cidade, estabelecendo o seu quartel-general no Lumiar, e o do general Clouet perto do Campo Grande. Na madrugada de 5 de Setembro dá-se o combate na direcção de Campolide e Palhavã, bastante sangrento mas sem resultado. A 14 o marechal conde de Bourmont pensa em renovar o ataque e con-centra a sua infantaria de reserva no Campo Grande e

a cavalaria na Luz. A 8 de Outubro Saldanha pretende forçar o cerco, e dirige uma das suas colunas sobre Telheiras. O convento foi ocupado pelas tropas do exército liberal, fazendo fugir os frades. Os paramentos e as alfaias foram roubados, e a biblioteca foi saqueada, desmontaram os sinos e o relógio da torre.

3. A Extinção

Em 1833, dos 8 frades que ainda persistiam no Convento de Nossa Senhora da Porta Coeli, dois encontravam-se detidos por conduta indevida; cinco haviam seguido o exército miguelista e apenas um, Fr. António da Piedade Ferreira, permanecia e colaborava em todos os actos de supressão, sendo certamente apoiante dos liberalistas. Com a lei de 30 de Maio de 1834, relativa à extinção das ordens religiosas, mais conhecida pela lei do Mata-Frades, o Convento não escapou ao Auto de Supressão, aludindo precisamente que o número de frades “não bastava para fazer o número canónico, e que o Decreto de 5 de Agosto exige para dever ser conservado.”O processo de supressão deste convento franciscano encontra-se na Torre do Tombo, no acervo do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças, na Caixa nº 2256. A ordem para se efectuar a inventariação do Convento data de 30 de Outubro de 1833 e está assinada pelo Conselheiro Marcos Pinto Soares Vaz, como presi-dente, e ainda por José Isidoro Gomes da Silva e João Bernardo da Costa Sermenho:« Manda o Duque de Bragança Regente em Nome da Rainha pelo Tribunal da Junta do Exame do Estado actual e Melhoramento Temporal das Ordens Regu-lares encarregada da reforma Geral Eclesiástica, que o Bacherel Guilherme José Furtado passe ao Convento de Nossa Senhora das Portas do Céo dos Religiosos Menores Observantes de Portugal no lugar de Tilhei-ras suburbios desta Cidade para que com o Escrivão que deve ser um dos Ammanuenses da Secretaria da mesma Junta, e o Fiscal da Fazenda Publica, fazendo avizo ao Vigario Geral do Patriarchado entreis no dito Convento e fazendo auctuar esta Portaria defferireis juramento ao Escrivão e procedereis a indagar na prezença dos refferidos e de trez testemunhas zelosas do serviço de Deos, da Rainha e da Nação, quaes são as vantagens, que a Relligião ou o Estado alcanção na Conservação do referido Convento, se elle está na letra do Decreto de Nove de Agosto do corrente

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anno para ser conservado ou supprimido e finalmente qual o Numero de Religiosos que formão a Com-munidade formando uma Rellação de seus Nomes, aptidão, qualidades e serviços ou desserviços feitos a Rellegião á Cauza, da Rainha e da Nação Portugueza, ordenando que elles assignem seus proprios Nomes na mesma Rellação, e achando-se que o convento não tem o Numero de doze Relligiosos Professos passareis a formar o Inventario Geral dos proprios Autos. (…) Recorrereis as Authoridades competentes para vos darem ajuda e auxilio de que necessitardes, confiando Sua Magestade Imperial da vossa prudencia, luzes, e aptidões esta importante deligencia.Lisboa em Junta de 30 de Outubro de 1833O Consº Marcos Pinto Soares Vaz PretoPresidenteJosé Izidoro Gomes da SylvaJoão Bernardo da Costa Sermenho »

O Dr. Guilherme José Furtado, quando chegou ao Convento e constatou que este apenas albergava um frade, facilmente constatou:« Não achei Cartorio, Livros nem outros moveis alem dos insegneficantes descriptos no Inventario; o mais tinha sido destruido, ou roubado pelos rebeldes, como jurou perante mim o Frade inventariante (…).A casa do Convento está bem conservada, e poderá ter trinta moradores: a Igreja hê boa, e assiada; e posto q a conservação do Convento não seja util a Religião, nem aos povos, a quem os Frades escandelisavam, contudo será conveniente q haja ali um capelão, que diga Missa ao Povo nos Domingos, e Dias Santos, porq hê nu-meroso, e dista de sua Freguesia, q hê a de Lumiares; para o q poderia servir o Frade Inventariante, q não acompanhou os rebeldes, e, notei ser muito estimado do Povo d´aquelle logar.»

Assim a Inventariação dos bens, rendimentos e dívidas, presidida pelo Dr. Guilherme José Furtado e com o ajuramento de Fr. António da Piedade Ferreira, prosseguiu:

A Igreja do Convento« A Igreja do Convento de Tilheiras bem aciada, e limpa, e Magestoza com cinco Altares, mór, e quatro latraes, dous pulpitos e guarda vento em muito bom uso Cercada de uma Teia quazi Nova com quatro Confessionários.»

A Igreja possuía 13 imagens:

1 Nossa Senhora das Portas do Céu vestida de seda1 São Francisco1 São Joaquim1 São Domingos1 São José1 Nossa Senhora das Portas do Céu com menino no braço1 Santa Jozabel1 Santo Amaro1 São Diogo1 São Luís Bispo1 Santa Rita1 Santo Cristo

Além disso continha ainda os seguintes paramentos e objectos de culto:

1 cruz + 6 castiçais dourados de pau1 cruz com crucifixo + 6 castiçais de estanho dourado1 cruz + 6 castiçais dourados de pau e matizado a azul1 cruz1 cruz com sua cruz de pau do Brasil3 crucifixos de pau23 castiçais avulsos de vários tamanhos, de pau1 lustre de vidro, em bom uso5 frontais de várias cores, em bom uso 4 sanefas encarnadas de damasco, grandes1 sanefa, volta redonda, do Altar-mor4 sanefas pequenas1 cortina grande de tafetá1 cortina de damasco7 cortinas de damasco pequenas2 bancas (credências) pintadas, em bom uso1 escada de mão para acender a lâmparina4 moxos1 estante grande quadrada, de pau preto ( no Côro)2 estantes pequenas2 bancos de encosto, em bom uso2 bancos sem encosto, em bom uso1 cadeira de pano, em bom uso

vulto regular

“““““

“vulto pequeno“““vulto grande

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Na Sacristia do Convento encontravam-se 6 imagens e 2 painéis:

1 São João Capristano de pau2 S. Francisco1 S. Domingos1 Senhor Ressuscitado1 Nossa Senhora das Portas do Céu1 painel grande do Príncipe de Cândia1 painel grande de S. Francisco

Nos dormitórios encontravam-se as seguintes peças de mobil-iário:

2 bancos com encosto5 cadeiras de pau, em bom uso1 canapé4 cadeiras de palhinha 4 moxos de pau, em bom uso4 estantes com armários1 painel com moldura dourada5 bancos que servem para cama, de ferro2 bancos que servem para cama de pau1 banco que serve para cama, comprido, de pau2 bancas de pau

Os paramentos nela guardados constavam de:

1 casula + estola e manípulo preto de lã, em bom uso1 estola branca de damasco1 estola vermelha de damasco1 manípulo vermelho19 bolsas de corporais, tamanhos e cores vários, em bom uso4 manustérgios5 sanguíneos 3 toalhas de altar de linho1 toalha de altar de algodão3 véus de altar vermelhos de seda1 véu de altar verde de seda

Na sacristia encontravam-se ainda os seguintes objectos:

1 meia cómoda de pau do Brasil, com cinco prateleiras e dentro dela 11 ramos de flores, tudo novo1 jogo de Sacras com vidros, e molduras douradas5 jogos de Sacras de papelão1 pedra de ara avulsa1 umbela encarnada, de damasco2 pares de galhetas, em estanho1 jarro de estanho2 missais4 estantes de missais novas1 vaso de estanho para os Santos Óleos6 varas de pálio, novas, douradas, com estojo6 varas de pálio velhas3 caixões grandes, de pau, para guardar paramentos2 apagadores1 caderno de missas de defuntos1 pavilhão

Os bens de raizConstituíam os bens de raiz o edifício conventual, possuindo um rés-do-chão, as oficinas e, por cima, os dormitórios grandes; a Igreja; a Sacristia; a Cerca, que era toda murada.

RendimentosO Convento de Telheiras auferia na altura da Su-pressão:800.000 rs devidos pela Casa do Marquês do Alegrete, que pagava de juro 40.000 rs anuais1000.000 rs anuais pagos pela Administradora da Capela de D. João de Cândia3 Cântaros de azeite de oneração à Herdade da Palma, de José Maria Lobo Saldanha Cabral.

Legados PiosOs frades deviam rezar:30 missas pela benfeitora que legou ao Convento os 800 mil rs, na posse do Marquês do Alegrete100 missas anuais pelos Reis de Portugal e Príncipe de Cândia

Dívidas activasDeviam ao Convento de Telheiras:11 anos de juros da Casa do Marquês do Alegrete: 440.000 rs2 anos da Administradora da Capela do Fundador: 2000.000 rsA 7 de Novembro do mesmo ano encerrou-se a In-ventariação do Convento, na qual se declara que “ não havia nelle Livraria, Carthorio, utencilios de cozinha e Enfermaria, nem Objectos perciozoz por ter sido tudo

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extraviado pelas tropas dos Rebeldes alli aquarteladas durante o citio de Lisboa.” Assim foram entregues ao Pároco do Lumiar, Padre Bernardo Pereira Leitão de Carvalho, o templo e os objectos religiosos que consta-vam da Inventariação, competindo-lhe guardar todo o acervo; dar conta dele quando a Autoridade o exigisse e proporcionar missa ao povo na igreja do Convento.Na sequência dos Autos pode ver-se a “ Consulta

derigida a sua Magestade Imperial o Duque de Bra-gança Regente em Nome da Rainha”, datada de 11 de Dezembro de 1833 e assinada pelo Presidente, Dr. Marcos Pinto Soares Vaz Preto, e ainda por Manuel Pires de Azevedo Loureiro, José Tomás de Mendonça e Sousa, João Jorge de Oliveira Lima, Miguel do Carmo Alves do Rio, José António Mancio da costa Ubaldo, João Bernardo da Costa sermenho e José Isidoro Gomes da Silva.Nela, logo após a descrição do Convento e de todo o seu inventário, o Presidente propõe a D. Pedro IV a su-pressão do Convento e o futuro do frade remanescente que passou a capelão de Telheiras:« E para isto propoem a Vossa Magestade Imperial o mesmo Fr. António da Piedade Ferreira por ser mui edeficante e geralmente amado do Povo. Dignando-se pois Vossa Magestade Imperial de assim o Resolver se deverá consignar-lhe huma prestação proporcionada ao serviço vantajozo que elle fez: e lembra para isso asignar-se-lhe a renda dos Cem mil reis que paga a

Administradora da Capella instituida pelo Principe de Candia Fundador do mesmo Convento.»

E encontrando-se o Desembargador Fiscal igualmente de acordo com a proposta, o Conselheiro Marcos Vaz Pinto determina: « supprimimos, extinguimos e profa-namos o Convento, serca e mais Officinas e predios rusticos e Urbanos, dereitos acções e outros quaesquer bens do Convento de Nossa Senhora das Portas do Ceo do Lugar de Tilheiras no suburbio desta Cidade e os devolvemos ao Estado como próprios da Nação, com todos os seus titulos e utensilios; Mandamos que a Igreja se conserve com todas as suas Imagens na maior decencia e com os Utensilios necessarios ao culto e sejão entregues ao Parocho do destricto para os conservar e guardar como cumpre á decencia do Culto Religioso.»O “cumpra-se” de D. Pedro IV data de 10 de Janeiro de 1834. Por último, o Auto de Posse e Avaliação do conjunto, decorreu nas Casas de Provedoria do Quarto Distrito da Capital, e constitui a melhor descrição encontrada da Cerca do Convento:

Auto de Posse

Fig. 13 - escudo nacional e a coroa real que encimam o janelão da fachada principal da Igreja.

Fig. 14 – torre sineira da Igreja.

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No anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Chris-to de mil oito centos e trinta e cinco aos vinte e nove dias do mez de Maio no Sitio de Tilheiras freguezia do Lumiar convento dos Religiosos da extinta Ordem de São Francisco da Cidade a onde veio o Provedor do quarto Destricto Joaquim Jose de Azevedo e Silva em companhia de mim Escrivão por elle juramentado para o fim de proceder á Posse, e avaliação do dito Convento o que fez com todas as formalidades da Ley, declarando que tomava posse por parte da Fazenda Nacional tanto do Predio Rustico, como do Urbano. Consta este Edeficio do pavimento terreo composto de Refeitorio, Cozinha e Officinas Anexas, e mais dois andares que são os dormitorios, formados de hum corredor e diverças Cellas. Compôe-se o Predio Rustico de huma Cerca com Vinha, arvores de pevide, e caroço, hum bocado de cannavial e trez taboleiros de Orta. Hum pôsso com engenho Real corrente e seu tanque com huma pequena almocega. E para constar mandou o Refferido Provedor fazer este Auto que eu Escrivão Joze Pereira da Cruz escrevi e asignei com o dito Provedor de que dou minha fé se passar o Ref-ferido na verdade Jose Pereira da Cruz Azevedo

Seguiu-se a Avaliação do Convento e da Cerca, pre-sidida por António Gonçalves Lamarão que na altura exercia as funções de Provedor do Quarto Distrito da Capital, que nomeou para Avaliadores Joaquim Lopes Ferreira, mestre pedreiro; Pedro José Ferreira, oficial de carpintaria; José dos Santos, fazendeiro e José António de Miranda, fazendeiro também.O Convento ficou avaliado em 5.500$000 reis. Quanto à Cerca, os Avaliadores atribuíram-lhe o valor de 450$000 reis, com uma renda anual de 22$500 reis.Por fim, a avaliação da Igreja e Sacristia, datando de 5 de Setembro de 1836, foi presidida pelo Prove-dor Interino do Quarto Distrito Administrativo da Capital, José Baptista Gastão, na qual foi Escrivão Francisco Ferreira Coelho de Magalhães. Os Avali-adores seleccionados foram José Joaquim dos Santos, mestre pedreiro, e Theotónio da Silva Coelho, mestre carpinteiro.A Igreja foi avaliada em 4 contos e quinhentos mil reis. A sacristia, que se encontrava no fundo da Igreja servi-da por dois corredores laterais, e que tinha por cima duas celas, no pavimento do dormitório do Convento, “ as quais devem pertencer á mesma Sacrestia, e Igreija

por se acharem dentro da Aria da mesma Igreija”, ficou avaliada juntamente com as duas celas em 1 conto e quinhentos mil reis.

4. Prenúncio de Venda

No final do século XIX o estado da igreja era lastimoso, segundo o testemunho do Padre Seabra, descrito na sua publicação “Uma Visita à Igreja de Telheiras”: «a talha da capela-mor estava a apodrecer, e no camarim chovia como na rua por que as telhas tinham sido le-vadas para uma casa que serto influente político estava construindo nas vizinhanças. O sobrado da sacristia, e de outras dependências, havia sido arrancado, e tivera idêntico destino. E do órgão que outrora acompan-hava no coro os cânticos litúrgicos... existia apenas o teclado!» A igreja escapou por um triz de ser vendida em hasta pública e passar a cocheira, pois a Ordem Terceira de S. Francisco, ao ter conhecimento, pediu ao Gov-erno da Nação a sua cedência, comprometendo-se a restaurá-la. Padre Seabra transcreve, sem indicar as fontes:« Senhor – O Ministro e a Mesa da Venerável Ordem Terceira de S. Francisco, erecta na Egreja Conventual de Nossa Senhora da Porta do Céo, no logar de Telhei-ras, e transferida pelo Santíssimo Padre Pio VI para a sua capella do Sagrado Coração de Maria, no Campo Grande, acaba de saber, com profunda mágua sua, que brevemente será posta em praça pelo Ministério da Fazenda a velha Egreja de Telheiras que foi berço da Venerável Corporação que representa.

Fig. 15 - Frontão onde se insere uma castela barroca com o duplo brasão de Portugal e da Irmandade de nossa Sen-hora das Portas do Céu e a coroa real.

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A Egreja alludida é a única dependência que resta do vasto Mosteiro e cerca dos Religiosos que alli viviam, por isso que tudo mais já em tempo foi vendido por aquele Ministério, em virtude da lei da desamortisa-ção.É certo que a Egreja está um tanto incapaz de, na actu-alidade, se celebrar n´ella os actos do Culto Catholico, mas também é certo que com algum sacrifício, os estragos ocasionados pela acção das chuvas que pouco a pouco a teem danificado, facilmente se poderão reparar.Alem de que, existem ainda alli varias imagens de Christo, da Virgem e d´outros Santos da Ordem Fran-ciscana; imagens estas que à mesa supplicante foram concedidas pelo Em.mo Rev.mo Sr. Cardeal Patriarcha, por seu despacho de 7 do corrente, mas das quais a mesa da Ordem não promoveu a próxima do logar de Telheiras, por atender aos desejos do povo d´aquella localidade manifestados pelo Ver. Pároco de Lumiar, tendentes à conservação da Egreja que guarda em seu solo as relíquias mortaes e venerandas dos seus an-tepassados, entre os quaes se contam grande numero de irmãos da Venerável Ordem Terceira supplicante, e de muitos varões illustres pela sua piedade.Mas além d´estes, Senhor, repousam ainda alli as ossadas do Príncipe D. João, fallecido em Lisboa em 1642, Senhor de Candia, na Ásia, que edificou a expensas suas aquella Egreja e Mosteiro em 1633, para perpetuar assim o seu grande amor ao Deus vivo e como tributo de gratidão aos Religiosos Franciscanos da Província de Portugal, que o arrancaram à idola-tria, que o instituíram, que lhe abriram os olhos a luz das verdadeiras crenças, admitindo-o no Grémio do Religião Cathólica Apostólica Romana, que é também a religião do paiz em que felizmente vivemos.Attendendo, pois, a mesa supplicante a todas estas cir-cunstancias, e que a mencionada Egreja de Telheiras, pela sua posição topographica pouco ou nenhum valor material teria, e que com algum sacrifício por parte da Ordem, e d´outros fieis da localidade, pouco a pouco se poderá restaurar o templo, e restabelecer o culto.Considerando mais a mesa supplicante que segundo os boatos propalados n´aquela povoação; posta a Egreja em praça, será arrematada por alguem para fazer d´ella uma cocheira, estábulo e palheiro, o que sem duvida contristará não só os corações verdadeiramente catholicos mas até mesmo os d´aquelles que forem indiferentes ao catholicismo. P. por tais motivos a v. m. que attendendo ao exposto, se digne conceder a Egreja de Nossa Senhora da Porta do Céo, em Telheiras, com

suas respectivas officinas, imagens, retábulos e todos os objectos moveis que ali existem, à Venerável Ordem Terceira de S. Francisco supplicante, que alli teve seu principio e onde permaneceu por muitos annos; e assim haverá mais um Templo em honra de Deus e da Religião do Estado – respeitar-se-há a ultima vontade do Príncipe fundador que alli repousa – não se profa-

narão as sepulturas dos que alli dormem o sonno da morte – e finalmente será satisfeita a vontade d´aquelle povo que com a mesa supplicante bem dirá mil vezes a v. m. – E.R.M. Campo Grande, 18 de Dezembro de 1880. – Lucas da Silva Azeredo Coutinho Cardoso Castello – Ministro.» Atendendo a este pedido o Convento não foi vendido, contudo as obras importavam uma quantia elevada que esta Ordem não conseguia sustentar e para além disso as imagens que nela restavam foram concedidas à ermida do Campo Grande pelo Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Inácio do Nascimento de Morais Cardoso,

Fig. 16 – Página do Auto de Supressão do Convento de nossa Senhora da Porta do Céu, in revista Cultural de telheiras do Centro Cultural de telheiras.

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Fig. 18 – Fotografia do Convento na década de 90, in Monografia do Lumiar.

em 1893 aos Padres Marianos da Imaculada Con-ceição.

6. A década de 90

Recentemente, em 1993, K. Godagé, embaixador do Sri Lanka em Bruxelas, tendo conhecimento da ex-istência de um convento fundado por D. João de Cân-dia, fez questão de visitar a igreja e, além de prometer ajuda para a sua reconstrução, disse que recolocaria no local onde o príncipe foi sepultado pela última vez duas lápides, uma em cingalês e outra em português.

Em Abril de 2004, a Câmara Municipal de Lisboa presta homenagem ao fundador do Convento Fran-ciscano de Nossa Senhora das Portas do Céu, D. João Príncipe de Cândia, ao atribuir o seu nome a um largo de Telheiras. Neste mesmo ano, a 8 de Abril, foi criada a Paróquia de Telheiras, e a orientação da igreja foi entregue pelo Cardeal Patriarca de Lisboa ao Opus Dei. Foi a 5 de Setembro que o Pe. Rui Rosas da Silva tomou posse como pároco.

em 7 de Dezembro de 1880, «embora os fiéis do lugar tivessem tentado opor-se à saída, por ainda esperarem a renovação do culto na igreja que guardava em seu

solo as relíquias mortais e venerandas dos seus pas-sados».

5. Na República

Em 1910, mesmo havendo já pouco que roubar, num assalto à Igreja, arrancaram e levaram o vigamento do coro e as lápidas sepulcrais, deixando os ossos dos de-funtos espalhados pelo chão, perdendo-se até os ossos do príncipe D. João de Cândia.Tempo depois passou a funcionar nesta igreja, profa-nada, a oficina de um ferreiro e o casarão conventual, vendido e profundamente alterado, servia de abrigo a um cardume de famílias pobres. Á porta do Convento abriu nessa mesma altura uma taberna que por lá per-maneceu até bem a pouco tempo. Em 1941, o Dr. Caetano de Macedo, influente mo-rador, conseguiu do Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar, e do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, ordem de restauro da Igreja, reabrindo ao público no dia 22 de Agosto do mesmo ano, com o coro reconstruído e as paredes caiadas. “É hoje um templo sossegado, de cultivadores certos e devotos que continuam a ir de propósito a Telheiras para assistir à missa.” Depois de ter sido atendida pelas Irmãs Doroteias ajudadas pelos Padres Franciscanos e por um sacer-dote da Companhia de Jesus, a igreja, fazendo parte da Paróquia de São João Baptista do Lumiar, foi confiada

Fig. 17 – Fotografia do Convento na década de 90, onde se observa a taberna e a presença de famílias nele instaladas, in Lisboa Desaparecida de Marina Dias.

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Devido ao mau estado da sua cobertura, a igreja foi fechada ao culto em Novembro para se dar início às obras de reconstrução que a deixaram como vemos hoje.

Fig. 19 – Fachada da Igreja antes da intervenção de res-tauro.

Fig. 20 - Fachada da Igreja depois da intervenção de res-tauro.

CAP. IV – O Convento de Hoje

1. O Restauro da Igreja

De acordo com o Protocolo assinado pela EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa) e o Patri-arcado de Lisboa, em Setembro de 2004 deram início as obras de restauro da Igreja, que começaram pelo exterior e cobertura e acabaram no seu interior.Como vimos o recheio desta igreja conventual é todo relativamente recente e sem especial valor, pelo que

não valia a pena conservar. Assim tratou-se essencial-mente de uma obra de renovação de modo a propor-cionar um maior bem-estar aos que a frequentam.Deu-se sim especial atenção ao edifício em si, man-tendo-o o mais fiel possível ao da reconstrução pós-terramoto. A imagem da padroeira, encomendada pelo próprio

fundador, sendo original e a única testemunha da vida deste convento desde a sua fundação, mereceu um maior investimento no seu restauro.

Fig. 22 - Pormenor da Igreja depois da intervenção de restauro.

Fig. 21 – Pormenor da Igreja antes da intervenção de restauro.

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Fig. 23 – Fotografia actual onde se observa o contraste entre a Igreja restaurada e o Convento.

Fig. 24 – Fotografia actual do Convento.

Cronologia da Intervenção de Restauro da Igreja:

Setembro de 2004:Início das obras do exterior, no tardoz, a cargo da EPUL.Novembro de 2004:Início das obras nas paredes exteriores, a cargo da EPUL.Junho de 2005:Terminadas as obras do tardoz. Arranjada uma sala ampla no andar térreo, mais duas salas como secretaria da Paróquia e do Agrupamento de Escuteiros, casas de banho no primeiro andar e três salas pequenas para uso do Agrupamento de Es-cuteiros no segundo andar. Início das obras do telhado da igreja: cobertura e estrutura, a cargo da EPUL.Outubro de 2005:Terminados os estudos prévios de arquitectura pelo Arquitecto Duarte Pinto da DOG Arquitectura, e concluído o concurso de adjudicação das obras de ren-ovação do interior da igreja, o Conselho Económico aprova a adjudicação das obras à empresa vencedora, Optimaqua. O orçamento das obras e outros equipamentos necessários foi de 200.000 euros. O Conselho Económico delibera o lançamento de uma campanha de angariação de fundos para o finan-ciamento das obras do interior, que decorrerão por conta da Fábrica Paroquial.Novembro de 2005: Terminadas as obras exteriores, iniciaram-se as obras

de renovação do interior. Início da campanha económica que até Maio de 2006 conseguiu angariar perto de 100.000 euros28 de Maio de 2006:A igreja paroquial é reaberta ao culto, numa celebração presidida por sua Eminência o Senhor Cardeal Patri-arca de Lisboa. Além do novo altar a igreja recebeu:- Reboco e pintura das paredes interiores- Novo retábulo em mármore e pedra bujardada- Restauro da Imagem da Padroeira, Nossa Senhora da Porta do Céu- Restauro do pavimento- Novo Sacrário

- Nova pia baptismal- Novos bancos- Nova Via-Sacra- Novo guarda-vento- Restauro da porta- Nova Sacristia- Novos confessionários

2. O Convento EsquecidoO Convento, com um característico formato em U, ainda não tem um destino definido, mas muitos projectos já foram discutidos. Ultimamente tem-se falado na sua recuperação para criação de um espaço de acção social para servir a terceira idade, mas nada se confirma.Após o realojamento das famílias que viviam neste espaço as janelas e portas foram fechadas com tijolos e cimento, para evitar um nova ocupação. Nunca mais foram feitas obras neste espaço, e o Convento apresenta um aspecto muito degradado. A recente intervenção aumentou ainda mais o contraste entre a Igreja restaurada e o convento esquecido.

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Fig. 25 – Fotografia das traseiras do Convento.

Conclusão

D. João de Cândia dedicou a igreja a Nossa Senhora da Porta do Céu porque, segundo se dizia, apesar de ter cometido alguns pecados enquanto clérigo, esperava que Nossa Senhora lhe abrisse a morada eterna.A verdade é que após a sua morte o seu convento não teve paz, mas foram os episódios atribulados por que passou que fizeram deste edifício religioso um tes-temunho vivo de alguns dos momentos mais mar-cantes da nossa história.

É com muita pena que não temos hoje acesso ao convento original, aquele fundado pelo Príncipe, assim como às imagens e a todo o resto do recheio da igreja. Temos contudo um rico exemplo de arquitectura pom-balina, cuja traça se mantém.Finalmente o velho templo engalanou a sua pobreza e ânsia de restauro com a importância de se tornar igreja matriz paroquial. E assim podemos ver hoje um edifício religioso renovado e pronto a receber os seus paroquianos.

Fig. 26 - Fotografia actual do Convento.

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Documentos

Eu elRej faço saber aos que este aluara virem que por mo pedir dom João prinsepe de Candia lhe fis merce de promesa de hum beneficio eclesiastico do padroado real pera hum clérigo de sua obrigasão que apontase tendo as calidades que pêra ser prouido do dito beneficio se requerem e por quanto o dito dom João por hum asinado feito nesta corte e trinta e hum de desembro de mill e seissentos e vinte cinco anos que fica en poder de rancisco Pereira de Betancor meu escriuão da amara nomeou pera esta merce a Manoel da osta seu capelam hej por bem que tendo elle as partes e calidades que se requerem seija prouido de hum dos beneficios do padroado real pera sua guarda e minha lembrança lhe mandej dar este aluara que se conprira sem enbargo da ordenasão en contrairo João Pereira Betancor o fes en Madrid trinta he hum dias do mes de desembro de mill e seissentos e vinte cinco anos rancisco Betancor o fes escreuer.

torre do tombo – Chancelaria de D. Filippe III, Doações, liv. 15, fl. 182.

Eu elRei Eu elRej faço saber aos que este aluara virem que por me pidir dom João prinsepe de Candia ouuese por bem de lhe fazer mercê de promesa de dous oficios da justisa ou da fasenda que coubesem na calidade de dous criados seus que elle nomease e por quento elle por hum seu asinado feito nesta corte a trinta e hum de desembro de mill e seissentos e vinte cinquo anos que fica em poder de Francisco Pereira de Bitancor meu escriuão da camara nomeou pera hum dos ditos oficios Estevão Ferreira hej por bem e me pras que o dito Es-tevão Ferreira seja prouido de hum oficio da justisa ou fasenda que caiba na calidade de sua pesoa e pera sua guarda e minha lembransa lhe mandej dar este alvara que se comprira sem duuida nem contradisão algua posto que seu efeito aja de durar mais de um ano sem embargo da ordenasão en contrairo João Pereira de Bitãocor o fez em Madrid a des dias do mes de Janeiro ano de mill e seissentes e vinte seis anos, Francisco Pereira de Bitancor o fes escreuer.

torre do tombo – Chancelaria de D. Filippe III, Doações, liv. 15, fl. 181 v.

Eu elRei Eu elRej faço saber aos que este aluara virem que eu mandej pasar a dom João prinsepe de Can-dia hum alvara por mim asinado de que o teor he o

seguinte: Eu elRej faço saber aos que este aluara virem que eu hej por bem e me pras de fazer merce a dom João prinsepe de Candia de quatro mill crusados de renda en pensois eclesiasticas entrando nelles dous mill crusados que já se lhe auião sinalado nos bispados do Porto e Lamego a saber mill e quinhemtos crusados sobre o bispado do Porto e quinhemtos crusados sobre o bispado de Lamego dos quais ajnda serão tirarão bulas apostólicas para que com elles aja ao todo en pensões eclesiasticas os ditos quatro mill crusados que ade lograr en dias de sua uida juntamente com os ditos catro mill crusados de pensõis lhe fiquem ao todo oito mill crusados de renda em sua vida na forma asima declarada e pera sua guarda e minha lembransa lhe mandej dar este alvar por mi asinado e na consulta ou decreto por onde lhe fis merce dos ditos quatro mill crusados de pensõis se porá uerba de como o conta deles lje forão sinalados os ditos dous mill crusados sobre os bispados do Porto e Lamego de que se pasara sertidão nas costas deste que lhe mandarej cumprir sem duuida nem contradisão algua posto que seu efeito aja de durar mais de hum ano sem embargo da ordenasão em contrario João Pereira de Betancor o fes em Madrid ao primeiro dia do mes de Janeiro de mill e seissentos e vinte seise por tanto (sic) o dito dom João me jmviou a diser por sua pitisão que o dito alvará se lhe perdera antes de se por nele a uerba que se queria e me pedia lhe mandasse dar outro com salua e ouue por bem de lhe mandar o presente que se comprira como nele se comtem sem duuida nem contradisão en contrairo com declarasão que hum comprido o outro jnda que pera ela não auera efeito João Pereira o fis em Madird a onse dias do mes de feuereiro de mill e seissentos e vinte seis annoa – Francisco Pereira de Bitancor o fes escreuer.

torre do tombo – Chancelaria de D. Filippe III, Doações, liv. 15, fl. 181.

Sedulla do TestamentoEm nome de Deos Amen saibão quantos esta sedulla de Christo de mil seis centos quarenta e dous que eu Dom João Princepe de Candea estando doente em cama de doença que Deos me deu em meu perfeito juízo e entendimento e por não saber o dia em que Deos sera servido levar me para sy ordeno este meu Testamentto e ultima vontade na forma seguinte: Primeiramente encomendo minha Alma a Nosso Senhor Jesus Christo que a criou e Remio com o seu preciozo sangue ha Virgem Nossa Senhora que será

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minha interceçora ordemno e mando que meu Corpo será levado e sepultado na minha Igreja de Nossa SXenhora da Porta do e o em o lugar de Tilheiras e meu corpo sera amortalhado em o Ábito de São Franscisco cuja comonidade do Convento de Lisboa acompanhará meu corpo e se forem oras de se dizer missa e oficio quando não ao outro dia o farão e se lhe dará de esmola a dita Comonidade de missas e ofícios da Freguezia do Lumiar dar se lhe ha de esmola a cada hum sinco tostoins e seram por numero outo e desta Fraguesia de Santa Justa acompanharam meu Corpo doze clérigos athe os Anjos e daram a cada hum de esmolla dois tostões e meu Corpo será levado em a Tumba da Santta Mizericordia e se lhes dará sua esmolla e hira tão bem a ordem Terceira a quem derão dez cruzados de esmolla e declaro que será a ordem Terceira da Cidade donde sou prefeço e mando mais que no dia que nosso senhor me levar para sy me mamdem dizer duzentas micas Repartidas a vontade de meus Testamenteiros por quais Mosteiros quizerem Declaro que eu tenho hum Livro em que assento as moradias e ordemnados de meus criados e por elle mando se faça conta e se lhe paguem a cada hum o que acharem se lhe deve e a cada hum de meus criados mando se lhe de luto e cada hum o que lhe for necessário para o dito luto e se lhe mamdem fazer por minha conta e alem de seus ordenados mando a meus Testamenteiros que abaixo nomearey lhe dem a meus criados o que lhe paresser avendo respeito a qualidade de suas pessoas e aos cerviços de cada hum e Mando mais que se dem quarenta e hum mil reis ao Padre Frey Lourenço dos Mártires meu Cappellão para por sua ordem os destrébuirem a quem se devem e declero que em meu poder tenho huma cadea de ouro com huns coraes os quais são de Maria Antunes que por sua verdade ella disser. E assim tenho mais vinte mil reis seus que em minha mão depozitou. Devo mais a Matheus de Crasto sincoenta mil reis que me em-prestou que mando se lhe paguem e os feitios de vestimento que elle por sua verdade disser (sic) mais mando que se pagem digo que se paguem vinte mil duzentos e outenta reis a Joam Rodrigues Carpinteiro de Jurnaes seus e de seu filho mais que se paguem doze mil reis a fellicio Leitão Ladrilhador e morador em Carnide de seu jurnal e azuleijo e as peças que tenho em meu poder alheas empinhadas mando a meus Testamenteiros que as dem a seus donos e cobrem o dinheiro por que estão empenhadas declaro que eu tenho pessas depozitadas em pinhor de cem mil reis que me esprestarão com ganhos dos quais o Padre Frey

Lourenço dos Martires dará conta Mando mais que se pague a Antonio Teixeira ourives da Prata os feitios que se acharem na verdade se lhe deve de muitas pessas de prata que me tem feito Mando mais que se dem onze mil reis ao Padre Manoel da Costa para pagar serto numero de missas que mandej dizer Declero que eu tenho quatro escravos Índios os quais todos deixa forros e livres e ao meu barbeiro Antonio mestre mando se lhe dem quatorze mil reis que me deve Francisco Jorge o folha morador em Tilheiras os quais sam de Renda de humas vinhas que me tras arendadas aos outros tres escravos mando se lhe dem quatro mil reis a cada hum declaro que ainda que se achem entre meus papeis algumas dividas de Izabel de Paiva nam seram valliosas porque estou pago e satisfeitto de tudo o que devia Mando que a Francisco Carvalho pedreiro se lhe paguem o jurnal dos dias que constar se lhe devem e também todo o tempo que me tem servido assim de Page como de escudeiro, mando mais que meus testamenteiros descarreguem minha consciencia em todas as dividas que na verdade se acharem e eu estou obrigado no meio que meus Testamenteiros seram João Gomes de Carvalho e Dom Jaime de Seillão e o Padre Manoel da Costa e o Padre Frei Lourenço dos Martires todos juntos desporão bem de minha Alma assim e da maneira que eu fizera por eles pois são meus amigos Deixo por Ademenistrador da minha Capella que jnstituo em o lugar de Tilheiras na forma da Escriptura a que tenho feito com os frades de São Francisco da Provincia de Portugal pesso por mercêe aos Senhores Ministros e mais irmãos da Meza da Terceira ordem do nosso Padre São Francisco cita no convento desta Cidade da observancia pois sou Terceiro profeço que me queirão fazer caridade e mercêe de ser a dita Meza Ademenis-tradora da minha Capella que eu Instituhi na minha quinta de Tilheiras da envocação de nossa Senhora da Porta do Céo e deixo de esmolla a dita Meza des mil reis cada anno com declaração que querendo a dita Meza aseitar a parte que fica de fora da quinta lha dou conforme a Escriptura que tenho feito com os frades em satisfação dos ditos des mil reis e quando nam os meus Testamenteiros consignarão a paga donde milhor lhe estiver Item mais declaro por minha Erdeira a minha filha Donna Maria de Sam João que esta no convento de Villa Longa das freiras e esta herança terá ella depois de cumpridos meus legados e o mais Contheudo neste meu Testamento entretanto gozará livremente de duas azaz que tenho na Rua direuta da Mouraria e os frutos de meu cazal do Rebollo e os

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meus Testamenteiros sendo ella de jdade para ser profeça lhe darão o dote acostumado que com a Abadessa se consertarem e sendo freira profeça lhe darão os meus Testamenteiros ou logo lhe consignarão avendo dinheiro alem do seu dote cessenta mil reis de tença em cada hum anno ficando livres as cazas da Mouraria e o cazal do Rebollo e por sua morte da ditanminha filha se tornarão as cazas e o cazal assima ditas para minha Capella com obrigação de hum annal de miças e tres ofícios de nove Lições repartidos por descurço do Anno o primeiro por mim o segundo por meu Pai, o terceiro por meus defunttos que sou obrigado Item mais declaro que esta outra freira por nome Simõa que hora he novissa no Convento de Villa Longa e mando aos meus Testamenteiros que satisfa-ção o dote a dita Simõa Baptista vendendo as casas da Rua do Outeiro junto as portas de Santa Catherina e com ellas satisfaram o dito dotte Item pesso a minha filha Donna Maria que dezista do direito das cazas que ficarão de sua May Suzana de Abreu que Deos haja para que com os ditos alugueres fiquem pella Tença da dita Simôa Baptista Item deicho a Balthezar de Almeida as cazas em que elle mora em Tilheiras com atafona com obrigação de me mandar dizer seis micas cada anno ficando lhe as ditas cazas sem nenhuma outra obrigaçam e emfathiota Item deixo a Felippa da Rocha trinta mil reis pellos serviços que me fés prencipalmente nesta minha enfermidade Item deixo a dois Pagens que tenho alem do que se lhe deve de seus serviços a cada hum des mil reis e a Amaro filho de Estêvão Ferreira meu criado outros des mil reis Item deicho a Estêvão Ferreira meu criado outros des mil reis Item deicho a Estêvão Ferreira e a Gaspar de Moura meus criados a cada hum delles alem do que lhes devo de seus ordenados a cada hum des mil reis. Item deicho mais ao Padre Frei Lourenço dos Martires de esmola para hum abito des mil reis Item mais declaro que quantos escriptos se acharem em meu poder de João Gomes de Carvalho se rasgaram todos e nam vallerá nenhum Item mais deicho ao Padre Manoel da Costa meu capelão que lhe dem alem do seu ordenado vinte mil reis ou pessa que os valha Item deicho a minha cadea que trago comigo de cordão a Dom Jaimes de Seillão sem embargo dos sobreditos serem meus Testamenteiros não haja duuida porquan-to he minha vontade e por este Revogo todos os Testamentos e condecilhos e mais escriptos escriptu-ras que antes deste tenha feitos não tenhão nenhum vigor nem força por quanto esta he minha ultima vontade[e] mando que se guardem e assim pesso as

Justiças de Sua Magestade dej fazer por meu creado Simão da Costa e por não poder asignar mandei asignace o sobredito por mim e eu o dito Simão da Costa o fis e asignei por mandado de sua Excellencia e a seu Rogo Lisboa trinta e hum de Março de mil seis centos quarenta e dous asigno a Rogo do Testador Simam da Costa.

transcrisão feita por Sousa Viterbo sem indicação de fonte, in Arquivo Histórico Português

Cronologia

Nasce D. João de Cândia

O Príncipe D. João sobe ao trono de Cândia

Vinda de D. João para Portugal

D. João de Cândia projecta a construção do Convento de N. S. da Porta do Céu

Criação da Irmandade da N. S. da Porta do Céu e de S. João Baptista

Deram entrada no Convento os primeiros cinco frades, da Ordem de S. Francisco.

Morte do Príncipe Negro

Terramoto que deixa o Convento e sua Igreja em ruínas

Fim das obras de reconstrução do Con-vento e Igreja de N. S. da Porta do Céu

Tropas liberais instalam-se no Convento em plena batalha

Extinção do Convento

Prenúncio de venda do Convento

Profanação do Convento e Igreja – oficina, taberna e famílias

Pequenas obras e reabertura da Igreja aos fiéis

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1591

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1833

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1880

1910

1941

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Memória Paroquial do LumiarNarrativas Simbólicas

Rua da Castiça, 2As Rainhas na Toponímia

do Lumiardo

lum

iar

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A memória referente à Freguesia do Lumiar encontra-se no Dicionário Geográfico, volume XXI, memória 158, fólios 1343 a 1356, cujo original se encontra depositado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e do qual foi feita a transcrição.A compilação do que depois se veio a denominar como os “Dicionários Geográficos ou Memórias Paro-quiais” resultou de uma ordem do Ministério do Reino emanada a todas as paróquias do país para que fossem descritas e ainda para se apurar dos estragos provoca-dos pelo terramoto de 1755, sendo a ideia original do Padre Luís Cardoso.As memórias originais depois de recolhidas foram agrupadas alfabeticamente e encadernadas. Foi ainda feito um índice geral onde constam os interrogatórios enviados aos Párocos.Segue a transcrição do prólogo, onde contam as questões, num total 60, e a memória referente à Freg-uesia do Lumiar. Gostaria de referir que esta tran-scrição segue o texto integralmente.Uma vez que os interrogatórios enviados eram todos idênticos, certas questões não podiam ser respondidas por todos os Párocos, uma vez que as suas paróquias poderiam não ter como preenchê-las. Particular-mente à Freguesia do Lumiar, o Pároco Feliciano Luiz Gonzaga declara “Pello que pertence a esta primeyro interrogatório he o que posso dizer nam tendo nada que responder aos que nam digo.”Pelo interesse, pormenor e frescura da descrição se transcreve a Memória Paroquial da Freguesia do Lumiar.

Resposta ao inquérito enviada pelo Pároco da Freguesia do LumiarEm resposta aos interrogatórios aque V. Exa. manda que eu responda pello

MEMóRiA PAROqUiAL DO LUMiAR José António Silva

que pertence a esta freguezia de Sam Joam Baptista do Lumiar digo ao primeiro que:

1. Este Lugar do Lumiar he do termo de Lisboa, e pertence ao Patriarcado, e he da freguezia de Sam Joam Baptista.2. He aoprezente a Dona Abbadeça do Real Mosteiro de Odivelas da Ordem de Sam Bernardo quem apr-ezenta os Parocos desta freguezia como donataria da Croa in Solidum, por doaçam que lhe fes do padroado o Senhor Rey Dom Diniz no anno de mil trezentos e sincoenta e seis; E postoque osenhor Bispo Dom Frey Estevo e Cabido de Lisboa embaraçace que tivesse effeito esta anexaçam depois se veio a effectuar e con-cluhir em o tempo do senhor Bispo Dom Joam, e se uniram aquelle Mosteiro os frutos desta Igreja que lhe ficaram pertencendo, e recebe a ditta Dona Abbadeça e tersa que como Padroeyra lhe pertence e ficou sempre amesma Igreja com anatureza das do Padroado Real, alcançandoce para tudo Bula da Sancta See Apostolica aque tudo claramente consta do Livro segundo das doaçoens afolhas cento esettenta e quatro, e afolhas cento e settenta esinco, que se acha no Cartorio do mesmo Mosteiro.3. Tem esta Paroquia quantrocentos e sincoenta fogos emque habitam duas mil duzentas e vinte e seis pes-soas.4. Achace esta Patroquia situada em monte a respeito da capital e cidade de Lisboa, e nam se descobrindo do principal Lugar della queheo Lumiar povoaçam alguma, contudo achamce nella sitios por serem de maior eminencia deque se descobrem alguns Lugares, e entre todos omais notavel he o oyteyro das arcas porque delle chamado ocitio da Casa branca se avis-tam as povoaçoens seguintes parte muito notavel da Cidade de Lisboa na distancia de huma Legoa, as villas de Almada na distancia de duas Legoas, de Palmela na distancia de sinco Legoas, de Aldeia galega na distan-cia de quatro Legoas, avistace mais o Lugar do Tujal na distancia de duas Legoas, os Lugares da Povoa de Sancto Adriam, Xarneca, e Odivellas todos na distan-

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cia de meia Legoa, os Lugares chamados da Porcal-hota, Dabeja, Calharis e Bemfica, todos na distancia de huma Legoa, o Lugar de Carnide na distancia de meya Legoa eodo Campo grande na distancia de hum quarto de Legoa.5. Nam tem termo seu mas os Lugares que compre-hende sam odo Lumiar que tem cento e oytenta e oyto fogos e novecentas e tres pessoas, ode Tilheyras em que se acham noventa e dous fogos e quatrocentas e quarenta pessoas o do Passo com cento e vinte edoas fogos, e seyscentas e tres pessoas, tem mais dous Lu-gares piquenos que Sam a Urmeyra que tem sinco fo-gos e trinta e quatro pessoas, e a Torre do Lumiar que tem dezanove fogos e cento e quatro pessoas, eos mais fogos que tem que sam vinte equatro em que habitam cento e quarenta e duas pessoas sam em varias quintas que se acham pellos Limittes desta freguezia.6. A Igreja Paroquial nam esta dentro do Lugar do Lumiar mas sim no fim delle e tam junto do mesmo Lugar se acha situada que sem discomodo algum dos moradores estes vem a ella assistir a os officios divinos e frequentar os Sacramentos, os Lugares que tem já delles fiz mensam em a resposta antecedente.7. No prezente tempo he o Glorioso Sam Joam Bap-tista o Orago desta Igreja, e posto que algumas pessoas me dizem que antigamente fora o Apostolo Sam Matheus esta noticia nam se verefica por certa por se nam achar nem em os Livros antigos desta Igreja nem em o Cartório das Religiozas de Odivellas adonde vi a doacam da Igreja feita pello Senhor Rey Dom Diniz as mesmas Religiozas. Tem sinco Altares O maior em que se acha Colocado no meio delle o Tabernacullo em que se recolhe o Santíssimo Sacramento da parte do Evangellio o Orago da Igreja o Gloriozo Sam Joam Baptista e da parte da Epistola o gloriozo Princepe dos Apóstolos Nosso Padre Sam Pedro, e pertence a fabrica desta Capella a Irmanade do Santíssimo Sac-ramento, parte como irmaos do Senhor, e parte como fabricanos, no Lado do Evangellio oprimeiro Altar Colateral em que se acha colocada a Imagem de Nossa Senhora comotitolo do Rozario, e pertence a fabrica delle aas irmaas da Irmandade da mesma Senhora; da parte da Epistola o Segundo Altar Colateral em que se manifesta a veneraçam huma devota Imagem de Christo Senhor nosso Crucificado e por isso se chama do Senhor Jesus e porque nam tem Confraria aquem pertença toma a sua conta a fabrica delle um devotto Ecleziastico o Padre António da Costa Preto; da parte do Evangellio tem a Capella e Altar em que se acha Colocada em decente Tabernaculo o casco da Cabeça

da Glorioza Sancta Brigida virgem deque farey mesam em seu proprio Lugar, e na Tribuna do mesmo Altar esta a Imagem da dicta Sancta pertencendo asua fab-rica aos seus confrades e Irmãos; da parte da Epistola tem o ultimo Altar em que esta Colocada a devotta Im-agem de Nossa Senhora que se venera no seu Misterio da sua purissima Conceiçam, e na mesma Capella se acha Colocada huma devotta pintura de Maria Sanctissima Como titolo de Senhora da Encarnaçam e Sam muitos os devotos que recorrem nas suas maiores afliesoens a esta Sancta Imagem Sendo muitos os favorecidos pello Seu patrocínio: Sam fabricanos deste Altar os Irmaas da Meza da Irmandade da Senhora da Conceyçam. Tem a Igreja tres naves Sendo adomeyo a maior, eas duas aporporçam todas grandes que fazem a Igreja grande e bem porporsionada. Tem afreguezia Seis Irmandades a Saber, ado Santíssimo Sacramento, ado Espiritu Sancto, ada Conceiçam da Senhora, ada Senhora do Rosario, ade Sancta Brigida eadas Almas do Purgatorio.8. He Prior o Paroco desta freguezia e he Como já fica dicto aprezentado pella Dona Abbadeça do Real Mosteiro de Odivellas, e Costume render para o Pa-roco ao todo quatro centos e oytenta mil reis.9. Tem dous Beneficiados que tem de renda Servindo os benefícios cem mil reis Cada hum e os aprezenta o Prior desta Igreja.10. O Convento que se acha nesta freguezia he hum So de Religiozos de Sam francisco e da sua Ordem em o Lugar de Tilheyras que sempre passava de vinte Religiozos Conventuais: o Seu Fundador foi o Princepe Dom Joam de Candia, que sendo jurado Rey do Reyno deste titolo esteve obrigado a deichalo, fugindo apreceguiçam da violenta guerra, que lhe fez hum tirano arrenegado, e veyo buscar amparo nos Religiozos de Sam Francisco que estavam no estado da India, os quays odeffenderam das hostilidades do Seu inimigo e o instruhiram nos mistérios da nossa Sancta Fe; e dilatada na quelle estado, e ensino por quinze annos em Companhia de Dom Felipe Seo Sobrinho e Neto do Raja Rey de Cota, a quem os Portuguezes haviam prezionado em huma guerra, vieram para este Reyno e Cidade de Lixboa no anno de mil Seis centos equarenta e dous no reinado de Felipe Segundo, adonde assistiram no Convento de

Sam Francisco da Cidade. O Sobrinho falesceo em Coimbra adonde passace para estudar e o Princepe Dom Joam de Candia passou a Madrid adonde acrescentando as suas

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passou a Madrid adonde acrescentando as suas Rendas renuncioce nas maas de ElRey o Seu Reyno Ordenan-doce de Sacerdote e Sua Majestade lhe deo as honras de grande de Espanha Com estas honras, e rendas, se restituhio a Lisboa e para se mostrar agradecido aogrande amor que tinha devido aos Religiozos de Sam Francysco lhe fundou o Convento no Lugar de Tilheyras nesta freguezia do Lumiar, e Colocou na Igreja a imagem de Nossa Senhora da Porta do Ceo deque o Convento tomou a invocaçam, unica deste titolo em Portugal e a segunda de Espanha; nelle as-sistyram sempre sinco Religiozos na sua vida, mas sem Ordem nem forma de Clauzura; athe que falescendo o dito Princepe na sua Caza da Corte noprimeiro de Abril de mil Seiscentos e querenta e dous, da idade de Sesenta e quatro annos, se fechou o Convento em Clauzura Como oratorio e prezidencia e depois se eri-giu em Guardiania em que hoje existe. Este Convento e Igreja totalmente se arruinou com o Terremoto, mas ainda se vem quazi em pe as duas Sepulturas altas, ede boas pedras que o dicto Princepe mandou fabricar para si e para Seo Sobrinho. A imagem da Senhora he da estatura grande e tem na mam por insignia huma chave de prata foy munto milagroza Como Consta de varios prodigios que se autenticaram, e se conservam as suas memorias. Tem huma grande Irmandade deque Sempre Sam Juizes Suas Majestades. Os Religiozos Se acham hoje acomodados junto do mesmo Convento em huma barraca em que se fizeram huma piquena Igreja com tres Altares.11. Nam ha Hospital mas sim huma Albergaria que he huma boa Caza com obrigaçam de se dar Hospedagem nella aos pobres infermos e passageyros pello tempo de tres dias para descançarem, eno fim delles remette-los Com bom Comodo para o Hospital Real de Todos os Sanctos; administra as rendas desta Albergaria a Irmandade do Espirito Sancto, e tem de renda em varios foros que lhe deycharam alguns devotos que a institohiram Sessenta mil reys por cada hum anno.12. [sic].13. As Ermidas que se acham nesta freguezia Sam em o Lugar de Tilheyra duas huma de Sam vicente em a quinta do Ilustrissimo Excelentissimo Conde de Baram sendo elle administrador de huma Capella que foy instituhida na mesma, outra na quinta de Antonio Francisco Gorge, de Sancto Antonio; Nocitio chama-do a das Moyras que he no Lugar do Lumiar a Ermida de nossa Senhora do Carmo na Quinta do Desembar-gador Joam Rodrigues Campello; no mesmo Lugar do Lumiar junto a Albergaria a do Espiriro Sancto que

tem a sua Irmandade e de prezente se acha por acabar de concertar das ruinas que lhe cauzou o grande Ter-remoto; no mesmo Lugar na quinta de Joam Maurício Botelho a Ermida do Doutor da Igreja Sam Jeronimo: No Lugar da Urmeyra a de nossa Senhora com o titolo de Boa viagem, na quinta de Dona Marianna Miguel Romba. Na quinta chamada do Fialho que hoje he de Pedro de Serpa a do Sancto Crysto; No Lugar da Torre do Lumiar na quinta do Dezembargador Ignacio de Figueyredo a Ermida de nossa Senhora do Livramento. No Lugar do Passo, a do milagrozo Martir Sam Sebas-tiam. Todas estas Ermidas, exceto a do Espiriro Sancto que pertence á sua Irmandade, a de sam Sebastiam que pertence ao Povo; pertencem aos donos das mesmas quintas em que estam situadas estando de bayxo de ju-risdiçam do Paroco da freguezia. Ultimamente ha a Er-mida do Senhor Roubado que posto pareça padessece alguma ruina do Terremoto, e por isso se fizece huma barraca ou acomodaçam interina cita em a freguezia da Ameixoeyra, nam se verifica a ruina ser notavel e ainda a dita Ermida está em pe, e he della administrador o Reverendo Conego Manoel Monteyro do Rio para o que teve Provizam do Eminentissimo Senhor Cardeal Patriarcha Dom Thomas de Almeyda primeiro de Lisboa, e por estar questionavel e haver Litte perdente com o Dezembargador Procurador da Croa se nam sabe a quem pertence a sua administraçam. Teve o seu principio em hum grande Cruzeyro no anno de mil Sette centos equarenta equatro nesta forma. Vendo o Irmam Antonio dos Sanctos, Congregado dos do Senhor da Boa Morte, o concurço que em o dia onze de Mayo hia para o Lugar de Odivellas, eperguntando pella causa daquella ocorrencia lhe foy dicto que hiam para a festa que todos os annos se costomava fazer em dezagravo do roubo que se havia feito dos vazos Sagrados da freguezia do mesmo Lugar, eque naquelle citio em que se achava o dicto Irmam Antonio dos Sanctos, que hem huma vinha de Luiz Paulino, inter-rara o Sacrilego Roubado os mesmos vazos, em cujo Lugar para Lembrança se havia posto huma Crus de madeira em tosco, Levado entam do amor de Deos o dicto Irmam Antonio tirou algumas esmollas dos fieis, e fabricou huma Crus de pedra com a Imagem de Christo Senhor nosso Crucificado, e na mesma Crus Levantou afigura de huma Pixede, e Levantou mais a figura de hum Cofre de baixo da mesma Pixede, tudo fabricado em pedra Léos pella mam e idea do mesmo devoto; daparte esquerda junto da mesma crus mas Separado della Levantou hum padram servindolhe de rematte huma bem fabricada Croa, e no mesmo

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padram escreveo huma inscriçam em que se Lia o hor-rorozo Cazo sucedido, e he este tambem da mesma pe-dra Léos e Colocou esta Crus e padram em hum Largo Cruzeyro devida a sua fabrica ao zello do referido Irmam Antonio dos Sanctos. Passados alguns annos, sendo muito frequentes os devottos em concorrer ao mesmo Lugar e offerecer grandes esmollas ao Senhor: E vendo o Eminentissimo Prelado ser conveniente dar outro administrador das mesmas esmollas determinou tomar debaixo da Sua protessam este Cruzeyro, e no-meu por administrador o referido Reverendo Conego Manoel Monteyro do Rio, a deligencia do qual se deve expender com tanto zello as esmollas recebydas que sempre foram com exorbitante abundancia, que com ellas fabricou huma Ermida no mesmo citio em que se achava o referido Padram; e sendo de todas as fun-çoens excluhido o Paroco da freguezia ao que acodiu o Dezembargador Procurador da Croa dando aasam de força do Reverendo Conego a que por nam estar ainda Sentenciado se nam sabe aocerto de quem he a sua administraçam, Achace situada esta Ermida fora do Lugar do Lumiar.14. Acodem a esta freguezia frequentemente romagens a vizitar a Gloriosa Sancta Brigida que se acha Colo-cada a sua Imagem Como fica dicto em hum Altar da Igreja Paroquial, esam mais frequentes os remeyros em odia primeyro de Fevereyro proprio da mesma Sancta e nos dous Seguintes aeste, pellas Pascoas da Ressar-reycam, edo Espirito Sancto, e em dia do Nascimento de Sam Joam Baptista; e nas mesmas Pascoas e no dicto dia de Sam Joam Baptista, e nos dias tres e onze de Mayo sam ainda mais frequentes as romagens e os cirios com munto notavel Concurço de Povo para a Er-mida do Senhor Roubado Sendo tambem continua a concorrencia dos devotos que vizitam a dicta Ermida.15. Os fructos da terra que os moradores desta Pa-roquial recolhem em maior abundancia sam Vinho, Trigo, Sevada e Azeyte.16. Pertencem estes Lugares do Lumiar de Tilheyras e osmais circuito dafreguezia ao governo do Juiz do Crime do Bairro de Sancta Catherina, eo Lugar do Passo eo do Corregedor do bayro de Sam Paulo, no Lugar do Lumiar, e nodo Passo ha em cada hum delles seu Juiz do Julgado.17. [sic]18. As Pessoas insignes que floresceram desta freguezia offoram em virtudes como o companheyro de Sam Joam de Deos, Aveneravel Madre Soror Antonia da Conceyçam Religioza da Ordem de Sam Domingos, Frey Antonio do Lumiar Religiozo da Reforma de

Sam Pedro de Alcantara que falesceo em o retiro da Arrabida.19. [sic]20. [sic]21. Dista da Cidade Capital quehe Lixboa huma Legoa e porque esta freguezia se acha dentro do Patriarcado a mesma Legoa disto delle.22. Aunica cauza memoravel que ha nesta freguezia he ser depozitaria do Casco da Cabeça da glorioza Sancta Brigida Virgem aque se acha Colocado no seu Altar como já fica dicto. O prodigiozo meodo por que nos favorceo com esta tam estimavel prenda Sua foy o seguinte que he oque incontro escrito em hum Livro do Cartorio desta Igreja e tudo Se Sabe por tradissam antiquíssima. Mandandoce do Reyno de Irslanda o Casco inteyro da cabeça de Sancta Brigida Virgem e o Senhor Rey Dom Diniz este a mandara Colocar em o Convento ou Mosteiro das Religiozas de Sam Ber-nardo de Odivellas, e conduzindo os mesmos devotos Ibernios que eram tres que a tinhão trazido para o Mosteyro a dicta Reliquia chegando porem ao citio adonde se acha esta Igreja nam foy possivel passarem adiante della motivo porque a collocaram nesta Igreja no anno de mil duzentos oytenta e tres e ficaram os mesmos conductores assystindo no mesmo Lugar e falescendo no referido anno todos tres se acham sepul-tado na Capela da mesma Sancta em Sepulturas Sepa-radas de pedra e na parte de fora da mesma Capella em huma das Sepulturas se le o seguinte Letreyro.

Aqui nestas tres Sepulturas jazememterrados os tres cavaleyros Iberniosque trouxeram aCabeça da bem aventurada Sancta Brigida virgem natural de Ibernia, Cuja Relíquia está nesta Capella em memoria daqual os officiais da meza da Bem aventurada Sancta mandaram fazerno anno de mil duzentos e oytenta e tres.

E sentindo as Religiozas onam terem em seu poder a dicta Reliquia requereram que lha Levassem ao seu Mosteyro Porsisionalmente o que se fez e continua, Levandolhe a Reliquia em huma das Passisoens que se fazem das Ladainhas ou Rogoçoens nomez de Mayo; Socedeo porem em huma destas occazioens perten-derem as Religiozas nam restituhir a dicta Reliquia mas permettiu a Sancta que milagrozamente aparecece o Cofre emque se achava guardada com a mesma Cabeça, em huma madrugada Sobre huma Grande

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Arvore que se achava defronte daporta trevessa desta Igreja Paroquial faltando por isso em o Mosteyro e sendo os moradores desta freguezia os que a pessuem.23. [sic]24. [sic]25. [sic]26. As ruinas que padeceo pello Terremoto de mil Sette centos eSincoenta e Sinco foram em muntas e boas propriedades as quaes estam quazi todas repara-das e a Igreja na parede da frontaria teve tambem sua que tambem se acha remediada, na Torre emque athe oprezente se nam bolio tambem ouve Ruina. Na Ermida do Espirito Sancto foy de modo que de toda se demolio, e tendo principio o seu reparo por falta de meyos athe oprezente se nam acabou; do Convento de Tilheyras já dey conta no seu proprio Lugar.Pello que pertence a esta primeyro interrogatório he o que posso dizer nam tendo nada que responder aos que nam digo.Ao segundo interrogatório pello que pertence ahuma Serra que ha dentro desta minha freguezia digo que tem esta o seu principio no citio chamado aLage na freguezia de Sam Lourenço de Carnide a fará de comprimento tres quartos de Legoa e pouca Largura e se chama dos Mortaes e outras avizo nam se cos-tuma Coltivar no seu principio posto que nam seja infructifera como mostram algumas nodoas de que se recolhem bons fructos da coltura que sam Pam, Vinho, e Azeyte, continua com pouca coltura athe o regato he chamado o rio da Senhora ou o rio do Mohinho e dahi por diante continua toda coltivada deque se recolhe Pam athe o fim que he no citio chamado o Senhor Roubado e mentendoce a estrada Real torna a principiar mas já na freguezia de Nossa Senhora da Encarnaçam da Ameyxoeyra. Algumas fontes tem mas tam piquenas que por nenhum modo Sam especiais. As Ervas medecinais que nelle se incontram sam as seguintes: Abrotans, Agrimonia, Almeiram, Arcas, Barbasco, Borrages, Centauria menor, Croa de Rey, Pinpinela, Poejos, Trevo Xeyrozo, Oregam. E neste interrogatório nam tenho mais que dizer.

“Pello que pertence ao ultimo interrogatorio digo que nesta freguezia Corre hum Rio chamado de Odivellas que propriamente he regatto por correrem por elle so as agoas vertentes de algumas Serras; Corre do Poente para onascente Coltivamce as suas margens de muntas Ortas, e de Pam.Principia no citio chamado Camera, da freguezia de Bellas de donde vem hum braço recebendo as agoas

das Serras que acercam e outro braço do Citio dos Castelos freguezia de Bemfica recebendo as suas agoas de outras Serras e em parte alguma tem nascimento de fonte, principia com onome do regato das Sylvey-ras no braço que vem de Camera, e no outro braço que nasce dos Castelos com o nome do Regato da Lage e concervando os mesmos nomes se ajuntam na Urmeyra Lugar desta minha freguezia, ejuntos os dous regatos corre mais Caudalozo Com o nome de Rio da Urmeyra por conserva athe ocitio chamado da Sen-hora ou Como outros do Mohinho, asim Corre athe a ponte de Odivellas que se acha Logo diante do Citio chamado o Senhor Roubado, e ahi toma onome de Rio de Odivellas easim o Conserva athe a ponte da Povoa de cujo Lugar toma onome e vai correndo aface do Lugar athe hir morrer no Rio de Friellas. Recebe este regato hum braço que lhe vem da freguezia de Odivel-las e tem o seu nascimento junto ao Lugar de Caneças da freguezia de Loyres e nasce tambem de agoas vertentes das Serras de Valcovo, Amoreyra, e Trigaxe e vem correndo com o nome do Regato de Trigaxe athe o citio da Amoreyra, adonde recebe tambem aagoa da fonte da Amoreyra e vem Correndo Com o nome da Ramada athe o Lugar de Odivellas adonde se ajuntam as suas agoas as do nosso Rio no Citio do Mohinho; este regato nam corre de veram posto que por esta parte receba agoas desta fonte, mas os moradores da Amoreyra, e Ramada as divertem pelos inxidros e Ortas. Tem huma ponte de pedra ehe piquena adeante do citio chamado o Senhor Roubado.

He oque posso responder a este ultimo interrogatório: Epello que pertence a esta freguezia nam tendo mais que dizer atodos os que V. Exa. manda que eu de res-posta. Lumiar em 4 de Mayo de 1758.

O Prior Feliciano Luiz Gonzaga

Bibliografia:ANTT, Luiz Cardozo (P.e), Dicionário Geográfico, volumes XXI e XLIII

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Interrogatórios enviados aos Párocos depois do terramoto de 1755

IO que se procura saber desta terra é o seguinte:Venha tudo legível e sem breves

I – Em que província fica, a que bispado, comarca, termo e freguesia pertence?II – Se é d’El-Rey, ou donatário, e quem o é ao pre-sente?III – Quantos vizinhos tem (e o número de pessoas)?IV – Se está situado em campina, vale, ou monte, e que povoações se descobrem, e quanto dista?V – Se tem termo seu, que lugares, ou aldeias com-preende, como se chamam, e quanto vizinhos tem?VI – Se a paróquia está fora do lugar, ou dentro dele, e quantos lugares, ou aldeias tem a freguesia, todos pelos seus nomes?VII – Qual é o seu orago, quantos altares tem, e de que santos, quantas naves tem; se tem irmandades, quantas e de que santos?VIII – Se Pároco é cura, vigário, ou reitor, ou Prior, ou abade e de que apresentação é, e que renda tem?IX – Se tem beneficiados, quantos, e que renda tem, e quem os apresenta?X – Se tem conventos, e de religiosos, ou religiosas e quem são os seus padroeiros?XI – Se tem hospital, quem o administra, e que renda tem?XII – Se tem casa de Misericórdia, e qual foi a sua origem, e que renda tem; e o que houver de notável em qualquer destas coisas?XIII – Se tem algumas ermidas, e de que santo, e se estão dentro, ou fora do lugar, e a quem pertencem?XIV – Se acode a elas romagem, sempre, ou em alguns dias do ano, e quais são estes?XV – Quais são os frutos da terra que os moradores recolhem em maior abundância?XVI – Se tem Juiz ordinário, etc., Câmara, ou se está

sujeita ao Governo das Justiças de outra terra, e qual é esta?XVII – Se é couto, cabeça de concelho, honra, ou behetria?XVIII – Se há memória de que florescessem, ou dela saíssem alguns homens insígnios por virtudes, letras ou armas?XIX – Se tem feira, e em que dias, e quantos dura, se é franca ou cativa?XX - Se tem Correio, em que dias da semana chega, e parte; e, se o não tem, de que Correio se serve, e quanto dista a terra onde ele chega?XXI – Quanto dista da cidade capital do bispado, e quanto de Lisboa, capital do Reino?XXII – Se tem algum privilégio, antiguidades, ou out-ras coisas dignas de memória?XXIII – Se há na terra ou perto dela alguma fonte, ou lagoa célebre, e se as suas águas têm alguma especial qualidade?XXIV – Se for porto de mar, descreva-se o sítio que tem por arte ou por natureza, as embarcações que o frequentam e que pode admitir?XXV – Se a terra for murada, diga-se a qualidade de seus muros; se for praça de armas, descreva-se a sua fortificação. Se há nela, ou no seu distrito algum castelo, ou torre antiga, e em que estado se acha ao presente?XXVI – Se padeceu alguma ruína no terramoto de 1755, e em que, e se está reparado?XXVII – E tudo o mais que houver digno de memória, de que não faça menção o presente interrogatório.

IIO que se procura saber desta serra é o seguinte:

I – Como se chama?II – Quantas léguas tem de comprimento, e quantas de largura; onde principia, e onde acaba?III – Os nomes dos principais braços dela?IV – Que rios nascem dentro do seu sítio, e algumas propriedades mais notáveis deles, as partes para onde correm, e onde fenecem?V – Que vilas e lugares estão assim na serra, como ao longo dela?VI – Se há no seu distrito algumas fontes de proprie-dades raras?

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VII – Se há na serra minas de materiais, ou canteiras de pedra, ou de outros materiais de estimação?VIII – De que plantas, ou ervas medicinais é a serra povoada, e se se cultiva em algumas partes, e de que géneros de frutos é mais abundante?IX – Se há na serra alguns mosteiros, Igrejas de ruma-gem, ou imagens milagrosas?X – A qualidade do seu temperamento?XI – Se há nela criações de gados, ou de outros ani-mais, ou caça?XII – Se tem alguma lagoa, ou fojos notáveis?XIII – E tudo o mais que houver digno de memória.

III

O que se procura saber do rio dessa terra é o seguinte:

I – Como se chama, assim o rio, como o sítio onde nasce?II – Se nasce logo caudaloso, e se corre todo o ano?III – Que outros rios entram nele, e em que sítio?IV – Se é navegável, e de que embarcações é capaz?V – Se é de curso arrebatado, ou quieto, em toda a sua distância, ou em alguma parte dela?VI – Se corre de norte a sul, se de sul a norte, de po-

ente a nascente, se de nascente a poente?VII – Se cria peixes, e de que espécie são os que traz em maior abundância?VIII – Se há nele pescarias, e em que tempo do ano?IX – Se as pescarias são livres, ou de algum senhor particular, em todo o rio, ou em parte dele?X – Se se cultivam as suas margens, e se tem muito arvoredo de frutos, ou silvestres?XI – Se tem virtude particular as suas águas?XII – Se conserva sempre o mesmo nome, ou começa a ter diferente em algumas partes, e como se chama estas, ou se há memória de que em outro tempo tivesse outro nome?XIII – Se morre no mar, ou em outro rio, e como se chama este rio, e o sítio em que entra nele?XIV – Se tem alguma cachoeira, represa, levada, ou açudes que lhe embaracem o ser navegável?XV – Se pontes de cantaria, ou de pau, quantas e em que sítio?XVI – Se tem moinhos, lagares de azeite, pisões, noras, ou outro algum engenho?XVII – Se em algum tempo, ou no presente, se tirou ouro das suas areias?XVIII – Se os povos usam livremente das suas águas para as culturas dos campos, ou com alguma pensão?XIX – Quantas léguas tem o rio, e as povoações por onde passa, desde o seu nascimento até onde acaba?XX – E qualquer outra coisa notável que não vá neste interrogatório.

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NARRATiVAS SiMBóLiCASPossíveis formas arquetípicas no edificado do Lumiar Fernando António Monteiro de Almeida Casqueira

A narrativa* que a seguir se apresenta, parte de um conjunto de observações registáveis em simples deam-bulação pelo espaço antigo da freguesia do Lumiar, constatando-se a emergência de formas (ou elementos formais) servindo propósitos decorativos ou funcio-nais, nomeadamente na arquitectura e espaço urbano datável do século passado, ou épocas anteriores, quer seja erudito, vernáculo, civil, religioso, monumental ou não. No espaço urbanizado ou nos edifícios mais recentes, reflectindo contextualmente outros imperati-vos técnicos/estéticos e outras lógicas sócio culturais, aquelas formas já não relevam nas gramáticas constru-tivas da arquitectura dos tempos de hoje e portanto desapareceram dos espaços edificados e das conturba-ções da actualidade. Tomemos para melhor ilustração do que aqui se refere algumas imagens tiradas ao acaso no espaço da Freguesia do Lumiar representativas de formas simbólicas integradas mais significantes:

1. Quinta do Conde do Paço

Cabeça/s (1)– Simboliza o princípio activo, o esclare-cimento, a autoridade, a ordem, a manifestação do espírito em relação ao corpo. Há aspectos relevantes que articulam diversos sistemas de crenças como por exemplo o culto das cabeças. S. Fabião em Casável, S. Constantim em Panóias, São Pantaleão no Porto, santa Brígida no Lumiar, para não referir os controversos Baphomet dos templários, etc. Sede do pensamento e do espírito o crânio, objecto de culto, pode implicar a representação da abóbada celeste (crânios santos ou de antepassados). As cabeças surgem muitas vezes a coroar colunas, por vezes representando bustos bicéfa-los ou biface. Neste caso estão relacionadas com deus romano, Jano guardião das portas vigiando entradas e saídas. Esta dupla virtualidade acaba estar relacionada com o lado bom e mau de qualquer coisa.

2. Largo de S. Sebastião Espiral (2)– Evolução de uma força, de um estado, é um arquétipo e um universal da cultura presente em todas elas. A espiral simboliza emanação, extensão, continuidade cíclica em progresso de continua criação.

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Está ligada a outros simbolismos: a concha, cornos, e ao simbolismo do labirinto.

3. Parque do Monteiro-Mor

Romã (3) - Simboliza a defloração ou fecundidade. Em virtude da cor vermelha representa a vida, a morte, o amor, o sangue. Na tradição semita (Fenícia), rep-resentava o sol, o poder e a renovação. No judaísmo significava a fidelidade aos dogmas da religião. O conjunto das sementes eram vistas como o símbolo da própria igreja e o sumo relacionava-se com o sangue dos mártires. A casca do fruto, simbolizava o perfeito cristão e especificamente o sacerdote.

4. Quinta de S. Sebastião

Cordeiro (4)- Tradicionalmente ligado à noção de candura e tolerância, associado à cor branca assume o sentido de mansidão, inocência e pureza. Nas culturas antigas costumava ser sacrificado e daí a sua presença como símbolo sacrificial no contexto do cristianismo primitivo. Ainda hoje pode ser observados resquícios de práticas rituais de sacrifício do cordeiro em algumas regiões do país. O Cordeiro de Deus (Agnus Deo) espia os pecados do mundo e igualmente representa os fiéis mártires como conjunto de cordeiros. Carranca (5) – Máscara, manifestação do inferior satânico, revelação das tendências interiores que é pre-ciso afugentar, a máscara aparece em diversas culturas em contextos rituais, investida de forte carga simbóli-ca. Os rituais de máscaras podem referir cosmogonias e concepções de espaço e tempo. Podem referir uma função catártica ou exorcisante.

5. Quinta de S. Sebastião

Rosa (6) – Perfeição acabada; realização sem defeito, simboliza a taça da vida (Graal); a alma, o coração. Na religião cristã representa a Virgem Maria e de uma maneira geral o amor divino. Na antiguidade sim-bolizava para além do amor, a simpatia, a fertilidade e a veneração dos mortos. Por outro lado figurava em certas cerimónias como as dionisíacas em honra de Baco. Nos primórdios do cristianismo associava a cruz, o sangue e as chagas de Cristo. Mas afinal que significado ou função imediata alguma vez tiveram os pináculos, fogaréus, cruzes, rosas pé-

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treas ou pintadas, conchas, flores-de-lis, crateras, urnas, batentes, estrelas, rosáceas, e diversas outras formações decorativas, algumas delas seguramente dispendiosas, embora aparentemente despiciendas, sob o ponto de vista da funcionalidade estrutural do edificado? Uma possibilidade de resposta reside no facto de existir a eventualidade de se reduzir, tais elementos a um universo de formas elementares, exprimindo um significado subjacente, ancestral, totalmente afastado da sua actual configuração manifesta. A aceitarmos esta sugestão isso equivaleria a admis-são da dimensão arquetípica na explicação possível do significado dessas formas. Com efeito, aqueles elementos de uso quotidiano e/ou apenas decorativo, sugerem a hipótese de haver existi-do, para cada caso, um significado implícito subjacente, tendo muito provavelmente surgido inicialmente fora do contexto moderno, como referentes de uma dada elaboração simbólica. Com a sucessão das épocas, tais

formas foram deixando de exprimir qualquer conexão simbólica e as que ainda subsistem, acabaram (para a maioria das pessoas, hoje) reduzidas à descrição deno-tativa, valor instrumental ou a meros elementos deco-rativos de varandas, jardins, portas, portões de quintas, fontes, etc., passando despercebidos na consciência do passante/cidadão comum. Hoje, se admitirmos a possibilidade de ocorrência de alteração gradual do contextos sócio-culturais que fizeram originalmente emergir tais elementos e concomitantemente a perca gradual, da chave para a sua “descodificação”, isso pode explicar não apenas, a incapacidade - insistimos - de conotarem hoje, algo mais que a sua eventual utilização quotidiana, mas também, a indiferença com que são olhados/utilizados e a impressão de obsolescência e subvalorização, pela sua aparência vulgar. Mas nós estamos inclinados para admitir uma significação simbólica que em tempos recuados seria reconhecível e partilhada ao menos por

Palácio Angeja/Palmela

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uma comunidade restrita de agentes.Uma tentativa de reinserção desses elementos formais no universo simbólico respectivo requereria para o curioso, um saber demasiado vasto, múltiplo e inter-disciplinar (entre as quais, a antropologia, biologia, história, psicanálise, mitologia, entre muitas outras) e igualmente, sobre as teorias do símbolo, as tradições exotéricas, a numerologia, diversas cabalísticas, etc., fora do alcance da maioria das pessoas. Sem dúvida que isso poderia permitir colher um conhecimento, possibilitando a elaboração de complexas narrativas sobre tal problemática, reconstruindo-os à luz das di-versas tradições/especializações cabalísticas e saberes herméticos que muitas pessoas detêm. Naturalmente que apreendê-los numa totalidade compreensiva, esgotar a discursividade poliédrica das diversas con-stelações simbólicas em que alguma vez se inseriram, isso seria tarefa praticamente impossível de realizar nas condições actuais. Com efeito os símbolos mantém complexas relações entre si, articulando-se segundo o que alguns autores designam por “constelação simbóli-ca” e reenviando-se de forma extremamente complexa formando como que um labirinto de espelhos ou um sistema aberto. Compreende-se então, que a signifi-cação simbólico não seja um dado conclusivo, antes constituindo um processo dinâmico, interagindo com processos psicológicos e sócio – culturais, localizados em dimensões espacio-temporais indeterminados e configurando camadas sucessivas de significações, cuja (des) construção se torna problemática. Daí igual-mente o desafio e o aliciante de intentar discorrer iden-tificando sentidos, sobre sob a forma de uma narrativa metafórica, superando as limitações ou as pretensões da teoria científica. Não constituindo o objectivo deste trabalho, sistematizar sobre tal problemática e suas representa-ções, não queremos deixar de concretizar o que referi-mos acima e oferecer alguma alusão, embora redutora, breve e superficial, sobre algumas interpretações (pas-síveis de constatação rápida, em qualquer dicionário de símbolos) das imagens mostradas acima, sobre o espaço antigo da Freguesia do Lumiar. Antes porém três notas prévias. Primeiro, a intenção deste trabalho, lembremos, pretende chamar a atenção das pessoas que tais elementos formais não são despiciendos e aleatoriamente produzidos e integrados no espaço edificado. Eles tiveram algures uma intenção e intenta-vam comunicar algo. Logo não devemos subestimar e ensaiar interpretá-los. Segundo, neste universo do pensamento e linguagem,

interessa igualmente lembrar que o regime do discurso verbal implica conotações tendencialmente infinitas. Isto para dizer que para qualquer proposta de sentido e significado é sempre possível acrescentar-se algo ainda não contemplado. Mas, reiteramos, sempre com a consciência que o importante fica por dizer. Afinal a imaginação simbólica remete para o enigma da existência. Terceiro, não pretendemos, ser exaustivos, e assim sendo, não incluímos muitos outros espaços-tempos de socialização, marcadores de lugar e de forte carga simbólica, como os lugares de feira e romagem, as igrejas e capelas, alguns axis mundi, como árvores, etc.Todavia, como dissemos, temos sempre a impressão que por mais exaustiva que fosse a descrição, tais formas aparentemente elementares continuariam a possuir sempre uma dimensão enigmática, misteriosa, situando-se para além da capacidade de consciencial-ização da pessoa comum. Por isso propositadamente inscrevemos alguns significados relativamente comuns, acrescentando agora, que serão sempre redutores porquanto existe sempre uma faculdade do possível, cujo limite afinal, confronta-se – tal como no mito – com a imaginação humana, e que torna a narrativa simbólica infinita e geradora de outras narrativas. Não perfilhamos certamente, as ideias que certos autores empreendem, nomeadamente J.P Sartre, relativamente à desvalorização do imaginário e do papel efectivo que a imagem desempenha no âmbito das motivações psicológicas e culturais. Acreditamos, tal como Jung que o pensamento assenta em imagens gerais – os ar-quétipos – determinantes inconscientes desse mesmo pensamento. Mas de onde surgem eles? É o que proximamente procuraremos abordar frisando de novo que, não seremos certamente conclusivos.

*Chamo “narrativa”e não apenas teoria ou paradigma, essencialmente por dois motivos: Em primeiro lugar, julgo ser necessária, alguma contenção perante uma pesquisa exploratória, ainda pouco sistematizada e algo, especulativa. Em segundo lugar, a expressão paradigma ou teoria encerra maiores responsabilidades que a tradição científica fixou, parecendo-nos portanto pouco adequada ao espírito de flexibilidade enigmática (na acepção de Mario Perniola que presidiu à elaboração da presente reflexão). As interpretações simbólicas foram extraídas no essencial do Dicionário de Símbolos Herder Lexikon, editora Cul-trix, S. Paulo, 1990.

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Não interessa no momento apontar a responsáveis para o deplorável estado de degradação da residência quinhentista da Rua da Castiça, nº 2, na freguesia do Lumiar prosaicamente conhecida pela população local por “Vila Adelina”. Certo é que têm sortido infrutíferos os sucessivos apelos para colmatar a situação de ruína eminente do edifício, empobrecedora do acervo patri-monial da freguesia do Lumiar e da cidade de Lisboa. Por via das dúvidas preferimos pensar que este estado de coisas se deve ao facto do imóvel pertencer a enti-dades privadas que optaram pelo aluguer dos diversos “acrescentos” e respectivos logradouros da construção de origem. O edifício e restante área circundante, agora restrita tem vindo a ser objecto da indiferença dos fregueses do Lumiar, agora sem o móbil da descul-pabilização motivado pela falta de divulgação quando a pode ver finalmente citada na Nova Monografia do Lumiar . Certo é que se torna quase impossível inferir o traçado arquitectónico original perante uma indi-gente parafernália dantesca formada por amontoados de “lixos” que conspurcam, corroem este raro exemplo da arquitectura civil, tardo gótico, da nossa capital. Até a placa onde se classifica a situação de Imóvel de Interesse Municipal, imperceptível para o passante desprevenido não tem cumprido o seu objectivo de

garante da integridade e preservação daquele espaço. Ressalve-se contudo a boa vontade e necessidade de sobrevivência com alguma qualidade de vida dos raros inquilinos que procederam a obras de beneficiação a seu custo e que tornaram possível a visualização dos espaços intervencionados.O historiador António Miranda numa abordagem histórica sobre este imóvel realizada em 1994, com o título a “Casa de Campo dos Marqueses de Angeja no Lumiar” , adianta a teoria de que o 3º marquês, o inc-ontornável e controverso presidente do Erário Régio ao tempo de D. Maria I, D. Pedro José de Noronha Camões de Albuquerque Moniz e Sousa (1716-1788), forte opositor de Pombal, foi proprietário desta casa. Baseou-se na tradição oral, mas também no facto da proximidade da antiga propriedade com o palácio do marquês erguido defronte do edifício mais documen-tado do Lumiar medievo, a Igreja Paroquial de São João Baptista. Urge, portanto uma análise dos factos que possa estabelecer o paradigma toponímico desta antiga quinta.Sobre o carácter empreendedor do marquês não existem quaisquer dúvidas, mas quanto à sua presença, apropriação e eventuais intervenções estruturais nesta residência podem ser colocadas bastantes dúvidas. Na realidade, D. Pedro de Noronha escolheu o Lumiar para realizar mais um dos sonhos da sua faceta de naturalista com a criação do Parque Botânico conce-bido à sombra do magnífico palácio que acabou por receber o seu nome, Palácio Angeja convidando para a sua concretização o grande Vandelli arquitecto de primeira linha dos nomes sonantes da época. Quanto à apropriação da casa da Rua da Castiça, no séc. XVIII, a ausência de comprovativo, documental verificada até hoje, coloca um sem número de possibilidades e interrogações sobre a sua atribuição ao 3ª marquês de Angeja que apenas relacionamos com a estada deste aristocrata no Lumiar. No entanto, e em primeira instância remetemos para a consulta do Livro das Décimas da Cidade em 1763. Após consulta realizada aos dados publicados deduz-se que D. Pedro José de Noronha representava um dos grandes proprietários locais. A sua quinta no Paço era na realidade uma das

RUA DA CASTiçA, 2Onde o homem se esqueceu de si próprio

rosa da trindade Ferreira

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mais importantes da região e um ex-libris da zona, todavia nestes documentos transcritos é-lhe recon-hecida a posse de diversas lojas e sobrados na mesma área geográfica. Recorrente da análise desta mesma obra ressalta uma intrigante descrição que poderá eventualmente aludir ainda que com certas reservas a residência da Rua da Castiça. Nela pode ler-se que o nomeado marquês também detinha património na quarta Travessa do “Citio da Torre” . Nesta circunstân-cia se quisermos intentar uma leitura topográfica, com todos os inconvenientes atinentes ao fosso temporal condicionante da envolvente paisagística da zona, poderíamos referir, que o nomeado Citio da Torre localizado ao que se sabe, na Estrada da Torre era pas-sível de ter travessas, possivelmente uma delas condu-cente à Rua da Castiça. Na realidade, se traçarmos uma linha imaginária que estabeleça uma ligação entre os referidos eixos viários pode-se facilmente inferir uma proximidade espacial que permite relacioná-las com a citada descrição. Mas no vasto campo das hipóteses, pode colocar-se uma questão de fundo. Que razões poderia ter o marquês de Angeja, detentor do magnífico palácio do Paço, para residir numa casa que embora pese um passado histórico-artístico significante é indiscu-tivelmente mais modesta quando relacionada com a palaciana residência anexa do Jardim Botânico do

Monteiro-Mor. A não ser que os marqueses tivessem usado a casa da Rua da Castiça como um ponto de passagem enquanto finalizavam as obras do palácio? Então porque não permaneceram na Junqueira? Poderíamos contrapor o gosto do marquês pela leitura, facto que tornaria aliciantes as estadias no Lumiar pela placidez, tranquilidade e contemplação de mantos de verde paisagem rural lugar bem diferente da movimen-tada urbe lisboeta de oitocentos. De qualquer forma torna-se quase inverosímil assumir que o marquês de-tentor de largos recursos económicos contratador de técnicos paisagistas de monta mandasse fazer as obras de alterações estruturais que anunciaram o declínio da quinhentista casa da Rua da Castiça. Em síntese, pensamos que as respostas referentes a esta problemática se direccionam para uma datação criteriosa pelas incursões dos marqueses de Angeja na região Lumiar/Lisboa em determinada época da sua vida naturalmente próspera porque ao se sabe o mar-quês acaba por vender todos os seus bens no Lumiar ao Duque de Palmela, inclusivamente bens móveis como a sua riquíssima baixela em prata. Mas mais importante que comprovar os dados até ag-ora aferidos, revelar a identidade de origem desta casa no séc. XVI representa sem dúvida um desafio maior para qualquer investigador. Fica lançado, o repto. Da envolvente paisagística da antiga propriedade já nada existe, apenas se vislumbra, a poente uma fracção dos verdes campos relvados da Quinta dos Alcoutins na actualidade transformada em campo de golfe o que afinal, constitui um mal menor na política de desac-tivação das quintas da periferia. Já a norte, tem lugar uma incaracterística urbanização que em poucos anos, adquiriu um estado de conservação quase tão penoso como o vizinho imóvel quinhentista. A sul confronta-se com a Rua do Lumiar onde o antigo núcleo históri-co ali edificado tem sido parcialmente conservado.O edifício da Rua da Castiça, nº 2, está implantado num terreno acidentado, parcelado por terraços de acentuado desnível. Contudo, a condicionante mor-fológica propiciou manifestações que induzem preocu-pações de ordem paisagística por parte do mandatário da construção. De facto, a situação dominante ao tempo da fundação (1510-1530), permitia uma visão alargada dos terrenos limítrofes parte integrante de um território conhecido por Quinta do Lumiar.Surge alicerçado ao nível do terraço intermédio, de-tectando-se no superior, a norte vestígios de uma zona verde, multifuncional, zona de lazer, horto e pomar indispensáveis nos jardins quinhentistas remanescen-

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tes da cultura árabe no Lumiar com grande significado na implementação das almoínhas. Mas também esta área foi progressivamente desanexada passando a integrar os terrenos de uma construção vizinha. Do acesso preserva-se porém a escadaria e um pilar do corrimão vendo-se na proximidade uma Acácia-Bastar-da que floresce a cada Primavera recusando aceitar as condições humanas desfavoráveis que propiciaram o evitável derrube.

Os altos e sólidos muros que no séc. XVIII privati-zaram a área construída da quinta ocultando-a da via pública e da zona agrícola permanecem incólumes. Sem querer proceder a uma inventariação exaustiva do presente acervo patrimonial tornou-se todavia imperativo descrever e divulgar os seus aspectos mais relevantes de forma a alertar consciências para o perigo de rotura definitiva deste marco da história da fregue-sia do Lumiar que cresceu na época dos Descobrimen-tos Portugueses. Na origem, no séc. XVI, as fachadas da torre e do corpo da construção eram rasgadas por bonitas janelas de verga chanfrada, geminadas de finos colunelos com capitéis de inspiração vegetalista. Os alçados principais da construção original de corte em forma de L, foram corrompidos nos quatro sécu-los subsequentes ao sabor da inovação das diversas épocas. Assim, foram surgindo aleatoriamente vãos de janelas e portas que ainda tornaram mais híbrida e marginal a imagem daquele conjunto edificado, onde seguindo a tradição mediterrânica surge um pátio interior, actualmente inacessível e em avançado estado de degradação. Os espaços interiores vêm adensar a áurea de confusão estrutural que este edifício provoca no comum dos cidadãos. Nada parece obedecer a alguma organiza-ção ou lógica construtiva. Instala-se no espírito do observador um cansaço proveniente da contemplação dos vestígios do passado porventura nobre a que se sobrepõe a triste imagem de um presente a todos os níveis, caótico. Deixe-se, todavia notícia da existência de uma estru-tura interior onde sucedem inúmeras e insalubres

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divisões resultantes das diversas campanhas de obras onde se vislumbram ainda que vítimas das intempéries naturais e humanas vestígios de exemplares represen-tativos das artes decorativas do séc. XIX, na forma de revestimentos azulejares de fabricação lisboeta. A gramática decorativa da casa da Rua da Castiça refere azulejos de bicha da praça, da Fábrica Viúva Lamego, azulejos de estampilha, ao gosto inglês de cores suaves, da Fábrica de Sacavém e Constância, azulejos de pó-de-pedra, semi-relevados e vidrados, Arte Nova pos-sivelmente da Fábrica do Desterro ou de Campolide, e já do séc. XX, azulejos industriais da Fábrica

Aleluia como forma de revestimento de pavimen-tos. Os exemplares de estampilha foram igualmente utilizados nas paredes da galilé, de arcos abatidos tardiamente, adossada ao primitivo alçado principal, onde encobertos, não se sabe por quanto tempo, se encontram azulejos de tapete, de meados do séc. XVII, de maçaroca, com cercaduras de acantos, já inventari-ados na Nova Monografia do Lumiar . A mesma sorte não coube aos painéis de azulejos ex-istentes no primeiro piso da construção que segundo Santos Simões representavam «A Adoração dos Reis Magos», «A Adoração dos Pastores» atribuíveis à oficina de Oliveira Bernardes e com grande probabilidade da autoria de P.M.P. que deixou obra na Ermida de São Sebastião ao Paço do Lumiar. Foram furtados, na contemporaneidade desconhecen-

do-se o seu paradeiro. Mas esta situação que necessari-amente veio desvirtuar esta dependência e portanto o histórico da casa, teve antecedentes num passado muito próximo quando se sabe que exemplares de azulejos do séc. XVIII foram vendidos nos anos 60 do séc. XX. O tecto de estuque decorativo da entrada nobre, oitocentista, também sofreu vicissitudes. Um incêndio ocorrido na contemporaneidade destruiu parte da ornamentação constituída de grifos e cisnes, laçarias, palmetas e demais elementos fitomórficos. No exterior, alguém decidiu mandar construir aquilo a que gostamos de chamar a “catedral dos pombos”. Um curioso pombal, revivalista que na sua absurda dimensão para aquele espaço absorve quase todo o antigo pátio nobre.A missão de conservar e recuperar espaços e edifica-ções historicamente relevantes cabe um pouco a todos os cidadãos. Talvez um levantamento dos “feios”da paisagem a nível regional como é o caso da casa da Rua da Castiça na cidade de Lisboa fosse providencial na reconversão dos valores patrimoniais em estado de degradação. Quem mais do que as instituições de carácter educacional presentes nas diversas locali-dades pode estar habilitado para implementar esta acção integrando-a num projecto de reconversão da paisagem contemplado numa perspectiva pedagógica cujo objectivo é consciencializar as populações do perigo que representa a perca das referências históricas e humanas para o equilíbrio emocional necessário à manutenção da vida.

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A freguesia do Lumiar foi criada a 2 de Abril de 1266. O seu nome deriva provavelmente do étimo latino “liminare”1, ou seja entrada, segundo se sabe este local foi usado como uma porta da cidade, visto que a enseada do rio Tejo chegava a esta zona que na época era formada por pequenos povoados à beira-rio. O território do Lumiar2 foi ocupado desde a pré-história (existem vestígios do Paleolítico e do Eneolíti-co) e depois, sucessivamente por romanos e muçul-manos. Porém, da ocupação muçulmana não existem vestígios arqueológicos mas, no entanto, os indícios toponímicos são bastante significativos como é o caso de Carriche que deriva da palavra árabe qarix ou seja cascalho, pedra miúda.Depois da Reconquista em 1147 os territórios do Termo foram doados pelo rei a nobres e a ordens militares e religiosas (Hospitalários, Templários, etc.). Tornou-se assim numa zona de quintas de Grandes Senhores. Devido ao crescimento e importância nesta zona, no fim do século XV tanto o Lumiar como o Paço do Lu-miar eram Sede de Julgado, no Termo de Lisboa. É, contudo, no século XVI que são definidos melhor os núcleos populacionais verificando-se, então, um incre-mento da construção de edifícios laicos e religiosos. É nesta altura que surgem novos lugares, arruamentos, travessas e bairros por exemplo o Chão do Meirinho, o Vale do Forno, a Torre do Lumiar.No século XVIII este local é constituído por «quintas de nobres, olivais e vinhas» , tornando-se numa zona de férias e lazer, sobretudo da aristocracia e da burgue-sia endinheirada da época.Em 1833 é este o local escolhido por D. Miguel para ali estabelecer o seu quartel-general, durante o cerco absolutista à cidade de Lisboa. Na actual Zona de Telheiras, os frades existentes no Convento de Nossa Senhora das Portas do Céu, terão fugido, visto neste local ter sido colocada uma coluna de tropas liberais, comandadas pelo Duque de Saldanha. Esta freguesia entre 1852 a 1886 passou a pertencer ao Concelho dos Olivais. No entanto, a 18 de Julho de 1885 deixou de ser freguesia do Termo para passar a

AS RAiNHAS NA TOPONíMiA DA FREGUESiA DO LUMiAR elisabete Pilar rodrighes da rocha

estar integrada no seio da cidade. Em 1854 já existiam várias carreiras diárias para o Lu-miar, e entre 1873 a 1877 foi considerada esta zona a 4ª. Estação dos Caminhos-de-Ferro existindo na altura o chamado “Larmanjat”, que era um comboio a vapor que circulava pela estrada e que fazia o circuito entre a zona de Arroios (Lisboa) e Torres Vedras.Actualmente o Lumiar é uma das maiores freguesias de Lisboa com uma população que ronda os 60 mil habitantes. Contudo, curiosamente, apresenta-nos um contraste urbanístico que a par com os seus núcleos históricos – Paço do Lumiar, Lumiar e a Zona de Telheiras – surgem novas urbanizações, tais como a Quinta das Mouras, Quinta do Lambert, Parque Eu-ropa e o Alto do Lumiar.Pois bem, é precisamente, aqui nesta freguesia de Lisboa, na antiga Quinta das Mouras que se situam as ruas que foram atribuídas a rainhas portuguesas , da 1ª, 2ª e da 4ª dinastia.

Seguindo pela Alameda das Linhas de Torres, logo depois do Hospital Pulido Valente surge a Avenida Rainha D. Amélia – 1865/1951 – [Rua D à Quinta das Mouras ou Rua D da Célula 4 de Telheiras], esta

1 Porém, podemos verificar que existe um certo “estado da questão” entre vários historiadores. Tomemos por exemplo os autores das obras CONSIGLIERI, Carlos - Pelas Freguesias de Lisboa – O Termo da Cidade e MANTAS, José Monografia do Lumiar. Na opinião do primeiro foi o topónimo “liminare” que depois de ter sido alvo de várias transformações - Lemenare); Lemear); Lomear); Lumear) deu origem à palavra Lumiar, o que pode ser comprovado através de documentação dos séculos XII e XIV. Quanto ao segundo são nos apresentados vários topónimos Manar/manara); Alienar/Almendra); Laminar); Laminara/Alumiar); Algibeira); Alumiada); Alumiara); Almendra); Alumieira); Alumínio) todos eles tendo em comum a iluminação, e como justificação, o facto de na altura esta ser feita com montes de palha, para que as embarcações pudessem navegar durante a noite. Para esse fim eram, então, colocados, montes de palha, (ou feno), aos quais era lançado fogo, com óleo ou outro derivado, para arder funcionando como um facho / 2 No que diz respeito à presença do homem pré-histórico na zona do Lumiar no período Paleolítico existem vestígios na Quinta de S. Vicente. Também, no Paço do Lumiar foram encontrados achados arqueológicos (pontas de sílex) que foram classificados como sendo da Eneolítico

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artéria sobe indo terminar na Avenida Padre Cruz.

D. Maria Amélia Luísa Helena de Orleans e Bragança, nasceu em Twickenham, Inglaterra a 28 de Setembro de 1865, era a filha mais velha dos Condes de Paris e Duques de Orleans , e cresceu numa atmosfera cuja educação era extremamente rigorosa, tendo tido como sua “mestre” Madamoiselle Levasseur.v

A 22 de Maio de 1886 casou com o então Príncipe de Portugal o futuro Rei D. Carlos I na Igreja de S. Do-mingos. No entanto, três anos mais tarde, mais precisa-mente a 19 de Outubro de 1889 é que D. Amélia viria a ser coroada Rainha de Portugal. Curiosamente tanto D. Amélia como D. Carlos faziam anos no mesmo dia e no mesmo mês, existindo, contudo, uma ligeira diferença de 2 anos entre eles.Tiveram 3 filhos - A 21/Março/1887 nasceu D. Luís Filipe em Lisboa mais propriamente no Palácio de Belém para onde os futuros reis tinham ido residir após o seu casamento. A 14/ Dezembro/1888 nasceu em Vila Viçosa de parto prematuro a Infanta D. Maria Ana, que viria a falecer duas horas depois do nasci-mento. E a 19/Março/1889 nasceu aquele que veria a ser o futuro rei D. Manuel II. Após o regicídio, ocorrido na tarde de 1 de Fevereiro de 1908, no Terreiro do Paço que ceifou as vidas de seu marido e de seu filho primogénito Luís Filipe. D. Amélia teve, todavia, de amparar seu filho D. Manuel, que apesar dos seus 18 anos de idade era, contudo ainda, inexperiente na difícil missão que lhe era, então, imposta. A 5 de Outubro de 1910 quando a rainha se encontra-va no Palácio da Pena em Sintra e sua sogra D. Maria Pia no Paço da Vila, estalou a revolução republicana, tendo toda a família real embarcado no iate real, “Amé-lia” que fundeara diante da Ericeira. Foi em Gibraltar que D. Amélia e D. Manuel seguiram para Inglaterra. “Do exílio não se volta!” terá afirmado a rainha na altura.Em 1913 após o matrimónio do seu filho com a princesa alemã, ainda sua prima, D. Augusta Vitória de Hohenzollern Sigmaringen, D. Amélia retirou-se para França, Versalhes, e foi residir no castelo de Bellevue, onde utilizou o título de Marquesa de Vila Viçosa. Esta rainha teve uma influência praticamente nula nos governos do país, dedicou-se principalmente à assistência social, especificamente no apoio a doentes com tuberculose. Fundando para isso a Assistência Nacional aos Tuberculosos em 1889. Fundou outras

instituições, tais como o Dispensário das Crianças, o Hospital do Rego, em 1892 o Instituto Nacional de So-corros a Náufragos, o Instituto Ultramarino, o Instituto Bacteriológico entre outros. Em 1905 criou em Lisboa o Museu dos Coches. E Participou na Cruz Vermelha durante a I Guerra Mundial vindo a ser condecorada pelo Rei Jorge V de Inglaterra e a ser distinguida pelo Papa Leão XIII com a Rosa de Ouro.Em Maio de 1945 D. Amélia visitou Portugal e nomea-damente o Panteão de S. Vicente onde jazem os restos mortais do seu marido e dos seus dois filhos, assim como algumas das obras de assistência que receberam o seu contributo. Faleceu a 25 de Outubro de 1951 na cidade francesa de Versalhes sendo o seu corpo poste-riormente, transladado para o Panteão da Dinastia de Bragança em Lisboa a 29 de Dezembro.Começando a subir a Avenida Rainha D. Amélia surge-nos à nossa direita uma paralela que une esta avenida com a Avenida Rainha D. Leonor. A Rua Rainha D. Luísa de Gusmão – 1613/1666 – [Rua F à Quinta das Mouras].

D. Luísa Francisca de Gusmão nasceu em 13 de Outu-bro de 1613 em San Lúcar de Barrameda na Andaluzia, filha do 8º. Duque de Medina Sidónia, D. João Manuel Pérez de Gusmán, e de D. Joana Lorenza Gómez de Sandoval y Lacerda. Descendia, pois, de nobilíssimas famílias espanholas; pelo lado materno dos Duques de Gandia e de Medina Celi; pelo lado paterno dos Duques de Béjar e de Pastrana.

rainha D. Luísa de Gusmão

Casou em 12 de Janeiro de 1633 em Elvas com o futuro rei da 4ª Dinastia D. João IV que viria a ser aclamado Rei de Portugal a 15 de Dezembro de 1640

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no Terreiro do Paço em Lisboa.Do seu casamento D. Luisa teve 7 filhos: D. Teodósio (1634-1653), D. Ana (1635), D. Joana (1636-1653), D. Catarina (1638-1705) que foi Infanta de Portugal e Rainha de Inglaterra (casou com Carlos II rei de Ingla-terra, filho de Carlos I, que foi degolado em 1649), D. Manuel (1640), D. Afonso VI , e D. Pedro II .Perante as rivalidades políticas entre Portugal e Espan-ha, e durante a dominação de Portugal pelo domínio Filipino, D. Luísa não se colocou do lado espanhol, pelo contrário, aconselhou sempre o seu marido a libertar-se dos estrangeiros, manifestando o desejo de ser rainha, apoiando-o politicamente, assim como a Restauração de 1640. Ficaram, contudo, celebres algumas das suas afirmações: “antes morrer reinando do que acabar servindo”; “antes rainha um dia do que serva toda a vida”.Em 1656 ao enviuvar assumiu a regência durante a menoridade de seu filho, durante 5 anos, cargo que exerceu com eficácia. Nomeou a Junta Nocturna, com vários conselheiros da sua confiança para fazer frente às rivalidades da corte, reforçou a aliança inglesa que tinha sido revigorada em 1662, firmou com a França um tratado defensivo, durante o qual Portugal obteve importantes vitórias nas Batalhas das Linhas de Elvas e de Montes Claros.Fundou em Lisboa, o Colégio dos Irlandeses, o Con-vento de Corpus Christi, o das Carmelitas Descalças e o Mosteiro do Grilo.A 17 de Março de 1663 D. Luísa retirou-se para o Con-vento das Carmelitas Descalças, ao Grilo, em Xabre-gas. Onde faleceu a 27 de Fevereiro de 1666, deixando, contudo, expresso no seu testamento, a vontade de ser sepultada no Convento de Corpus Christi enquanto não estivesse terminada a construção da igreja do con-vento do Grilo. Foi, todavia em 1713 que o seu neto D. João V lhe fez a vontade. Em 1889, os seus restos mor-tais foram trasladados para o Panteão de São Vicente.Na Avenida Rainha D. Amélia, mais precisamente, entre a Rua D. Luísa de Gusmão e a Praça Rainha Santa existe uma praceta que mantêm o mesmo nome e que comunica com o Largo Luís Chaves [Etnólogo – 1889/1975].Depois desta praceta e continuando a subir a Avenida Rainha D. Amélia, do nosso lado direito, aparece-nos, então a Praça Rainha Santa – 1274/1336 – [Praceta 1 à Quinta das Mouras].

A Rainha D. Isabel de Aragão nasceu em 1271 em Saragoça ou Barcelona. Filha de D. Pedro III de Aragão

e de D. Constança de Navarra e sobrinha - neta de Santa Isabel, Rainha da Hungria.

rainha D. Isabel de Aragão

Casou por procuração em Fevereiro de 1282 em Barcelona com D. Dinis então com 12 anos de idade. Pouco tempo depois veio para Portugal onde o rei a aguardava em Trancoso onde se celebrou a 24 de Junho desse ano o seu casamento na Igreja de S. Bar-tolomeu. Do seu casamento houve 2 filhos D. Constança (1290-1313) que casou em 1307 com Fernando IV rei de Castela seu próximo parente pelo lado materno, e D. Afonso IV. D. Isabel, procurou espalhar o bem e a caridade, os pobres e os infelizes tinham sempre junto dela apoio material e moral, sendo chamada pelo povo de “Rainha Santa”. Ficando celebre aquela frase “São Rosas Senhor”. Também procurou sempre a concórdia tendo sido medianeira entre as lutas familiares de D. Dinis e o Infante D. Afonso durante os anos de 1287 a 1299 e entre Jaime II de Aragão e Fernando IV de Castela de 1300 a 1304 e, novamente, entre D. Dinis e seu filho D. Afonso IV nos anos de 1312 a 1324.Colaborou na fundação de conventos e mandou edificar o Hospital de Coimbra, junto do Convento de Santa Clara, o Hospital dos Inocentes em Santarém e o de Leiria, este para receber os enjeitados. Fundou em Leiria um recolhimento para mulheres e uma alber-

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garia em Odivelas.Depois da morte do rei em 1325 conservou-se algum tempo no Mosteiro de Odivelas fixando depois residência em Coimbra, junto ao Convento de Santa Clara, nos Paços de Santa Ana, de que faria doação ao convento. Muito embora tivesse vontade de professar contentou-se em levar uma vida religiosa modesta sem obrigação de votos. Era muito devota de Santiago de Compostela deslocou-se por duas vezes a esta cidade com o hábito e o bordão de peregrino.Após a sua segunda peregrinação com vista a por fim à discórdia entre o seu filho, D. Afonso IV e seu neto Afonso XI rei de Castela, deslocou-se a Estremoz. Infe-lizmente não conseguiu resistir à doença e ao cansaço, e acabou por falecer nesta cidade a 4 de Julho de 1336. O seu corpo foi depois transladado para Coimbra. Vindo a ser canonizado em 25 de Maio de 1625 pela bula papal de Urbano VIII. Antes de chegarmos à Avenida Padre Cruz surge a Praça Rainha D. Filipa – 1359/1415 – [Praceta I à Quinta das Mouras]. D. Filipa de Lencastre nasceu em Inglaterra em 1360. Filha primogénita de João de Gaunt, filho de Eduardo III e duque de Lancaster. Tanto D. João I como D. Filipa eram ambos sextos netos de Henrique II de In-glaterra, ela pela linha de João Sem Terra, ele pela linha de descendência de D. Urraca. O seu casamento com o Rei D. João I celebrou-se na cidade do Porto, a 2 de Fevereiro de 1387 . - O seu casamento contribuiu para a consolidação da Aliança entre Portugal e Inglaterra reconhecida em 1372 e con-firmada com novas cláusulas em 1373.Era bela, delicada e discreta. Prudente conselheira do seu marido, nunca se desligou do mundo inglês, desen-volveu na Corte uma acção moralista e disciplinada. D. Filipa parece ter desempenhado um papel de algum relevo na política portuguesa e ter influenciado consid-eravelmente as decisões do seu marido.De 1388 a 1402 D. Filipa teve vários filhos: D. Branca (1388), D. Afonso (1390-1400), D. Duarte I , D. Pedro (1392-1449) , D. Henrique (1394-1460) , D. Isabel (1397-1471) , D. João (1400–1442) , e D. Fernando (1402–1443) . Terá sido uma mãe exemplar que educou primorosamente os seus filhos dando origem ao que Camões chamou de “A Ínclita Geração, Altos Infantes”.Faleceu a 19 de Julho de 1415 precisamente na véspera da partida da expedição a Ceuta, entregando contudo a espada aos seus 3 filhos mais velhos, recomendado

a D. Duarte, a quem entregou a espada maior, que velasse pelos povos, a D. Pedro, pelas donas e donzelas e, a D. Henrique, encomendou-lhe todos os Senhores, Cavaleiros, Fidalgos e Escudeiros do Reino.Foi sepultada em Odivelas e trasladada depois (1416) para o Mosteiro da Batalha.Continuamos pela Alameda das Linhas de Torres, e a seguir à Avenida Rainha D. Amélia, surge-nos outra perpendicular que vai terminar na Praça Rainha Santa, a Avenida Rainha D. Leonor – 1458/1526 – [Rua C à Quinta das Mouras].

D. Leonor de Lencastre nasceu a 02 de Maio de 1458 em Beja, filha do Infante D. Fernando, irmão de D. Afonso V e da Infanta D. Beatriz, filha do Infante D. João, irmão do rei D. Duarte. Herdou dos seus pais o gosto e o amor às letras e ao estudo, a alma ardente, o amor pelos que sofriam.

rainha D. Leonor

Descendia da nobreza Inglesa e Portuguesa, pois era bisneta de D. João I e de D. Filipa de Lencastre , tornou-se como que um modelo a ser seguido no que respeita à sua inteligência, cultura, bondade e acção. Pois, foi fruto de uma educação esmeralda e de uma formação religiosa perfeita, que a tornou um símbolo de Fé, ligada à esperança e à caridade e no seguimento dos mais altos valores evangélicos difundidos por S. Tomás de Aquino.Em Janeiro de 1471, casou com 13 anos incompletos, com seu primo co-irmão D. João II . Durante algumas vezes ficou como regente do reino, mas só em 1481 foi

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definitivamente rainha de Portugal.No entanto, D. Leonor teve uma vida marcada por grandes infortúnios. Ora vejamos: A traição de seu marido D. João II com D. Ana de Mendonça, aia do séquito de D. Joana a Beltraneja, de que resultara o bastardo D. Jorge de Lencastre.A decapitação de seu cunhado D. Fernando, 2º. Duque de Bragança, casado com sua irmã a Infanta D. Isabel, a 20 de Junho de 1483 em Évora, a morte à punhalada de D. Diogo, duque de Viseu seu irmão; quando da conjura palaciana de 1484, feita pela própria mão de seu marido D. João II.A 12 de Julho de 1491 a morte de seu filho o Infante D. Afonso, num grave acidente hípico em Alfange. Após a morte desde D. Leonor lutou arduamente contra o rei pela questão da sucessão ao trono. Quem devia suceder João II? seu filho bastardo D. Jorge de Lencas-tre? ou o irmão da rainha D. Manuel?. Como se sabe foi D. Manuel quem o herdou vindo a ser D. Manuel I – O Venturoso.Aos 37 anos de idade ficou viúva tendo-se dedicado a partir daí a obras de Religião e Misericórdia. Decidiu recolher-se a um convento e escolheu a zona de Xabre-gas para o mandar edificar. O Convento da Madre de Deus. No campo da assistência social deixou o seu nome ligado à fundação das Misericórdias em 1498, à fundação da igreja da Merceana, ao primeiro Convento da Anunciada em Lisboa, o incentivo para concluir

as Capelas Imperfeitas da Batalha e à fundação deste notável Mosteiro em Xabregas, à Gafaria do Santo Espírito de Sintra, à edificação da Capela de Nossa Senhora dos Anjos em Torres Novas, à fundação da Igreja e do Hospital de Nossa Senhora do Pópulo das Caldas de Óbidos que actualmente é conhecida por Caldas da Rainha. E sobretudo, às primeiras Santas Casas de Misericórdia Portuguesas. Pensa-se que provavelmente terá sido devido à sua persistência que D. João II mandou fundar na cidade de Lisboa o chamado Hospital – Modelo: - O Hospital Real de Todos os Santos.Protegeu as artes, encomendou e importou obras de pintura a oficinas portuguesas (Cristovão de Figueire-do, Garcia Fernandes, Grão Vasco) e do Norte da Europa (Quetin de Metsys). Promoveu a introdução da imprensa em Portugal, patrocinou a impressão e a tradução portuguesa da Vita Christi, também pro-moveu o teatro, foi no Mosteiro da Madre de Deus que em 1511, foi representado o Auto da Sybilla Cassan-dra, e encomendou obras de ourivesaria a Gil Vicente, o mesmo que terá escrito as peças de teatro. Deu também o seu apoio à publicação do Bosco Deleytoso e do Espelho de Cristina.Faleceu em 1525 com a idade de 67 anos nos Paços de Santo Eloi em Lisboa, vindo a ser sepultada conforme sua vontade em campa rasa no claustro da Convento da Madre de Deus.

Campa rasa da rainha D. Leonor

a

BiBLiOGRAFiA

MONOGRAFIAS

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Um olhar sobre Machado de Assis

A Doutrina Escotista da imaculada Conceição

O menino António Vieira dos

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UM OLHAR SOBRE MACHADO DE ASSiS (1839-1908) Cecília Henriques da Conceição Professora no Instituto Piaget

1. O homem e o escritor

Machado de Assis é um mundo à parte na literatura da língua portuguesa e nunca será demais sublinhar a importância que teve na vida intelectual brasileira, no séc XIX.Lamentavelmente, a sua obra é mal conhecida entre os portugueses. Gostaria de contribuir para despertar interesse por este escritor que, contra ventos e marés, soube retratar a época e o mundo em que viveu, numa conseguida e admirável interpretação da vida pela lit-eratura. Conhecer, aprofundar e meditar na vida e obra de Machado de Assis é um dever que se impõe a todos os que se interessam pela língua e cultura portuguesas, onde radica uma poderosa parte da cultura brasileira que soube tomar o seu próprio caminho. Fiel à concepção superior do ofício de escrever, M.de

A. realizou-se como um notável ser humano, deixando uma das melhores obras literárias produzidas no Brasil.Nessa obra temos a considerar duas fases: a primeira vai até ao romance Iaiá Garcia (1878) e dela fazem parte: Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876). A segunda começa com Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), D. Casmurro (1901) e termina com O Memorial de Aires (1908), ano da sua morte, esquema que se baseia na mudança do escritor. Atingido por uma grave doença foi obrigado a um longo repouso em Friburgo, época que represen-tou, certamente, um tempo de meditação, de auto-avaliação, que desencadeou a maturidade. Machado tinha então quarenta anos. É precisamente desta (1878) época a crítica a’O Primo Basílio, romance de Eça de Queirós de que falaremos.Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Ja-neiro a 21 de Junho de 1839, no morro do Livramento, onde viviam seus pais, Francisco José de Assis, mulato, neto de escravos e Maria Leopoldina Machado, branca, natural da Ilha de S.Miguel, nos Açores. Os bisavôs do escritor, escravos, pertenciam aos ricos proprietários donos da chácara (quinta) do Livramento que os declararam “pardos forros” (libertos), ficando, no en-tanto, sempre ligados a essa família. O pai era especial-izado em pinturas de luxo e a mãe provavelmente fazia os trabalhos desempenhados por mulheres: costura, bordados – trabalhos de agulha - e até talvez um pouco de actividade de ensino. Provavelmente foi ela que o ensinou a ler. Ficou órfão de ambos muito cedo, a mãe morreu tinha ele 10 anos. Não se sabe se depois da morte do pai ficou com a madrasta, Maria Inês, mulata também, com quem o pai se casara em 1854. Sabe-se ainda que Machado de Assis, já adulto passou a sofrer de epilepsia e era gago, o que parece ter sido resultado dessa doença.Sobre a infância, provavelmente passada na chácara onde seus pais trabalhavam, há discordância entre os pesquisadores. Jean Michel Massa na obra crítica A Ju-ventude de Machado de Assis (pag.55) afirma, depois de descrever a família da chácara do Livramento.

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Foi entre esta família patriarcal, um pouco voltada sobre si mesmo que Machado de Assis passou os primeiros anos. Cresceu no meio de um grupo social particular, que é uma espécie de gens unida por uma sólida argamassa.O chefe era uma velha dama, no crepúsculo da sua vida, que conheceu uma existência bastante agitada, Maria José de Mendonça, filha natural, casada em se-gundas núpcias, rica, muito rica mesmo. (...) Ali existia uma hierarquia aceite sem violências (...). O sistema era equilibrado e compensado por um certo tipo de vida afectiva, muito brasileiro, de respeito e submis-são”.Já Lúcia Miguel Pereira, que também levou a cabo um trabalho sério de pesquisa, Machado de Assis, dá-o comoum moleque gago, siflítico, epilético e sem rumo, vagabundeando pelas ruas, mas finalmente salvo pelos cuidados maternais de Maria Inês, sua madrasta.Opinião de que Massa discorda, afirmando ser esta interpretação baseada no Conto de Escola, cujo protagonista é um menino de rua que não deve ser considerado autobiográfico, pois isso contraria todas as evidências da protecção de que o menino gozava na chácara, sendo a própria D. Maria José de Mendonça, dona da propriedade, sua madrinha de baptismo. Por ignorância, falseou-se o quadro em que M. de Assis nasceu e onde e como viveu os dez primeiros anos da sua vida. Na estrutura das classes que então constituíam o Brasil, os Machado de Assis não eram considerados de baixo nível na escala social, o seu nível era mesmo relativamente elevado. Em linguagem mod-erna, pode dizer-se que esta família, pela sua actividade e pela sua cultura, se bem que proletária, representava a pequena burguesia. As lembranças destes anos da infância estão documen-tadas nos contos do escritor e nos seus comentários, que sempre se recusou a considerar autobiográficos, mas são reveladores de uma infância feliz. È em 1845 que começam as primeiras provações. Uma irmã, com quatro anos, morre de sarampo, seguida da sua “querida madrinha”, vítima do mesmo mal e três anos mais tarde da mãe, com trinta e seis, vitimada pela tuberculose.Se tentarmos ver agora as coisas pelo lado da criança que se ia tornando jovem responsável e consciente, damo-nos conta da luta que deve ter mantido para transpor os limites que a sua condição lhe impunha. Esse esforço tem de ser avaliado e admirado. O caminho do subúrbio para a cidade foi uma conquista

do pouco mais que adolescente Machado de Assis que, certamente com dificuldade conseguiu vencer, com êxito todos os obstáculos.

2. A Trajectória

Não está provado que o menino Joaquim Maria tenha frequentado a escola. Foi alfabetizado pela mãe, com vimos e se andou na escola, foi de forma irregular, não restando documentos comprovativos. Sabe-se, porém, que aos quinze anos deixou de viver nos arredores do Rio de Janeiro e trabalhava pela cidade, possivelmente no comércio, pois já dominava bem a língua escrita e sabia francês, passando a sustentar- -se. Começa a publicar nessa época (1855), com 16 anos, na Marmota Fluminense, jornal de notícias de varie-dades e de literatura, editado por Francisco da Paula Brito. Aí aparece o seu primeiro poema romântico - A Palmeira –, na linha de Gonçalves Dias e de Almeida Garrett. Provavelmente, o jovem tinha sido contratado para trabalhar no jornal como caixeiro e tipógrafo. Eram poucas as pessoas que formavam o mundo intelectual do Rio de Janeiro, Paula Brito era uma delas e acolhia favoravelmente os jovens aceitando os seus trabalhos nas colunas do jornal. Parece ter sido desta forma que Machado de Assis encontrou ambiente e estímulos para a sua insipiente actividade literária, paralela ao trabalho que lhe garantia a independência. O jovem frequentava assiduamente o Gabinete Português de Leitura, cuja biblioteca possuia em 1850, cerca de 16 mil volumes. Aí encontrou um número crescente de amigos e familiarizou-se com os românticos portu-gueses. Com o tempo o círculo de amigos alargou-se e passou a incluir alguns colaboradores da Marmota Fluminense, onde trabalhava, como vimos acima.Deste modo Machado passou a fazer parte dos círculos literários da cidade, não se poupando a esforços para aumentar a sua cultura e formação intelectual, tanto através das leituras seleccionadas como pelo estudo da língua portuguesa literária e do francês. O próprio escritor comenta sobre a influência que tiveram na sua instrução os autores estrangeiros, assinalando até os nomes dos que mais o influenciaram inicialmente: Alguns estrangeiros: Herculano, Garrett, Castilho, Victor Hugo, Musset e Byron, outros brasileiros: Gon-çalves de Magalhães, Gonçalves Dias, José de Alencar, Álvares de Azevedo.Foi um leitor insaciável e desde muito novo preocupa-

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va-se em assimilar o que lia , capacidade que desen-volveu em alto grau.A colaboração na Marmota Fluminense, irregular embora, continua. M. de A já fazia parte do grupo de jovens escritores principiantes. Aliás, a partir desta data, procurará estar sempre actualizado com o que se escreve e publica no Brasil, pois a actividade crítica, jornalística e literária que passou a interessá-lo impõe-lhe essa actualização. Frequenta a Sociedade Petalógica que evoca numa crónica publicada no referido jornal a 3 de Janeiro de 1865. Vale a pena transcrever um excerto, como testemunho de uma época em que aprendeu e viveu. O enriquecimento proveniente de tal experiência deu frutos e dos melhores. Vejamos (Colecção de EscritoresBrasileiros: pag.16):“...a recordação da Petalógica dos primeiros tempos, a Petalógica de Paula Brito, - cafe Procópio de certa época, - onde ía toda a gente, os políticos, os poetas, os dramaturgos, os artistas, os viajantes, os simples amadores, amigos e curiosos – onde se conversava de tudo, - desde a retirada de um ministro até à pirueta da dançarina da moda; onde se discutia tudo, desde o dó de peito do Tamberlick até os discursos do marquês de Paraná, verdadeiro campo neutro onde o estudante das letras se encontrava com o conselheiro, onde o cantor italiano dialogava com o ex-ministro.Cada qual tinha a sua família em casa; aquela era a família da rua...Queríeis saber do último aconteci-mento parlamentar? Era ir à Petalógica. Da nova ópera italiana? Do novo livro publicado? Do último baile de E...? Da última peça de Macedo ou Alencar? Do estado da praça? Dos boatos de qualquer espécie? Não se precisava ir mais longe, era ir à Pestalógica. (...) era um verdadeiro pêle-mêle de todas as coisas e de todos os homens.” Para o menino do subúrbio estes contactos com um mundo tão variado, foram decisivos. Aí começou a experiência real da vida.O Rio de Janeiro era uma cidade mal organizaa, mal cheirosa e mal iluminada. Tinha quatro teatros em funcionamento. O transporte era mau e demorado. Havia duas companhias inglesas e uma portuguesa que asseguravam a ligação à Europa. A população da cidade rondava os trezentos mil habitantes, dos quais talvez metade fossem escravos. Relativamente à imprensa havia os seguintes jornais: Jornal do Comércio, diário com cerca de sete mil as-sinantes – o mais poderoso;Marmota Fluminense, bissemanal;Correio Mercantil (onde Machado deve ter trabalhado

como revisor de provas e publicou, em 1858).As revistas, eram poucas e tinham vida curta. Apenas Guanabara, entre 1850 e 1856 e alguns jornais e revis-tas europeus; Figaro-Chroniqueur entre outros.Só a partir de 1858, com dezanove anos, Machado escreve em prosa - conto, jornalismo e crítica, géneros que viriam a consagrá-lo. Ainda na Marmota Fluminense, publica o primeiro conto e os primeiros trabalhos de crítica e de polémica. Escreve uma cuida-dosa reflexão que ainda hoje tem interesse, sobre “O passado, o presente e o futuro da literatura”, um artigo sobre a relação entre a política e a literatura. Detém-se na análise das condições da literatura brasileira na fase colonial e no início da independência, comentando a influência estrangeira no teatro, no romance e na poe-sia que se produziam no país. Vale a pena transcrever o conceito de Literatura expresso: (Colecção de Autores Brasileiros, pag.13):No estado actual das coisas, a literatura não pode ser perfeitamente um culto, um dogma intelectual, e o lit-erato não pode aspirar a uma existência independente, mas sim tornar-se um homem social, participando dos movimentos da sociedade em que vive e de que depende.Com efeito, toda a sua e vida e obra reflectem ter sido esse o rumo que escolheu na orientação do pensamen-to e da acção, numa lógica notável.A produção poética do escritor foi, nessa altura, de grande intensidade e variedade. O poema, “A morte no Calvário”, foi dedicada ao amigo Padre Silveira Sarmento, uma espécie de professor gratuito de latim e outros assuntos que certamente muito contribuíu para aprofundar os caminhos que escolheu. O convívio com exilados franceses, em especial com Charles Ribeyrolles (Paris, 1812/Niteroi 1860) repub-licano convicto que combatera na revolução de 1848, teve influência decisiva nas escolhas de Machado que já dominava a língua francesa. Ribeyrolles queria divulgar as suas ideias republicanas, não tendo dificul-dades na comunicação, tornaram-se grandes amigos. Ribeyrolles escrevia nessa época Brésil Pittoresque, e Machado vem a colaborar na sua tradução, visto tratar-se de uma edição bilíngue. Havia mais exilados, possuíam até um jornal Le Courrier du Brésil, dirigido por Hubert, onde Michel Massa encontrou poemas anónimos que atribui a M. de Assis. Estes encontros influenciaram o escritor que mais tarde se declarou resolutamente democrata. Nessa al-tura dá-se um lento afastamento da corrente romântica francesa e verifica-se em Machado alguma distância

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do que escrevera até aí. A sua poesia é mais liberal, em-bora se perceba ainda a influência de Victor Hugo e de Eugène Pelletan numa obra ainda bastante idealista.A obra de Pelletan era conhecida no Brasil, nomeada-mente o livro La Loi du Progrès (1852), onde revela a existência de um Deus do Progresso em harmonia com o século, um Deus vivo que sucedia ao Deus cruxificado do passado.Livro que foi durante algum tempo uma espécie de Bíblia para Machado, ainda muito sensível a todas as correntes.Talvez o escritor tenha encontrado nele a resposta a muitas questões que a si próprio colocava. É oportuno acrescentar que a influência de Pelletan per-sistiu no Brasil. Joaquim Nabuco (Recife, 1848-Wash-ington USA, 1910), político, diplomata e historiador, de projecção na vida intelectual, social e política do Brasil, grande amigo de M. de A. afirmava num livro memorialista, Minha Formação (1900): As Palavras de Um Crente, de Lamenais, A História dos Girondi-nos de Lamartine, O Mundo Caminha de Pelletan, Os Mártires da Liberdade de Esquiros, eram os Quatro Evangelhos da nossa geração e o Ahasverus de Quinet, o seu Apocalipse. Comentário que nos mostra a admiração de que Pelletan e outros franceses gozavam entre as jovens camadas de intelectuais brasileiros.Voltando à trajectória de Machado de Assis. Em 1858 continua a escrever na Marmota Fluminense, no Correio Mercantil, e num jornal de Petrópolis, O Paraíba. No ano seguinte, com vinte anos, inicia a sua colaboração na revista O Espelho. A sua projecção continua a aumentar. O círculo de amigos inclui

autores já consagrados. Manuel António de Almeida, administrador da Inprensa Nacional, Quintino Bo-caiuva, além dos portugueses Augusto Emílio Zaluar e o poeta Faustino Xavier de Novais, irmão de Carolina com quem Machado veio a casar. Ribeyrolles era o elemento central e o animador do grupo.Os temas jornalísticos tornavam-se cada dia mais in-teressantes e vale a pena referir “O Jornal e o Livro”que revela a influência francesa de que já falámos. Trata-se de um comentário a propósito do referido La Loi du Progrès, como sendo o “livro de ouro”. Analisa o livro versus jornal, admite o aniquilamento do livro pelo jornal porque este “representa a verdadeira república do pensamento”e é o órgão que traz em si “o gérmen de uma revolução” a todos os níveis, literária, social e económica. “O jornal é uma expressão, um sintoma de democracia; e a democracia é o povo, é a humani-dade” que fará cair as fronteiras sociais rumo à “terra de promissão” outra forma de dizer Liberdade para o jovem escritor.Aos vinte anos M.de A. muda. O jornalismo é agora a sua paixão e a ele se dedica quase exclusivamente, o que lhe trouxe grandes dissabores. É no Correio Mercantil que começa a referida evolução dentro do jornalismo, embora continue a es-crever para outros jornais. Em 1859 é responsável pela crítica teatral, na revista feminina Espelho, colaboração que é um novo desafio e revela a sua versatilidade. Para além da crítica começa a escrever peças de teatro que, embora sem destaque especial, mostram o escritor em permanente evolução. Pela primeira vez assume importantes responsabilidades. A obrigação de fre-

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quentar o teatro trouxe-lhe a ascenção na escala social, pelo convívio com as elites que o frequentavam, e com artistas, que o aproximavam da vida mundana. Esta actividade termina em 1860, quando aceita o convite do amigo Quintino Bocaiúva, para entrar no corpo redactorial do Diário do Rio de Janeiro, convite que correspondia a uma promoção. Uma das suas funções era fazer a síntese dos debates no Senado, o que o escritor fez utilizando uma lingua-gem viva, mas sarcástica em função do seu liberalismo acerado. Em pouco tempo todo o notíciário ficou a seu cargo, a publicidade, as transcrições de notícias es-trangeiras e até trabalhava nas traduções dos romances publicados em folhetim.Escrevia na Revista Dramática, na secção Diário do Rio de Janeiro, sobre teatro, declarando-se desvincu-lado das escolas romântica e realista.Assim surge um escritor comprometido pela política partidária e ligado a posições liberais. Esteve envolvido nas disputas eleitorais do final de 1860 ao lado de amigos e colegas do jornal, que foram eleitos. Seis anos depois, fez parte da lista de candidatos à Futura Câmara de Deputados, mas ainda antes das eleições, retirou a sua candidatura. Foram muitas as acusações de que M A foi vítima nessa época. Foi considerado “alienado” e “traidor à sua raça”, por não ter tomado parte na vida política que o Brasil viveu na sua geração. Esta fase de “engajamen-to político revela justamente o contrário. Jean Michel Massa fez minuciosas pesquisas sobre a actuação de M.A que revelam os dissabores que o escritor sofreu, atacado. Com o génio crítico que possuía, observou muito e foi acumulando elementos que fizeram dele o grande pessimista que se revelou, relativamente ao carácter humano. Na década de sessenta decidiu afastar-se da sua militância liberal e desistir de uma carreira política. Não ficou bem definido se o afastaram ou foi ele que se afastou. O que é certo é que regres-sou á literatura. O seu papel dentro do jornal não era paralelo ao dos seus pares. Além disso, deu-se conta que o jornal não passava de um veículo de interesse de grupos a quem a ideologia liberal era útil, mas serviria também a ideologia conservadora se isso permitisse um mais rápido alcance dos cargos e favores do estado. Com tais exemplos e conclusões “foi-se calando o ideal e foi-se restringindo o homem”, no dizer de J.M.Massa. Além de que a sua colaboração como cronista e contista trazia-lhe maiores compensações materiais, reconhecimento público e um prestígio que o liberta-vam das incertezas da política quotidiana.

Na sua obra madura, sobretudo nos romances, vamos encontrar retratado este jogo oportunista. M. de A. não tem dúvidas de que a ordem escravocrata – assente numa minoria – não lhe oferecia a menor segurança. Nunca deixaria de ser considerado o Machadinho, como era conhecido entre colegas e amigos do meio jornalistico, que não lhe deixariam espaço para mais. Desistiu de utilizar a sua arte ao serviço de grupos e passou a ocupá-la na defesa de ideias. Foi a compreen-são dos mecanismos do poder oligárquico que levou o seu texto a mudar de tom. O entusiasmo resultante da “evangelização” de Ribeyrolles e de Pelletan foi substi-tuído pela ironia e pelo humor. Para proteger-se e manter a trajectória de ascenção social que almejava e merecia, volta-se para a literatura enquanto espaço de linguagem em que ficava ao abrigo de pressões externas. É assim que a partir de 1880, com quarenta e um anos, podemos dizer que M de.A. entrou numa segunda fase em que passou à ofensiva, numa espécie de calculada “vingança” que tem início no seu romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, mas não termina aí.

3. O Reconhecimento

Ainda na década de sessenta, o escritor foi condeco-rado pelo Estado com a Ordem da Rosa no grau de Cavaleiro “pelos relevantes serviços prestados às letras pátrias”. Foi depois nomeado “Ajudante do Director do Diário Oficial”, porta-voz do aparelho de Estado. Em 1873 ó nomeado primeiro-oficial da Secretaria da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, o que esta-bilizou a sua condição de funcionário público. O seu valor estava sendo reconhecido e a migração de classe em vias de concretização.Então M. de A. abandonou as funções que exercia no Diário do Rio de Janeiro. Numa nota do jornal em que era manifestada a mágoa de o ver partir, dizia-se entre outras coisas: Eu julgo o Machado de Assis uma das melhores cabeças do Brasil tão convencido estou disso que ouso manifestá-lo em letra redonda (...) Admirável como poeta em mais do que um género; distinto comoJornalista, o M.A tem a bossa da crítica desenvolvida, mais do que se possa esperar da sua curta idade” Depois casa-se com Carolina Xavier Novais, um senhora portuguesa de certa cultura, natural do Porto e irmã do poeta Faustino Xavier Novaes, com quem

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Machado trabalhou e de quem foi grande amigo. Aliás, J.Michel Massa desmente que tenha havido oposição da parte da família da noiva a este casamento, como é afirmado por alguns estudiosos de M de.A. Carolina foi uma companheira afectuosa até à morte e inspiradora da bela figura de D. Carmo do seu último romance Memorial de Aires Depois de casado a vida de Machado modifica-se, tomando uma forma nova e definitiva até à morte de Carolina, trinta e cinco anos mais tarde.O patamar que Machado alcançara, não era fruto do seu casamento, mas uma evolução que se desenhava desde que deixou o Diário. Ficou com mais tempo livre. Decidiu dedicar-se à tradução de obras literárias em vez de escrever para jornais ou revistas. Com efeito, o seu nome não se encontra nos jornais da época. Este é um sinal claro de que se distanciara da acção política directa, o que o não o impedia de frequentar a redacção da Reforma, onde se encontrava com os amigos.Ainda na década de 1880, Machado de Assis conheceu o princípio da glorificação em vida, ao ser convidado pelo ministro Conselheiro Buarque de Macedo para

oficial de gabinete, onde foi rodeado do maior carinho por parte dos jovens. Em 1886 o Imperador Pedro II nomeia-o Vogal do Conservatório Dramático, de que era membro desde 1871; em 1888 a Casa Real concede-lhe o grau de oficial da Ordem da Rosa e em 1889 é nomeado como chefe máximo da Directoria do Comércio, onde ganhava uma pequena fortuna. Em 1889 funda, com outros escritores a Academia Brasileira de Letras, da qual foi o primeiro presidente. A consagração não podia ter tido melhores caminhos.

4. Estudo Crítico – a crónica e o ro-mance

a. A crónica

Foi o campo da crónica jornalística que forneceu a M. de A. o desembaraço que o conduziu ao romance. As crónicas publicadas n’O Espelho em 1859, receber-am o título de “Aquarelas” Tinham o aspecto de ensaio e revelam nítida influência francesa – Balzac, Alphonse Karr, Xavier de Maistre e outros.A crónica era um artigo de importação. Atraído desde muito jovem pela língua francesa, M. de A. teve opor-tunidade de a praticar, envolvendo-se no francesismo que tomou conta do Rio de Janeiro.Há várias fases a considerar nas crónicas do escritor. A primeira é marcada pelo Romantismo que ainda se vivia no capital. A sua maior preocupação era entreter. No segundo e terceiro períodos, assumem um ar petu-lante e zombeteiro. Há nelas uma curiosa relação de estilo e efeito entre a crónica, o conto e o romance. M. de Assis fá-lo intencionalmente contra o Naturalismo que impunha formas científicas à literatura. O seu período mais notável, é aquele em que escreve n’A Semana, coluna do jornal Gazeta de Notícias. Possuindo um estilo já identificado, não assinava, não era preciso. A crónica tem a possibilidade de revelar o autor, às vezes melhor do que uma autobiogrfia e Machado sabia disso. O escritor era agora um burguês bem instalado, mas não assumiu tal papel. Havia nas suas crónicas qualquer coisa inapreensível, ao jeito de Brás Cubas, personagem de um dos seus maiores romances – Memórias Póstumas de Brás Cubas – Os temas eram comentários de alguns factos da semana que a tal se prestavam, tirados dos jornais.Importa salientar que nunca M.de A. se afastou do programa traçado na sua carreira jornalística e que se

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pode resumir nestas suas palavras (in Eugénio Gomes, 20): Comenta os factos com reserva, louva ou censura, como te ditar a consciência, sem cair na exageração dos costumes.Em M. de A. a visão individual do escritor estava condicionada a um prisma filosófico-estético, funda-mental à sua arte. É ilucidativa a frase que sobre isso escreveu (in Eugénio Gomes, 21). Há muitos anos, li, em qualquer parte, que a moral é a estética das acções. Pois troquemos a frase, e digamos que a estética é a moral do gosto e a tua obrigação como mestre da ética é defender a estética.Dominava-o a verdade estética o que certamente explica a tomada de posição contra o Realismo, muito clara em todos os géneros que cultivou. Enfim, é inegável a qualidade das suas crónicas que ainda hoje se leêm com muito agrado. Os factos que estiveram na sua origem passaram, mas o pensamento e a forma usadas pelo escritor permanecem e contin-uam a atrair e é isso o que classifica uma obra literária, seja qual for o seu género

b. O romance

Também no romance de M.de A. há várias fases a considerar. A primeira é a fase romântica que na opin-ião de Alfredo Bosi se caracteriza por uma ideologia incoerente entre o liberal e o reaccionário. Embora possam ser considerados fracos, relativamente ao nível de consciência crítica de que o escritor já dera provas - é desta época a crítica ao romance realista de Eça de Queirós - O Primo Basílio – a verdade é que tiveram grande importância , do ponto de vista objectivo, na história do romance brasileiro. O seu mérito foi alargar a perspectiva do romance urbano (iniciado por José de Alencar), no sentido de realçar a importância do papel social na formação do “eu”, papel que pode ser considerado como uma natureza, independentemente da escola seguida. A linha de orientação de Machado após os primeiros romances, foi desenvolver “essa linha de análise das máscaras que o homem afivela à consciência, tão firmemente que acaba por identificar-se com elas.” Como nota Bosi (197).As Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) repre-sentam um salto qualitativo que alguns textos anteri-ores, entre 1878 e 1880, já faziam prever.Como romancista, M.de A. manteve-se num “perma-nente alerta para que nada de piegas, nada de enfático,

nada de idealizante, se pusesse entre o criador e as cria-turas”, como frisa Eugénio Gomes (10). A necessidade de distanciamento entre o criador e a sua obra, defeito presente nos primeiros romances é agora conseguido n’As Memórias Pótumas de Brás Cubas (1881). A riqueza das técnicas utilizadas é o sinal de um novo modo de compreender o mundo em que vivia. A unidade de acção ultrapassa os indivíduos e fixa-se em níveis impessoais que são a sociedade e as forças do inconsciente. Deslocado assim o ponto de vista da nar-ração, um tema como o ciúme – o triângulo amoroso – vai perder a tensão trágica-dramático-romântica, substituída pelos interesses de posição, de dinheiro, de prestígio, ao ceder o comando à líbido e à vontade de poder que no fundo regem os passos do homem na sociedade. É desta forma que a partir da história vulgar de adultério de Brás Cubas-Virgínia-Lobo Neves (não passe em falso a etimologia do nome da mulher), da triste comédia de equívocos de Rubião-Sofia-Palha (Quincas Borba), à tragédia perfeita de Bentinho-Ca-pitu-Escobar (D. Casmurro), estão expressas variantes de uma só e sempre a mesma constatação: já não há heróis no cumprimento de missões ou no domínio da vontade própria; há apenas destinos, destinos sem nenhuma grandeza.Qualquer destes romances poderia ser inserido nos determinismos de raça e de sangue Porém, Machado, como os grandes mestres, não ficou preso às regras de uma escola literária e neste caso, dos naturalistas que combatia abertamente. Também se escapou aos mor-alistas franceses e ingleses que conhecia muito bem. A todos escolheu como leitura obrigatória que surtiram alguma influência nos romances da primeira fase.Mas só isto. Foi essa capacidade de fugir a tendências, que tornaram M. de A. um perfeito artesão do humor, servindo-se apenas dos elementos do cotidiano.Enfim, Machado descobriu, atravessando várias fases, a sua vocação verdadeira: contar a essência do homem na sua precariedade existencial.Depois d’As Memórias Póstumas de Brás Cuba, o homem já não é o mesmo ser responsável dos romanc-es anteriores; é um joguete de forças desconhecidas. Aspecto que é muito claro na obra posterior: dez anos depois, surge o romance Quincas Borba (1891), em 1901 é publicado D. Casmurro e em 1908 O Memorial de Aires, obras da última fase que deram a Machado de Assis um relevo, na história do romance, à altura dos seus mestres europeus.

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3. Reflexos de uma Crítica

Para nos inteirarmos da razão deste assunto é necessário conhecer a surpresa e desolação de que Eça de Queirós dá conta numa carta a Ramalho Ortigão, lamentando a ausência de críticas ao seu romance O Crime do Padre Amaro (1875), recentemente publi-cado. Nessa mesma carta pedia ao amigo uma crítica, “com justiça e sem piedade (...), uma crítica à Planché – austera, carrancuda e salutar”(sic).Mal imaginava Eça que algum tempo depois seria publicada no Rio de Janeiro uma crítica com tais características. Foi na revista d’O Cruzeiro (Abril de 1878), no Rio de Janeiro que M.de A. críticou os dois romances O Crime do Padre Amaro (versão de 1876) e O Primo Basílio (1878)Machado, um homem de extrema versatilidade no mundo das letras, já tinha uma obra considerável, embora não tivesse escrito nenhum dos romances que o Imortalizaram, de que falei. Na referida crítica acusa Eça de imitar o romance de Émile Zola, La Faute de l’Abbé Mouret, dizendo encontrar nele “situação análo-ga; iguais tendências; diferença de meio; diferença de desenlace; idêntico estilo; algumas reminiscências, como no capítulo da missa e outras, enfim, o mesmo título.” (in Colecção de Autores Brasileiros, p. 16). Trata-se de uma crítica consciente que revela a serie-dade com que Machado encarava o ofício de criticar. Encontra-se nela a linha de conduta que seguiu toda a vida e que se acentuou na maturidade. A abordagem à obra partia do desejo de ruptura com os extremismos das escolas, sobretudo com o Realismo.O tom de severidade que M.de A. pôs na sua crítica repercutiu-se em todos os grupos literários do Brasil, devido mais à reputação do escritor do que ao con-hecimento da obra de Eça de Queirós. Formaram-se grupos, os que aplaudiam (os mais jovens adeptos da nova escola realista) e os que discordavam (mais con-servadores, que também punham reservas ao estilo, à escola e ao processo realistas). Talvez que um dos seus méritos tenha sido a contribuição para o conhecimen-to do escritor português no Brasil, onde ainda hoje é muito estudado e admirado.Para Machado, a obra de Eça era mais do que um simples romance psicológico, era um romance social, onde o meio constituía a verdadeira personagem a impor-se. A acusação de plagiato era improcedente. Eça divulgou em 1879, que o livro fora escrito em 1871, lido a al-guns amigos em 1872 e publicado em 1874 (sic). Se de

facto houvesse plágio, o plagiador seria Zola e não Eça, o que não é provável. Àparte esta questão o contexto geral da crítica mantinha-se desfavorável a Eça, à forma de escrever e de sentir, à liberdade literária (excessiva independência de estilo) e à escola realista de que o escritor se fazia porta-voz. No fundo, o que justificava a impossibidade de Machado aceitar a obra do roman-cista português, era, na opinião de Heitor Lira (95), a diferença radical de temperamentos que os separava: a secura de alma de um e a grande e generosa sensibili-dade do outro: a timidez, o receio cheio de reservas de Machado, receoso de dizer tudo o que sentia ou tudo o que queria, e a ousadia, a coragem e a desenvoltura irreverente de Eça”.Apesar de todas as reservas, Machado encontrou-lhe algum mérito. Havia “alguns quadros verdadeiramente acabados” n’O Crime e o escritor mostrava “um bom e vivaz talento” (mal utilizado). Mas não deixava de ser ”um aspérrimo discípulo do Realismo propagado por Émile Zola, Realismo implacável, pueril e obseno”. Diz ainda que alguns quadros do livro eram atractivos “porque tinham o mérito do pomo defeso” e saídos da mão de um homem de talento, provocavam o sucesso da obra, mas sem que “ministrasse qualquer ensina-

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mento moral”. Comentário que evidencia as relações estabelecidas por Machado entre arte e moral e que não são estabelecidas por Eça nem pelo Realismo como escola. Relativamente ao segundo romance, afirma: “Certo da vitória o Sr Eça de Queiroz reincidiu no género e trouxe-nos O Primo Basílio” que angariou um êxito ainda maior do que primeiro” o que Machado atribui “ao requinte de certos lances que não destoavam do paladar público”. Diz ainda que o fortuito pode impres-sionar na existência moral, mas não pode comover na vida estética. “A obra literária tem de ser a idealização dramática de uma dor moral”. Quanto aos personagens - Luísa e Basílio- - considera-os sem valor, classifi-cando de “incidente erótico, sem relevo, repugnante, vulgar” a ligação fugaz que existiu entre eles. Luísa é, de acordo com a crítica, uma mulher sem person-alidade, sem capacidade de sentimentos, sem saber o que quer da vida nem tão pouco o que é o amor. A propósito de Eugenie Grandet (Balzac), referida por Eça no início do romance, M. de A. estabelece um paralelo entre as duas heroínas, e afirma ser Eugenie uma mulher apaixonada e determinada, dona dos seus sentimentos e consciente das suas decisões. Ao passo que Luísa é um títere comandado pelo momento, pelo ocasional, sem capacidade nem vontade que a con-duzam. Só possui “cálculos de sensualidade e ímpetos de concubina”. Termina por um aviso/conselho a Eça – “se continuasse a escrever livros como estes, o seu realismo seria estrangulado no berço e a “arte pura voltará a beber aquelas águas sadias d’O Monge de Císter, (Herculano) d’Arco de Santana (Garrett) e d’O Guarani (Alencar), transmitindo-se a herança de Garrett às gerações vindouras” (in Colecção Escritores Brasileiros, pag.79-83).Como é óbvio, o prognóstico não se realizou, pois ape-sar da justiça de alguns aspectos da crítica, mostrava-se também demasiado estreita.M.de A., mais velho seis anos do que Eça de Queirós, viveu mais tempo e pode testemunhar a consagração deste como escritor, tendo comentado, após a sua morte em 1900, estas belas palavras numa carta muito sentida e lúcida a um amigo comum, H. Chaves, publi-cada n’A Gazeta de Notícias, vinte e dois anos depois. Que hei-de dizer que valha esta calamidade? Para os romancistas é como se perdessemos o mel-hor da família, o mais esbelto e o mais válido. (...)Os mesmos que ele havia ferido quando exercia a crítica directa e quotidiana perdoaram-lhe o mal da dor pelo mel da língua, pelas novas graças que lhe deu, pelas

tradições velhas que conservou e mais a força que as uniu umas às outras como só une a grande arte”(in Heitor Lira 95)

Em jeito de conclusão

Aqui fica um apontamento, muito generalizado e impreciso sobre Machado de Assis. Falámos apenas do homem e do seu modo de interpretar a vida pela literatura, sem passarmos ao conteudo da obra. Seria pretencioso da nossa parte declarar que demos a

conhecer M. de A, nem é essa a nossa finalidade. O que se pretende é conseguir despertar a curiosidade por um emblemático escritor do século XIX de que os brasileiros muito se orgulham e merece ser conhecido em qualquer parte onde se fale e ame a língua portu-guesa. Autodidata, teve a enorme capacidade de fugir a enquadramentos literários, o que por si só já nos dá a marca do um génio que nunca se demite de pensar.Relativamente à crítica ao romance O Crime do P. Amaro, foi assim: Logo que Eça teve em mãos a crítica que M. de A. havia feito à sua obra de imediato

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começou a reescrever o romance, o que prova que embora não o querendo admitir (numa carta que escreveu a Machado) fora atingido. A obra tinha um suporte romântico, o próprio P. Amaro e não foi pos-sível transformá-la na dramatização de uma dor moral como Machado preconizara. Mas, para além desta, todas as sugestões feitas pelo escritor brasileiro foram realizadas na nova versão do romance.Eça era tão conhecedor dos clássicos como M.de A., e a ideia da tragédia estimulada pela crítica pode tê-lo levado a escrever um romance que, superficial e estruturalmente tivesse como base o trágico, mas cor-respondesse à moda da época, com raíz nos costumes. Esse romance foi Os Maias. Na forma como nele evolui o é visível a influência da crítica de Machado. O

cerne do enredo deixa de ser sensação física, defeito apontado a O Primo Basílio, para ser a idealização da dor moral. Sendo Eça o homem de génio que foi, exigente auto-crítico por temperamento, aproveitou o sumo da crítica, meditou-o, elaborou-o e conseguiu superá-lo ao criar uma tão pungente tragédia baseada no incesto. A personagem mais trágica é Afonso o pa-triarca da família que morre de desgosto pouco tempo depois de ter tido conhecimento da tragédia que uma vez mais atingira a sua família.Vale ainda dar a informação de que certamente com base nesta permissa Alberto Machado Rosa escreveu, em 1962, um romance com o título Eça, Discípulo de Machado? da Editora Presença que merece todo o nosso interesse.

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BiBLiOGRAFiA

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No aceso debate sobre o singular privilégio da Imacu-lada Conceição de Maria, Mãe de Deus, em que, em plena Idade Média, praticamente se envolveram todas as escolas teológicas, sobressai pela sua ardorosa defesa o Estudo geral dos Franciscanos de Paris. Foi nos seus claustros que o beato João Duns Escoto defendeu, pela primeira vez com uma argumentação teológico-filosófica, a Imaculada Conceição, designadamente nos cursos de 1302-1303, na Lectura Parisiense de 1304-1305, e na sua determinação pública e solene na universidade de Paris. É certo que em toda a sua obra, Escoto sempre se manifestou favorável à tese da Imaculada Conceição, mas é sobretudo no Opus Oxoniense ou Ordinatio e no último curso de Paris (Lectura) que ele se mostra mais abundante, mais seguro e mais afirma-tivo do que antes. Com efeito, Duns Escoto enuncia aí expressamente o privilégio mariano ao mesmo tempo que ilustra e procura demonstrar o seu acordo com a fé e a razão, defendendo a preservação da Mãe de Deus da mácula original, o que não só não anula a doutrina da universalidade da redenção de Cristo, mas, pelo contrário, concorre para exaltar a excelência do Media-dor perfeitíssimo, como veremos de seguida. Num tempo em que a maior parte dos teólo-gos da Escolástica era contrária à doutrina da Imacu-lada Conceição porque, transmitido por geração carnal (o tema da carne infecta), Duns Escoto não se limita a declarar a sua opinião, mas procura fundar mais solidamente a sua verdade, integrando-a num contexto doutrinal mais vasto, como é a doutrina do primado absoluto de Cristo, primogénito de todas as criaturas, princípio e fim de tudo quanto existe. A síntese teológica de Duns Escoto assenta neste princípio fundamental -Deus est rationabilis-sime volens -, o que significa que a razão, a ordem, a sabedoria são a regra do querer ou amor infinito, que preside à criação de tudo quanto existe fora de Si. Duns Escoto pôs assim como base da reconstituição do real, ou seja, da ordem actual, a Encarnação do Verbo de Deus, obra-prima – summum opus – do amor de Deus Pai. É em função deste mesmo princípio

A DOUTRiNA ESCOTiSTA DA iMACULADA CONCEiçÃO Manuel Barbosa da Costa Freitas

– a vontade divina soberanamente racional e ordenada – que desenvolve toda uma argumentação em favor da Imaculada Conceição, refutando, de caminho, as prin-cipais objecções da tese contrária (Ox. III. D.XXXII q. 1 nº6) perante as quais São Bernardo, São Boaventura e Santo Tomás de Aquino, por exemplo, recuaram quando parecia que adoptariam a mesma posição. Em conformidade com a teologia de São Pau-lo exposta na Carta aos Colossenses sobre o primado absoluto de Cristo “por meio do qual e para o qual tudo foi feito” (Col 1, 16) e em virtude do princípio da vontade divina, soberanamente racional e ordenada, Duns Escoto argumenta deste modo: se Cristo, o filho de Deus feito homem, ocupa o primeiro lugar na hierarquia dos seres criados antes de toda a criatura, portanto, antes de Adão e Eva, por cuja desobediência o pecado entrou no mundo, certamente que Maria sua Mãe, lhe está intimamente unida e subordinada, pois sem ela não poderia ter assumido a natureza humana. Escoto infere daqui que a predestinação absoluta de Cristo, exaltada por São Paulo, depõe, por si só, a favor da exclusão de Maria da herança do pecado original. Isto na linha de direito ou de princípio. De facto, foi predestinada desde toda a eternidade para ser mãe de Cristo, ou seja, para dar forma corporal ou física a Jesus, por obra do Espírito Santo, sem intervenção de homem algum. Nesta perspectiva, a sua existência precede intencionalmente a existência de Adão e de Eva. Na ordem concreta, biológica e histórica, por ter sido escolhida previamente para ser Mãe do Filho de Deus, Maria foi por ele preservada, como que imu-nizada contra o pecado original, por uma forma de redenção de carácter único e excepcional, que Escoto e os teólogos franciscanos designam de preservativa. A redenção de Cristo aplicada a Maria funciona como factor inibitório, tornando-a imune a qualquer pecado. É evidente que a redenção preservativa assim enten-dida é mais perfeita do que a redenção que liberta do pecado anteriormente contraído. É também esta a for-ma mais perfeita do ponto de vista do Mediador que a concede e a mais digna da pessoa que a recebe, pois é mais perfeito ser preservado de cair em pecado do que

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ser libertado depois de nele ter incorrido. A redenção de Maria, operada por Jesus em vista dos seus méritos, é uma redenção preservativa, operada de modo sin-gular e único por um Mediador perfeitíssimo, porque o Filho de Deus redime sempre de modo perfeito na medida em que a criatura o permite. Escolhendo o modo mais adequado à dignidade de Maria, por sua vez escolhida de antemão para ser Mãe de Cristo, Filho de Deus, esta redenção é também a mais adequada à omnipotência de Deus, preservando sua Mãe de toda a mácula desde o momento da sua concepção. A doutrina da santificação ou redenção posterior à concepção, admitida pela generalidade dos teólogos antes de Duns Escoto, não convence, na medida em que repugna à razão supor que a Mãe de Cristo, vencedor do pecado e da morte, possa ter estado, ainda que por alguns instantes apenas, sob o poder de Satanás. A Virgem Maria como Mãe de Jesus Cristo, Filho de Deus, porque lhe anda intima-mente associada, partilha de algum modo do primado absoluto de Cristo, que torna os dois simultaneamente queridos e predestinados antes, isto é, independent-emente da queda de Adão. É esta também uma das razões pela qual Duns Escoto considera incompatível com a Sagrada Escritura a atribuição da Encarnação do Verbo ao pecado de Adão. Não há proporção entre a causa (ocasional = pecado de Adão) e o efeito (= a superabundância da redenção) na opinião do Dou-tor Subtil, por isso Cristo encarnaria mesmo que Adão não pecasse, para revelar aos homens o imenso amor que Deus nos têm e para a ele regressarmos, em conhecimento e amor, com tudo quanto nos foi dado: quem quer ordenadamente, primeiro quer o fim e ime-diatamente as coisas mais próximas do fim… Portanto, antes de qualquer mérito ou demérito, Deus previu que Cristo lhe havia de estar unido em unidade de pessoa, (Reportatio Parisiensis III d. 7 q. 4.). O rigor lógico da argumentação produzida por Duns Escoto merece a sua reprodução integral: Se a queda de Adão fosse a razão da predestinação de Cristo, seguir-se-ia que a obra-prima de Deus – o summum opus Dei –, seria totalmente ocasional porque a glória de todos os demais seres não é tão grande, intencionalmente falando, como a de Cristo; e parece muito pouco racional (irracional) que Deus tivesse omitido uma obra tão importante (tantum opus) por uma boa acção de Adão, se Ele por acaso não tivesse pecado. E Duns Escoto continua: Deus ama-se, em primeiro lugar, a si mesmo; em segundo lugar, ama-se a si mesmo, amando os outros seres, e este é um amor casto; em

terceiro lugar, quer ser amado por Aquele que pode amá-lo em grau sumo, referindo-se a um amor que está fora de si mesmo; e em quarto lugar, prevê a união dessa natureza que deve amá-lo em sumo grau mesmo que ninguém tenha caído (ib.). Situado no conjunto destes textos, o pen-samento de Escoto sobre o problema da Imaculada Conceição impressiona pela extraordinária unidade e coerência de todas as verdades reveladas nele conti-das, designadamente os mistérios da Encarnação e da Salvação. Escrevendo em 1302 contra a maior parte dos doutores e místicos, num tempo em que a Igreja não tinha ainda definido a sua posição, lembrado certa-mente da regra de pensamento de Guilherme de Ware, seu mestre em Oxford, que se impusera – quando se trata do poder de Deus e da glória da Virgem Maria, se tiver de me enganar, que seja por excesso e não por defeito – (Com. In Sent., L. III q. 25), apresenta a sua opinião como uma forte probabilidade, sujeita no entanto, como não podia deixar de ser, ao veredicto final da Igreja e da Escritura – si autoritati Ecclesiae vel autoritati Scripturae non repugnet, videtur probabile quod excellentius est tribuere Mariae, (Ox. III, d. 3 q. 1). Como vimos, a argumentação de Escoto fundamenta-se no dogma da redenção e da excelência de Cristo na sua condição de Mediador. Sendo Cristo um Mediador perfeito, convinha (decuit) que exer-cesse um acto de mediação soberanamente perfeito em relação a alguma criatura. Está neste caso a preserva-ção de Maria em relação ao pecado original. Longe de subtrair a Virgem Maria à influência dos méritos de Cristo, a preservação supõe, pelo contrário, uma intervenção mais nobre e eficaz. A exaltação última de Maria, a sua Conceição na graça e na pureza mais per-feitas, na ordem sobrenatural constitui o maior título de glória de Cristo Jesus (Reportatio Parisiensis IV d. 22 q. 1 n. 13). Apoiado numa concepção mais ampla e compreensiva do dogma da universalidade da reden-ção e na excelência de Cristo Mediador, fundamento inabalável, Duns Escoto ultrapassa todas as objecções, na medida em que, negando-as, as assume e eleva, operando uma viragem decisiva destinada a orientar definitivamente a consciência da Igreja e dos fiéis para a definição dogmática, proclamada por Pio IX a 8 de Dezembro de 1854. É evidente que Duns Escoto teve precursores que lhe forneceram elementos que desempenham papel fundamental na sua argumentação. Em 1278, o franciscano João Pedro Olivi dava a primeira resposta

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autenticamente teológica à objecção dogmática da universalidade da redenção, ao proclamar que a alma de Maria fora preservada de toda a mácula de pecado, actual e original. Encontramos aqui pela primeira vez o verbo preservar para exprimir a mais ampla e nobre forma de redenção. A concluir do seu texto, parece que era corrente entre alguns imaculatistas o verbo preser-var para exprimir a mais excelente forma de redenção, sem, no entanto, extraírem daí todas as possíveis con-sequenciais doutrinais. Mas foi sobretudo de Oxford, onde ensinava Guilherme de Ware, seu mestre, que lhe veio maior abundância de inspiração e consistência doutrinal. Com efeito, depois de ter exposto a doutrina comum – tese Maculatista –, Guilherme acrescenta: segundo uma outra opinião, Maria não contraiu pecado original; é esta a opinião que eu defendo, porque se me enganar, não estando certo da opinião contrária, prefiro errar por excesso (superabundância), atribuindo este privilégio a Maria, a errar por defeito, diminuindo ou recusando-lhe qualquer prerrogativa (AA.VV. …quaestiones disputatae de immaculata conceptione…, Quaracchi, 1904, p. 4). Guilherme de Ware demonstra possuir já, em substância, o famoso silogismo posteriormente atribuído a Duns Escoto: potuit, decuit, ergo fecit, pôde, convinha, portanto, fez. Convém que o filho honre a sua mãe, e aquilo que ele pode fazer convinha que o fizesse, segue-se que o fez, porque um filho deve honrar a sua mãe, mas na explicação que dá, prisioneiro ainda da doutrina ago-stiniana da transmissibilidade do pecado original pela infecção da carne, decide-se mais por uma santificação do que por uma redenção preservativa. A solução definitiva do problema estava reservada a Duns Escoto que, apoiado em S. Anselmo, rejeita liminarmente a teoria da transmissão física do pecado original, dizendo que este é de ordem moral e não física, que reside na vontade e não na carne. Residindo na alma, basta que no primeiro instante da sua existência Deus preserve Maria de toda a mácula original para que seja imaculada (Ox. III d. 3 q. 1 n. 9). O grande mérito de Escoto consiste em ter recolhido e sistematizado os elementos dispersos, de-fendidos por alguns teólogos que o precederam, e com eles construíram uma síntese doutrinal definitiva, que não só salvaguarda o princípio da universalidade da re-denção do pecado original, mas exalta ainda os méritos de Cristo na sua função de Salvador único, e sublima a glória de sua Mãe, a Virgem Santíssima, pois Cristo é mediador de graça não só quando purifica do pecado já contraído, mas mais perfeitamente ainda quando

preserva do pecado original, contraído pelo resto da humanidade (ib.). De facto, é mais perfeito preservar do mal do que libertar a pessoa amada depois de nele ter caído. Do mesmo modo e pelos mesmos motivos, cai igualmente por terra a objecção de alguns teólogos segundo os quais a Imaculada Conceição de Maria retiraria alguma coisa à honra e glória de Cristo, que desse modo ficava privado do mérito de ter resga-tado sua mãe. Ora não só a resgatou como o faz de uma maneira mais perfeita e mais digna do seu amor. Ainda mais: a Imaculada Conceição de Maria não só não diminuíu a glória de Cristo como a aumentou, porquanto precisou mais de Cristo para ser preservada do que teria precisado para eventualmente ser apenas libertada (ib. n. 14). Quanto ao silogismo que a lenda ou uma história sem grandes exigências criticas refere, im-porta frisar que resume sem dúvida o essencial da argumentação de Escoto. Só que a tónica ou peso da argumentação escotista recai quase exclusivamente sobre o decuit, como demonstra a abundância e o vigor da sua argumentação. De facto, a originali-dade do Doutor Subtil não está tanto na invocação das verdades mariológicas como na singularidade e força de argumentação como são propostas. Toda a sua doutrina mariológica emerge e assenta em duas verdades fundamentais: a predestinação absoluta de Cristo, a que Maria anda intimamente associada e, como consequência lógica, a Imaculada Conceição. Duas teses que determinaram novas orientações e que definem o carácter específico da Escola Franciscana. Com a tese da redenção preservativa, Duns Escoto e os teólogos franciscanos imprimiram ao debate histórico sobre a problemática da Imaculada Conceição, uma viragem decisiva, que se repercutiu positivamente na consciência cristã até à sua proclamação dogmática. Viragem tanto mais admirável quanto Escoto responde cabalmente não só às objecções dos adversários como, de algum modo, as assume e, negando-as, as eleva e transforma a ponto de servirem como argumento decisivo a favor da sua posição, ou seja, da verdade da Imaculada Conceição. Hoje é praticamente unânime o reconhecimento de que o dogma da Imaculada Con-ceição aplanou o caminho para a solene declaração da assunção de Maria ao céu em corpo e alma. Pela sua doutrinação em prol de ambos os privilégios da Virgem Santa Maria, o Doutor Subtil bem merece os títulos mais recentes de Cantor da Imaculada Conceição e do Verbo Encarnado.

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Este texto é como uma brincadeira de criança. Os autores clássicos da Psicologia do Desen-volvimento Infantil do século passado deixaram-nos dito que nada há de mais sério na actividade de uma criança que as suas brincadeiras. Por outro lado, do lado dos estudiosos do comportamento animal, que a ele se dedicaram para melhor se poder entender o comportamento do animal humano que todos somos, Konrad Lorenz, o fundador da Etologia, esforçou-se por nos demonstrar que nas aves, nas grandes aves, muitas vezes o seu voo não tem finalidade. Na verdade, Konrad Lorenz demonstrou convincentemente que o voo das aves é, muitas vezes, um simples brincar com a realidade. Ora a realização e a ambição do autor do presente trabalho não é mais do que isso, não é mais do que a entrega pessoal a uma brincadeira séria de criança, voando por cima de toda a realidade com que hoje o Padre António Vieira nos confronta a todos, e na qual um dia o autor deste texto fixou os seus olhos, como se fixam os olhos das crianças pequenas, que invadem completamente a coisa que observam e que lhes toma, em absoluta exclusividade, toda a concent-ração de que são capazes. O autor não tem nem cultura literária, nem experiência de estudo sistemático e amadurecido para discorrer com autoridade e segurança sobre um personagem ímpar da Cultura e da Literatura de uma Nação, a Nação Portuguesa. Portanto, não tomem muito a sério o que aqui vão ouvir. Na verdade, não é mais do que a expressão de um empenhamento motivado, honesto e pra-zenteiro de quem um dia, por um momento, se encan-tou com – permitam-me a expressão – um objecto de Cultura chamado Padre António Vieira.Introdução – O Padre António Vieira e a Intercultur-alidade

No Sermão do Espírito Santo, pregado na cidade de São Luís do Maranhão, na Igreja da Companhia de Jesus - segundo Lúcio de Azevedo, entre os anos de 1652 e 1661 -, numa ocasião em que partia para o Rio Amazonas uma grande missão de religiosos desta companhia, o Padre António Vieira proferiu as seguintes palavras, que autores modernos classificam

como sendo um - dos muitos - aforismos que podemos retirar das suas pregações:Para ensinar sempre é necessário amar e saber; porque quem não ama não quer; e quem não sabe não pode; mas esta necessidade de sabedoria e amor não é sem-pre com a mesma igualdade. Para ensinar nações fiéis e políticas é necessário maior sabedoria que amor; para ensinar nações bárbaras e incultas é necessário maior amor que sabedoria1. Trata-se, sem dúvida, de um excelente ponto de partida para se discorrer sobre a educação intercultural ou sobre os tão discutidos critérios de avaliação dos alunos das nossas escolas e do peso das classificações dos alunos na avaliação dos professores. Mas o nosso pensamento, a nossa curiosidade, não nos leva agora por nenhum destes caminhos; caminhos que, nos tem-pos que correm, são muito tortuosos, resvaladiços e declivosos. De facto, a nossa fantasia está noutro lado.O projecto de intercâmbio escolar sobre a Educação Intercultural, designado PLURALIA, que, com muita honra, cabe ao autor coordenar, em nome da Escola Secundária Eça de Queirós, assenta a sua lógica em encontros cíclicos, que inicialmente foram só de professores e agora também inclui alunos das escolas. Pois se fosse necessário buscar palavras de Vieira pub-licamente defensoras e sancionatórias do valor destes encontros internacionais – interculturais - de profes-sores e alunos, penso que estas, que a seguir repro-duzo, escritas com a clareza e a finura mordaz habituais do Padre António Vieira, serviriam esse propósito. Pois dizia ele numa carta, escrita em Paris, datada de 25 de Outubro de 1647, dirigindo-se a “certo ministro da Corte de Lisboa”“Quanto mais ando pelo mundo, mais me confirmo nesta verdade: e, se os que estão nesse reino tiveram saído dele, também sairiam da cegueira em que vivem nesta e em outras matérias. Baste o exemplo do mar-quês de Nisa, e o do seu Frei Francisco de Macedo, os quais, tendo sido de tão contrária opinião que um deu conselhos, e o outro escreveu livros contra ela, depois que viram o mundo, se lhe abriram os olhos de maneira, que ambos se têm retractado.” 2

A razão de escolha do tema Quando comecei a preparar a redacção deste texto,

O MENiNO ANTóNiO ViEiRA Fernando Pinto

1 M. Correia Fernandes,” Padre António Vieira, Antologia e Aforismos, ordenados tematicamente e anotados por: C. Fernandes”, p. 207.Porto, Telos Editora, 1997.2 J. Lúcio de Azevedo, “Cartas do Padre António Vieira, coordenadas e anotadas”, tomo primeiro, Carta XII, a Pedro Vieira da Silva, 1647 – Outubro 25, p. 101. Lisboa, Imprensa Nacional, 1970.

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pensava que, em resultado, digamos, do meu estatuto oficial de coordenador de projecto escolar, iria diplo-maticamente, educadamente, falar sobre a importância que a obra, o exemplo pessoal e a pedagogia do Padre

António Vieira têm hoje em dia na Educação Intercul-tural, que se constitui como uma das prioridades máxi-mas das preocupações dos políticos que governam a grande Europa a partir dos órgãos decisores da União Europeia, em Bruxelas.Só que, aos poucos, à medida que lia um pouco aqui e estudava outro pouco acolá, fui-me interessando cada vez mais pela pessoa do Padre António Vieira. Principalmente porque, a determinada altura, quando reunia o que em casa tinha sobre o Padre António Vieira, a começar pelos há muito arquivados textos e apontamentos escolares, calhou pegar novamente no trabalho que o Professor Aníbal Pinto de Castro, escreveu em edição dos CTT, “António Vieira: uma síntese do barroco luso-brasileiro”3 , escrito esse que, em boa verdade, nessa primeira leitura, li mais interes-sado pela observação da forma e do estilo de escrita de um familiar que muito prezo, estimo e admiro do que pelo barroco do Padre António Vieira.Perdoem-me algum eventual laivo de ruminação narcísica no que vos vou dizer a seguir, mas não lhes tomarei muito tempo com isso. Há uma tradição de escrita e de conto na minha família, que foi um dos meus grandes encantamentos de infância, iniciado

com os versos escritos pelo meu avô Pinto (tio, pelo lado materno, do Professor Aníbal Pinto de Castro), versos depois repetidamente cantados pelo meu pai e seus irmãos num aniversário, num dia de casamento, ou num almoço de família. Encantamento continu-ado com os próprios versos do meu pai e as histórias profusamente coloridas que ele contava aos filhos sobre os versos de seu pai, trazendo relatos de infâncias mágicas em quintas antigas que mais pareciam jardins de mil e uma noites e de mil e um dias. Faziam parte também deste encantamento as declamações muito vivas e acaloradas de tantas naus catrinetas que o meu padrinho António, irmão de meu pai, protagonizava, à beira da cama, até à hora de aconchegar os cobertores e apagar a luz, quando os primos se reuniam na velha casa dos avós, na Rua das Azeiteiras, na lusa Atenas, a velha cidade de Coimbra. E lembro-me ainda das sem-pre muito apreciadas visitas e estadas a casa do primo Aníbal, onde me fascinavam os livros e as conversas doutas que eu escutava entre ele, os seus colegas e amigos; e as outras conversas, que traziam memórias e afectos, entre o meu avô paterno, a sua irmã Elisa, o cunhado Castro Vale e o sobrinho Aníbal. A curiosi-dade da primeira leitura deste trabalho sobre Vieira foi, portanto, consequência deste sempre renovado encantamento de infância pela melodiosa cadência das palavras ditas e cantadas pelos mais velhos membros da família.Provavelmente é filho da ambição de identificação a Vieira e da vaidade pessoal o pensamento que me faz associar agora o prazer pelas palavras ao prazer que certamente o Padre António Vieira também por elas sentia. Como direi lá mais para a frente, a determinada altura desta minha brincadeira, decididamente me pus a procurar as fontes de prazer, alegria e satisfação na pessoa do Padre António Vieira. O excerto de uma carta que ele escreveu em 1687 ao Padre Bonucci, quando a saúde razoável já claramente o tinha aban-donado, testemunha esse prazer que as palavras lhe terão proporcionado ao longo de toda a sua vida:Ah! Meu Padre, que ainda me divirto em compor e es-crever, quando está chamando por mim a conta, e não sei como a hei-de dar, de tantos e tão mal empregados dias, e sobretudo dos impulsos e inspirações, com que Deus pela sua infinita misericórdia me chama ao que devo ser e não sou! 4

Portanto, só na presente releitura do trabalho do Professor Aníbal Pinto de Castro a minha atenção se centrou definitivamente no Padre António Vieira. E desta nova leitura ficaram-me, no final, duas ideias

3 A. Pinto de Castro, “António Vieira: uma síntese do barroco luso-brasileiro”. Lisboa, CTT Correios de Portugal, 1997.4 J. Lúcio de Azevedo, “Cartas do Padre António Vieira, coordenadas e anotadas”, tomo terceiro, Carta CCXXVI, ao Padre António Maria Bonucci, 1687 – Setembro 9, p. 547. Lisboa, Imprensa Nacio-nal, 1928.

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força sobre a vida e a pessoa de Vieira: o entusiasmo e o desalento. Entusiasmo tantas vezes coarctado e a seguir também tantas vezes renovado; e o desalento, sempre acrescentado, em resultado dos projectos que abraçou com alma e ficaram inacabados ou foram der-rotados por falta de coragem de uns e por motivações desonestas e obscuras de outros.O Imperador da Língua Português, afinal, foi, antes de mais, um menino

Tenho certo que uma certa forma de estar com e de sentir as pessoas me acompanha desde os mais antigos actos da minha vida de que guardo memória e que consigo hoje analisar, deduzindo-lhes uma certa forma de sociabilidade, sempre constante, sempre presente, que espontaneamente eu manifestava e agora assumi-damente desejo manifestar.Publicamente dei conta dessa minha maneira de ser - auto-deduzida - no texto que li perante um grande número de membros da minha família, quando nos encontrávamos reunidos para comemorar as bodas de ouros dos meus pais, no dia 12 de Setembro de 2004. Testemunhei a minha ideia com a descrição de um episódio da minha vida de criança em que, sendo eu aparentemente objecto de discriminação sociocultural, ou socioeconómica, reagi com uma solicitude de que, agora, me regozijo e orgulho. Conto-vos esse episódio, exactamente como o relatei nas bodas de ouro dos meus pais:Um dia, um colega meu na escola primária, lá para o ano de 64 ou 65, disse a um amigo comum, dele e meu, que não queria nada comigo, que não gostava de mim porque eu era filho de um simples sargento. Quando esse amigo comum me disse isto, pois é, senhores... pois é, senhores... ainda hoje eu sinto viva a emoção que me invadiu naquela altura, totalmente feita de carinho e de ternura por esse colega de escola que me rejeitava. Então ele diz uma coisa dessas e tu dizes-me que agora ainda gostas mais dele? Perguntou-me, intrigado, o amigo comum. É. Taborda, é isso que sinto. Tenho muita pena dele... Já viste?... Ele vê-me a falar com o meu pai, mas ele já não tem pai, o pai dele já morreu, deve sentir muito a falta dele. Eu não tinha mais de 8, 9 anos quando isto se passou. Quem me ouvisse dizer isto, até seria pessoa para arriscar que eu até tinha pinta de psicólogo... Quer dizer, é espontânea em mim a reacção de ser sensível ao que entristece ou alegra as pessoas. Ora o que resultou da leitura do trabalho do Profes-sor Pinto de Castro foi a percepção das repetidas e pro-

fundas tristezas e desilusões na vida do Padre António Vieira. E logo junto se me pôs uma questão: onde estavam, em contrapartida, as suas alegrias?... Curiosamente, o grande biógrafo do Padre António Vieira, Lúcio de Azevedo, na sua História de António Vieira, estabelece sequencialmente os seguintes períodos, ou, como hoje se diria, módulos, na vida do Imperador de Fernando Pessoa: o religioso; o político, o missionário, o vidente, o revoltado, o vencido. Já logo o terceiro período, o do missionário é subtitulado “Vieira, desconsolado, opta pela vida nas

missões”5. Em 1678, quer dizer, na fase terminal do período do revoltado, António escreve assim em carta a Duarte Ribeiro de Macedo: A tudo vejo pouco remédio, e que já é tarde quando em nós houvera alguma disposição para o aplicar, mas o nosso letargo é tão grande que nenhuma esperança tenho de que acordemos. Se olho para a terra desmaia a razão, e se para o céu até a fé vacila. 6

Diga-se, então, que é como se eu agora tivesse a ousadia, ou veleidade, ou fantasia, ou ilusão de ante-por um período ou módulo zero: António Vieira, a cri-ança. A própria compartimentação de Lúcio Azevedo parece que está ali, olhando-me desafiadoramente, à espera que eu faça alguma coisa com ela. Se não, veja-se: Exceptuando o primeiro período da vida de Vieira, cada um dos outros comporta entre 6 a 16 anos. Mas o primeiro, sozinho, tem o dobro de anos do segundo maior, tem 32 anos. Quer dizer, o primeiro período abrange o bebé, a criança, o adolescente e o adulto

5 J. Lúcio de Azevedo, “História de António Vieira”, tomos 1.º e 2.º, 2.ª edição. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1931.6 J. Lúcio de Azevedo, Cartas (…), tomo terceiro, pp. 297.

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jovem. Não estou a dizer que, à época, estas fases todas estivessem claramente delimitadas, fosse socialmente, fosse na pessoa de Vieira e da consciência que ele teria de si-próprio. Mas, tem de se admitir que, pesem sejam quais sejam as diferenças no desenvolvimento sócio-afectivo ou psico-emocional entre a época de Vieira e a época actual, são muitas – quase de certeza, são demasiadas - diferenças qualitativas dentro de um único período de vida. Enfim, no mesmo instante em que me perguntei pelas alegrias do petiz António (Como é que os pais o tratariam?... Chamavam-lhe António?... Tó?... Toninho?... E os irmãos chamavam-lhe o quê?... Mano?... Tó?... Tonho?...), pois nesse mesmo instante fiquei prisioneiro da resposta à pergunta e resolvi dedi-car-me à procura do menino António porque tenho uma crença. Uma crença sobre a origem da alegria nas pessoas.Na verdade, creio que a alegria genuína tem a sua ma-triz geradora na ilusão do pensamento e nas fantasias das crianças pequenas, quando começam a produzir entendimento que as crianças, elas próprias, recon-hecem e tomam como razões propulsoras e motivado-ras das suas ocupações e interesses infantis... e depois vida fora!Há alguns anos, vi uma fotografia do meu pai, em que ele teria 5-6 anos. Ele estava empoleirado em cima de uma charrete, na companhia do seu irmão mais velho, que estava à sua esquerda, um pouco mais para trás. Essa fotografia marcou-me profundamente. Nessa fotografia ele olha a objectiva com a força e a concen-tração que uma criança consegue pôr numa coisa que a fascina e a intriga. É uma expressão de olhar que perscruta, ávido de conhecer e de saber, e que certa-mente se alegra quando satisfaz a curiosidade. Não sou o primeiro a dizer que em cada homem há sempre uma criança escondida. Por exemplo, Sigmund Freud ou Konrad Lorenz, seguindo Schiller, só para falar de um ou outro autor que tenha marcado especialmente a minha formação científica. E posso também confi-denciar-vos que, desde o dia em que vi essa fotografia, nunca mais deixei de ver aquela criança dentro do meu pai, criança sempre procurando ingenuamente, incredulamente, saber, alegria e encantamento.Certamente que uma criança assim acompanhou o Padre António Vieira toda a sua vida. Consigo, mesmo considerando que ainda é pouca a informação que tenho sobre ele, ver nele a força, o jeito e a incredu-lidade infantil que faz o mundo parecer uma bola colorida entre as mãos de uma criança. No fundo,

algumas das características de personalidade que lhe terão permitido, ao longo da vida, renovar entusiasmos e superar decepções.

A condição de criança no tempo do Padre António Vieira

As trocas reciprocamente enriquecedoras entre as diversas disciplinas científicas, ajudam-nos a apurar a forma de olhar as realidades com que habitualmente lidamos no nosso campo de saberes e, depois, a pensar sobre elas. Por exemplo, o vaivém entre o saber soci-ológico e o saber psicológico, no meu caso, - e focando já directamente no caso e na pessoa do Padre António Vieira -, tem-me mantido presente no pensamento a cautela de não me deixar levar preconceituosamente à análise do sentir e do imaginar de uma criança bem dos inícios do século XVII com os modelos que os psicólogos modernos têm hoje em uso para as crianças dos finais do século XX e inícios do século XXI, ou seja, é a distância dos tais 400 anos das comemorações de Vieira.Que afectos, que emoções, que fantasias, que desejos transportava em si uma criança de bem tenra idade, como o Padre António Vieira, afinal, um dia foi? Na base de que laços pessoais e afectivos? Que frustra-ções, que desencantos e tristezas poderiam advir de tais laços? Mais tecnicamente direi, que representações de pais e de filhos estariam na base das relações que se estabeleciam entre uns e outros? Qual era a identi-dade social da criança pequena ao tempo do pequeno Vieira? Qual seria o peso do ouro incrustado no berço de origem na forma e no tempo de se ser criança nos princípios do século XVII? E tantas outras perguntas que agora ainda não sei configurar.Sem que seja um conhecedor profundo dos trabalhos de Philippe Ariès, sobre a família e a infância, confesso que as suas ideias encontraram em mim apenas uma adesão fraca, do género, “Não sei para onde vou - sei que não vou por aí”. Em boa hora descobri um trabalho que me tem entusiasmado muito, “Espelhos, Cartas e Guias, Casamento e Espiritualidade na Península Ibérica, 1450-1700”, de que é autora Maria de Lurdes Correia Fernandes, que, no capítulo que dedica à edu-cação dos filhos, praticamente começa assim:Apesar de, há já algumas décadas, alguns estudos terem feito circular a ideia de que o “verdadeiro” sentimento da infância só começou a surgir na Época Moderna – e com mais nitidez no século XVII -, baseando-se numa suposta indiferença pela mesma du-rante a Idade Média, especialmente nos grupos sociais

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inferiores, estudos mais recentes têm vindo a referir textos e indícios que não apontam nessa direcção. 7

E acrescenta em nota de rodapé:A divulgação desta ideia deve-se, fundamentalmente, a P. Ariès, “L’Enfant et la Vie Familiale”, esp. 53-74: “La découverte de l’enfance”. Nesta obra, editada pela primeira vez em 1960, P. Ariès, embora com algum esforço para matizar o problema, não evitou alguma simplificação, nomeadamente através de algumas afirmações vagas: “Na sociedade medieval, que tomamos como ponto de partida, o sentimento da infância não existia”. Apesar de ter ressalvado que “isso não signifique que as crianças sejam negligenciadas, abandonados ou menosprezadas…” (L’Enfant, 177), a afirmação anterior parece ter surtido maior efeito, já que muitas leituras posteriores da obra retiveram mais a primeira – e o seu sentido vago – do que a segunda e o que ela queria especificar.Ao longo de todo este capítulo sobre a educação das crianças, sobre a educação dos filhos, Maria de Lurdes Fernandes vai cuidadosamente mostrando, com evi-dente consistência, e sequencialmente, que:. Mesmo que não sejam abundantes, existem doutrinalmente, e não só, textos que testemunham um sentimento claro de infância, pelo menos a partir do século XV;. Que os conceitos ligados à expressão da felicidade se ligam fortemente à existência de e aos laços com os filhos;. Que há uma dimensão familiar da vida social que claramente apela à função educativa e socializadora da família e à importância do núcleo doméstico no desenvolvimento da criança;. Que pai e mãe têm funções educativas diferentes;. Que é reconhecida a emergência de sentimentos e afectos de grande intimidade das crianças – os filhos -, seja com o pai, seja com a mãe;. E, finalmente, que, não obstante os textos doutrinári-os se referirem fundamentalmente à educação dos príncipes e das crianças das classes aristocráticas, havia a ideia que a valorização das crianças-filhos era comum à generalidade dos diversos estratos de todos os grupos sociais.

A investigação dos textos que abordam o tema do es-tatuto da criança pequena na dinâmica familiar desde a Idade Média até ao século de Vieira, bem assim como o tema da educação das crianças versus filhos parecem, pois, legitimar que se faça a aproximação dos modelos de representação das crianças dos séculos XX e XXI à

representação das crianças do século que viu nascer e educou o Padre António Vieira.E que fazer, senão pensar no mesmo sentido, quando se lê, em autores do século XVI, no caso, Luis Vives, que escreve, a certa altura, nos seus “Diálogos e outros escritos”:Pergunte-se às pessoas mais velhas que coisas mais os prejudicaram na vida, que erro ou omissão mais os prejudicou e de que mais se arrependeram. Pois todos responderão da mesma maneira, pelo menos os que aprenderam alguma coisa: foi o não terem estudado mais (…). Não deixarão de dizer que os pais os quiser-am mandar para escolas e mestres de letras, mas que eles deixaram escapar por entre os dedos a esplêndida ocasião, trocando-a por prazeres vãos, por jogos, pela caça, os namoricos e tontarias desses géneros. 8

Mas a citação que, por agora, mais nos aproxima dos sentimentos, dos afectos que podem tocar e formar a pessoa de uma criança, que toca essa questão tão im-portante de hoje em dia que é a da criança que se sente amada ou não pelos seus pais e, especialmente, pela sua mãe, ou seja, a questão que radicalmente nos põe a entrar na pele da criança e a tomar, a partir de dentro, o seu ponto de vista e não tomar apenas a ideia que os outros (no nosso caso, os autores do século XVII) dela fazem, é-nos testemunhada ainda por Luis Vives, que acabamos de citar. Diz ele, com todo o peso que pode ter uma confidência pessoal: Mãe nenhuma amou o seu próprio filho como a minha mãe me amou a mim. E nenhum filho se sentiu menos amado pela sua mãe do que eu. Quase nunca me sor-riu; nunca se mostrou indulgente. E, contudo, quando um dia eu estive ausente de casa durante três ou quatro dias, ela caiu doente como se tivesse sido atingida por um gravíssimo acidente. Entretanto, quando voltei para casa, parecia que não tinha sentido minimamente a minha falta. 9

Na minha opinião, esta citação confirma que, no es-sencial, os modelos que dispomos hoje em dia para pensar sobre as emoções, os afectos, as necessidades de dependência infantil; os dinamismos e os enredos da ligação entre a mãe e a criança, se podem aplicar à apreciação do desenvolvimento emocional e sócio-afectivo das crianças pequenas do tempo do Padre António Vieira.E a citação anterior a esta mostra o que hoje em dia é comum ver-se nas famílias de qualquer estrato social: que os pais querem que os filhos estudem, querem que os filhos cresçam e se valorizem, mesmo que tenham de passar por processos tumultuosos e que tenham de

7 M. de Lurdes Correia Fernandes, “Espelhos, Cartas e Guias, Casamento e Espiritualidade na Península Ibérica, 1450-1700”, p. 164. Porto, Instituto de Cultura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1995. / 8 M. de Lurdes Correia Fernandes, obra citada, p. 169, rodapé, nota 18. / 9 M. de Lurdes Correia Fernandes , obra citada, p. 179, rodapé, n.º 55.

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“marcar passo” aqui ou ali. E mostra também que já no tempo de Vieira se dizia: “Pois é, os meus velhos bem me avisaram, mas eu nessa altura o que queria era farra. Agora torço a orelha, mas já não deita sangue.”Não foi este o destino do jovem António Vieira. Pelo

contrário, aos 15 anos, mais concretamente a 5 de Maio de 1623, ele, consequentemente a um período de grande turbulência interior – que abordaremos lá mais para a frente -, abraçou uma causa, como se diria hoje em dia, assumiu um projecto de vida. Até nesta de-cisão pessoal, e no período que a antecedeu, António Vieira parece corresponder à caracterização tradicional que o psicólogo mais consagrado do desenvolvimento sócio-afectivo dos jovens, Erik Erikson, elabora para o período da adolescência, que ele designa, na sua teorização bipolar, “Identidade versus Confusão de Papéis”. Neste período do desenvolvimento humano parece que está inscrito na condição biológica a expan-são máxima da essência da personalidade individual, disponibilizando-a para o serviço a uma causa nobre, a um ideal social, bem acima da egoísta ou egocêntrica condição pessoal individual. As causas que, nesta fase da vida, conseguem captar a entrega voluntária dos jovens, recebem devoção e fidelidade profundamente firmes e totais.As opiniões consagradas dos principais biógrafos do Padre António Vieira (por exemplo, o Padre André de Barros e João Lúcio de Azevedo) dizem-nos que esta

opção do adolescente António contou com a oposição dos pais; mais, contou com a sua prolongada não resignação.Pessoalmente, penso que a questão importante, pelo menos do ponto de vista das fantasias que procuro fazer a propósito do jovem António Vieira, não é se ele optou contra a vontade dos pais; para mim, o mais importante é compreender que a opção do jovem António é resultado da educação moral e afectiva rece-bida precisamente de seus pais, que, paradoxalmente, objectivamente, nesta altura parece voltar-se contra eles. Mas só aparentemente. No fundo, penso que nesta altura terá vencido a educação da força interior que os pais inculcaram no jovem e a honestidade con-sigo próprio, com as suas motivações e as suas crenças, honestidade também fruto dessa educação. Quer dizer, do ponto de vista dos valores, a educação que António Vieira recebeu dos pais foi bem sucedida. Se, nesta altura da vida, o jovem fosse meu aluno e eu recebesse os seus pais numa reunião de encarregados de educa-ção, eu calorosamente os felicitaria. Na generalidade dos casos, passados alguns anos, regressa a bonança às relações entre pais e filhos, filhos esses que, entretanto, nunca terão deixado de estimar profundamente os seus pais, mesmo que tivesse pare-cido o contrário.Publicamente apresento os meus mais sinceros agradecimentos ao Professor Pinto de Castro que, quando me viu em palpos de aranha, esbracejando para chegar a uma ideia minimamente clara e se-gura sobre este momento decisivo da vida do Padre António Vieira, me ajudou a estabelecer o seguinte:1. A primeira referência ao caso, ainda que velada, encontra-se no primeiro dos seus grandes biógrafos, o Padre André de Barros, quando diz: “Por meio dos parentes assoprou o Inferno os ventos, e moveu as ondas, que o combateram na vocação; mas o seu forte espírito assim rebatia estes assaltos, como o penhasco oposto, a quem não abalam, antes nele se quebram, os mares furiosos” (Vida do Apostólico Padre António Vieira, Lisboa, 1746, p. 11). 2. Tratava-se certamente de uma forma de exaltar a força de atracção que a Companhia exercia, sem qualquer base. Os documentos e os textos autobiográ-ficos do autor nada referem a tal respeito.3. Nestas circunstâncias, será a posição de Aníbal Pinto de Castro, a que parece garantir melhores condições de razoabilidade, a partir dos elementos documentais disponíveis, e também do que é possível e legítimo conjecturar sobre as condições de vida familiar no

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tempo da criança e do adolescente AntónioVieira. Es-creve assim este autor, no seu trabalho já referido sobre o Padre António Vieira: “[...] batia António Vieira à porta do Colégio para iniciar o noviciado. Recebeu-o, exultante de alegria, o Reitor, que era ao tempo o Padre Fernão Cardim. Tivera o jovem estudante, para ali chegar, como querem os biógrafos ( João Lúcio de Azevedo, inclusive) de vencer a oposição da família, fugindo de noite aos carinhos maternos, para se acol-her ao seio da Ordem de Santo Inácio de Loiola? Não creio. Nem os tempos eram propícios a tais oposições, mormente em famílias de vários filhos, educados segundo os preceitos da Fé e da Igreja, nem o sentido prático da vida que parece caracterizar a personali-dade de Cristóvão Vieira Ravasco, sempre pronto a agenciar, para si e para os seus, as posições que melhor pudessem garantir a sua promoção social e económica, levantaria obstáculos a uma carreira que abria portas tão promissoras a tais desígnios”. 10

A estas sínteses organizadoras e esclarecedoras posso também juntar uma outra, vinda de outro reputado pensador, profundo conhecedor da obra do Padre António Vieira:4. José Van Den Besselar tem opinião idêntica ao Pro-fesso Pinto de Castro com base num outro argumento. Diz ele, no seu trabalho “António Vieira: o homem, a obra, as ideias”: É possível que houvesse alguma resistência deles [os pais] ante o imprevisto do caso [a fuga para a Companhia de Jesus], mas julgo que ela não foi muito séria nem de longa duração. Os Padres não admitiam menores no noviciado sem o consenti-mento dos pais, e estes, por sua vez, não deviam tardar em reconhecer que a carreira eclesiástica oferecia excelentes perspectivas a um menino da sua categoria social. Sem apoucarmos a sinceridade da sua propen-são para o estado religioso, podemos dizer que as aspi-rações do rapaz não divergiam muito das dos pais.11 A entrada de Vieira na Companhia de Jesus é, do ponto de vista do presente trabalho, o momento do fim da minha fantasia sobre o António Vieira menino. A dimensão que se quer para um trabalho deste género não me permite ir mais além.Fantasias sobre o pequeno e o jovem António – do nascimento ao esclarecimento da vocaçãoPortanto, em jeito de reformulação, repito que o hoje aqui queria trazer era precisamente a primeira forma da fantasia que criei dessa criança incrédula que sempre esteve com ele, com o Padre António Vieira, ao longo da sua vida, e terá marcado a tonalidade das suas alegrias, dos seus desapontamentos; e sido a força

propulsora dos seus empenhamentos, projectos e tra-balhos. E das suas fantasias, dos seus impérios.Pois bem, retomando a citação, a primeira, que repro-duzi quase no início deste texto, e que a seguir co-mentei que aquelas palavras podiam ser exploradas em desenvolvimentos diferentes, penso que agora já posso dizer que o que elas me põem a pensar é precisamente no menino António Vieira que foi educado e foi ensi-nado por sua mãe e pelos irmãos jesuítas.Foi… e não foi… ou não foi…Na verdade, se nos ativermos à letra de dois dos mais proeminentes estudiosos de Vieira, encontramos posições que provavelmente são diametralmente opostas ou incompatíveis. As de J. Lúcio de Azevedo e de Hernâni Cidade. A de Lúcio de Azevedo parece conformar-se mais com as perspectivas e posições doutrinárias e orientadoras dos autores que se pud-eram conhecer na obra de Maria de Lurdes Correia Fernandes já referida, que apontam para um papel edu-cativo mais acentuado, mais interveniente da mãe na educação do seu próprio filho pequeno. A posição do Professor Hernâni Cidade parece ir mais na linha da tal formação académica, fora da família, que permite “ser alguém na vida”.A opinião de Lúcio de Azevedo precede cronologica-mente a de Hernâni Cidade. Ele diz assim:A mulher e o filho ainda único viviam então na freg-uesia dos mártires, perto das casas do conde de Vila Franca […]. Na ausência do marido Maria de Azevedo vivia muito recolhida, saindo raras vezes a não ser para a missa, toda consagrada ao filho, de quem foi a mestra de ler e escrever. Em 1614 partiram todos para a Baía. Tinha António Vieira nessa época seis anos. 12

Por seu lado, Hernâni Cidade, certamente conhecedor da opinião de Lúcio Azevedo, que cita várias vezes no seu trabalho sobre Vieira, escreve:Embarca para a Baía em 1609, deixando em Lisboa a mulher com o pequeno António, nesse tempo ainda filho único. Vem buscá-los três anos depois e para lá partem todos em 1614, quando o rapazito contava, portanto, 6 anos de idade. No colégio dos Jesuítas do Salvador aprendeu a ler, nele continuou os estudos, nele recebeu os estímulos que lhe teriam inclinado o espírito, decerto logo recon-hecido como superiormente dotado, para o ingresso na Companhia. 13

Do ponto de vista do desenvolvimento infantil, sabe-se, hoje em dia, que as idades à volta dos 6 anos são absolutamente críticas para a aprendizagem da leitura, o seu efeito potenciador para o desenvolvi-

10 A. Pinto de Castro, “António Vieira: uma síntese do barroco luso-brasileiro”, p. 21. Lisboa, CTT Correios de Portugal, 1997 / 11 J. Van Den Besselar, “António Vieira: o homem, a obra, as ideias”, pp. 10 e 11. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Ministério da Educação e Ciência, 1981./ 12 J. Lúcio de Azevedo, “História de António Vieira”, tomos 1.º e 2.º, 2.ª edição, p. 13. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1931. / 13 Hernâni Cidade, “Padre António Vieira”, p.10. Lisboa, Editorial Presença, 1985.

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mento da inteligência e para a interiorização das letras como veículo de expressão de emoções e das ligações afectivas significativas. Há crianças que aos 4 anos aprendem a ler, normalmente em casa, com um dos pais. Com muita facilidade e muito motivadas. Pra-zenteiramente motivadas, afinal, como estarão os pais que tomam a iniciativa de ensinarem os filhos a ler e a escrever. Arrancar para a aprendizagem da leitura aos 8 anos significa aprender a ler de outra maneira, mais es-forçada, mais analítica, mais racional e menos afectiva.Portanto, em relação ao Padre António Vieira a questão põe-se precisamente neste intervalo charneira, em que a aprendizagem da leitura pode decisivamente marcar a formação da sua personalidade num ou noutro sentido.A cronologia do Padre António Vieira, que o Jornal de Letras publica na sua edição de 12-25 de Março passado, diz que em 1623 “ingressa na Companhia de Jesus, na Baía, cujo Colégio já frequentava desde data incerta.” 14

Não conheço o suficiente nem das obras de Vieira, nem das obras sobre Vieira; e muito menos domino o acesso a documentos da época. Portanto, não posso legitimamente ser senhor de uma opinião sobre este assunto. Só posso, por enquanto, fantasiar. E o que fan-tasio é ver no prazer em escrever que o Padre António Vieira conservava, no final da sua vida, o veículo transaccional, como dizem os psicólogos estudiosos das relações de vinculação entre a mãe e o seu bebé, quer dizer, uma espécie de ursinho de peluche virtual, com forte carga afectiva, que teria tido a sua origem lá longe, no aconchego da relação exclusiva com terá mantido longamente com a mãe. Terá sido uma relação precoce que lhe garantiu o vínculo social que foi fonte e sustentação da força humana que depois lhe foi permitindo, ao longo da vida, suportar o desalento, a doença e o isolamento em que se viu para lá dos 80 anos de idade.Esclareça-se: não é fantasia dizer-se que o menino António conservou, no ambiente familiar, uma relação de exclusividade com a mãe durante muito tempo. Parece que estamos mesmo perante um facto indes-mentível. Na verdade, o seu primeiro irmão, Bernardo, nasceu apenas em 1617, ou seja, quando António tinha já 9 anos de idade. A fantasia refere-se tão-somente à qualidade da relação exclusiva que o bebé, primeiro, e o menino António, depois, mantiveram (manteve) com a mãe.Por isso, penso que é legítimo concluir que quando, na teia das relações pessoais dentro da família, a person-

alidade de Vieira é confrontada com os sentimentos de rivalidade emocional e sócio-afectiva despertados pelo aparecimento do irmão, o essencial da aprendizagem da leitura está adquirido, a bem do futuro escritor e pregador.Clarificando, 1. Não há dúvida nenhuma que o menino António Vieira manteve uma relação afectiva de exclusividade com a mãe, desde o nascimento até por volta dos 9 anos de idade, o que muitos autores da Psicologia do Desenvolvimento Infantil admitem que corresponda ao mais profundo desejo - inconsciente, ressalve-se - da criança que, enquanto o seu universo relacional se mantém quase exclusivamente centrado nas pessoas dos seus progenitores (aos seis, sete anos, mais ou menos), podem reagir com sentimentos mais claros ou encobertos de ciúme e rejeição ao aparecimento de irmãos, sempre usurpadores do amor e do carinho maternos.15 Mas o menino António atravessou tran-quilamente este período crítico e o seu mano Bernardo apareceu quando já ele distribuía por outras pessoas fora do ambiente familiar nuclear os seus afectos e investimentos pessoais.2. Não parece haver legitimidade para outro estatuto senão o de fantasia para tudo o se disser sobre a atribuição à mãe de António Vieira do papel de primei-ra educadora das letras do seu exclusivo filho.Quando, como é agora o caso, a fantasia de olhos mágicos e incrédulos se liberta sobre a vida de alguém tão distante no tempo, ela leva-nos onde a vontade nos conduz, sem proibições que a travem e sem precon-ceitos que a inibam. E a fantasia leva-nos agora para a pessoa da mãe do menino Vieira, Maria Azevedo.A mãe e o pai de António Vieira, mesmo que nascidos em berços pobres, não poderiam ser também pobres de espírito e de inteligência. Vieira aprendeu rapida-mente no Colégio dos Jesuítas e o seu irmão Bernardo chegou a corresponder-se com o irmão trocando po-emas. O pai de Vieira fez jus aos benefícios e às regalias que o rei lhe concedeu. E a mãe?... Que sabemos da mãe que com o filho esteve tanto tempo, numa relação tão exclusiva que excluiu o próprio marido numa fase crucial do desenvolvimento dos vínculos afectivos das crianças com os adultos cuidadores?... Eu não sei nada. Talvez um dia saiba. Por agora a fan-tasia só me traz ao pensamento os versos tão lindos de Sebastião da Gama:Pra que o dia fosse enorme,BastavaToda a ternura que olhava

14 Jornal de Letras, ano XXVIII, n.º 977, p. 17. / 15 Em tempos travei conhecimento com um jovem adolescente de cerca de 14 anos, casualmente, mas cujo desenvolvimento natural de um contacto pes-soal em período de férias, obrigou-me a um manejo quasi-clínico. O âmago da perturbação psicológica do jovem radicava num desejo de infância, consciente e voluntariamente assumido por ele, em que an-siava que a irmã que se preparava para vir repartir a mãe com ele não vivesse. E a menina nasceu mesmo morta. Deste caso fiz uma história que está disponível na Internet sob o nome “História de Paixão”.

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Nos olhos de minha mãe… 16

E a estes versos, qual cereja atrás de outra, me ocorre – porque me fascinam, os olhos e as palavras – a abertura do Sermão das Lágrimas de S. Pedro:Notável criatura são os olhos! Admirável instrumento da natureza; prodigioso artifício da Providência! Eles são a primeira origem da culpa; eles a primeira fonte da graça. 17

Se calhar, a graça dos olhos de sua mãe…Bem, continuar no lar de Vieira obrigaria a um apro-fundamento na busca de dados e factos para que a fan-tasia não soltasse completamente os pés do chão e nos deixasse na fantasia só pela própria fantasia, quase ao jeito das reacções circulares dos bebés de Jean Piaget, o monstro sagrado do estudo do desenvolvimento da inteligência. As limitações de tempo na preparação deste trabalho e da sua apresentação não me permitem ir mais adiante neste caminho. Vamos com o rapazinho António para a escola. Apetece-me perguntar já, de onde lhe vem o amor e de onde lhe vem a sabedoria (de que se falou logo no início deste trabalho) para a empresa que tão inten-samente abraçou e em que tão rapidamente foi bem sucedido (mesmo que com alguns tropeções de per-meio)? Que reminiscências – ou pensamentos claros – tem ele presentes quando dá forma à sua crença e a comunica publicamente no Sermão do Espírito Santo 18 ?... Que peso tem, na consciência das suas próprias ideias, a sua própria experiência de aprendente, primeiro no lar e depois no Colégio dos Jesuítas?O Padre André de Barros, que contava 22 anos quando o Padre António Vieira morreu, publicou a sua biogra-fia de Vieira em 1736, contando 61 anos. Iniciou uma tradição que apresenta o jovem Vieira empenhado e entusiástico no estudo, mas que não deixou de apre-sentar um período de aprendizagem turbulento, até mesmo decepcionante. André de Barros justifica con-hecer estes acontecimentos na vida de Vieira através do relato pessoal de uma testemunha que os ouviu do próprio Vieira. 19

Não é claro para mim qual é exactamente o momento da ou das crises do estudante António Vieira. Será que foi um problema de adaptação, quando foi con-frontado com as diferenças da disciplina do Colégio relativamente ao ambiente quase seguramente mais sereno e difuso do lar? Será que foi quando o estilo de pensamento livre que a criança levava de casa foi obrigado a condicionar-se à sistemática do pensamen-to dos doutores jesuítas? Será que a crise do estudante foi resultado do advento da fase pubertária da criança

que se transformava em homem, como tantas vezes acontece com tantos rapazes e raparigas?E o que é que fica desta experiência pessoal difícil a marcar a forma como educou e fez educar as popula-ções indígenas, quando recomendava, no Sermão da Epifania, É necessário tomar o bárbaro à parte, e estar e instar com ele muito só por só, e muitas horas, e muitos dias: é necessário trabalhar com os dedos, escrevendo, apontando e interpretando por acenos o que se não pode alcançar das palavras: é necessário trabalhar com a língua, dobrando-a, e torcendo-a, e dando-lhe mil voltas para que chegue a pronunciar os acentos tão duros e tão estranhos: é necessário levantar os olhos ao Céu, uma e muitas vezes com a oração, e outras quase com desesperação, é necessário, finalmente, gemer, e gemer com toda a alma; gemer com o entendimento, porque em tanta escuridade não vê saída; gemer com a memória, por que em tanta variedade não acha firmeza; e gemer até com a vontade, por constante que seja, porque no aperto de tantas dificuldades desfalece e quase desmaia. Enfim, com a pertinácia da indústria, ajudado da graça divina falam os mudos, e ouvem os surdos; mas nem por isso cessam as razões de gemer; porque com o trabalho deste milagre ser tão semel-hante ao de Cristo, tem mui diferente ventura, e mui outro galardão do que Ele teve. 20

Será que Vieira tinha presente no pensamento a sua própria experiência pessoal quando escreveu o que acabámos de ler?É consensual – mais misticismo nuns, mais sobriedade descritiva noutros – que a saída para esta crise estu-dantil foi um breve momento de iluminação súbita, num momento de grande recolhimento pessoal. Este momento é configurado com a imagem de um “estalo”, que alguns autores passaram mesmo a admitir no seu sentido literal, atribuindo-o a um dos seus padres educadores, e assim dando vida a mais um mito infeliz e gerador de confusões.É ainda André de Barros que relata este momento, ou este acontecimento, perfeitamente verosímil, do jovem adolescente.Permitam-me os ouvintes deste já longo texto - so-bretudo tendo em atenção os jovens alunos que possam estar entre nós e que por vezes vacilam nas motivações e nas crenças em si próprios -, que aqui reproduza o que João Lúcio de Azevedo diz na sua biografia de António Vieira:Não foi Vieira, como podem supor muitos, um precoce génio: nos primeiros tempos de estudante, compreen-

16 Sebastião da Gama, “Serra-Mãe: poemas”. Lisboa, Edições Ática, 1996. / 17 Sermão das Lágrimas de S. Pedro, na catedral de Lisboa, em segunda-feira da Semana Santa, 1669. / 18 Sermão do Es-pírito Santo, na Igreja da Companhia de Jesus, S. Luís do Maranhão, s.d. / 19 J. Lúcio de Azevedo, “História de António Vieira”, tomos 1.º volume, 3.ª edição, p. 16. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1992. / 20 Sermão da Epifania, pregado em Lisboa, na Capela Real, em 1662.

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dia mal, decorava a custo, fazia com dificuldades as composições; em tudo aluno medíocre, com o que, pundonoroso, muitas vezes se afligia. É de imaginar que orando à Virgem das Maravilhas lhe suplicasse a de o tornar mais hábil para os estudos. Em um dos tais lances, a meio da súplica, sentiu como um estalar qualquer coisa no cérebro, com uma dor vivíssima, e pensou que morria; logo o que parecia obscuro e inacessível à memória, na lição que ia dar, se lhe volveu lúcido e fixo na retentiva. Chegado às classes pediu que o deixassem argumentar, e com pasmo dos mestres venceu todos os condiscípulos. Daí por diante foi ele o primeiro e mais distinto em todas as disciplinas. 21

Sobre isto pensa Aníbal Pinto de Castro:Trata-se, como é evidente, de uma lenda nascida ou alimentada pela imaginação barroca, então muito presente na crença religiosa, para realçar o carácter prodigioso das qualidades que o seu espírito viria depois a revelar. 22

Fenómenos psicológicos, ou espirituais, ou afectivos deste tipo são bastante frequentes no período de vida que António Vieira atravessava, que, como já se disse lá mais para trás, se caracteriza por uma grande turbulên-cia interior, seja nas emoções, seja nos afectos, seja na inteligência e no conhecimento. É o que os psicólogos designam por insight, termo de difícil tradução para a língua portuguesa e que, pese mais a perspectiva espir-itual, ou a perspectiva psicológica, deverá ser traduzido por iluminação súbita, ou entendimento súbito. É o in-sight que estabelece um rumo motivacional com base numa reestruturação cognitiva, no sentido mesmo, segundo a maneira de falar e teorizar de Jean Piaget, de uma nova estrutura – criativa - de pensamento. Se para aqui se trouxesse a dicotomia do pregador Vieira entre o amor e o saber, não há dúvida nenhuma que é um momento de enorme sensibilidade na vida pessoal de quem experimenta uma condição interior assim, em que o amor e o saber rivalizam – sem dúvida – mas, como no caso de Vieira, se apaixonam, se entrelaçam e seguem, como se sabe hoje que seguiram, juntos - sempre - vida fora.António Vieira tem, pois, 15 anos. Já estivemos com ele, lá para trás, a primeira vez que o abordámos com esta idade. E parámos nessa altura. O mesmo vamos fazer agora. Demos largas à fantasia, soube bem. António Vieira, a natureza do seu desenvolvimento físico e psicológico, está definitivamente afastado dos tempos de infância e da relação essencial com os pais e os irmãos. A motivação para continuara a fantasiar so-bre a pessoa esmorece-nos. Ele já não é mais menino.

O comprometimento que nos tínhamos imposto era relativo ao António Vieira menino.É, pois, hora de outra vez parar. Parar de vez. Diga-se de António Vieira o que ele disse de Santo Inácio:Ninguém pôde retratar a [António Vieira], como vi-mos, mas só [António Vieira]a se retratou a si mesmo. E qual é o verdadeiro retrato? Qual é a vera efígie de [António Vieira]? A vera efígie de [António Vieira] é aquele livro de seu Instituto que tem nas mãos. O melhor retrato de cada um é aquilo que escreve. 23

Logo a seguir, António Vieira diz:O corpo retrata-se com o pincel, a alma com a pena. De quem estive eu a falar?... De António Vieira ou de mim?... O que posso sinceramente responder de bem certo é que o Padre António Vieira, o menino António Vieira se aconchegou definitivamente algures na minha alma.Como o Luís se aconchegou um dia também. O Luís era um menino do Lar dos Rapazes da Santa Casa da Misericórdia de Santarém de que um dia me ocupei. A certa altura do espaço mágico que é a consulta do psicólogo infantil eu perguntei-lhe “Se tu fosses um animal, que animal é que eras?” Ele respondeu-me, a fungar “Eu era um coelhinho...” “E eu, que animal era eu?...” “Tu eras uma raposa!” “Ê, pá!... Se eu fosse uma raposa, corria atrás de ti e comia-te!...” E ele respondeu-me sem hesitar, encolhendo-se em concha: “Não fazia mal… Eu ficava lá dentro, na tua barriga, no quentinho e vivia sempre dentro de ti, sossegadinho.”Querido Lemos, colega que muito admiro, amigo que muito estimo e respeito: tinha uma grande dívida para contigo, que sempre me deixaste em aberto o convite de entrar portas adentro, portas abertas de par em par, do teu colóquio. Sempre o fizeste, sempre o renovaste, ano após ano, com o maior dos carinhos, com a maior das franquezas, com a maior das confianças. Espero ter hoje saldado essa dívida de longa data. Se há alguém que eu almejaria que hoje gostasse de me ouvir – e perdoem-me todos os demais ouvintes aqui presentes, acreditem que não os desconsidero mais por isso -, eras tu.Gostaste?... Espero que sim.Obrigado, muito querido amigo! E desculpa qualquer coisinha…Tenho dito!

Comunicação apresentada no 14º Colóquio dos Olivais, que decorreu na Escola Secundária Eça de Queirós, de 9 a 12 de Abril de 2008

21 J. Lúcio de Azevedo, “História de António Vieira”, volume I, p. 16, 3.ª edição, Clássica Editora, Lisboa, 1992. / 22 A. Pinto de Castro, “António Vieira, uma síntese do barroco luso-brasileiro”, p. 17. CTT Correios de Portugal, 1997. / 23 Sermão de Santo Inácio Fundador da Companhia de Jesus. Lisboa, Real Colégio de S. Antão, 1669.

Sobre o horizonte apelativo e volúvel da New Age

Mário de Meneses SantosO Obelisco e a Ermida da Senhora do Monte m

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Uma das características mais marcantes do pensamen-to dos nossos tempos é a vaga de relativismo que domina e perpassa em muitos sectores da vida cultural. Parece que se desistiu de procurar a verdade, ou que a verdade é uma mera utopia inalcançável. Basta que uma forma de conhecimento seja eficaz e cativante para se aceitar. Não se busca o fundamento da sua legitimidade e coerência, porque são aspec-tos de foro mais académico do que da vida real. Não interessa que se diga o que as coisas são duma maneira justificável; basta afirmar de modo apelativo algo que atrai.A razão, a nossa faculdade natural de conhecer, com-preender e explicar as coisas, deixa de ser um padrão de exigência e de rigor. Torna-se um instrumento de que se desconfia, que se despreza e com um valor dispensável. O importante não é a verificação das suas possibili-dades enquanto instrumento e caminho para chegar à verdade. Não se “tem razão” se se pensa correcta e adequadamente, de acordo com regras estudadas pela lógica. Essa via de conhecimento parece pertencer mais à arqueologia das variadas formas históricas da mente humana do que às preocupações do homem actual.A precariedade dos critérios de rigor e objectividade no funcionamento do conhecimento tornam o pen-samento humano débil e é no horizonte de tal debili-dade que temos de viver. Neste contexto, surgem es-pontaneamente formas de expressão cultural de índole muito diversa, difusa e pouco clara, cujos fundamentos não se sabe bem o que são e porque se aceitam, mas que exercem uma forte atracção em certos meios int-electuais que os divulgam.

Por vezes, manifestam-se como buscas de ressuscitar do passado fontes outrora acantonadas ou reservadas a ambientes de esoterismo muito restritas. A velha gnose, o teosofismo, o gosto pelas ideologias religiosas ou mais ou menos filosóficas orientais, a tentativa de repor como coisa séria o paganismo com o culto da deusa “sabedoria”, acalentado por sectores radicais feministas, tudo isto se mistura num caldo complexo e difícil de definir. Não tem unidade nem clareza de orientação. A sua difusividade e um certo gosto pelo secretismo são uma espécie de chamarizes convidativos. Não se busque neles a robustez intelectual, a lógica das argumen-tações, nem a seriedade dos seus pilares de apoio. A sua forma de cativar é confusa e impregna-se de todo o horizonte mais ou menos obscuro das sociedades fechadas, que reservam para os seus sócios a revelação de mistérios existenciais capazes de fazer chegar o con-hecimento humano, através de meandros complexos e discutíveis, a paraísos justificativos do homem e da vida. No fundo, procura-se um sentido para a nossa ex-istência. Os meios não são exactamente racionais, mas trans-racionais ou a-racionais. Não se apela à razão, tal como a filosofia clássica o tentou fazer, para ser o suporte e instrumento dessa caminhada e da desco-berta final. Pelo contrário, é o homem integral que se compromete, num esforço cognitivo superador dos limites da razão, através do qual ele explica e se explica, com o recurso a fundamentos ténues ou arbitrários e sem solidez, cujas fontes de inspiração, entre outras possíveis, se citaram atrás.Quando se analisam e constatam certas afirmações deste tipo de abordagem do sentido da vida, ficamos

SOBRE O HORiZONTE APELATiVO E VOLÚVEL DA NEW AGE

O Relativismo como tónica recorrente do pensamento contemporâneo P. rui rosas da Silva

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com a sensação de uma falta de rigor notável, mas, ao mesmo tempo, com a surpresa de que tais convicções, ao afigurarem-se sérias e pregnantes entre os que as anunciam, envolvem todo o ser humano numa aven-tura estranha e nebulosa.Todas estas considerações nasceram quando nos propusemos entrar no mundo intrincado da New Age, movimento bastante badalado e propagado em secto-res relevantes da nossa sociedade ocidental. E chama-nos a atenção que alguns dos seus próceres relevem o facto astrológico de estarmos no final da era do Peixe

e ao ponto de iniciar a Nova era do Aquário. E aqui já com uma certa amplitude de datas: há quem fale em 1967 e quem advogue 2.367. para a passagem do teste-munho entre as duas eras. Se a primeira foi dominada pelo Cristianismo, a segunda poderá dar lugar a uma nova concepção sobre o homem e a realidade, liberta-dora e pacificante. Mas, para tanto, é necessário pôr de parte alguns dos fundamentos cognitivos que alicer-çaram a nossa cultura ocidental.Estas ideias foram defendidas e depois divulgadas por várias obras, entre as quais, The Aquarian Con-spiracy, Personal and Social Transformation, cuja data de publicação é de 1980. A sua autora uma jornalista

norte-americana, Marylin Ferguson. A sua rápida difusão encontrou no regaço de variadas comunidades de carácter ocultista-metafísico, que reunem grupos mais ou menos fechados, como espíritas, teosófos, mágico-esotéricos, etc., tal como nos elucida na New Age Encyclopedia,1, J. Gordon Melton, um estudioso e especialista nestas matéria.Como sempre acontece – ou pelo menos, frequent-emente – em circunstâncias semelhantes, há um desejo de ver o homem superar-se das suas limitações habitu-ais, sobretudo de carácter gnoseológico. Mas também

existencial, já que se acredita que a era favorável do Aquário fornecerá a possibilidade de uma revolução antropológica do ser humano, que chegará a um hori-zonte de felicidade e de harmonia capaz de superar a crónica dicotomia do bem e do mal, que tanto afecta o comportamento e os objectivos da nossa vida.

Aspectos diversos da New Age: Mun-do e Conhecimento

Uma nova dificuldade se nos depara: não há propria-mente uma orientação única da New Age. Dir-se-ia

1 J. Gordon Melton, New Age Encyclopedia, Gale Research Inc., Detroit, p. XXVI;

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até que não existe qualquer tipo de orientação bem definida, mas um consenso pouco vinculante sobre aspectos muito importantes do mundo e do homem, como:- o cosmos ser um todo orgânico, animado por uma Energia (Alma ou Espírito);- existirem entes espirituais que fazem de mediadores;- os seres humanos conseguem ascender a esferas supe-riores invisíveis e controlar a sua vida além da morte;- há um “conhecimento perene”, prévio e superior a todas as religiões e culturas;- para atingir essa sabedoria, é preciso seguir mestres iluminados 2.Não é uma linguagem simples o que aí encontramos. As referências astrológicas surpreendem-nos, porque é difícil aderir a esse mundo isento de rigor científico. E as afirmações sobre o cosmos e os entes espirituais recordam-nos o tema do gnosticismo dos primeiros séculos do Cristianismo. Aliás, o Papa João Paulo II, entrevistado por Vittorio Messori3, observa que a New Age “é apenas um novo modo de praticar a gnose, isto é, aquela disposição de espírito que, em nome de um profundo conhecimento de Deus, acaba por perverter a Sua Palavra, substituindo-a por palavras que são apenas palavras humanas”.

O HOMEM SEGUNDO ALGUMAS PERSPEC-TIVAS DA NEW AGE

Sob o ponto de vista antropológico, a visão da New Age continua a ser pouco credível sob o prisma racio-nal. Sigamos neste assunto uma fonte já aqui citada: 4 “ A pessoa aperfeiçoa-se segundo a ordem individual de valores: autocria-se ou autoliberta-se. Acede à iluminação através de uma procura não racional do conhecimento profundo (esoterismo) e, em muitos casos, de uma procura de poder (magia ou ocultismo). Para compreender o seu lugar no cosmos deve fazer uma viagem, que é uma psicoterapia: não há pecado nem salvador, existe uma consciência imperfeita que procura auto-superar-se mediante técnicas psicofísicas. Parte de etapas preparatórias (meditação, harmonia física, libertação de energias de auto-cura). Faz ex-periências de expansão da mente (ioga, zen, meditação transcendental, exercícios tântricos) para a iluminação. São “experiências-cume (limite)” (reviver o próprio nascimento, viajar até aos confins da morte, o bio-feedback, a dança, os estupefacientes e tudo o que possa provocar um estado alterado da consciência) que conduzem à unidade e à iluminação. Essa unidade

coincide com o regresso à Mente única, o Eu superior, do qual somos uma sombra ou sonho, e que contém as recordações de (re)incarnações anteriores .O que acaba de se citar não pertence ao âmbito da nossa racionalidade. Requer experiências que a põem de parte ou a ignoram. E exige a crença em certas “realidades” que estão por demonstrar: reincarnação, mente única, etc. Para se atingir o objectivo desse conhecimento de unidade e iluminação percorrem-se corredores suspeitos e sem verosimilhança. Mas será isso verdadeiro conhecimento? Não decerto o que nós podemos obter através dos recursos naturais que pos-suímos para esse efeito. Por isso, a New Age, ou quem, dentro dela, defende tais metodologias, acaba por esquecer o homem na sua identidade natural, para o transformar num ser mais ou menos místico, capaz de aventuras de subjectivismo eventualmente reconfor-tantes, embora de difícil transmissão para quem quer perceber o que é o homem e o mundo que o envolve em todos os seus aspectos.

Deus

Quanto a Deus, a New Age embarca numa concepção difícil de definir, ao considerá-lo uma energia impes-soal, uma unidade cósmica, a alma do mundo. Nada tem de pessoal e muito menos de transcendente. Talvez porque não seja uma concepção teocêntrica, mas antropocêntrica, se não coisifica totalmente a divindade, é porque não sabe bem o que é, limitando-a numa penumbra enigmática. Tudo é vago, tudo per-tence a um horizonte de afirmações subliminares, que se abrem à crença – e não tanto à racionalidade, mais exigente e comprovativa -, de quem se decide a aderir. E o mundo? É sobretudo energia de carácter espiritual, que se confunde ou não se distingue do Deus que, ao que parece, é o princípio que o anima, enquanto sua alma. O tom anti-racionalista da New Age leva o homem, perante as “realidades” que apresenta, a procurar, não propriamente conhecê-las e compreendê-las, mas a experimentá-las. O que disso sabe não provém dum discurso que nos elucida, mas dum fundir-se vital-mente com elas, mesmo pontualmente, porque causam paz, tranquilidade e, simultaneamente, a impressão de que se perfurou nos mistérios mais profundos da nossa existência. O reviver o nosso nascimento, o comu-nicar com o mundo do além, o saber o que se passa connosco depois de nos enterrarem num cemitério, enfim, o desvendar tudo aquilo que a nossa curiosi-

2 Pedro Gil, Cristo ou New Age?, Texto da Conferência proferida no Oratório de S. Josemaria, 19/07/05. / 3 (3) João Paulo II, Atravessar o limiar da esperança, p.86 / 4 Pedto Gil, Cristo ou New Age?, Texto da Conferência proferida no Oratório de S. Josemaria, 19/07/05.

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dade gostaria de saber, não é apelativo? Se o logramos de um modo que nos contenta e permite falar dessa ex-periência como de uma viagem a um país exótico, que os outros desconhecem, que mais queremos? Ouçamos, a este respeito, o Cardeal Ratzinger, actual Bento XVI: A New Age quer oferecer um modelo totalmente anti-racionalista de religião, uma moderna ‘mística’ em que o absoluto já não pode ser acreditado, mas pode ser experimentado. Deus não é uma pessoa que está diante do mundo, mas é a energia espiritual que invade o Todo. A redenção, assim, estará em desa-marrar o “eu”, em imergir totalmente na exuberância do que é vital, no retorno ao todo. Procura-se o êxtase, a embriaguez do infinito, que pode dar-se na música embriagante, no ritmo, na dança, na estridência de luz-es e sombras, na massa humana. Os deuses regressam. Eles parecem mais credíveis do que Deus. Renovam-se os ritos primitivos em que o “eu” se inicia no mistério do Todo e se liberta de si mesmo 5.A visão da New Age surge aqui circunscrita a um “modelo totalmente anti-racionalista de religião”. E é certo. Contudo, não podemos separar as concepções religiosas do universo do conhecimento humano. Este reflecte o que se passa na sua dimensão de princi-pal instrumento que o homem tem para abordar a re-alidade e tudo o que a ela diz respeito. Nesta perspec-tiva, se a New Age se apresenta como um fenómeno religioso, ele enquadra-se, como acabámos de salientar, nos quadros força do conhecimento humano. Na actualidade, depois do mundo moderno ter exaltado a razão como a principal – e em tantos casos única - fonte credível de tudo aquilo que era possível a nós desvendarmos, surge como um mundo cansado da sua acção e das suas regras para bem conhecer e compreender, aberto a outras fontes de informação, que não primam, repete-se, nem pelo rigor nem pela evidência das conclusões a que chegam. Talvez por isso, a New Age não apresente uma única orientação bem definida. Navega num mar de sug-estões que só podem convencer quem realiza determi-nadas experiências. Ao serem subjectivas e obscuras, pelo menos para quem está de fora e a tenta entender, não convence - surpreende. E cativa muita gente que gosta do numinoso e do secretismo, agora como nos séculos anteriores. Daí que ressuscite o que já se dava por superado, ou pelo menos, acantonado no esconso das sociedades fechadas, como o gnosticismo, o teosofismo e até a maçonaria em alguns dos seus ritos sigilosos e iniciáticos.E voltamos ao ponto de partida, afirmando, no en-

tanto, que a New Age, iniciada em força nos Estados Unidos da América e daí distribuída generosamente pelo mundo ocidental, tanto quanto parece, deixou de ser moda na sua terra de origem, mas continua a sua saga por outros horizontes geográficos. O seu sucesso não se deverá, de facto, a um certo cansaço do pen-samento ocidental, que a aceita por força de alguma exaustão da sua própria contextura e da sua confiança nas suas possibilidades? Parece-se um pouco com a situação daqueles filósofos gregos, dos tempos de S. Paulo, que, no areópago da velha Atenas, não faziam outra coisa do que ouvir novidades juntamente com o povo e os curiosos de ocasião. Tinham deixado de ser criativos. Por isso, enchiam-se com aquilo que lhes tra-ziam de fora. Não produziam, limitavam-se a importar o que lhes era oferecido.Para se chegar a este estado de coisas, é necessário deixar de acreditar nas virtualidades reais do con-hecimento chegar à verdade. Tudo se relativiza: o que eu penso como verdadeiro, podes tu não pensá-lo. A “verdade” é uma questão subjectiva, não objectiva. Confunde-se certeza com verdade ou, talvez melhor, com mera opinião bem formulada ou exposta com aquilo que basta para eu assentir.A New Age não é nem rigorosa nem original, mas apenas apelativa. E para quem? Para quem deixou de se preocupar seriamente com a verdade e, repetimos, o rigor das possibilidades do conhecimento humano. No “mercado” das ideias e das teorias não prevalecem as mais congruentes e as mais fundamentadas. Vingam as que atraem, mesmo se, já atrás se sublinhou, têm bases precárias, alicerces esquisitos e demonstrações subjectivas e pouco claras. Não se prova o que se ex-põe; basta experimentar e relembrar com entusiasmo e convicção essa experiência como algo que se viveu ou acredita pessoalmente. É o mundo do subjectivismo, que tem como conse-quência o relativismo radical e a debilidade aceite quase como um dogma da nossa razão para conhecer, compreender e explicar a realidade.

1 J. Gordon Melton, New Age Encyclopedia, Gale Research Inc., Detroit, p. XXVI;2 Pedro Gil, Cristo ou New Age?, Texto da Conferên-cia proferida no Oratório de S. Josemaria, 19/07/05.3 João Paulo II, Atravessar o limiar da esperança, p.864 Pedto Gil, Cristo ou New Age?, Texto da Conferên-cia proferida no Oratório de S. Josemaria, 19/07/05.5 Cardeal J. Ratzinger, Conferência no encontro dos presidentes da CELAM, México, Novembro 1996.

5 (5) Cardeal J. Ratzinger, Conferência no encontro dos presidentes da CELAM, México, Novembro 1996.

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RecordandoMáRiO DE MENESES SANTOS(18/8/1922- 22/12/2007)

Vanda Meneses Santos e Cristina Meneses reis

“A maior parte das vidas desaparecem. Uma pessoa morre e, pouco a pouco, todos os traços dessa vida desaparecem. Um inventor sobrevive nas suas inven-ções, um arquitecto sobrevive nos seus edifícios, mas a grande maioria das pessoas não deixa monumentos nem realizações duradouras [...]Uns quantos objectos, uns quantos documentos, um nebuloso sortido de impressões que deixamos noutras pessoas. Invaria-velmente, essas pessoas contam histórias acerca da pessoa que morreu, mas, a maior parte das vezes, há confusões de datas e omissões de factos, de modo que a verdade vai sendo cada vez mais distorcida e, quando chega a vez de essas pessoas morrerem, a maior parte das histórias desaparecem com elas.” Paul Auster, As Loucuras de Brooklyn

Esta é uma das últimas fotos do meu pai, do Verão pas-sado. Foi tirada pela minha filha Cristina. As palavras são dele; estavam na capa de uma conferência que fez em 1954, no Clube da Raret. Quando ele faleceu, a Cristina fez esta montagem, incluindo a sua assinatura, tirada já não sei de que cartão. O meu pai chamava-se Mário João de Meneses Santos, mas assinou sempre assim - Mário de Meneses Santos - nessa letra ilegível que arreliava quantos tinham de lhe passar os textos à máquina. O meu colega Lemos pedira-me que repetisse a confer-ência dele, mas eu optei por resumi-la e numa primeira parte falar sobre o meu pai, sobre a sua carreira e sobre o seu contributo para o humor em Portugal.

Um homem dos sete instrumentos

O meu pai foi o homem dos sete instrumentos – foi locutor de rádio e produtor, jornalista, publicitário, assistente de chefe de tráfego na Radio Free Europe, crítico de cinema e de espectáculos, redactor desport-ivo, cantor num conjunto musical, director de relações públicas no Benfica, importador, humorista e um dos fundadores dos Parodiantes de Lisboa. De formação

académica, o meu pai era analista químico (formado no ISEL) e isso foi aquilo que ele menos tempo fez. Em 1938, com 16 anos, começa a fazer rádio no liceu Pedro Nunes, através do professor de Química, Dr. Carlos Cerdeira Guerra. O técnico de rádio nessa altura era Armando Cortez, que ainda ninguém previa que viria a ser actor. Em 1940, acaba o liceu, mas con-tinua por lá a fazer rádio, como locutor e produtor. Irá ser locutor até aos anos 60.Por essa altura do liceu, o meu pai tem um conjunto musical com o improvável e politicamente incorrecto nome de Siô Minesis e sua Genti, constituído por um grupo de amigos negros; o único branco era o meu pai, e daí o nome. Ficaria ligado toda a vida a pelo menos um dos elementos, o nosso querido Boboy ( Joseph Monte, Americano de origem cabo-verdiana, falecido em 1997), que considerava um irmão. O conjunto can-tava em revistas e fazia tournées. Chegaram a acom-panhar Maria Sidónio e a fazer a primeira parte de uma revista em que cantava também Amália Rodrigues, em início de carreira.O meu pai já escrevia por essa altura. Começou a pub-licar muito cedo, aos dez ou doze anos de idade, num suplemento da revista “Sr. Doutor”. Como humorista, escreveu no Sempre Fixe, no Riso Mundial e, claro, na Bomba, de que falarei mais adiante. E, finalmente, nos Parodiantes, atzzé ao início dos anos 90. Como jornalista, chegou a colaborar em 12 jornais e revistas ao mesmo tempo - entre eles, a “Eva”, a “Re-nascença”, o “Diário Popular”, o “Século Ilustrado”e o “Papagaio”, onde escrevia contos infantis. E foi crítico de cinema no jornal “Acção”.Aos 24 anos, em 1946, surge “A Bomba”, um jornal humorístico feito com dois amigos do tempo do liceu (ambos já falecidos): Manuel Filipe Costa Rodrigues (editor e proprietário) e o Dr. Mário Ceia , médico, que era o director do jornal e escrevia com imensa graça. Quando começaram as emissões radiofónicas da Bomba, era o Dr Mário Ceia que ensaiava todos os colaboradores radiofónicos (entre eles a minha mãe). O meu pai era o chefe de redacção. Ninguém ganhava

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um tostão na altura e divertiam-se tanto ou mais do que os ouvintes.

Da APA aos Parodiantes de Lisboa

Também em 1946, começam os Passatempos APA- Agência de Publicidade Artística – que vêm a ser os percursores dos espectáculos radiofónicos em Portu-gal. Começam modestamente, na Casa da Comarca em Arganil, com Olavo d’ Eça Leal como locutor e depois passam para o Éden Teatro. Têm um sucesso enorme! Faziam-se grandes filas para comprar bilhetes...É aqui que nascem e actuam grandes figuras do espe-ctáculo nacional – Cármen Dolores, Rui de Mascar-enhas, o Conjunto Sem Nome (foi o meu pai que lhe deu o nome, porque nunca mais encontravam um de que gostassem), o Trio Odemira, Maria Clara, João Villaret, Odir Odilon, Humberto Madeira e também estrelas estrangeiras. O meu pai começou na APA como locutor em 1949, aos 27 anos, com Pedro Moutinho, Miguel Simões e Tani Belo, que também trabalhou com o marido, Luís Filipe Costa, nos programas do pai no RCP. Na APA, ele foi também autor de textos, chefe de locutores/apresentadores e mais tarde director de produção. Aqui o meu pai ganhou inúmeras fãs, que lhe escrevi-am cartas entusiastas. Como ele não tinha tempo para responder (e suspeito que também não tinha paciên-cia), a minha mãe encarregou-se disso; e tão bem o fez que as fãs passavam a escrever-se com ela... Houve umas ouvintes de Odemira que vieram de propósito a Lisboa para conhecer o meu pai – e a minha mãe – e trouxeram até um casaquinho que tinham feito para a minha irmã Vera, então bébé. O meu pai permanece na APA como produtor, até 1951, e depois, numa fase mais curta, entre 1954 e 1955. Como locutor, ele entra para o Rádio Clube Portu-guês em 1948, cremos que para substituir Fernando Curado Ribeiro e aí permanece até 1957. Como locu-tor, fazia muitos exteriores em locais de espectáculo, como boites e casa de fado e no Casino Estoril, onde apresentava a festa de fim de ano. Ás vezes, as fadistas esqueciam-se das letras dos fados, com os nervos, e o meu pai improvisava letras no momento para elas cantarem em directo. Levou muitos artistas para a rádio, pela primeira vez, como por exemplo o Segundo Gallarza, que ele tinha conhecido numa boite na linha do Estoril e assim ajudou a lançar. Como produtor independente, com publicidade própria, o meu pai

mantém-se ligado ao RCP até Março de 1966. Tinha vários patrocínios publicitários – a Arco Portuguesa, dos pneus Goodyear, a Ovomaltine, a Lanalgo “das três entradas para uma saída feliz” (slogan dele) e a água do Vimeiro, que revolucionou a sua imagem nos anos 60 com o famoso slogan “a saúde está primeiro, beba água do Vimeiro”, que é também da autoria do meu pai. Entretanto, em 18 de Março de 1947, exactamente três anos antes do nascimento da primeira filha, surgem “Os Parodiantes de Lisboa”; no seu último CV, escrito há mais de quinze anos, o meu pai dizia “fui neles (nos Parodiantes) o iniciador, o autor da ideia, o primeiro Director”.Nos anos 60, foi o primeiro Public Relations do Sport Lisboa e Benfica e viaja bastante com a equipa. Organizava o material de propaganda a distribuir no estrangeiro, os presentes oferecidos a dirigentes, joga-dores e clubes que o Benfica enfrentava, e ocupava-se da recepção às equipas que vinham jogar no nosso país - dos prémios à organização dos banquetes(incluindo a escolha das ementas!). É igualmente redactor desport-ivo, escrevendo sobre inúmeras modalidades. Guardo disto a memória de o acompanhar com as minhas irmãs e de entrarmos nos estádios de carro - o que me parecia uma coisa transcendente – graças a um feíis-simo cartão que se punha no tablier e onde, em letras garrafais, se podia ler a palavra mágica: Imprensa.No fim da sua carreira, o meu pai geriu o seu negócio de importação, até ao fim da década de 70 e escreveu para os Parodiantes, até 1992.

Humorismo e censura1

Quando o meu pai fez esta conferência, em 1954, já publicava há 20 anos. Nessa altura e até à última entre-vista que deu à Voz de Paço de Arcos, em Fevereiro de 2004, o meu pai definia o humorista como um neuras-ténico ser vivente que pretende divertir o público, como o palhaço que faz do riso um ofício legalmente reconhecido com Sindicato, Caixa de Previdência e todos os organ-ismos que lhe são inerentes. Disse de si, nessa última entrevista, que era um ser triste, neurótico, como todos os humoristas que se prezam. Estas afirmações, no en-tanto, não eram mais do que o exercício do seu humor – o meu pai era extremamente calmo (nunca o ouvi sequer levantar a voz) mas de uma graça constante e subtil. Não era um indivíduo esfusiante, mas era bem-disposto e de sorriso fácil. Nessa conferência, o meu pai atreveu-se a falar sobre

1 Atribuí itálico à “voz” do meu pai nesta segunda parte

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a censura, o que exigia uma certa coragem em 1954. Cheguei a correr riscos nessa profissão. Ser humorista no nosso país é uma perigosa tarefa, sujeita ao censo de funcionários públicos que estipulam pontos con-siderados tabus e excedem-se em zelo compreensivo, muitas vezes consequência de não atingirem a graça e procurarem nas entrelinhas uma prosa sofismada, que só existe nas suas mentes obcecadas pelo cumpri-mento rigoroso do dever. E mais adiante acrescentava, Foram considerados desde longa data como proibidos em humor, determinados assuntos que, pelo natural re-speito que tenho às coisas secretas, não revelarei...Direi apenas que, a acrescentar a eles, se foram juntando outros e tempo houve em que nem sequer podia fazer graça com os três decilitros de azeite do racionamento. Mais adiante afirmava, Já me vi na situação desesperada de director de um jornal (a Bomba?) que acabou à míngua de as-sunto para fazer humor.Sobre o humorismo, ele afirmou, O humorismo, meus senhores, é a mais perigosa arma que um governo tem de enfrentar, seja ele o mais forte.

Um escritor sem livros

O meu pai não se considerava um escritor, porque não publicava livros. E ele achava que um escritor era um homem que publicava livros, exceptuando-se o caso da lista telefónica...Isto mesmo ele disse a uma turma minha, no início dos anos 80. Com alguma surpresa, a ideia de ir à minha escola (nessa altura, a Afonso Domingues), agradou-lhe imenso e a aula correu muito bem, com ele a explicar aos alunos que embora escrevesse como profissão, não levava nenhuns livros debaixo do braço – era um escritor sem livros. Na conferência de 1954, afirmou que tinha estado à espera da campanha contra o analfabetismo para publicar a sua obra e agora aguardava apenas que o trabalho tipográfico baixasse de preço.Nesta conferência, o meu pai menciona o cinismo, a troça, a sátira, o sarcasmo como formas de humor com características especiais – sem os definir, diz no entanto que o cinismo e o sarcasmo, aliados à sátira, tornam o humor perigosos, não só para quem o es-creve, mas também para quem é alvo dele. Acrescenta que há tantos tipos de humor como classificações em geologia ou botânica.Quanto à construção do humor, o meu pai escreve que ele é feito de pedaços de vida, como que um reflexo da vida, um espelho que nos dá a imagem do momento,

aquela que justamente se põe frente a ele. Escreve ainda que a técnica de fazer humor se baseia em três elementos: a) a graça pela situação das personagens perante o enredo ou história;b) a graça pelo duplo sentido das expressões empregues;c) a graça pelo trocadilho.Quando preparei esta comunicação, recordei-me de repente de estar a estudar e de ele entrar na sala para me contar o que tinha acabado de escrever – às vezes fazia isto, quando algo lhe agradava especialmente – e era uma situação entre um merceeiro e uma cliente, em que se discutia o preço do pato, que acabava com o lojista rematando “ó minha senhora, contra patos não há argumentos”... O pai apreciava imenso um bom trocadilho.De entre os humoristas portugueses, refere Ernesto Rodrigues, Félix Bermudes, João Bastos e Eduardo Schwalbach, que escrevia para o Parque Mayer. Achava que os Portugueses tinham um humorismo muito nosso – a sátira nacional, o duplo sentido das frases, com uma certa brejeirice, e até o velho trocadilho eram típicas do humor português. Na época teatral que então findava, as peças mais aplaudidas no Teatro Maria Vitória tinham sido escritas por Portugueses, prova para ele de que o público aderia melhor ao nosso humor.Achava que o humorista tinha muito de conservador; embora pudesse evoluir e variar os seus temas, não desprezava a sua riqueza explorada mas não esgotada. Acreditava num humorismo que se baseava na crítica mordaz dos acontecimentos do dia-a-dia, tantas vezes tão acertado, tão demolidor que produz estragos que vêm a dar em benefícios sociais e exemplifica com os contratado-res: orgulho-me de ter contribuído para a sua morte, dada aliás por Portaria ministerial. O contratador foi dos fantoches mais trabalhados pelo humorista... e como o fantoche é imortal, ressuscitou mais tarde disfarçado de agência de bilhetes, justamente onde compram agora as entradas para o cinema ou para o teatro aque-les que deram cabo dos contratadores. E acreditava igualmente no papel do humor de simplesmente alegrar as pessoas e tornar esta vida mais fácil de levar. Esta vida, minhas senhoras e meus senhores, é um vale de lágrimas, alguém o disse. Se dermos um balanço anual ao deve e haver dos dias felizes e dos dias tristes, veremos que a vida nos fica sempre a dever uma grande soma de horas alegres. Os motivos do humor são arrancados à vida, para fazer esquecer esses próprios te-mas da vida real, que são dramas do dia-a-dia, contados a

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rir, escamoteando lágrimas e fazendo surgir gargalhadas...porque os fantoches não choram e quem os movimenta guarda mágoas consigo...

Os vários humores nacionais

Nesta conferência o meu pai falou longamente de muitos humoristas em todo o mundo, incluindo até trechos de alguns deles. Em França, destaca Tristan Bernard; em Itália, Giovani Mosca substitui nas suas preferências Pitigrilli, que tinha renegado a sua obra. Na Hungria, menciona vários autores e designa o humor húngaro como um humor de patíbulo, humano, real, amargo. Em Espanha menciona desde Poncela a Mihuras, autor da revista Codorniz, que ele consid-erava a mais avançada revista de humor que se publica em todo o mundo. Refere Shaw, Kipling , Jerome K Je-rome em Inglaterra. Menciona ainda o humor alemão e o polaco. A seguir menciona os Russos, brincando que aquele ambiente era o melhor para dizer deles qualquer coisa – Tchekov, Avertchenko e Gorki são para ele o Kremlin do humor. E continua, É curioso que o humorismo russo se assimila com facilidade, ao contrário da política que é muito indigesta... Fala ainda do humor em vários países de todo o continente americano, destacando o seu grande mestre – Mark Twain.Sei que tinha lido bastantes humoristas, mas penso que se tinha preparado especialmente bem para esta conferência. Ele próprio o afirma, Consultei três dúzias de livros para alinhavar estas tortas linhas. Em Portu-gal, refere desde Gil Vicente aos seus contemporâneos, Olavo d’Eça Leal, Nelson de Barros e António Cruz. (Em 2004, na entrevista à Voz de Paço de Arcos, ele destacava Armando Ferreira (“Lisboa Sem Camisa”), André Brun e Stau Monteiro).Sobre A Bomba, surgida em 1946, afirmou Fizemos (Mário Ceia e ele) uma nova escola de humoristas, que revelou Santos Fernando, Ferro Rodrigues, Tristão Jorge, Rui Andrade e Manuel Puga. À data, nenhum tinha publicado nada; todos colaborámos intensam-ente com a Rádio e tivemos o prazer de ver revistas nossas assinadas por outros autores...Achava que era difícil a nova geração de humoristas vingar, enquanto a velha não pedisse reforma ou morresse. Quantas coisas escritas pelo meu pai e outros nunca foram reconhe-cidas? Só já adulta, e perfeitamente por acaso, ele me disse que era dele a letra do célebre fado “andava a desgraçadinha no gamanço”, que eu conhecia desde

pequena e não fazia ideia de quem tinha escrito... Tive o grato prazer de levar comigo o original, para esta pequena comunicação. Datado de 1946, fazia parte de uma revista – “Isto Agora É Outra Loiça” - que nunca foi à cena, mas que teve alguns quadros “pilhados” e exibidos como se fossem de outros.Já perto do final da sua conferência, o meu pai cita Pitigrilli: ”Se sobre o bicarbonato de sódio do bom senso, se derramar o ácido tartárico do espírito crítico, brota a efervescência da ironia.” Penso que esta era uma definição que muito lhe agradava, ainda para mais sendo ele próprio químico.Terminei a minha comunicação com as palavras com que o meu pai terminara a dele, em 1954, no Clube da Raret. E com elas encerro também este pequeno texto que o pretende homenagear:

Se foi possível dar-lhes ao cérebro e ao fígado um pouco de alívio por meio das palavras proferidas, há que consid-erar-me satisfeito e feliz (...). Se, pelo contrário, consegui aborrecer Vossas Excelências, também não fiz mais do que a minha obrigação de conferencista. Grande parte deles tem feito o mesmo e como nem em tudo se pode ser original, é até como os demais que eu fecho o que trouxe para lhes dizer: Minhas senhoras e meus senhores, tenho dito!

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Em frente da Ermida da Senhora do Monte encontra-se um obelisco tido algumas vezes por comemorativo da conquista de Lisboa aos Mouros ou por Padrão da Monarquia, e que não é uma coisa nem outra. Mas, então, o que é que ele comemora e por que motivo está ali?Para encontramos a explicação de tais questões é, no entanto, necessário recu-armos, com efeito, à tom-ada de Lisboa, em 1147. E porquê? Porque na armada de cruzados que auxiliaram D. Afonso Henriques nessa empresa vieram quatro er-emitas Agostinhos que se estabeleceram no território recém-conquistado, em local que viria a ser a zona do Almocavar (cemitério mouro) e, depois, o Camin-ho do Forno do Tijolo, junto de um alpendre sob o qual se conservava a cadeira de pedra que a tradição dizia ser aquela em que, durante o domínio romano, se sentava o bispo São Gens quando evangelizava o povo que acorria a escutá-lo. Este São Gens teria sido o segundo bispo de Lisboa (Olisipo), martirizado em 66 ou, se-gundo outra versão, em 353 , e foi durante largos séculos objecto de fervoroso culto em Lisboa.Em 1243, sendo superior da comunidade o italiano João Lombard, uma tal D. Susana, senhora nobre e de vastos bens, proprietária do monte depois chamado de

O OBELiSCO E A ERMiDA DA SENHORA DO MONTE eduardo Sucena

São Gens e dos terrenos circunvizinhos, resolveu fazer doação deles aos Agostinhos, que estabelecidos no sopé daquele monte após a sua chegada a Portugal, em sítio então tido por insalubre, se transferiram para lá. Com a ajuda daquela dama e de contribuições de out-ros devotos construíram então uma ermida, hospício e alojamento para a sua comunidade, que entretanto

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crescera em número de religiosos. Mas o novo local não se mostrou também propício, porque sendo alto e arejado tinha os inconvenientes de ser ventoso e sem água, o que D. Susana procurou remediar mandando fazer à sua custa uma cisterna. Os Agostinhos, reunidos em capítulo em 1256, e reorga-nizados, decidiram porém mudar-se, uma vez mais, em 1271, para terreno também doado, no sítio de Almofala (hoje Graça), mais a SE, deixando para trás a Ermida do Monte e nela a cadeira de São Gens que para lá haviam levado.O obelisco que se vê em frente daquela Ermida fora inicialmente erigido para memória de, naquele local de Lisboa, ter sido a primeira sede dos Agostinhos em terra portuguesa. É isso que diz a respectiva inscrição, a qual reza assim:

VLISIPPONE HIC/ AVGVSTINEN-SIVM/ PRIMA SEDES AB/ ANNO 1148.

Que o ano de 1148 tenha sido o do estabelecimento dos Agostinhos no primitivo local, não está em causa. Todavia, aquela inscrição levanta um problema: em que data foi erguido o obelisco? Em 1148 decerto não foi, porque então vigorava a era de César e, portanto, a data nele gravada teria de ser a de 1186 em algarismos romanos (MCLXXXVI). Consequentemente, teria sido após a data da entrada em vigor em Portugal do calendário gregoriano (1422). Mas sobre isto nada se sabe ao certo.No obelisco está gravada outra data, que tanto pode ser 1602 como 1662. Tratar-se-á da data da sua inaugu-ração ou da transferência para o local onde está hoje? Em 1602 reinava (desde 1598) Filipe II (III de Espan-ha) e em 1662 ( Junho) cessara a regência da rainha D. Luísa de Gusmão e começara o governo de D. Afonso VI. Será que algum desses monarcas esteve relaciona-do com qualquer desses eventos? Ou eles dever-se-ão a meras providências municipais ou de privados? Com a mudança dos Agostinhos para terreno da actual Graça, então ainda fora de muros, onde vieram a edificar, em 1291, o seu convento e igreja, que em

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1305 tomou a invocação de Nossa Senhora da Graça, da qual o sítio recebeu o nome, a Ermida do Monte de São Gens ficou ao cuidado de uma confraria para o efeito criada – a Corporação dos Escravos de São Gens e Nossa Senhora do Monte, de que existia o Livro dos Irmãos, iniciado em 1791. E, como a Ermida não pudesse continuar aberta para além das horas do culto, a confraria mandou colocar no alpendre a cadeira tida como milagrosa pelos fiéis e, em especial pelas mulheres grávidas, que nela se sentavam para terem um bom parto .Acontece, porém, que os Agostinhos, em 1306, quiser-am reentrar na administração da Ermida, recorrendo para isso ao bispo D. João Martins de Soalhães, que lha concedeu sem prejuízo da existência da confraria, pas-sando aqueles a manterem nela um capelão (eleito em capítulo) e um donato.Há, depois, um hiato na informação. Sabe-se que a comunidade dos Agostinhos estava próspera em 1551, ano em que tinha já 70 religiosos, e que de 1602 a 1613 foi capelão da Ermida Frei Francisco de Jesus, que escreveu um livro dos Milagres, que fez a Senhora do Monte até ao seu tempo [dele frade], e os de São Gens .O terramoto de 1755 não poupou a Ermida, que sofreu graves danos e foi provisoriamente substituída por outra construída em madeira. Mas a fé dos crentes não esmorecera com a cataclismo e, obtido o valioso patrocínio do contador-mor Plácido Castanheira, foi levantada a actual Ermida sob o risco do arquitecto Honorato José Correia, inaugurada em 1757, com alpendre, uma só nave de duas janelas laterais, coro alto, sacristia para o lado da Travessa das Terras do Monte e, para além da porta axial, uma outra lateral para o exterior. A capela-mor, revestida de painéis de azulejos azuis e brancos, setecentistas, com cenas da vida da Virgem, tem um retábulo barroco de talha dourada e, nele, uma imagem moderna da Senhora do Monte e, de cada lado, as imagens de Santo Agostinho e São Gens, vendo-se também dois tocheiros de talha dourada. Em edículas, de ambos os lados do arco tri-unfal, estão as imagens de Santa Luzia e Santa Bárbara. Num cubículo, à esquerda de quem entra está a cadeira de São Gens, então recolhida para o interior da Er-mida. Anos depois, um Breve do Papa Pio VI, datado de 30 de Setembro de 1796, concedia indulgências perpétuas, sob certas condições, aos fiéis devotos do culto de Nossa Senhora e São Gens.Para tornar o local mais aprazível, em 1815 os Agostin-hos plantaram no local ailantos, lódãos, amoreiras da

China, ulmeiros e outras árvores de que o ciclone de 1941 só deixou os ulmeiros que hoje lá se vêem com frondosa copa e fortes raízes expostas, pois as outras árvores são pinheiros mansos mais recentes. Para dessa memória dessa plantação foi gravada sobre a porta lateral da Ermida esta inscrição, hoje delida:

PATRIAE ARIBUS ET URBI, HOC NEMUSIN AMOREN DELECTATIONEM AUGUSTINIENSIPLANTARUNT ANNO MDCCCXV

Com a extinção, em 1834, das Ordens religiosas, cessaram as festividades anuais, a 8 de Setembro, e o Estado chamou a si os bens dos Agostinhos, entre os quais os terrenos adjacentes da Ermida e casas, que foram adquiridos em hasta pública pelo comerciante de ferragens Clemente José Monteiro, que também se encarregou de zelar pelo pequeno templo e pelo seu recheio. Por sua morte, ocorrida em 1848, a viúva, D. Henriqueta de Mendonça, voltou a casar com Man-uel Salustiano Damasceno Monteiro, que em 1857 recuperou a velha congregação sob o novo título de Irmandade de Nossa Senhora do Monte e São Gens, realizando-se novas obras em 1865.Posteriormente, foi construído um edifício onde teria sido a morada do capelão ou do guarda da Ermida, por Higino de Mendonça, sobrinho e herdeiro de D. Henriqueta de Mendonça, no qual residiu o sábio naturalista Dr. Ferraz de Macedo, contemporâneo e vizinho de Fialho de Almeida, que sobre essa vizin-hança escreveu um artigo nos Gatos . Da parte de cima desse edifício, hoje alterado e acrescentado, foi depois construído outro, também contíguo à Ermida – a residência Maia Magalhães, que em anos recentes foi lar da Associação de Solidariedade Social dos Profes-sores e onde funcionam hoje serviços da Segurança Social.Do inventário do recheio da Ermida recebido por Clemente José Monteiro já não constavam as relíquias que nela tinham existido, referidas por Frei António da Purificação na sua Chronica dos Agostinhos . E das valiosas peças referidas por Henrique Marques Júnior já lá não estão as doze telas com os Apóstolos, enco-mendadas a Joaquim Manuel da Rocha, nem o Senhor Jesus dos Enfermos proveniente do Hospital Real de

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Todos-os-Santos, que foi substituído por outro Cristo Crucificado. Persistem, porém, à esquerda de quem entra, o presépio de Machado de Castro ou da sua escola, restaurado em 1866 e, na sacristia, a imagem de Nossa Senhora da Graça, doada em 1858 por devotos em consequência de um voto por se terem livrado da epidemia que assolou Lisboa entre 1856 e aquele ano. Ainda na sacristia encontram-se as imagens de madeira dourada do arcanjo São Miguel e de Santo Agostinho, e nos altares laterais, além de outras imagens modernas sem valor artístico, as de São Sebastião, Santo António, São José e Santa Rita de Cássia. Da imagem original de Nossa Senhora da Visitação, que com o terramoto de 1755 ficara soterrada sem danos notáveis e fora reposta na Ermida de madeira, nada se sabe.

Em 1902 a Ermida foi sujeita a novas obras, passando a padroado da Coroa com o título de Real Ermida de Nossa Senhora e São Gens, e, em 1933, foi declarada de interesse público. Por essa altura foi também construído pela Câmara Municipal o miradouro que proporciona soberba vista sobre a zona ocidental da cidade.O culto, na Ermida, que esteve em anos recentes a cargo de frades beneditinos, é hoje assegurado pelo pároco da Graça. Resta dizer que no primeiro sábado de Julho se realiza, anualmente, uma procissão no exte-rior da Ermida, não já em honra da Senhora do Monte e São Gens como outrora, mas em honra do Sagrado Coração de Maria, cuja imagem ali se encontra.

Criatividade

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Inebriado mito, Endeusado

Em estranho ventre, Parreiraz de gozo, Límpida mistela

Colhida das entranhas De bravo mosto.

Seivas, de matizes dourados Roxos etilizados,

De gloriosas vitórias Cantas com ébrias esperanças

As lutas, Embriagadas Em perpétuas

Memórias.

2-09-2007

A Baco

LUGAR DA POESiAPoemas

de Celeste Pereira

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Apetece-me saltar!Correr mundo...

Com a infância solta ao ventoE, a liberdade no coração.

Sem impostos, sem pensar na vida

Solta, soltaNum salto longoOlhar o mundo

Sentir o seu som profundoApetece-me saltar!

Olhar para trás e ver a vidanum sonho

Sem Sócrates no sapatoSantana ou Durão.

Solta, soltaNum salto longoOlhar o mundo

Sentir o seu som profundoApetece-me saltar!

Sentir os olhos correrpor montes e valesNão saber de crises

ou de deslizes...

Quero saltar tudo issoabraçando amores

saboreando paixõese, de cabelos ao vento

Solta, soltaNum salto longoOlhar o mundo

Sentir o seu som profundoApetece-me saltar!

28 Maio 2005

Apetece-me saltar

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Elas, as árvores,fazem parte de nós.

São a sombra,o pulmão,

a vida.o pão

Árvores,

são o banco,descansodo corpocansado,

o psicólogoo médico

a alma

Árvores sãomurmúrio profundo,do vento que passa.

São leito,palco de coitos,

fervorosos...cantigas chilreantes

de vida

Árvores sãocasas

paus d’amparocajados de velhosmuletas amputas

o presenteo ausente

o horizonte

Árvoressão corbrilhos

dorberço

que conduzpela eternidade.

27-05-2008

As Árvores

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MulherÂmago, corpo,

Seio de alimento,Seiva pura de vida

Fermento

MulherTu, de peito rasgado

Pela luta de alvitrada dorQue consome, por vezes,

a alma.Corroendo partes de ti

Te esvazia o ventreTe criva no coração

Lanças desorientadasDe esperança.

Tu,cada vez mais mulher,

cada vez mais poderosaExplodes. Sôfrega de paz

Por momentos, o mundo cai.A teus pés, tudo parece ruir.

Acordas no intímo Aquela força regeneradora,

Capacidade perpéctua De reconstruir

guerra sem tréguasLutas Metamorfósicas Metastases enlutadas

MulherCorpos que se agitamLuzes que se acendem

De novoPelo poder da tua forçaPela génese do teu ser.

Tu és, e serásSempre,

EternamenteMulher!

24-05-2008

Mulher

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Quando era criança...

sonhava um mundo muito colorido tinha bonecas e, para elas, cada dia

seu vestido sonhava com príncipes, mágicos e

bruxinhas, com guerras de soldadinhos que

cabiam na mão!

Via o mundo rolar pela voz do poeta Gedeão e sua Pedra Filosofal

Brincadeiras de longos dias, de longas horas....

Aprendi a conhecer um mundo muito diferente do meu

Cresci. O mundo mudou! Hoje as horas não são mais longas,

nem tampouco os dias. E, o mundo não corou

As bonecas tornaram-se “Barbies” Com peso, conta e medida...

As guerras não são mais minhas. Soltaram-se da mão

Chegou a net ...E o mundo tornou-se uma aldeia

Empoleira-se à janelaapenas com a ponta dos dedos

Até as crianças pensam diferente, sonham diferente...

um carro ou uma boneca deixam de ter sentido em suas vidas

carregam nos olhos e nos desejos jogos de acção: fogos, bombas e

tiros sem canhão!

Definitivamente, o mundo mudou!

11.09.2004

O mundo mudou

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Olhar a vida, olhar a alma.Ver os espíritos rodearemnum rodopiante frenesimSentir o corpo estremecernuma paz vibrante de luz.

Olhar o amor... olhar as coisas.

Olhar um sem número de ava-lanches

Rasgar de sentimentos as emoçõesNo horizonte, guia-te o brilhoBrilho ofuscante das estrelas,das tuas estrelas. E tu, Olhas!

Olhas, no teu olhar penetrante.Despes a vida. Sangras a luz

Olhas a tempestade.Chamas a noite.

Tudo apenas com a força do teu olhar!

03-03-2004

Olhar

LUGAR DO TEATRO

CHUVA DE CORESUma estória de amor para crianças.

Texto inéditode

Onivaldo Dutra de Oliveira

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PERSONAGENS

ARCO-IRIS PAI - Sr. Guarda-Chuva

ROMÃO MÃE - D. Sombrinha

JULIANA PALMA AMARELA

CRAVO VERMELHO BRUXO

PRÓLOGO

ARCO-IRIS - Atenção! Por favor, muita atenção! Respirem fundo, fechem os olhos, ou melhor, abram os olhos, para poderem assistir a mais um grande espectáculo da terra. Esta peça conta a estória da família dos Guarda-chuvas e das Sombrinhas. Preparem os vossos corações porque a nossa estória vai começar. Como vocês já devem saber, a vida dos guarda-chuvas e das Sombrinhas não é nada fácil, principalmente nos dias de chuva. E a nossa estória vai girar em torno do amor da Sombrinha Juliana pelo Guarda-chuvinha Romão e do ódio existente entre Sr. Guarda-chuva e D. Sombrinha, seus pais. E sabem porquê? Tudo porque ela é uma linda sombrinha branca com tons cor-de-rosa e ele um escurinho e gracioso Guarda-chuvinha.Neste momento aparece Romão a entrar em casa todo molhado, a espirrar e a tremer de frio.

CENA I

ROMÃO - Atchim...Atchim...Atchim....

PAI - Romão, estás constipado outra vez!

ROMÃO (depois de mais um espirro) - Não suporto mais tantos dias de chuva, desta maneira vou ter que procurar o Dr. Guarda-chuva e se calhar vou levar uma pica.

PAI - Está quieto Romão! Sabes que a vida de um Guarda-chuvinha da tua idade não é fácil. Vou prepa-rar-te um chá. (dando-lhe uma toalha) Agora seca-te melhor...não te preocupes, com o tempo habituas-te.

ROMÃO - Quanto tempo papá?

PAI - Não demora muito, estás a crescer depressa demais. Já estás um homenzinho. (A entrar com o chá)

Bebe o chá que te vai fazer bem.

ROMÃO - Livra! Tomara que não demore bué de tempo, senão acabo com uma pneumonia.

PAI – Cala-te! Deixa-te disso miúdo, quero que penses no futuro, na vida que te espera, em breve arranjas uma namorada e vais deixar de pensar nessas parvoíces todas.

ROMÃO - (mais animado) Será?

ARCO-IRIS - A vida de um guarda-chuva não é fácil mesmo, como acabaram de ver. Será que a de uma sombrinha também é a mesma coisa? Chiu! Aí vêm elas.

D. Sombrinha dá uma aula a Juliana de como andar na corda-bamba.

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CENA II

MÃE - Vamos Juliana...agora filhinha! (animadíssima) E agora, Senhoras, Senhores e crianças aqui presentes. Com vocês... a sensacional... a graciosa... a magnífica equilibrista....Juliana!Aparece Juliana como se estivesse na corda-bamba, pálida, a morrer de medo, tenta andar e não consegue, começa a chorar, vai cair quando a mãe a segura.

JULIANA (A chorar) - Eu não quero aprender a andar na corda-bamba. Porque é que todas as Sombrinhas têm que fazer isso? Eu não quero mamã!

MÃE (indignada) - Calma filhinha. Já passou o susto. Tentaremos novamente.

JULIANA - Não! Não quero mãezinha.

MÃE - Claro que queres meu amorzinho. Vamos lá tentar novamente. (orgulhosa) E agora, aplausos para a magnífica, a mais graciosa e meiga de todas as som-brinhas: Juliana.

Juliana vai tentar novamente, mas desiste.

JULIANA - Não quero mãezinha.(quase a chorar) Não gosto de circo. A mamã sabe que o meu sonho é ser bailarina, quero dançar, dançar, dançar... Entra música, Juliana começa a dançar, a mãe fica desorientada... Juliana sai a dançar com a mãe a tentar interrompê-la.

ARCO-IRIS - E foi assim mesmo que tudo aconte-ceu...acreditem. Mas o destino existe meus amiguinhos e numa dessas manhãs lisboetas, chuvosas em que uma neblina paira no ar, lá estão eles. Felizes. Pois o destino fez com que se conhecessem e se apaixonassem. En-tretanto, o amor e o ódio sempre caminharam juntos...vamos ver o que irá acontecer.Aparecem D. Sombrinha e Juliana, a fazer compras na baixa...com muitos sacos e pacotes...entretanto, o Sr. Guarda-chuva e Romão aproximam-se, sem darem conta, delas. O Sr. Guarda-chuva dá um encontrão em D. Sombrinha, que deixa cair todos os sacos e pacotes no chão.

CENA III

MÃE - Não vê por onde anda, seu preto?PAI - Desculpe lá minha senhora, falou comigo?MÃE - Mas que disparate. Além de tudo é surdo.PAI - A Madame é que parece ser cega! Não vê por onde anda?MÃE - Hoje, realmente não devia ter saído de casa...o que uma senhora como eu...tem que suportar...PAI - Penso que não estou a ouvir bem... Eu é que devia usar óculos escuros contra essa brancura que me fere os olhos. Sua...Sua...

Passam a discutir somente através de gestos, ex-pressões, movimentos...como num filme mudo. Enquanto isso Romão aproxima-se de Juliana.ROMÃO – Olá!JULIANA – Olá!ROMÃO (apaixonado) - És linda!...És...JULIANA (com um risinho, a cortar) - Obrigada!ROMÃO - Tão bonita que pareces um pauzinho de algodão doce.JULIANA - E tu és tão escurinho que mais pareces um chocolate.ROMÃO (A aproximar-se mais dela) - Gosto muito dessa tua cor branca.JULIANA (a sorrir) - Também gosto dessa tua cor morena. Faz-me lembrar a noite Nos meus sonhos...MÃE (interrompendo) - Juliana! Anda cá! Para perto da mamã. E quanto a você fique sabendo que a sen-hora sua mãe é que estava cega, quando pôs uma coisa destas no mundo!

Continua a falar e a gesticular com ele.

JULIANA - Tenho que ir. Não te esqueças: vivo na Rua das flores, numa casa branca e vermelha que tem um candeeiro à porta. Adeus!Juliana corre para a mãe que a segura com força.

PAI - Calma minha senhora! Cuidado para não cair das varetas cheias de ferrugem. (Elas saem, a mãe está muito irritada. Romão fica a dizer adeus a Juliana, manda beijinhos) Nem penses! Não vês que ela é branca, Romão? E tem uma mãe...insuportável!

ROMÃO (sonhador) - Ela é linda!

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PAI - É! Mas a mãe dela é uma mal-educada.

ROMÃO - (aéreo) - Ela parece um pauzinho de algodão doce.PAI - Estás parvo, ou quê? Podes esquecer meu rapaz. Prefiro ver-te molhado e a tremer de frio, com 39º de febre...do que na companhia daquela sombrinha. Está calado! Vamos! Saem. Entra o Arco-Iris.

CENA IV

ARCO-IRIS (a imitar Romão) - Ah! Tu és linda...pareces um pauzinho de algodão doce (a imitar Juli-ana) E tu és tão escurinho como um chocolate. Choco-late? Preto e Branco...claro e escuro...Luz e sombra. Porque é que eles se preocupam tanto com a cor um do outro? Por falar nisso... já olharam para o céu hoje para ver se ele continua azul? E o mar...de que cor é o mar? E os olhos...qual são a cor dos teus olhos? Se não sabes...podes perguntar à mamã. Já imaginaram o que seria do azul, se toda a gente gostasse do vermelho ou do amarelo, ou mesmo do verde. Juliana está apaix-onada e Romão sem sombra de dúvida também. (ar apaixonado) Ah! O amor, o amor...Sai a suspirar e a cantarolar uma canção. Juliana que estava a dormir...desperta ao som de uma caixinha de música.JULIANA (a despertar) Ah! Tive um sonho tão lindo esta noite. Eu estava à janela do meu quarto e ele aparecia... montado num cavalo branco...como um príncipe...vinha a galopar...a galopar... e atirava-me uma flor...quando apanhei a flor ela começou a despetalar-se sozinha, pétalas de todas as cores, vermelhas, azuis, verdes, amarelas, vermelhas, lilazes. Bem me queres, mal...Bem me quer! Ele é tão lindo, acho que estou apaixonada. (canta uma canção)

Se esta rua, se esta ruaFosse minha.Eu mandava. Eu mandava...ladrilharCom pedrinhas, com pedrinhasDe brilhante.Para o meu, para o meu

Amor passar!

Ouve-se um psiu, vindo de fora, ela corre até a janela.

JULIANA (à janela) - Ah! És tu. Não devias vir aqui...se a minha mãe aparece, vai ficar uma fera!ROMÃO - Deixa estar! Como é que te chamas?JULIANA - Juliana. E tu?ROMÃO - Romão. Chamo-me Romão.JULIANA - Sonhei contigo.ROMÃO - Nem dormi...fiquei a pensar em ti.JULIANA - É. Ai, se minha mãe te apanha aqui...ela mata-me.ROMÃO - Eu amo-te, Juliana.JULIANA - Não estás a brincar? Eu também...te amo...Ouve...

Continuam a conversar, como se combinassem algo.

CENA V

ARCO-IRIS - O amor. Viva o amor. E assim Romão e Juliana resolveram encontrar-se às escondidas e marcaram um encontro nas margens da Lagoa Azul. Enquanto isso.

CENA VID. Sombrinha procura Juliana pela casa.

MÃE - Juliana! Juliana, onde estás? Aparece filhinha, a mamã não pode brincar agora...temos que sair para ir ao circo. Mas onde se meteu esta miúda? Se não apare-ceres imediatamente não te levo mais ao circo, e podes dizer adeus ao andar na corda-bamba.

Juliana aparece com ar de quem estava a esconder-se.

JULIANA - Ah! Mamã. Não posso mais com o circo, a corda-bamba já me enjoa.

MÃE - Minha filhinha querida. A corda-bamba é uma arte tradicionalíssima na nossa família, portanto...Vamos ao Circo!

JULIANA - Não quero mamã. Já disse que tenho ton-turas, enjoos. Tenho pavor à altura.

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MÃE - Deixe de ser teimosa menina e vá já mudar as sapatilhas.

JULIANA - Está bem, mamã. Está bem.

CENA VII

Sr. Guarda-chuva procura Romão pela casa, encontra apenas um bilhete.

PAI - Romão! Romão! Romão! Mas que miúdo, onde será que se meteu? Romão...viste os meus sapatos? Eu não os encontro. (encontra o bilhete) “Papá, não quero magoar-te. Mas o papá, jamais iria concordar com o meu amor...somente porque ela é branca...ou talvez, concordasse...sei lá. Estou muito triste...confuso...e resolvi ir ao encontro dela...eu estou apaixonado, ou melhor, eu amo a Juliana. Papá, amo-te a ti também. Teu filho...Romão”. Ah! Meus Deus! Romão...Isto não vai ficar assim!

D. Sombrinha, entra no quarto de Juliana, a procurá-la novamente.

MÃE - Juliana, vamos. Já mudaste as sapatilhas? A esconder-se novamente...que malandrice. (encontra o bilhete) Um bilhete?! “Mamã. Espero que não fiques triste, mas fui ter com o meu amor...o Romão, lembras-te...aquele Guarda-chuvinha que encontramos na Rua das Flores? Não percebo porque odeias tanto os guarda-chuvas. Penso que nunca irás perdoar-me...por isso. Mas, eu estou apaixonada, quero dizer, eu amo o Romão. Mamã, amo-te também a ti...de todo o meu coração. Adeus. Juliana”. Juliana não podes fazer isso com a tua mãezinha filha. Juliana. Juliana. Eles vão-me pagar caro por isso!

CENA IX

Sr. Guarda-chuva e D. Sombrinha, encontram-se, estão frente-a-frente, para o duelo. Esta cena acontece num espaço indeterminado, deve ser toda coreografada em movimentos e gestos.

MÃE (quase a chorar) - Onde está o seu filho? Aquele,

aquele...

PAI - Aquele o quê? O meu filho tem um nome...chama-se Romão. Desculpe lá minha senhora...mas não tem o direito...

MÃE (cortando) Não tenho o direito. Você é que não tem o direito de se meter na minha vida, seu, seu, seu guarda-chuva. (chora)

PAI - Não tem mesmo direito. E pare de chorar...sua Sombrinha tagarela.

MÃE - Onde já se viu um Guarda-chuva preto, se fosse pelo menos um Guarda-Sol colorido.

PAI - A senhora é que é uma sombrinha horrorosa e velha.

MÃE - E o seu filho aquele chocolate crocante. Quem é que ele pensa que é?

PAI – E a sua filha aquele pãozinho sem sal.

MÃE - Ah! Se eu apanho aquele escarumba.

PAI (mais calmo) Infelizmente o Romão acha que a sua filha se parece com um pauzinho de algodão doce.

MÃE – Aquele barrote queimado que se atreva. Ai, iaai, iaai.

PAI - É mas ela não tem culpa de ter a mãe que tem.

Saem de braços dados, a discutir sempre, gesticulando, como num filme mudo.

CENA X

ARCO-IRIS - Não sei se já sabem, mas um arco-iris, normalmente aparece em dias de chuva. Antiga-mente...há muito tempo atrás, quando eu era deste tamanho...assim...assim, mais ou menos, depois de uma chuva de verão, num entardecer todo colorido, quando o sol e uma fina garoa? se confundiam, numa das tardes mais coloridas da minha vida, passou perto do meu lago a CLARINHA, que linda, que cores, ela

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estava apenas de passagem. Ah! A Clarinha era um cometinha colorido que conheci naquele dia...bem, mas bem diferente de todos os cometas. Fiquei apaix-onado pela Clarinha...dei-lhe um enorme sorriso...ela aproximou-se, deu-me um beijo nos lábios e partiu...mais rápida que o vento. Ai, já estava a esquecer-me da Juliana e do Romão. Eles vão encontrar-se à beira da Lagoa Azul.

CENA XI

Enquanto o Arco-Iris conta a sua aventura. As outras personagens montam a Lagoa Azul. Entra música, que deve ser cantada e falar de cores, combinação de cores, chuva, arco-iris, etc.

CRAVO - Adoro dias de chuva!

PALMA - Olá meu amigo! Já viste? Que chuvada…

CRAVO - Adoro dias de chuva! Vês como fico mais bonito, e mais cor-de-violeta.

PALMA - Cor-de-violeta. Penso que a chuva está a fazer-te mal Cravo.CRAVO - E porquê?

PALMA - Porque és vermelho.

CRAVO - Estás parva ou o quê? Não estás a ver...Eu sou violeta. Vem. (a mirar-se na lagoa azul) Olha aqui no espelho.

PALMA (a mirar-se na lagoa azul) - Claro que vejo. Olha como sou verde.CRAVO (a rir) - Tu é que não estás nada bem. A chuva está a fazer-te mal. Deves procurar um guarda-chuva para te protegeres.

PALMA - Olha lá e porquê?

CRAVO - Porque tu és amarela.

PALMA (quase a chorar) Mentes-me. Não. Sou verde. Tu que és vermelho.

CRAVO - Eu sou violeta. Palma amarela.

Os dois ficam a discutir, a brigar mesmo.

CENA XII

A meio da discussão, Romão chega e começa a brincar à volta da lagoa. As flores percebem a sua chegada, ficam caladas e estáticas. Romão está feliz, canta uma pequena canção.

ROMÃO (cantando) - Juliana Sombrinha bonita Branca como a neve Doce como algodão. Sombrinha menina Linda branca inteira É teu o meu amor Meu eterno amor.ROMÃO (vendo o Cravo) - Ah! Vou colher este Cravo para dar a Juliana. (vai apanhá-lo)CRAVO - Não! Por favor, não.

ROMÃO (para si mesmo) - Alguém disse alguma coisa. Quem foi?

PALMA (para provocar o cravo) - Foi o Cravo ver-melho, ora.

ROMÃO (para o público) - Cravo? Ora e os Cravos falam?

CRAVO (sem se mexer) - Claro. Não vês que estou a falar.

ROMÃO (vira-se para o cravo) - Que susto! Agora estou a perceber. (para o cravo) Pensei que apenas os Guarda-chuvas e as Sombrinhas falassem. Ouve lá, gostava de te dar à Juliana. O que é que achas?

CRAVO - E quem é essa...essa...como é mesmo o nome?

ROMÃO - Juliana! E é a sombrinha mais linda que já vi na minha vida. Sabes Cravo, vou contar-te uma coisa... (em tom de segredo, Palma aproxima para ouvir) Eu estou apaixonado por ela. É tão branquinha, tão doce, tão linda. Se não fosse a mãe dela e o meu pai passarem o tempo todo a discutir.

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CRAVO - Então está bem

ROMÃO - Como está bem? Anda tudo mal, a mãe dela e o meu pai não vão concordar nunca, vivem a dis-cutir. Agora mesmo um deve estar a arrancar as varetas do outro. De tanto discutir.

CRAVO - Então pronto. Tudo bem.

ROMÃO - Eu já disse que está tudo mal.

PALMA - Ele está a dizer que podes dá-lo à Julita.

ROMÃO - Não é Julita é Juliana. (assustado) Tu tam-bém falas? Bolas.PALMA - Claro que falo! E também canto. Anda cá, ouve o som da minha voz.

Palma solta um agudo insuportável.

ROMÃO - Sim. Agora estou a ouvir até bem demais.

CRAVO - Então? Queres ou não dar-me à tua Juliana?

ROMÃO - Quero. Ela vai ficar feliz em conhecer-vos.

PALMA - A mim também?

ROMÃO - De certeza...É pena que nós os dois vamos morrer na Lagoa Azul, senão íamos ser grandes ami-gos.

PALMA - Morrer na nossa Lagoa Azul?

ROMÃO - É. Hoje mesmo.

PALMA - Na, na, na, não. No meu espelho não. Como vou poder ver-me todos os dias. Se isso vier a aconte-cer. (a mirar-se na água) Anda cá, olhem...vejam como sou verde!

ROMÃO (sem entender) - Tu estás enganada. Tu és amarela.

CRAVO (ri-se) - Eu não disse! (a mirar-se também) Olha, vê, eu sou cor-de-violeta.

ROMÃO (meio desconcertado) - Não. Tu és ver-melho.

PALMA (Palma que tinha ficado chateada, volta a picar) - Não te disse parvalhão.

Forma-se então uma tremenda discussão, uma con-fusão mesmo. Juliana chega e chama Romão ao longe. Entra música. Correm como crianças, encontram-se, fazem jogos e brincadeiras infantis (corrupio, roda, etc.), abraçam-se, acariciam-se, a música evolui. Os dois dançam um “pas-de-deux”. De repente, uma força estranha começa a separá-los. A Palma e o Cravo, par-alisam, ficam estáticas, sem saber o que fazer. Romão e Juliana são arrastados, um para cada canto do palco. Aparece então o BRUXO, personagem que representa o temor, a dúvida, os fantasmas da infância. Sua carac-terização deve ser de metade homem, metade mulher, a representar simbolicamente o PAI de Romão e a MÃE de Juliana. Os dois em apenas uma personagem: o bem e o mal, o amor e o ódio, o branco e preto, o claro e escuro, a luz e a sombra. Música de sonoplastia e expressão corporal das personagens ajudam a carac-terizar a cena.

CENA XIII

Este diálogo acontece durante a cena de horror e medo.

JULIANA - Romão que se passa?

ROMÃO - Não tenhas medo Juliana! Adoro-te!

JULIANA (assustada) - Mamã. Não faças isso.

ROMÃO - Eu amo-te Juliana. Não te preocupes.

JULIANA - Ouviste mamã? Eu também amo o Romão.

ROMÃO – Pára com isso pai. Tens que entender. Vocês têm que entender.

Aos poucos o BRUXO desaparece. Romão e Juliana abraçam-se e repetem o jogo ou brincadeira...como da primeira vez...como se nada tivesse acontecido...Um sonho, talvez.

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ROMÃO - Bolas. Demoraste-te. Pensei que tinhas desistido.

JULIANA - Eu fugi e deixei um bilhete.

ROMÃO - Tenho uma surpresa para ti.

JULIANA - O que é Romão?

ROMÃO - Vem. Fecha os olhos e conta até dez.

JULIANA (fecha os olhos) - Está bem. (conta até dez)

ROMÃO (traz o Cravo) - Podes abrir os olhos. Este Cravo é para ti.

JULIANA - Oh! Como ele é lindo. Um lindo cravo-vermelho.

CRAVO (chateado) - Eu sou violeta. E aquela é a minha amiga Palma Amarela.

PALMA - Na, na, na, não. Desculpa lá, ele não percebe nada. Eu sou a Palma Verde.

CRAVO - É Amarela.

PALMA - Verde. Começam uma nova discussão.

ROMÃO (para Juliana) - Estão a discutir há um tempão. Ele diz que é violeta e ela que é verde.

JULIANA (em tom autoritário, a separá-los) - Ora, pa-rem com isso. Por quê tanta confusão? Estou chateada com isto. Ouçam, assim não pode ser. Romão, Cravo e tu também Palma...prestem atenção! Os nossos pais passam o tempo a discutir e em conflito por causa da nossa cor. Cravo, presta atenção...tu nasceste vermelho e a Palma nasceu Amarela. Assim como o Romão é preto e eu sou branca. Não podemos mudar a natureza. Porquê lutar contra ela? Penso que devemos assumir o que somos e tentar compreender porque temos estas cores. Vejam! Não me importa a cor do Romão. O que sei é que gosto dele e que ele gosta de mim.

CRAVO - Mas eu não estou apaixonado pela Palma.PALMA - Nem eu pelo Cravo. Mas todas a vezes que nos vemos ao espelho começamos a discutir.

ROMÃO - Ela está a falar da Lagoa Azul. E realmente quando a imagem deles é reflectida na água mudam de cor. Vem ver.

Posicionam-se à beira da Lagoa.

CRAVO - Viram! Sou Violeta.

PALMA - E eu sou Verde.

CRAVO (a olhar para ela) - Continuas amarela.PALMA (furiosa) - Tu é que continuas vermelho. (arranca-lhe uma pétala)

Os dois começam a despetalarem-se. Atiram as pétalas para o chão. Romão e Juliana juntam as pétalas e começam a enfeitarem-se e a misturar as cores (com-posição de cores). O Cravo e a Palma percebem a mudança.

CRAVO - Olha Palma. Eles ficaram coloridos.

PALMA - É isso mesmo. Que lindos que vocês estão. Como pôde acontecer isso?

Surge o Arco-Iris. As luzes devem mudar, caso seja possível, o palco deve ficar todo colorido. De todas as cores. O Arco-Iris como personagem - vestido de branco)

ARCO-IRIS - Fechem os olhos e não tenham medo. (fecham os olhos) Agora, abram os olhos lentamente. Estão a ver-me? Eu sou o Arco-Iris. E gostava de con-versar um poucochinho convosco. O que aconteceu aqui é uma coisa muito simples...

ROMÃO - E o que foi?

JULIANA - É. E o que foi?

ARCO-IRIS - Foi uma simples combinação de cores.

CRAVO - E o que é isso?

PALMA - É. E o que vem a ser uma combinação de cores?

ARCO-IRIS - Bem. Vou ter que explicar-vos uma montanha de coisas. Vocês sabiam que existem as cores primárias e as secundárias? E que quando mis-

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turadas formam uma terceira combinação? Não. Então, vamos fazer um teste.

CRAVO - E quais são as cores primárias?

ARCO-IRIS - As primárias são (a fazer referência sobre a cor do Cravo) Vermelho. (a cor da Palma) Amarelo. (a cor da água) e Azul.

PALMA – Olha, que bom. Nós temos cores primárias.

JULIANA - E quais são as secundárias?

ARCO-IRIS - As secundárias são: Laranja, Verde e Roxo ou Violeta.

ROMÃO - E o preto e o branco como são classifica-das?

ARCO-IRIS - São neutras. São cores neutras. São clas-sificadas no desenho como luz e sombra.

ROMÃO - Bolas. Vejam que o maior problema para os nossos pais é por ela ser branca e eu ser preto. Eles não percebem que não podemos viver sem luz e sem sombra.

PALMA - Agora já não precisam de morrer na Lagoa Azul, não é?

CRAVO - Não precisam não. Vocês agora estão colori-dos.JULIANA - É mas se tirarmos as pétalas, voltamos às cores naturais.

ROMÃO (preocupado) - Bolas! Pois é. Mas para casa não voltamos.

JULIANA - Já sei. Vamos oferecer-nos para trabalhar num circo e assim partiremos para bem longe daqui. Vou adorar aprender a andar na corda-bamba.

ROMÃO - E eu tenho certeza que vou ser muito útil nos dias de chuva.

ARCO-IRIS - É isso mesmo. Vocês têm muita cora-gem. As vossas cores possuem autonomia. São únicas.

JULIANA - Apenas mais uma pergunta Sr. Arco-Iris. Se o Sr. é colorido, porque é que hoje está branco?

ARCO-IRIS - Excelente observação Juliana, és uma Sombrinha muito esperta. Agora vou explicar a todos como se faz uma “Combinação de Cores”. Podemos conseguir a cor que quisermos, basta misturarmos e combinar todas as cores. A combinação ou mistura de todas as cores resulta no Branco. Um momento! (Ar-co-Iris vai buscar um globo giratório ou faz surgir em cena um globo que podia estar oculto) Se pegamos por exemplo num globo giratório e o pintamos de todas as cores, ao girar este globo teremos como resultado uma bola branca em movimento. (todos ficam maravil-hados) E agora arranjem papel branco, tinta, lápis de cera, ou lápis de cor e comecem a misturar as cores. (Todos vão buscar o material deixado anteriormente em pontos estratégicos) É bastante simples. Comecem a desenhar, a pintar, a misturar as cores.

Pode-se trazer um painel com papel branco já pre-parado, começam a desenhar ou pintar. Os resultados devem ser comentados por cada um. Deve haver um envolvimento muito grande das personagens neste momento lúdico. Que pode ter música. O Arco-Iris desaparece. De repente, eles percebem que o Arco-iris desapareceu. Começam a procurá-lo no Céu. En-quanto isso, Romão e Juliana levam o painel à frente: está escrito FIM. A música pode ser a mesma das cores. Romão e Juliana vão dar um beijinho quando se apercebem do público. Romão arma a sombrinha de Juliana e põe-na à frente, beijam-se e deixam cair a sombrinha durante o beijo, fecha a cortina ou eles vão saindo devagar. Cravo e Palma ficam felizes a dizer Adeus.

FIM

Esta peça não pode ser montada, representada ou repro-duzida sem a autorização do autor, estando sujeito a sanções de acordo com a lei de direitos de autor.

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A ETPL, UMA ESCOLA ExEMPLAR EM TELHEiRASFoi em Telheiras, numa casa burguesa do último quar-tel do século XIX, cedida e restaurada pela Câmara Municipal de Lisboa, que nasceu, no dia 21 de Janeiro de 1991, a Escola Técnica Psicossocial de Lisboa (ETPL).Criada com a ajuda de três grandes entidades, a Ares do Pinhal, uma associação para a recuperação de toxicodependentes, o Centro de Atendimento a Toxi-codependentes das Taipas (CAT) e a Câmara Munici-pal de Lisboa, a ETPL tem como objectivo principal formar profissionais aptos a trabalharem na área da intervenção e da animação sócio-cultural, oferecendo aos estudantes com o 9º ano de escolaridade, o Curso Técnico de Apoio Psicossocial, uma alternativa ao ensino regular, através de um currículo de três anos, com equivalência ao 12º ano e uma qualificação profis-sional de Nível III.O ensino tem um cariz eminentemente prático, com estágios anuais em estabelecimentos com os quais a Escola estabelece protocolos, proporcionando aos alunos o contacto directo com diferentes realidades, introduzindo um elevado grau de exigência e conferin-do uma autonomia progressivamente mais acentuada, ano após ano. Os alunos observam, aprendem, desen-volvem e confirmam, ao longo de três anos, a vocação que os levou a optarem por esta alternativa de ensino.A supervisão dos professores é sistemática e extrema-mente enriquecedora, o que ajuda a que os alunos cresçam como pessoas, assim como os forma para serem capazes de projectar a sua vida futura. Esta escola revela uma grande coesão entre professores, funcionários e alunos, o que permite que todos os problemas que estes encontrem possam ser falados e discutidos abertamente, sem medos ou qualquer sen-timento de vergonha. Toda esta equipa se dedica diari-amente, mostrando-se sempre preocupada e atenta ao seu percurso escolar, bem como às suas vivências, o que se traduz num ambiente muito descontraído e saudável. A Escola facilita aos estudantes contactos e experiên-cias que serão fundamentais na futura vida activa que se desenvolverá em ambientes com crianças, jovens em risco, adultos e idosos, toxicodependentes, trabalha-dores sexuais, entre muitos outros., fomentando ainda

o convívio e partilha de experiências com escolas simi-lares através de iniciativas desenvolvidas no país – o “Palácio”, Semana de Prevenção de Jovens para Jovens – e no estrangeiro (Paris e Inglaterra), através de um estágio com populações diferenciadas.A ETPL organiza anualmente o Fórum, que consiste em conferências e workshops temáticos abertos ao público em geral, a antigos alunos da Escola, a profis-sionais da área e a responsáveis pelas estruturas que actuam nos campos sociais, para que se possa debater ideias, confrontar opiniões e assuntos.No 3º ano, o ano finalista, os alunos trabalham a PAP – Prova de Aptidão Profissional – uma espécie de tese final de curso, à qual se dá muita importância curricu-lar.O Curso Técnico de Apoio Psicossocial tem como per-spectiva de empregabilidade as equipas da Administra-ção Central, Regional e Local, os Centros de Preven-ção, Tratamento e Reinserção de Toxicodependentes e Reclusos, os Centros Educativos, Internatos, Unidades de Saúde, Equipas de Ruas e Centros de Abrigo, Esco-las e ATLs; Lares de Idosos e Centros de Dia, etc.Possibilita ainda o acesso, para quem queira retomar o ensino regular, à candidatura ao ensino superior.Num recatado e simpático bairro no coração da capi-tal, a Escola Técnica Psicossocial de Lisboa constitui uma séria e agradável alternativa na vida dos jovens.

A minha caminhada na Escola

Cada passo, cada palavra, cada pessoa com quem me cruzei ao longo destes três anos de curso, enriquece-ram a minha formação e alteraram a minha vida.Muito para além das disciplinas curriculares, os valores e os princípios defendidos pela Escola, foram uma lição “para a vida”.Nós seremos mulheres e homens do amanhã, apren-demos a aceitar e acolher a diferença, a perceber o próximo, a cooperar e a trabalhar de forma solidária: ensinamentos úteis à profissão que iremos abraçar, mas, acima de tudo, essenciais no nosso quotidiano familiar e social.Ajudar os outros e aceitar ajuda, tomar iniciativas em prol do próximo foram aspectos que encontrei reforça-

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dos em cada momento dos três anos de trabalho árduo que passei na Escola.O curso tem um currículo muito interessante na área de apoio e animação social, muito dirigido para a reali-dade, para a vida e para a profissão. Os vários estágios possibilitam a confrontação com as bases teóricas adquiridas, num processo de progressiva estruturação e consolidação de conhecimentos.Olhando para trás e revivendo estes anos, percebo como a Escola foi crucial para a minha vida, mesmo nos momentos “menos bons” que, até eles, me obri-garam a crescer. Ser técnico psicossocial é tudo isto: exige conhecimentos teóricos, implica um equilíbrio emocional e apela a uma sensibilidade grande para as

questões sociais.Professores e funcionários, colegas de turma e de outros anos, vejo-os como uma grande equipa que acredita que, através da nossa profissão, contribuímos para melhorar o mundo dos mais desfavorecidos (nem que seja num pequenino passo, mas é certamente um passo!).São anos que me deixarão saudade e que fazem com que me orgulhe de dizer “Sim, fiz parte daquela Es-cola”.

Mariana CalderónAluna do 3º ano da etPL

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escola técnica Psicossocial de Lisboa