Cadernos do IPRI - FUNAGfunag.gov.br/loja/download/cadernos-do-ipri-num-09.pdf · regionais e...
Transcript of Cadernos do IPRI - FUNAGfunag.gov.br/loja/download/cadernos-do-ipri-num-09.pdf · regionais e...
Cadernos do IPRI
O Sudeste Asitico
no Ps-Camboja:
Insero do Vietn
Amaury B. Porto de Oliveira
Resenhas
Departamento de Cincia
Poltica e Relaes
Internacionais da
Universidade de Braslia
Caderno do IPRI
no 09
Fundao Alexandre de Gusmo/IPRI
Organizao dos Estados Americanos
Braslia, novembro/1994
2
O Sudeste Asitico
no Ps-Camboja:
Insero do Vietn
Amaury B. Porto de Oliveira
Resenhas
Departamento de Cincia
Poltica e Relaes
Internacionais da
Universidade de Braslia
Caderno do IPRI
no 09
Fundao Alexandre de Gusmo/IPRI
Organizao dos Estados Americanos
Braslia, novembro/1994
3
Notas:
1) As opinies contidas neste trabalho so de exclusiva responsabilidade do autor, no
coincidindo necessariamente com as posies do Ministrio das Relaes Exteriores.
2) As resenhas dos livros sobre temas de relaes internacionais apresentadas neste volume
foram preparadas por alunos e professores do Departamento de Cincia Poltica e Relaes
Internacionais da Universidade de Braslia.
4
SUMRIO
O Sudeste Asitico no Ps-Camboja: Insero do Vietn .....................................................
Amaury B. Porto de Oliveira
Resenhas
Elaborao coordenada pelo Departamento de Cincia Poltica e Relaes
Internacionais da Universidade de Braslia
1. Evening Chats in Beijing. Perry Link ......................................................................
Antonio Jorge Ramalho da Rocha
2. Sino-Soviet Normalization and its International Implications. Lowell Dittmer...
Mrcia Stefanova Apostolova
3. Lessons of Struggle: African Internal Opposition. Anthony Marx .......................
Aninho Mucumdramo Irachande
4. US-Japan Alliance Diplomacy 1945-1990. Roger Buckley ....................................
Mrcia Lissa Aida
5. Building Sino-American Relations: An Analysis for the 1990s. Willian Tow .....
Maurcio Fernando Dias Fvero
5
O SUDESTE ASITICO NO PS-CAMBOJA: INSERO DO VIETN
Amaury Porto de Oliveira
Por ps-Camboja deve entender-se o perodo aberto na histria das relaes
internacionais no Sudeste Asitico pela soluo da Questo do Camboja. Arrastava-se essa
questo h mais de onze anos, at que a 23 de outubro de 1991, em Paris, uma Conferncia
Internacional sobre o Camboja, reunindo dezenove pases direta ou indiretamente envolvidos
com a pendncia, adotou o Acordo para a Resoluo Poltica Abrangente do Conflito
Cambojano. Quatro meses mais tarde (28/02/92), o Conselho de Segurana das Naes
Unidas aprovou por 15 votos a 0 a operao onusiana encarregada de implementar a paz no
Camboja, nos termos do Acordo de Paris.
Na sua definio estritamente diplomtica, a Questo do Camboja nascera da
violao, pelo Vietn, de regras cardeais do sistema de relaes entre Estados, criado em
torno da ONU na esteira da Segunda Guerra Mundial. Nos ltimos dias de dezembro de 1978,
o Vietn invadiu o vizinho Camboja para depor o regime no poder, em Phnom Penh, desde
abril de 1975. Esse regime se desagregou sob o impacto dos destacamentos vietnamitas, com
os quais vinha marchando um grupo de oficiais e praas da Quarta Diviso da Zona Oriental
do exrcito cambojano, entrados em rebelio. Heng Samrin, o comandante da diviso em
causa, havia-se refugiado semanas antes do Vietn com uns quantos coligados (entre eles o
jovem Major Hun Sen) e assumiu a presidncia do governo que se instalou em Phnom Penh.
A comunidade internacional no se preocupou com as razes que pudesse ter tido
o Vietn para sua interveno no Camboja. Tampouco foi considerado atenuante o fato de a
operao haver liberado o mundo de um dos regimes mais execrveis da histria humana: o
governo dos Khmers Rouges, universalmente acusado de genocdio. O apodo pelo qual
vieram a ser conhecidos os membros do Partido Comunista do Kampuchea (designao
arcaica do Camboja por eles ressuscitada) expressa, precisamente, a filosofia sanguinria do
movimento. O objetivo declarado do PCK era a criao de sociedade em que s existissem
camponeses e guerreiros. Todo o conhecimento e o instrumental acumulados pelo homem
atravs dos milnios (exceo feita s armas!) deviam ser repudiados, visto que sempre
expressaram opresso de classe. Na aplicao desse programa, as cidades foram esvaziadas e
a vida urbana destruda. Os intelectuais e camadas cada vez mais amplas da burocracia e da
classe mdia em geral foram sendo trucidados. Clculos dignos de crdito falam em mais de 1
milho de indivduos executados de forma brutal nos trs anos e meio em que o PCK
governou o Camboja.
No era o PCK um corpo monoltico. Faces lutaram continuamente entre si, no
seio do partido, distinguindo-se pela rigidez sectria a de Saloth Sar (mais conhecido sob o
nome de guerra de Pol Pot). Em 1977, Pol Pot assumiu o controle supremo do regime e
ganharam impulso os expurgos e matanas dentro do prprio PCK e das Foras Armadas.
Exacerbou-se tambm a perseguio minoria vietnamita, com ataques exterminadores aos
remanescentes dessa minoria que haviam logrado refugiar-se do outro lado da fronteira
Camboja-Vietn. Foi em resposta a essas repetidas incurses dos Khmers Rouges em
territrio vietnamita, e animados pelo reforo recebido dos rebelados da Quarta Diviso
cambojana, que Hanoi lanou sua prpria expedio contra Phnom Penh.
6
Conforme j observei, a comunidade internacional no tomou em conta essa tela
de fundo da deciso vietnamita, e a Questo do Camboja surgiu e foi se eternizando no caldo
de cultura da Guerra Fria. S que, no final dos anos 70, a Guerra Fria j no era to
nitidamente bipolar. Na verdade, no foi tanto a filiao ideolgica do regime de Hani que
desencadeou contra ele e o Governo Heng Samrin a inflexibilidade corretiva de foras
regionais e internacionais, e sim o seu posicionamento estratgico como aliado da URSS. O
governo comunista de Pequim foi o chefe de orquestra da composio diplomtica que
manteve Hani e Phnom Penh em suspenso punitiva da vida internacional, ao longo de todos
os anos 80, enquanto se garantiam aos Khmers Rouges dinheiro e armas para que eles
permanecessem fortes e atuantes nos lindes da Tailndia com o Camboja.
A interveno do Vietn no Camboja encontrou os EUA sem poltica prpria para
o Sudeste Asitico. Desde o final dos anos 60 a inquebrantvel disposio de luta dos
vietnamitas diante das foras americanas levara Washington a reconhecer, realisticamente,
que a expanso da Pax American na sia-Pacfico encontrara na Indochina os seus limites
fsicos. A Doutrina Guam (1970) forneceu as bases tericas para a retrao da presena
militar dos EUA no teatro da sia-Pacfico, e Nixon e Kissinger passariam a explicar que,
afinal, a Indochina no era to importante assim para o jogo estratgico global dos EUA.
Quando surgiu a necessidade de posicionar-se diante dos acontecimentos do Camboja, viu-se
Washington na contingncia de recorrer carta chinesa, elevada sob a Presidncia Carter a
um dos pilares da diplomacia global dos EUA.
No tinha essa carta especialmente em vista facilitar a soluo diplomtica da
Questo do Camboja. Ao contrrio, o objetivo intransigentemente perseguido pela China
nesse contexto foi a dissoluo do Governo Heng Samrin e a retirada total e incondicional do
corpo expedicionrio vietnamita. S assim ficaria Pequim tranquila quanto a no ter havido
qualquer avano da liderana vietnamita sobre o conjunto dos Estados indochineses.
Desenvolvimento deste outro tipo apareceria para Pequim como o fechamento do cerco
estratgico que os dirigentes chineses acusavam Moscou de estar tentando montar contra a
China. Semanas antes da invaso do Camboja, Hani conclura com Moscou aliana que os
chineses interpretavam como significando apoio da URSS pretenso do Vietn de
estabelecer um relacionamento especial com Laos e Camboja, e isso assustava a China.
Desde a independncia daqueles dois pases, em 1964, Pequim se esforava por bloquear
qualquer ressurgimento da ideia de Indochina. Tendo isso em vista, Pequim se dispusera a
atuar como o nico aliado slido do governo dos Khmers Rouges, e a continuar a respald-
los quando foram expulsos de Phnom Penh.
Para tornar factvel a sobrevida de Pol Pot e correligionrios, a China agenciou a
criao, j em junho de 1982, de uma coalizo tripartite, que congregou em torno dos
guerrilheiros Khmers Rouges um grupo de fiis do Prncipe Norodom Sihanouk e uns
quantos polticos conservadores, liderados pelo velho ex-Primeiro Ministro Son Sann.
Assentada em acampamentos na Tailndia, a coalizo tripartite jamais pde qualificar-se
como governo no exlio. Serviu, porm, de base para a prolongada presso militar e
diplomtica contra Heng Samrin e seus aliados vietnamitas. Permitiu, inclusive, que o
Governo Reagan buscasse reconquistar um lugar para os EUA, na definio do futuro do
Camboja. A 1o de novembro de 1988, o International Herald Tribune tornou pblico que,
desde 1982, vinham os EUA subsidiando os dois grupos no comunistas da coalizo tripartite,
numa das mais discretas operaes de contras do perodo Reagan.
Quando se tenta abarcar a Questo do Camboja em todas as suas ramificaes, o
confronto poltico-militar entre o governo instalado em Phnom Penh e a coalizo tripartite
7
aparece com um microconflito, no cerne de conflito maior, de alcance regional, em que o
Vietnam, aspirando representar uma entidade potencial (a Indochina), defrontava-se com a
Tailndia, ponta de lana no caso de entidade bem ativa: a Associao das Naes do Sudeste
Asitico (ANSEA). Todo esse sistema estava, por sua vez, contido num crculo de alcance
global, em que a China e os EUA faziam face URSS, dentro da ideia bastante exagerada de
que Moscou era o verdadeiro responsvel pela interveno do Vietnam no Camboja.
Para efeitos prticos, foi assim que as Chancelarias do mundo visualizaram,
durante doze anos, a Questo do Camboja, posicionando-se em consonncia com suas
prprias simpatias no quadro da Guerra Fria. Na realidade, porm, tratava-se de questo com
profundas razes na geografia e na histria do Sudeste Asitico, cujo desenvolvimento e cujos
desdobramentos para alm da sua recente superao diplomtica exigem, para ser bem
compreendidos, que se considerem.
As clivagens do Sudeste Asitico:
Poucas regies do globo exibem diversidade e complexidade de fatores humanos
comparveis s do Sudeste Asitico. O professor cingapuriano Lee Yong Leng recenseou 25
lnguas e mais de 250 dialetos; 3 religies de massa; contrastes raciais, culturais e
demogrficos profundos entre os habitantes das zonas costeiras e os montanheses, ou entre os
habitantes da terra firme e os das incontveis ilhas.
Duas grandes clivagens geogrficas se sobrepem a essa diversidade do ambiente
humano: a iniludvel separao entre o Sudeste Asitico Insular (a includa a Pennsula
Malaia) e o Sudeste Asitico Continental; a Cordilheira Anamita, que corre de norte a sul
separando o Vietn do restante da massa continental. Servindo tambm de linha divisria
entre a predominncia da herana cultural chinesa e a predominncia da herana cultural
indiana: o Budismo, por exemplo, praticado em verses distintas, respectivamente chinesa e
indiana, de um lado e do outro da cordilheira.
Numa perspectiva geopoltica, duas situaes principais vm determinando a
evoluo do Sudeste Asitico h mais de dois mil anos: a fragmentao poltica de regio
situada na periferia do colosso chins e o lento processo de consolidao de Estados nacionais.
A este ltimo respeito, trs formaes polticas levaram o processo a um estgio avanado de
realizao: a Birmnia, a Tailndia e o Vietn. A Birmnia tem-se mantido distante dos
problemas que estarei examinando, e vou concentrar-me nos outros dois pases. Viets e tais,
povos descidos da China, revelaram desde o incio tendncias dominadoras e expansionistas,
colocando sob os fogos cruzados das respectivas ambies as terras do velho Imprio Khmer,
que entre os sculos VII e XII da Era Crist foi sede da brilhante civilizao angkoriana.
No caberia aqui reconstituir os fluxos e refluxos da rivalidade entre o Sio (nome
histrico da Tailndia) e o Vietn, em torno do que hoje so o Camboja e o Laos. Nas ltimas
dcadas do sculo XVIII, o Sio invadiu o Laos, e os monarcas desse pas e do Camboja
recorreram ambos ao Vietn pedindo proteo contra os tais. Apesar do apoio que lhes
tenham dado os viets, em meados do sculo seguinte o Laos estava quase todo sob ocupao
siamesa e o Camboja cara em vassalagem. Foi a chegada dos colonizadores franceses que
restaurou a integridade territorial dos dois pases, em detrimento do Sio, e que congregou
Laos, Camboja e Vietn sob o conceito, criado para a ocasio, de Indochina.
A corte siamesa acabou descobrindo vantagem nas limitaes territoriais que lhe
impuseram os franceses, na medida em que estes haviam tambm posto sob controle as
ambies vietnamitas. To logo, porm, se patenteou o enfraquecimento francs durante a
8
Segunda Guerra Mundial, Bangkok reviveu suas reivindicaes sobre partes do Laos e do
Camboja, com o apoio do novo suserano do Sudeste Asitico, o Japo. Os japoneses foram
expulsos da regio e, no ps-guerra, o Vietn demonstrou inteno de preservar a ideia de
uma unio indochinesa. Alarmada, a Tailndia empenhou-se em barrar essa pretenso. Um
pacto de assistncia militar foi assinado com os EUA, e Bangkok cooperou com os
americanos durante toda a Guerra do Vietn: vinte e sete batalhes tailandeses combateram
secretamente no Laos; um contingente de infantaria foi despachado para o Vietn do Sul;
bases areas em territrio tailands foram franqueadas aos americanos para o bombardeio das
foras vietnamitas. Hani revidou dando apoio insurreio comunista na Tailndia, cujo
principal suporte era a China.
A colonizao europeia (meados do sculo XIX a meados do sculo XX)
introduziu novas clivagens no Sudeste Asitico, com o aparecimento de lnguas, instituies
jurdicas e atividades econmicas alheias regio e distintas entre si. Entidades de direito
internacional pblico totalmente novas - como a Indonsia, a Malsia, o Brunei ou
Cingapura - passaram a disputar espao e a competir poltica e ideologicamente umas com as
outras. Aquela velha ciso geogrfica entre os arquiplagos e a terra firme ganhou
importncia poltica na medida em que os primeiros se definiram, preponderantemente, como
pases malaios, com reduzida tradio de coeso nacional e unidade lingustica.
Egressos de trs sistemas coloniais distintos, armados de ordenamentos e lnguas
modernizadoras oriundos de terras distantes, os pases malaios tomaram algum tempo para se
ajustarem nova correlao de foras do Sudeste Asitico. De setembro de 1963 a agosto de
1966, a Indonsia e a novel Federao Malsia enfrentaram-se diplomtica e militarmente na
chamada konfrontasi, com os indonsios contestando o sentido e a oportunidade daquela
federao, que lhes parecia atentar contra a integridade do mundo malaio. Complicador
inesperado ainda foi a independncia, em agosto de 1965, da dinmica ilha chinesa de
Cingapura, que os ingleses haviam deixado integrada na federao.
Cabe lembrar que o impulso determinador da fundao da ANSEA, em 1967, foi a
necessidade de harmonizar as dissonncias intermalaias, que ameaavam a paz e a
prosperidade do Sudeste Asitico. Apesar dos anunciados objetivos de cooperao econmica,
a ANSEA funcionou sobretudo como um processo consultivo, graas ao qual os pases
membros vm superando com prudncia as tenses entre eles e administrando com eficcia as
relaes do grupo com o mundo exterior. O posicionamento adversarial diante do Vietn
comunista, que deu ANSEA caractersticas de uma construo da Guerra Fria, surgiu j na
segunda metade dos anos 70.
De um modo geral, a colonizao europeia teve importantes efeitos espaciais e
demogrficos sobre todo o Sudeste Asitico. Introduziu-se a prtica do desflorestamento em
grande escala, a fim de criar espao para as plantaes coloniais a servio do mercado
internacional. A minerao do estanho alterou a distribuio da ocupao humana em amplas
reas, somando-se agricultura de commodities na exigncia de estradas de ferro e portos
modernos. Pntanos foram secados e velhos rios - o Irrawaddy, na Birmnia, ou o Chao
Phraya, na Tailndia - tiveram seus cursos alterados para permitir o aparecimento de bolses
de cultivo do arroz. Todas essas novas atividades provocaram o influxo de levas e levas de
imigrantes indianos e chineses, com consequncias de monta para a estruturao social e a
distribuio da riqueza nos pases da regio. Particular importncia adquiriram, a este ltimo
respeito, as minorias chinesas. Por todo o Sudeste Asitico vieram elas a preponderar na posse
e administrao do dinheiro, nem sempre com a aceitao benigna dos grupos tnicos
majoritrios.
9
Foi nesse contexto regional complexo e em contnua evoluo que a China logrou
manter viva por mais de dez anos a Questo do Camboja, em funo da sua prpria viso
estratgica e com a ajuda ativa e interessada da Tailndia, precipuamente. Somente j bem
entrados os anos 80 surgiram, de repente, sinais de que comeara o...
Final de jogo no Camboja.
Em julho de 1988, a Questo do Camboja voltou de sbito primeira pgina dos
jornais, atravs de uma reunio informal, de cinco dias, das quatro faces cambojanas
diretamente envolvidas no microconflito local e seus respectivos aliados regionais: ANSEA e
Estados indochineses. Realizada em Bogor (Indonsia), a conferncia congregou, pela
primeira vez desde o incio do conflito, todas as partes interessadas, com exceo das
potncias do crculo mais externo. O encontro de Bogor, preparado durante meses por Jacarta
e Hani, foi conquista da Indonsia, que desde o incio mantivera posio divergente da
Tailndia em relao ao Vietn e China. No mundo malaio, e isto em boa parte como
decorrncia do peso adquirido no seio dele pela dispora chinesa, a China parecia mais
ameaadora estabilidade do Sudeste Asitico do que a URSS.
Os entendimentos no plano regional, graas aos quais tiveram incio negociaes
no nvel do microconflito cambojano, refletiram por sua vez importantes ajustamentos
surgidos no crculo das grandes potncias. Na origem de tudo cabe distinguir um
desenvolvimento de alcance histrico, cuja supervenincia no foi logo percebida pela
opinio pblica mundial, e que mesmo hoje poder parecer de valor remoto para o
encaminhamento da Questo do Camboja. Quero referir-me ao declnio da hegemonia global
dos EUA, processo encetado na abertura dos anos 70 como parte da exausto da II Revoluo
Industrial. A primeira evidncia de monta de deslanchamento desse processo foi o
cancelamento unilateral, pelos EUA, da obrigatoriedade que lhe impusera o Sistema de
Breton Woods de trocar ouro por dlar.
Anunciada intempestivamente a 15 de agosto de 1971, essa deciso americana
fora em parte motivada pela presso inflacionria da Guerra do Vietn, vindo
indiscutivelmente a compor o quadro estratgico da retirada dos EUA da Indochina. Em 1975,
a partida atropelada das foras americanas abriu caminho para a unificao do Vietn e, no
Camboja, para a instalao triunfal do regime Khmer Rouge. A China na sua tradicional
intolerncia com a possibilidade de contestaes ao predomnio chins no que lhe parecia uma
rea natural de influncia de Pequim, sentiu-se molestada com a unificao do Vietn e, de
grande aliada dos comunistas vietnamitas na resistncia aos EUA, passou a hostiliz-los.
Tornou-se, conforme j ficou visto, a aliada intransigente dos Khmers Rouges, levando o
Vietn unificado a buscar o apoio da Unio Sovitica. Os EUA haviam retirado suas foras
inclusive da Tailndia, e a URSS comeou a expandir-se militarmente no Pacfico Ocidental,
usando a grande base naval de Cam Rahn Bay, abandonada pelos americanos no ex-Vietn do
Sul, como ponto de apoio principal de um desdobramento estratgico s inferior ao das foras
soviticas diante da OTAN.
No crculo das grandes potncias, cada uma delas empenha-se permanentemente
na promoo do que lhe parece ser o seu interesse. Normalmente, tal percepo antes de
qualquer coisa a visualizao, pelo prisma da correlao de foras internacionais em
existncia, de preocupaes antigas transformadas em imperativos nacionais. Para atender a
esses imperativos, as grandes potncias aliam-se circunstancialmente a potncias mdias, de
peso regional, a fim de por meio delas arregimentarem foras locais, usadas como massas de
manobra nas confrontaes globais. Na Questo do Camboja, nem a URSS nem a China
10
estiveram efetivamente preocupadas com o destino e o bem-estar do povo cambojano. A
URSS de Brezhnev aceitou financiar a ao vietnamita contra os Khmers Rouges para
ampliar seu arco de resposta ao cerco estratgico montado contra ela sob a Pax American. A
China alimentou at o fim a contestao militar ao regime Heng Samrin, com vista a alcanar
trs metas nunca disfaradas: sangrar economicamente o Vietn, liquidando qualquer sonho
de liderana do Sudeste Asitico que pudesse ter Hani; tornar por demais onerosa para a
URSS a tentativa de usar o Vietn para fechar o cerco estratgico da China; instalar em
Phnom Penh um regime disposto a inserir-se na rbita chinesa, mas no necessariamente
dominado pelos Khmers Rouges.
A perseguio desses objetivos esteve profundamente ligada ao problema da
normalizao das relaes sino-soviticas, tanto no nvel dos Estados quanto no dos
partidos. Arguiam os chineses ser necessrio superar trs obstculos para chegar
normalizao das relaes: a grande concentrao de tropas ao longo das fronteiras da URSS
e da Monglia com a China; a presena de tropas soviticas no Afeganisto; e o apoio de
Moscou ocupao do Camboja pelo Vietn. Em fins de 1986, esse terceiro obstculo
aparecia como o decisivo no caminho da normalizao. Em julho do mesmo ano, Mikhail
Gorbachev pronunciara em Vladivostok o famoso discurso-base da nova poltica sovitica em
direo sia-Pacfico. Gorbachev tratara de frente os problemas das fronteiras e do
Afeganisto, prometendo reduzir as foras de forma substancial, mas s pudera falar em
termos vagos da Questo do Camboja. Dois anos se passaram para que, em agosto de 1988,
pudessem os dois governos (sovitico e chins) reunir-se, no nvel de Vice Ministros das
Relaes Exteriores, para discutir especificamente o problema do Camboja.
O abrandamento das divergncias entre as potncias do crculo externo da
Questo do Camboja deu a atores intermedirios como a Tailndia e o Vietn maior
amplitude para a redefinio dos seus interesses nacionais no novo quadro regional, criando a
possibilidade para iniciativas como a conferncia de Bogor acima evocada. medida que o
conflito se foi desvinculado dos clculos estratgicos das grandes potncias, surgiram, ento,
condies para que os membros permanentes do Conselho de Segurana das Naes Unidas
tomassem a si a acelerao do processo de negociao diplomtica, consubstanciado no
Acordo para a Resoluo Poltica Abrangente do Conflito Cambojano. No cabe neste estudo
retraar as peripcias das diversas linhas de negociaes que convergiram para a assinatura
desse acordo, em outubro de 1991, em Paris. Importa, porm, buscar compreender as razes
das mudanas de viso e comportamento estratgicos, evidenciadas pela China e pela URSS
em meados dos anos 80, e sem as quais a Questo do Camboja poderia ter permanecido
congelada por muito tempo ainda.
O fato foi que, tanto na China quanto na URSS, dirigentes mais alertas foram-se
dando conta de que suas economias, rigidamente planificadas, no estavam podendo
acompanhar a revoluo tecnolgica visvel em vrias partes do globo, em particular em
pases vizinhos do Leste Asitico. Tentar captar o dinamismo modernizador que comeara a
transformar a orla asitica do Pacfico foi um dos principais impulsos dos movimentos
reformistas desencadeados, nos respectivos pases, por Deng Xiaoping e Mikhail Gorbachev.
Os chineses lanaram em fins de 1978 o seu movimento das Quatro Modernizaes, e
quando alguns anos depois surgiu Gorbachev, puderam v-lo como esprito muito prximo a
eles. Os reformistas dos dois pases tinham em comum a abordagem pragmtica das novas
preocupaes nacionais, mostrando-se aptos a privilegiar solues econmicas diante de
enrijecimentos militares. Normalizar as relaes mtuas tornou-se imperativo para Pequim e
Moscou, numa aproximao que deu incio ao final de partida no Camboja.
11
Inferncia importante a tirar de tudo isso que, se correto ver a soluo
negociada da Questo do Camboja como um aspecto da distenso internacional englobada sob
a designao de fim da Guerra Fria, a origem mais profunda daquele feliz desenlace
encontra-se naquela ruptura de alcance histrico a que me referi mais atrs: a exausto da II
Revoluo Industrial. Ao longo dos anos 70, tornou-se patente que o modelo sociotecnolgico
universalizado pelos EUA para essa revoluo, o chamado fordismo, perdera seu valor
estruturante. Sinais de um novo paradigma sociotecnolgico em elaborao estavam chegando
do Japo. O fordismo fora o solo sobre o qual os EUA edificaram a Pax American e a
economia internacional liberal do ps-guerra. Sua exausto histrica determinou a entrada do
mundo num perodo de reviso geral das relaes internacionais, que j vai sendo conhecido
como o ps-hegemonia. O ps-Camboja manifestao tpica do ps-hegemonia.
Desenvolvimento de grande impacto potencial para o futuro das relaes
internacionais no Sudeste Asitico, possibilitado pelos ajustamentos do fim de jogo no
Camboja, foi a deciso do Japo de fazer ouvir sua voz no encaminhamento da paz negociada.
J em 1977, na esteira da derrocada americana no Vietn, sentira-se o Japo obrigado a fazer-
se politicamente presente no Sudeste Asitico, como fator de estabilidade. A oportunidade
para isso foi dada pelo convite feito ao Primeiro Ministro Takeo Fukuda para participar da
Segunda Reunio de Cpula da ANSEA (Kuala Lumpur, agosto de 1977) juntamente com os
Primeiros Ministros da Austrlia e Nova Zelndia. Aps a reunio, Fukuda visitou todas as
capitais da associao, terminando seu priplo em Manila, onde exps em substancioso
discurso os trs princpios centrais da poltica que pretendia o Japo seguir, diante do Sudeste
Asitico: (a) promessa de no se transformar em potncia militar; (b) fomento de estreitos
laos econmicos, sociais, polticos e culturais com os membros da ANSEA; (c) relaes
construtivas com os trs regimes comunistas da Indochina, o Vietn em particular, com vista a
estimular a coexistncia pacfica entre a ANSEA e o grupo indochins.
Os trs princpios do que se veio a chamar a Doutrina Fukuda resultaram de um
ano e meio de estudos e reunies especficas, no quadro do Gaimusho. Foram geralmente
vistos como expressando a promoo esclarecida de interesses nacionais japoneses. O Sudeste
Asitico regio de importncia econmica magna para o Japo, e o declnio da potncia que
lhe vinha assegurando paz e estabilidade era de molde a inquietar os japoneses, tanto mais
quanto j aumentava a competio entre a URSS e a China para preencherem o vazio
estratgico. Ao entrelaar o desenvolvimento econmico e a segurana do Sudeste Asitico
com o crescimento do poderio econmico e tecnolgico do Japo, a Doutrina Fukuda dava a
Tquio papel fundamental na modernizao da regio em apreo.
Os trgicos desenvolvimentos sobrevindos no Camboja sob o regime Khmers
Rouges e o subsequente impasse em que caram as relaes Vietn-ANSEA roubaram,
contudo, aos japoneses a oportunidade de levar adiante os propsitos da Doutrina Fukuda. De
1979 a 1988, o Japo absteve-se de iniciativas prprias no contexto da Questo do Camboja,
limitando-se a apoiar a poltica de pressionamento diplomtico e financeiro do Vietn,
sustentada pela ANSEA, muito embora tenha sido visvel o empenho de Tquio em manter
abertos os canais de comunicao com Hani. Embaixadores foram mantidos em posto nas
duas capitais durante todo o perodo, e entre 1982 e 1988 logrou o Japo, por dez vezes,
transferir para o Vietn somas em torno de 25 milhes de dlares, de cada vez, a ttulo de
ajuda humanitria. Tambm cuidou o setor privado japons de manter vivo o comrcio com o
Vietn.
Para Tquio foi, ento, uma bela surpresa quando, em meados de 1988, pde ser
percebido que a Tailndia, pas da linha de frente na sustentao da presso contra o Vietn,
12
estava comeando a abrandar sua prpria posio diante dos indochineses. A tendncia
intensificou-se no ms de agosto, quando Chatichai Choonhavan, um general reformado
muito ligado aos meios empresariais do pas, assumiu as funes de Primeiro Ministro da
Tailndia. Vou transformar a Indochina, de campo de batalha em mercado! - proclamava
Chatichai. Os empresrios tailandeses vinham demonstrando preocupao com a
possibilidade de serem deixados para trs, por japoneses e cingapurianos, quando ocorresse a
inevitvel reintegrao dos pases indochineses no comrcio regional. Chatichai respondeu a
essa inquietao buscando utilizar o Laos, pas que possui laos tnicos e culturais profundos
com a Tailndia, como ponte para a penetrao comercial de toda a Indochina. Chegou ele a
submeter ao Presidente Bush, por ocasio do enterro do Imperador Hiroto, em Tquio, uma
proposta para fazer da Tailndia a plataforma de redistribuio de capitais e ajuda
internacional para os pases indochineses e a Birmnia. A ideia no foi bem recebida pelos
americanos.
Os projetos de Chatichai casavam-se perfeitamente, porm, com a viso japonesa
de uma Indochina integrada com a ANSEA na promoo da paz e estabilidade no Sudeste
Asitico. Tquio decidiu dar prioridade intensificao das relaes com a Tailndia,
passando a buscar a cooperao de Bangkok na promoo de uma srie de iniciativas ligadas
ao desenrolar prtico da negociao da paz no Camboja. No foram essas iniciativas
suficientes para dar ao Japo a capacidade de imprimir ao acordo final sua prpria viso da
paz. Teve ele de competir com potncias aptas a exercer presso militar, a fornecer
armamento, treinar tropas e agenciar redes de comando. O Japo tentou exercer influncia
poltica apoiado apenas na sua pujana econmica, e suas iniciativas provocaram inclusive
reaes aborrecidas da China e EUA.
Mas as iniciativas japonesas no foram inoperantes. Contriburam elas para obter
o reconhecimento internacional do governo no poder em Phnom Penh como um interlocutor
vlido nas negociaes diplomticas; tambm para reduzir a duas (amalgamando num
interlocutor nico, para efeitos prticos, a coalizo tripartite) as partes em presena. No plano
interno japons, a participao no final de partida no Camboja abriu caminho para a deciso
histrica da Dieta de autorizar o envio de destacamentos militares ao exterior, em operaes
onusianas de pacificao. Mais do que tudo, porm, as iniciativas japonesas colocaram em
foco o problema, que tender a adquirir premncia no ps-hegemonia, do poder econmico
como fator decisivo na criao das condies para a soluo de conflitos internacionais. A
aptido a participar da reconstruo de regies afetadas por tais conflitos, ou de corrigir
distores econmicas e sociais na origem de conflitos regionais, est surgindo como trunfo
disposio do Japo para pesar nas relaes internacionais, conforme j est acontecendo no
ps-Camboja.
Nova partida nas relaes ANSEA-Vietn
No nvel da regio, o grande desafio que o ps-Camboja trouxe para o Sudeste
Asitico foi o da elevao da ANSEA, de organizao sub-regional a organizao
efetivamente regional, capaz de abrigar entre seus membros os Estados indochineses e, mais
adiante, tambm a Birmnia. Vietn e Laos j assinaram (julho de 1992) o Tratado de
Amizade e Cooperao, dito de Bali adquirindo assim o estatuto de observadores nas reunies
da ANSEA, a exemplo do j concedido Papusia-Nova Guin. O Camboja s poder dar
esse passo quando se consolidar o processo de pacificao do pas, ainda posto em causa pela
contestao armada dos Khmers Rouges.
13
A ata de fundao da ANSEA (Declarao de Bangkok, de 08/08/67) proclamou a
organizao aberta participao de todos os Estados da regio do Sudeste Asitico. Nem o
regime de Hani, nem as monarquias do Laos e Camboja, declaradamente neutralistas
naquela poca, puderam dar crdito a essa oferta, to ntidos eram os propsitos de
conteno do comunismo da nascente ANSEA. Mesmo no tocante ao impulso de
reconciliao intermalaia, to presente na criao da entidade, cabe no esquecer que o
abandono da konfrontasi pregada por Sukarno foi precedido, na Indonsia, por gigantesco
massacre de comunistas e chineses tnicos. Cerca de meio milho de pessoas tero sido
trucidadas em poucos dias e vrias centenas de milhares foram concentradas em campos
criados para a ocasio. As relaes diplomticas com a China iriam permanecer cortadas por
vinte e dois anos. Na Tailndia, outro importante pilar da fundao da ANSEA, o perodo
1957-1973 foi ocupado pelos regimes dos generais Sarit e Thanom, sabidamente entrosados
com o lado americano, na Guerra da Indochina. Para o Vietn, a ANSEA pareceu durante
muito tempo uma tentativa dos EUA de reeditarem a malsucedida OTASE, concebida
segundo o modelo da OTAN.
O Tratado de Bali (fevereiro de 1976) renovou a oferta de estar a ANSEA aberta
adeso de outros Estados, mas sem convencer os indochineses. A Conferncia de Bali,
primeira reunio dos Chefes de Governos da ANSEA, sobreveio aps intenso perodo de
consultas entre os pases-membros, sobressaltados com as consequncias da derrota militar
americana de 1975. Os Khmers Rouges tinham-se assenhoreado do Camboja, e o Vietn
estava agora unificado sob o controle de Hani. Foi um momento de verdade para os regimes
conservadores da ANSEA, que se deram conta de como estavam vulnerveis subverso
interna, uma vez que o crescimento exibido por suas economias primrio-exportadoras
praticamente no inclua progressos reais na superao das velhas distores sociais e
econmicas. Na reunio de cpula de Colombo (agosto de 1976) do Movimento dos No
Alinhados, os delegados do Vietn e do Laos criticaram acerbamente os pases da ANSEA,
empenhados em ressuscitar o passado.
Por sob esse dilogo de surdos, estavam, no entanto, em marcha dois importantes
processos. Um dos mais respeitados intelectuais do Sudeste Asitico, o malaio Zakaria Haji
Ahmad, afirma: possvel sustentar que somente em 1975 comeou a tomar corpo um
sistema de relaes genuno e moderno (nfase de ZHA) entre as entidades polticas
independentes e soberanas na regio. claro que anteriormente a essa data j funcionava
alguma forma de relaes interestatais, mas o fato que relaes internacionais plenas s se
tornaram viveis, no contexto do Sudeste Asitico, aps o fim da Guerra do Vietn. (Z. H.
Ahmad, Regional Security in South-East Asia: Issues and Prospects, in Fu-chen Lo &
Kamal Salih (eds), The Challenge of Asia-Pacific Cooperation. Kuala Lumpur: ADIPA,
1987).
Essa asseverao de Zakaria Ahmad traz de volta a observao que fiz mais acima,
distinguindo o Vietn como uma das trs formaes polticas do Sudeste Asitico que mais
longe levaram o processo secular de consolidao do respectivo Estado nacional. Do Vietn
se pode ainda dizer que seu nacionalismo tem sido, de longa data, a fonte de dinamismo
poltico na Pennsula Indochinesa, com forte irradiao sobre o conjunto do Sudeste Asitico.
O ps-Camboja encontrou o Vietn, contudo, extremamente enfraquecido do
ponto de vista econmico e acuado politicamente. Nenhum pas do Sudeste Asitico pagou
to caro pela afirmao da sua independncia nacional quanto o Vietn. O General
Westmoreland ameaava lev-lo de volta Idade da Pedra e a ameaa pareceu por vezes ser
para valer. Recorde-se apenas a Operation Ranch Hand, no curso da qual a aviao
14
americana espalhou sobre campos e matas vietnamitas 40 milhes de litros do agente
alaranjado, 20 milhes de litros do agente branco e 8 milhes do agente azul. Dados oficiais
de Hani calculam que 2,2 milhes de hectares de florestas e campos de cultivo, 20 milhes
de metros cbicos de madeira de valor comercial, 135 mil hectares de plantaes de borracha
e 300 milhes de toneladas de alimentos foram perdidos, em consequncia dessa operao e
congneres.
No ps-Segunda Guerra Mundial, os pases do Sudeste Asitico que sofreram a
ocupao japonesa receberam, entre 1955-1976, considerveis recursos do Japo, a ttulo de
reparaes de guerra. Menos o Vietn. Nos anos 80, sombra da Questo do Camboja, a
China proclamava-se empenhada em sangrar ao branco o Vietn, enquanto Washington
exercia seu poder poltico para impedir que as instituies financeiras multilaterais abrissem
crditos quele pas. Os prprios EUA somente agora em 1994 levantaram a proibio a
investimentos de firmas americanas no Vietn. Quando, ento, o grande jogo estratgico
mundial levou suspenso da ajuda financeira de Moscou, viu-se o Vietn compelido a
compor suas desavenas com a China e interessar-se pela adeso ANSEA.
O ingresso do Vietn parece agora questo de tempo, facilitada pelo fato de que
ele se est apresentando ANSEA como representante de si mesmo, sem pretenso a lder da
Indochina ou aparncia de agente de terceiros. Mas a impresso prevalecente de que a
adeso formal ainda demorar. A assinatura do Tratado de Bali, a entrada em organismos da
ANSEA como a Organizao dos Ministros da Educao do Sudeste Asitico e a participao
em outros foros regionais podem simplesmente expressar o desejo de estreitar a cooperao
com a associao, sem o comprometimento da filiao. Tanto em Hani como nas capitais da
ANSEA a oportunidade dessa filiao vem sendo motivo de muita reflexo, matizada pela
diversidade dos ngulos de julgamento. Do ponto de vista de Hani, atua, por exemplo, a
considerao de que o bom relacionamento com a China to importante para o Vietn
quanto o bom relacionamento com a ANSEA. No pode o Vietn ver-se usado como um
Estado-tampo entre o Sudeste Asitico, onde persistem temores em relao ao gigante chins,
e a China.
E mister reconhecer que tambm a ANSEA perdeu substncia, no ps-Camboja.
Aquele sistema de crculos concntricos, que nos anos 80 deu ANSEA papel de relevo na
frente diplomtica da Questo do Camboja, est hoje desfeito. Sem o sustentculo direto da
China e dos EUA para sua ao no cenrio internacional, est a ANSEA tendo de usar
imaginao e esprito de iniciativa para exteriorizar influncia apoiada essencialmente nas
suas realizaes intramuros. Em mais de vinte anos de existncia a ANSEA logrou, com
efeito, dotar-se de estruturas estveis, apropriadas para a superao de tenses entre seus
membros e at para o incentivo da cooperao econmica no nvel sub-regional. O efetivo
aproveitamento dessas estruturas aparece, porm, como programa para o futuro. Foi s em
1992, por exemplo, que se colocou em marcha, sem sentido de urgncia, o projeto da rea de
Livre Comrcio da ANSEA (ALCA). H uma sensao generalizada de que a ANSEA
encontra-se em transio. E quando se considera que o tipo de regionalismo por ela construdo
foi profundamente condicionado pela confrontao com o Vietn, em particular sob o impacto
da Questo do Camboja, torna-se lcito prognosticar que a insero do Vietn na associao
exigir a transformao da ANSEA de hoje em algo ainda por ser definido, certamente
voltado para o quadro mais vasto da sia-Pacfico. Tem-se a o segundo daqueles dois
processos, em marcha sob o dilogo de surdos ANSEA-Vietn. Dedicarei adiante uma seo
ao exame das perspectivas que lhe esto sendo abertas pelo ps-Camboja. Antes, preciso
lanar uma vista de olhos sobre...
15
O reformismo vietnamita
O ps-Camboja pode ser visto, otimistamente, como o encerramento de mais de
um sculo de interveno colonialista no Sudeste Asitico, da parte de Imprios europeus,
EUA, URSS, China e Japo. A regio estar apta, a partir de agora, a decidir no seu prprio
quadro o tipo de inter-relacionamento que servir para os pases vizinhos e para o conjunto
deles e o mundo exterior, cuidado sendo tido no tocante China. Nada indica, por certo, que a
China v demonstrar ambies colonialistas em direo ao Sudeste Asitico, mas preciso
no esquecer a situao geopoltica criada pela justaposio de uma zona de fragmentao
poltica ao colosso chins. As dificuldades de relacionamento que da tm nascido, ao longo
dos sculos, prescindem de motivaes coloniais. O Vietn, em particular, no pode descuidar
do fator chins, j que tem sido tradicionalmente visto, em Pequim, como desafiante virtual da
ascendncia da China no Sudeste Asitico.
Mais do que seus vizinhos regionais, sentir o Vietn necessidade de integrar-se
na movimentao global, situao que neste final de sculo o est levando a uma reavaliao
completa das suas posies polticas e econmicas, no intuito de entrosar-se com a revoluo
tecnolgica em marcha no Leste Asitico. O exemplo que a esse respeito lhe deram a China
das Quatro Modernizaes e a URSS de Gorbachev teve peso determinante, inclusive no
fornecimento insubstituvel das racionalizaes que vieram ajudando o Partido Comunista do
Vietn (PCV) a romper com a viso de dois mercados mundiais e passar a buscar um nicho
para a economia vietnamita no mercado nico global.
O Sexto Congresso do PCV (1986) foi um divisor de guas na poltica do Vietn.
Nguyen Van Linh, o ostracizado Secretrio do partido na cidade de Ho Chi Minh, foi
reabilitado durante o Congresso e eleito Secretrio Geral. Sob sua direo, introduziu-se a
poltica dita de doi moi (renovao), abrangentemente reformista, embora priorizando uns
quantos alvos: a poltica econmica, a poltica externa, as instituies polticas e a corrupo.
As reformas iniciadas estiveram muito influenciadas pela perestroika de Gorbachev e,
embora populares a princpio, no puderam deixar de ressentir-se das dificuldades crescentes
que teve de enfrentar o reformismo sovitico. O Stimo Congresso do PCV reuniu-se na
segunda metade de junho de 1991, semanas antes do golpe frustrado em Moscou, que, no
entanto, levou ao desmantelamento da URSS. O Stimo Congresso manteve a orientao
geral no sentido da doi moi, mas moderando-a nos seus impulsos, de maneira a no pr em
risco a primazia do partido. O reformismo vietnamita saiu do Stimo Congresso muito mais
prximo do modelo chins. Cinco meses mais tarde (novembro de 1991), consumar-se-ia a
normalizao das relaes Vietn-China, com a visita de Estado a Pequim do novo Secretrio
Geral do PCV, Do Muoi, e novo Primeiro Ministro, Vo Van Kiet.
Durante o Congresso ocorrera, com efeito, ampla substituio de dirigentes.
Nguyen Van Linh, o grande impulsionador das reformas polticas perdeu a Secretaria Geral,
retirando-se da vida pblica com um grupo de aliados. Destes, o mais conhecido
internacionalmente era Nguyen Co Thach, membro do Bir Poltico e Vice-Primeiro Ministro,
que ocupou a pasta do Exterior durante toda a Questo do Camboja, vale dizer, em
confrontao diplomtica com a China. Seu ostracismo parece ter sido o preo que teve de ser
pago pela reaproximao entre os dois pases.
Desde antes do Sexto Congresso, Thach se notabilizara no plano domstico como
formulador - em intervenes nas diversas instncias do PCV e em artigos na revista terica
do partido - de uma nova viso do futuro do Vietn. Insistia ele que o mundo est passando
por transformaes to profundas quanto as do nascimento da Revoluo Industrial, no ltimo
quartel do sculo XVIII. As velhas abordagens do interesse nacional de um pas e do seu
16
posicionamento internacional estavam ficando obsoletas, ao mesmo tempo em que a
intensificao da revoluo tecnolgica permitia que pases atrasados tomassem pelo caminho
da industrializao, mesmo sem dispor do tempo, capital e recursos naturais exigidos pelos
velhos modelos de industrializao tardia. Era agora possvel, em suma, modernizar-se numa
posio de fraqueza estrutural, como tinham mostrado os NPIs do Leste Asitico. Conta a
pequena histria que Thach tornou-se um estudioso vido da experincia desses NPIs,
montando uma biblioteca pessoal sobre o assunto.
expressivo registrar que a pregao de Thach em favor do entrosamento da
modernizao do Vietn com a revoluo tecnolgica do Leste Asitico antecedeu de vrios
anos a ascenso de Gorbachev, ou seja, no se tratou de reao ao fim da Guerra Fria. As
ideias de Thach refletiram a tomada de conscincia, que perpassou por toda a orla asitica do
Pacfico, de que chegara ao fim a II Revoluo Industrial. E embora Thach tenha sido
afastado da liderana poltica, o dinamismo da nascente III Revoluo Industrial continua a
permear o reformismo vietnamita. Nesse contexto, notvel a expectativa a propsito da
rpida ascenso do Vietn posio de NPI, amplamente refletida pela imprensa internacional.
Que possibilidades reais existem para tal salto, por parte de pas que figura entre
os dez mais pobres do mundo? Ou melhor, dito, que foi reduzido a estado de indigncia e nele
mantido pelo esforo concentrado de adversrios externos. J deixei registrado o preo, em
termos de destruio de recursos naturais, que o Vietn teve de pagar por sua independncia
poltica. Em termo de recursos humanos tambm foi brutal a exao. Somente na metade sul
do pas, a guerra deixou dois teros das aldeias destrudas, 10 milhes de refugiados, 362 mil
invlidos, 1 milho de vivas, 880 mil rfos, 250 mil viciados em drogas, 300 mil prostitutas
e 3 milhes de desempregados. O fim da Guerra do Vietn e a reunificao do pas, em 1975,
no trouxeram a paz e a reconstruo que os vietnamitas pensaram haver-se assegurado. Trs
anos mais tarde estavam enleados na Questo do Camboja, iniciando outra dcada de
isolamento e privaes. certo que essa extenso das dificuldades foi em boa parte causada
por eles mesmos, ao se lanarem tarefa de reorganizao do Estado e da economia com a
rigidez dogmtica de adeptos das frmulas leninistas. Mencionarei apenas a desastrosa
tentativa de aculturao acelerada dos chineses tnicos do antigo Vietn do Sul, determinante
principal da macia evaso dos boat-people.
Mais dignos de encmio so, assim, dirigentes como Thach, que se mostraram
capazes de ir ao fundo dos problemas e botar em marcha medidas corretivas em vrias frentes.
Particularmente positivas foram as correes introduzidas no campo, onde o sistema de
contrato entre o governo e os agricultores, adotado no final dos anos 70, havia levado
retrao dos produtores. Em 1988 houve ameaa de fome no pas, e o Vietn teve de pedir
ajuda humanitria comunidade internacional. Em 1989, os contratos foram tornados mais
vantajosos para os agricultores e uma parte das terras aberta propriedade privada. A
produo do arroz cresceu aceleradamente, e o Vietn tornou-se o terceiro exportador mundial
do produto.
O ambiente internacional para ascender a NPI hoje menos favorvel do que o
enfrentado pela Coreia do Sul e Taiwan, nos anos 70. O valor estruturante do fordismo
exauriu-se, e o mercado americano deixou de estar to aberto s exportaes dos
neoindustrializados. As injees de dinheiro possibilitadas pelas confrontaes da Guerra Fria
(Guerras da Coreia e do Vietn, especialmente) secaram. Cobrir o hiato tecnolgico entre a
desindustrializao e a industrializao tornou-se desafio muito mais custoso, em termos
financeiros e de formao de recursos humanos. Um candidato a NPI precisa agora mobilizar
maiores quantidades de poupana domstica e de influxos financeiros de fora. Precisa, mais
17
do que nunca, contar com elevado grau de coordenao, informao e sentido de oportunidade
da parte de seus governantes e empresrios.
No Leste Asitico, dois impulsos principais vm dando forma marcha da regio
para a III Revoluo Industrial, desde o final dos anos 70: a internacionalizao da economia
japonesa e o robustecimento do capitalismo internacional chins. O Vietn encontra-se na
faixa de superposio desses dois impulsos, e essa posio geoeconmica um dos principais
trunfos disposio dos vietnamitas para superarem o grande atraso material e temporal com
que estaro encetando sua industrializao tardia.
Na medida em que se foi caracterizando a perda de vigor do modelo americano da
II Revoluo Industrial, o Japo surgiu - desde meados dos anos 70 - como o elemento
dinamizador do Leste Asitico. Os quatro NPIs ali nascidos adotaram, cada qual sua
maneira, o modelo japons de industrializao, no cerne do qual est a ao timoneira de um
Estado com vocao desenvolvimentista. Durante algum tempo esteve em moda falar de
revoada de gansos para caracterizar a formao aparecida no Leste Asitico, com o Japo,
ganso chefe, a puxar a fieira dos NPIs. O quadro complicou-se e enriqueceu-se quando os
dirigentes reformistas de Pequim deslancharam, em 1978, seu esforo de entrosamento da
economia chinesa com a revoluo tecnolgica comandada pelo Japo. Comearam a atuar -
de forma complementar, embora com algum contedo de rivalidade - os dois impulsos que
mencionei mais atrs. Esse complexo sistema deu, em conjunto, um salto quntico, no final
dos anos 80, aps a deciso do Grupo dos Sete (Nova York, setembro de 1985) de intervir
administrativamente na fixao da taxa de cmbio das grandes moedas internacionais, na
esperana de tornar competitiva a produo dos EUA. Contrariamente s expectativas, os
grandes beneficirios da nova poltica cambial foram o Japo e os NPIs do Leste Asitico.
Intensificaram-se a internacionalizao e a interdependncia das respectivas economias. Um
sistema econmico solidrio comeou a consolidar-se na orla asitica do Pacfico. Da
integrao nesse sistema tirar fora o Vietn.
Em que pese extrema fraqueza atual da infraestrutura de estradas e portos do
Vietn, ao seu atraso tecnolgico e ao esgarado da sua economia de mercado, oferece aquele
pas uma srie de atributos que o tornam interessante para o sistema comercial/industrial em
constituio no Leste Asitico. Situao a cavaleiro de grandes rotas martimas e areas, no
sendo de esquecer a esse respeito as instalaes da grande base naval de Cam Ranh Bay,
herdadas da guerra com os EUA. Populao superior a 60 milhes de indivduos morigerados
e trabalhadores, com uma das mais altas taxas de alfabetizao da sia, mas dispostos por
enquanto a se empregarem por salrios dos mais baixos da regio. Tratamento do capital
estrangeiro tornado nos ltimos anos um dos mais liberais do mundo. O Japo, Taiwan e
Hong Kong tomaram a dianteira no tocante a investimentos, deixando os investidores
ocidentais em posio secundria, em virtude dos interditos americanos. Somente em meados
de 1993 afrouxaram os EUA seu embargo ao afluxo de capitais multilaterais para o Vietn e,
no primeiro trimestre de 1994, levantaram a proibio a investimentos diretos de firmas
americanas.
No meio tempo, avanou bastante o enquadramento da economia vietnamita pelo
sistema comercial/industrial do Leste Asitico: Japo e NPIs, de um lado; ANSEA do outro.
O mensrio francs Le Monde Diplomatique descreve, no nmero de abril de 1994, o
estabelecimento em curso de quatro zonas triangulares destinadas a um forte desenvolvimento
industrial, e nas quais se espera sejam investidos, at o ano 2000, cerca de 40 bilhes de
dlares. A metade desse dinheiro dever vir do exterior e interessante verificar a
predominncia atribuda aos investidores asiticos. Preveem-se dois enormes tringulos de
18
desenvolvimento, um ao Norte, associado a Hani-Haiphong e a ser puxado pela Coreia do
Sul e Hong Kong, e outro ao Sul, ligado regio da cidade de Ho Chi Minh (Saigon),
confiado a Taiwan e Cingapura. Dois tringulos menores ocuparo a parte central do pas,
confiados Malsia e Tailndia. Ao Japo caber a superviso de todo o sistema.
Evidentemente, a implementao prtica desse e de outros projetos vai ter de
superar enormes dificuldades de tipo social, poltico e administrativo, ligadas a resistncias no
seio do PCV, emperramentos burocrticos e prevalncia da corrupo. E mais do que tudo:
grande carncia de administradores e empresrios, competentes e de esprito moderno. A
este ltimo respeito, no entanto, dispe o Vietn de dois importantes mananciais, que podero
revelar-se decisivos: a dispora chinesa e a sua prpria dispora.
Anteriormente a 1975, os chineses tnicos dominavam a economia do Vietn do
Sul. Controlavam 80% da indstria, 50% das atividades financeiras e bancrias, nove dcimos
do comrcio atacadista (inclusive o comrcio do arroz) e metade do comrcio a retalho. O
chauvinismo ideolgico que se abateu sobre a minoria chinesa, aps a reunificao de 1975,
provocou a emigrao atabalhoada de dezenas e dezenas de milhares de indivduos, enquanto
os remanescentes se retraam de atividades visveis. Uma das principais consequncias da
introduo da doi moi, em 1986, vem sendo a reativao da minoria chinesa no Vietn. Um
censo de 1989 registrou 960.000 chineses tnicos no conjunto do pas, dos quais cerca de 80%
ativos no Sul: a Cidade de Ho Chi Minh abrigava 380.000 deles, enquanto Hani apenas
10.000. Nas condies atuais do Vietn, voltar-se para a economia de mercado equivale a
garantir liberdade de comrcio ao contingente de chineses tnicos. E eles esto reocupando a
cena com vigor, mesmo se cautelosamente. Em agosto de 1991, uma reportagem da Far
Eastern Economic Review calculava que a minoria chinesa s havia posto sobre a mesa, at
aquele momento, algo entre 10 e 20 por cento do capital que lhe era possvel mobilizar.
Recorrendo a seus prprios haveres, ou valendo-se das conexes que tinham sabido manter
vivas com os contingentes de chineses de Cingapura, Taiwan, Hong Kong e pases ocidentais.
O Vietn est surgindo como teatro privilegiado de atuao do capitalismo
internacional chins. Entre 1988 e 1993, dos 7 bilhes e meio de dlares correspondentes ao
valor dos projetos autorizados no Vietn, 40% foram assumidos por capitalistas chineses da
regio. Com os contingentes de Taiwan e Hong Kong nos primeiros lugares, e no por acaso.
Manifesta-se, no caso, a tendncia do Vietn a integrar-se na Zona Econmica da China
Meridional, por vezes chamada a Grande China do Sul, como se fosse o prenncio de um
fracionamento da China. Seria afoito avanar por especulaes desse tipo, muito menos dando
nela um lugar ao Vietn. O que h de concreto que a minoria chinesa do Vietn procede,
sobretudo, da provncia chinesa de Guangdong de onde vm tambm partes substanciais das
populaes de Taiwan e Hong Kong. As conexes no nvel de famlia ou de aldeia so
engrenagem fundamental no funcionamento do capitalismo internacional chins, e o Vietn
no poderia fugir regra. notvel, por exemplo, a intensificao dos voos comerciais nas
rotas Taiwan-Vietn e Hong Kong-Vietn. Apoiados em situaes como essa, analistas mais
imaginosos percebem intuitos geopolticos no interesse de Taiwan e Hong Kong pelo Vietn.
Cabe ainda observar que os investimentos da dispora chinesa no Vietn vm-se
concentrando na indstria leve como fabricao de roupas, trabalhos de madeira e
processamento de alimentos. As exportaes de Taiwan e Hong Kong para o Vietn acusam
forte predominncia de txteis. Os reformistas vietnamitas tm dado, no entanto, grande
ateno reestruturao dos setores estratgicos modernos da economia: energia,
comunicaes e transportes, visando declaradamente constituio de grandes empresas do
tipo trip (capitais nacionais pblicos e privados e capitais estrangeiros) para ocuparem-se
19
desses setores. Em 1991, havia no Vietn 12.000 empresas estatais, em vias agora de serem
concentradas em 2.000, das quais algumas centenas no setor industrial. Entre estas ltimas
predominaro as empresas de capitais mistos, destacando-se as ocupadas com a produo e
comercializao do petrleo.
O Vietn um exportador regional de carvo, mas , sobretudo, a riqueza
petrolfera do pas que tem atrado os capitais internacionais. A produo de petrleo est em
expanso, havendo saltado de menos de 3 milhes de toneladas, em 1990, para mais de 6
milhes em 1993. Os planos so chegar a 30 milhes de toneladas anuais na altura do ano
2000, com a ajuda de companhias estrangeiras. At agora, em consequncia do embargo
imposto por Washington, as petrolferas americanas estiveram fora do jogo e o terreno foi
ocupado, sobretudo, por companhias europeias, as francesas em particular. Apesar da
esperada entrada em cena das petrolferas americanas, haver certamente lugar, no petrleo
vietnamita, para a BRASPETRO.
Voltando quela indagao de se o Vietn tem condies efetivas para ascender
ao estatuto de NPI, cumpre assinalar que nem a intensificao dos laos com o capitalismo
internacional chins, nem os investimentos das transnacionais na economia de base do Vietn
podero, por si ss, empurrar a industrializao do pas. A contribuio da dispora chinesa,
baseada que est nos laos pessoais dos chineses tnicos da metade meridional do Vietn com
as populaes de Taiwan e Hong Kong, vem tendo inclusive um efeito perverso, na medida
em que agrava a tendncia ao crescimento das disparidades regionais, visvel em pases (ex-
Unio Sovitica, ex-Iugoslvia) que abandonam a centralizao econmica pela adoo direta
da livre iniciativa. A descentralizao econmica, concedendo maior poder decisrio s
autoridades locais ou provinciais, permite em geral surtos regionais de crescimento, mas com
risco de confrontaes e at rupturas polticas.
Outro aspecto desse problema o da coincidncia do centro do poder poltico com
o do desenvolvimento econmico. Surgem situaes como a da Tailndia ou da Indonsia, no
Sudeste Asitico: a modernizao concentrada numa nica rea metropolitana e o resto do
pas com parco desenvolvimento econmico. O Vietn v-se favorecido, nesse respeito, pela
separao entre o poder poltico, no Norte, e o polo do desenvolvimento econmico, no Sul.
Isso exige do governo central a implementao cuidadosa de estratgias de desenvolvimento,
capazes de compensar e corrigir as disparidades regionais, com vistas modernizao
harmnica da economia nacional. Em outubro de 1992, o governo de Hani introduziu um
sistema diversificado de incentivos fiscais aos investimentos estrangeiros, consoante o maior
ou menor interesse governamental na industrializao das diversas regies do pas. reas
como a da grande Cidade de Ho Chi Minh faro jus a incentivo zero.
Outra vantagem modernizante de que o Vietn desfruta, relativamente aos seus
vizinhos do Sudeste Asitico com exceo de Cingapura, o da liquidao da velha ordem
rural, levada a cabo no tocante ao Vietn pela guerra e pela revoluo comunista. O Vietn
segue sendo pas essencialmente agrcola. A agricultura absorve 75% da fora de trabalho e
entra com 40% do PNB; tambm com 45% do total do valor exportado. Seu funcionamento ,
no entanto, assegurado por 10 milhes de micropropriedades familiais de 0,2 a 5 hectares.
Desde a descoletivizao de 1988, a horticultura praticamente no recebe mais subsdios
governamentais para a infraestrutura coletiva, o que no impediu que os preos dos produtos
agrcolas baixassem de 22%, em 1993. Ou em outras palavras, o campo vietnamita j se
desfez das estruturas sociais arcaicas que, na grossa maioria dos pases subdesenvolvidos,
atuam como entraves modernizao. Em princpio, pelo menos, o campesinato vietnamita
poder ser facilmente estimulado ao papel de poupadores e consumidores, imprescindvel
20
para os primeiros passos da industrializao, e por fora de consequncia, para a introduo
de mtodos modernos, tecnologicamente avanados, de trabalho agrcola. De entre os filhos e
netos dos atuais camponeses sairo levas de profissionais bem treinados que comporo a
futura elite dirigente do pas.
Coloca-se, a, o problema central de qualquer processo de industrializao tardia:
o aparecimento de uma elite desenvolvimentista capaz de liderar o Estado na implementao
do projeto nacional de modernizao. No caso do Vietn, e a julgar pelo que escreve um
professor vietnamita no j mencionado artigo de Le Monde Diplomatique, outro possvel
celeiro de empresrios audaciosos, mais ou menos competentes e desejosos de servir a um
Estado que seja o estrategista do desenvolvimento, so as Foras Armadas. As quais,
convm recordar, so naquele pas um corpo no convencional, de forte extrao popular e j
com ampla presena na economia e na vida poltica. Cabe finalmente alinhar, entre os
provveis mananciais da elite desenvolvimentista do Vietn, a dispora vietnamita a que aludi
mais atrs.
Os vietkieus, vietnamitas de ultramar, podero ser 4 milhes at o fim do sculo.
Metade deles viver nos EUA e os outros distribudos por pases europeus e a Austrlia. J
vm esses imigrantes desempenhando importante papel na economia do Vietn, com suas
remessas de moeda forte que tm chegado ao bilho de dlares anuais. Tomam impulso,
tambm, as visitas deles velha ptria, com o que se ativam comrcio e turismo. A mais
volumosa dessas correntes de visitantes a procedente dos EUA, e sua simples existncia
ajudou bastante na superao das resistncias domsticas americanas ao levantamento do
embargo econmico ao Vietn.
A expectativa de que, com o passar do tempo e imagem do acontecido com a
dispora chinesa, passe a dispora vietnamita instalada nos pases industrializados a despachar
de volta cientistas e tcnicos, de boa formao, para impulsionar o desenvolvimento
tecnolgico do pas ancestral. A pregao de Nguyen Co Thach no est esquecida no Vietn.
Sob a doi moi, uma srie de medidas foi introduzida a fim de integrar a cincia e a tecnologia
no esforo de modernizao nacional. O governo tem instigado os cientistas a tornarem mais
autossuficientes seus institutos, aos quais as autoridades se limitam a fornecer gua e
eletricidade. A imprensa ocidental tem descrito casos de laboratrios em que os responsveis
cumprem contratos de trabalho no exterior, vrios meses por ano, de modo a compensar a
remunerao mensal de 20 dlares com que tm de manter-se no resto do tempo.
O Vietn entre a geopoltica e a geoeconomia
Na seo anterior procurei apontar as potencialidades positivas e negativas
disposio do Vietn, com vista sua transformao em prazo mdio num outro NPI do Leste
Asitico. O sopesamento dessas potencialidades permite a concluso realista de que, se tudo
correr sofrivelmente bem, poder o Vietn estar-se posicionando, no comeo do prximo
sculo, para a largada na corrida por sua efetiva modernizao. Mais dez ou quinze anos sero
ento necessrios para que o Vietn se aproxime do atual estgio de desenvolvimento da
Coreia do Sul ou Taiwan.
Realista tambm ter presente que a chave desse possvel avano no vai residir
na adeso acrtica do Vietn s receitas do chamado Consenso de Washington, que umas
quantas instituies internacionais tentam fazer passar - aos olhos dos pases latino-
americanos em particular - como o segredo do xito dos asiticos. O xito dos asiticos teve
muito que ver, sem dvida, com o ajustamento das suas economias s exigncias de um
21
mercado altamente competitivo. O que muitas vezes no se leva em conta, porm, que os
fluxos de comrcio e de capitais deixados correr no Leste Asitico, no ps-Segunda Guerra
Mundial, estiveram o tempo todo contidos por um quadro institucional montado na orla
asitica do Pacfico, em torno de 1950, em conformidade com os interesses estratgicos da
Pax American. A livre concorrncia prosperou, naquela regio, na medida em que o Estado
hegemnico da poca deixou margem, a Estados locais, para governarem seus respectivos
mercados. Nesses limites, a qualidade dos resultados alcanados neste ou naquele pas
dependeu, claro, do grau de profissionalismo e da clareza de viso das elites
desenvolvimentistas nacionais.
A partir de meados dos anos 70 comeou o refluxo da Pax American, e a
economia internacional liberal montada pelos EUA passou a mal funcionar. Como tpico
dos perodos de ps-hegemonia, o antigo hegemona veio demonstrando dificuldade em
adequar-se aos novos tempos. Marcados, no tocante ao Leste Asitico, pelo fortalecimento j
no final dos anos 80 da interdependncia e crescente autonomia de um sistema econmico
centrado no avano tecnolgico e financeiro do Japo. Tentando caracterizar a essncia dos
dois momentos histricos, direi que entre as dcadas de 50 e de 70 o progresso econmico do
Leste Asitico esteve subordinado geopoltica; a partir dos anos 80, a poltica ali comea a
depender da geoeconomia.
O Vietn est buscando inserir-se na comunidade das Naes e no mercado
internacional em meio a essa mutao histrica. Robert A. Manning, um pesquisador da
George Washington University que at maro de 1993 figurava entre os formuladores da
poltica asitica dos EUA, descreveu com preciso a nascente realidade, em nmero recente
do World Policy Journal: This burgeoning economic and technological dynamism is a
principal unifying factor in the Pacific, reshaping the interests, outlooks, and conceptions of
security for a new generation of decision-makers. The new logic of geo-economics, and the
imperatives flowing from the Paramount importance attached to commercial and
technological capabilities, is pitted against the traditional logic of geopolitics: new
requirements for partnership versus lingering suspicions and old ideas of nationhood. This
geo-economic logic also argues for a more expansive definition of what constitutes security -
what has been termed comprehensive security. That is to say, the notion that a range of
issues beyond the military balance - economic development, environment, refugee flows - is a
factor in the security equation.
A industrializao do Vietn ser em grande parte funo da nova geoeconomia
do Leste Asitico; do entrosamento, por exemplo, da economia vietnamita com o crculo de
crescimento da Grande China do Sul. A simples potencialidade de um desenvolvimento est
criando condies para a aproximao poltica do Vietn com os EUA, por cima dos
ressentimentos mtuos deixados por dcadas de confrontao sangrenta. Em importantes
setores governamentais e empresariais americanos, o Vietn comea a ser visto como espcie
de plataforma a partir da qual podero os EUA conquistarem, para si, posies no novo eixo
econmico do Leste Asitico. Os vietnamitas descobrem, numa evoluo desse tipo, a
oportunidade de um poderoso patrono para a sua prpria modernizao. Obter de Washington
a clusula de NMF considerado em Hani como muito mais valioso, em termos financeiros,
do que o total de capitais que o Vietn poder levantar junto s instituies financeiras
multilaterais.
A aproximao EUA-Vietn possui, igualmente, importante dimenso estratgica,
que vem sendo explorada com discrio. Trata-se da posio geogrfica ocupada pelo Vietn
no corao de uma das reas em que o Governo Clinton gostaria de ver surgirem novos
22
mecanismos de gerenciamento ou de preveno de problemas potenciais, capazes de
funcionar sem a necessidade de interveno dos EUA - para usar a frmula empregada pelo
Secretrio de Estado Adjunto Winston Lord. A rea em questo o Mar da China do Sul,
onde as projees de poder da China (no tocante, por exemplo, prospeco petrolfera em
zonas de soberania contestada no arquiplago das Spratley) j vm causando preocupao.
Cria fora a ideia de que as polticas de defesa dos EUA e do Japo ganharo em coordenar-se
a esse respeito com as intenes do Vietn.
Atravs de publicaes como a Far Eastern Economic Review e outras voltadas
para os meandros da poltica e da economia do Leste Asitico, vem sendo possvel
acompanhar o discreto trabalho diplomtico de normalizao das relaes EUA-Vietn,
encetado ainda em 1991, com as sucessivas misses ao Vietn do General John Vessey.
sombra da busca de soluo para o problema dos soldados americanos feitos prisioneiros
durante a guerra, mas de cujos destinos no foi dada conta ao terminar o conflito (a questo
dita dos MIAs, que se tornou bandeira de influentes lobbies nos EUA), o General Vessey
teceu uma ampla rede de relaes nos mais diversos setores do partido e do governo
vietnamitas, preparando o terreno para o anncio finalmente feito pelo Presidente americano
(4/02/94), de que fora levantado o embargo ao comrcio com o Vietn, em vigor havia trinta
anos. Os cuidados que cercaram esse anncio, a fim de no provocar embaraos polticos
domsticos para o Presidente Clinton, no foram suficientes para ocultar a dimenso
estratgica da normalizao das relaes econmicas evidenciada atravs das significativas
visitas feitas a Hani, em dezembro de 1993, pelo Secretrio de Estado-Adjunto Winston
Lord e pelo Almirante Charles Larson, Comandante-em-Chefe da VII Esquadra americana.
Do lado vietnamita tudo se vem passando como se a principal preocupao das
autoridades fosse passar uma esponja sobre as fases polmicas da confrontao com os EUA.
O episdio que tem sido posto em relevo, no quadro do relacionamento entre os dois pases,
o da formao nos idos de 1945 de um destacamento misto, com oficiais americanos do
Office of Strategic Services, lanados de paraquedas na selva, e guerrilheiros de Ho Chi
Minh. O destacamento, cuja misso foi marchar sobre Hani para desarmar os japoneses e
partidrios do regime de Vichy, teve como comandante o comunista Dam Quang Trung, hoje
um influente general do regime vietnamita.
A ANSEA e o Pacfico
O ps-Camboja colocou a ANSEA frente a frente com as exigncias do ps-
hegemonia. Desde os anos 80 tomava corpo, nas capitais do Sudeste Asitico, um sentimento
de inquietao quanto a no se mostrar a ANSEA altura das previsveis confrontaes, entre
os interesses nacionais e regionais dos pases-membros e as modificaes j visveis no
quadro poltico e econmico global. Em comentrio recolhido pelo Straits Times (23/03/90),
o Ministro do Exterior de Cingapura expressaria com franqueza e realismo a dvida que seus
pares vinham remoendo: A ANSEA brilhou enquanto o Ocidente esteve vitalmente
interessado no xito de um agrupamento pr-ocidental de pases do Terceiro Mundo. Vamos
agora ter de trabalhar dobrado se quisermos manter a ANSEA relevante. - explicou Wong
Kan Seng.
Particularmente inquietante para os lderes da associao vinha sendo o
fortalecimento da movimentao pan-pacfica. At a abertura dos anos 80, a
institucionalizao da cooperao pan-pacfica estivera refreada pela preferncia dos EUA de
conduzirem em termos bilaterais, pas por pas, seu relacionamento com a bacia do Pacfico.
Essa atitude do hegemona convinha aos pequenos pases da rea, como os reunidos na
23
ANSEA, os quais relutavam em se engajar em sistemas multilaterais com as grandes
potncias, em alguns casos os seus antigos colonizadores. Esta ltima circunstncia, alis,
pesaria bastante na resistncia da ANSEA em enquadrar-se em esquemas como o do Conselho
Econmico da sia-Pacfico (a APEC da sigla inglesa), pelo temor de ver sufocada a voz do
Terceiro Mundo, da qual os membros da ANSEA se consideram portadores, no sem alguma
sinceridade. Na Indonsia e na Malsia, por exemplo, forte a identificao com as posies
do Movimento dos No Alinhados.
Contra esse pano de fundo, os cinco fundadores da ANSEA desenvolveram um
sistema de procedimentos e convenes, muito marcado pela evoluo da Questo do
Camboja, e que se mostrou eficaz em assegurar aos pases-membros os benefcios de um
apoio coletivo, nos problemas polticos e de defesa. Que lhes permitiu, ainda mais, sustentar
um proveitoso dilogo em matrias econmicas, com seus grandes parceiros: os EUA, a CEE
e o Japo. As reunies anuais entre os Ministros do Exterior e da Economia dos pases da
ANSEA e o seleto grupo de parceiros do dilogo representaram, at a fundao da APEC, o
nico foro multilateral governamental em funcionamento na sia-Pacfico. O documento de
criao da APEC reconheceu a anterioridade dessas conferncias ps-ministeriais da
ANSEA, atribuindo-lhes papel especial no futuro.
Os mecanismos de consulta e de formao de consenso entre os membros,
aprimorados pela ANSEA sombra da Questo do Camboja, tinham sido lanados durante a
crucial reunio de cpula da associao em Bali (Indonsia), no ms de fevereiro de 1976. Na
ocasio assinaram-se a Declarao de Concrdia e o Tratado de Amizade e Cooperao no
Sudeste Asitico, documentos-chaves, que tambm chamaram a ateno dos pases-membros
para a necessidade de ativarem sua cooperao econmica. Esta outra vertente das
preocupaes da ANSEA figurava, na verdade, como a justificativa central da associao,
continuamente reiterada, mas servindo quase sempre de vu para as realidades da cooperao
poltica, inclusive no relacionamento com os poderosos parceiros externos. O alerta feito soar
em Bali tampouco deslancharia um processo efetivo de cooperao econmica no quadro do
Sudeste Asitico, conforme reconheceria, dez anos mais tarde, a Cpula de Manila (dezembro
de 1987). A essa altura, j se estavam tornando prementes as exigncias do ps-hegemonia,
mas quatro anos ainda iriam transcorrer at que a Cpula de Cingapura (janeiro de 1992)
desse um impulso timorato no sentido da criao da rea de Livre Comrcio da ANSEA
(ALCA).
O projeto da ALCA fora apresentado pela Tailndia, na reunio de 1991 dos
Ministros do Exterior da ANSEA, realizada em Kuala Lumpur. A Indonsia, sem entusiasmo
por medidas de abertura econmica, retrucara com um complicado esquema dito da Tarifa
Preferencial Comum Efetiva (CEPT na sigla inglesa), que estabelece prazos distintos para
pases e mercadorias. Da cpula de janeiro de 1992 saiu um compromisso, pelo qual foi
ampliado o prazo para a entrada em vigor da ALCA, de dez para quinze anos, e o CEPT foi
adotado como o mecanismo para a reduo gradual das tarifas. As perspectivas de
concretizao da ALCA so bastante tnues.
Enquanto a ANSEA ia assim prosseguindo sua hesitante marcha no sentido da
integrao econmica sub-regional, ganhava impulso a disposio do Japo de expandir suas
atividades econmicas no Sudeste Asitico, dando incio ao que personalidades da rea como
o antigo Ministro das Relaes Exteriores da Indonsia, Mochtar Kusumaatmadja, descrevem
como o terceiro estgio do desenvolvimento das economias da ANSEA: a fase do crescimento
puxado pelo Japo. Esto essas economias sendo arrastadas a integrar-se numa nova diviso
regional do trabalho, tpica do atual perodo de ps-hegemonia.
24
Parece apropriado introduzir, aqui, algumas consideraes de ordem terica sobre
minha contnua referncia ao ps-hegemonia. No h, no caso, inteno crtica em relao ao
perodo anterior, da estabilidade hegemnica liderada pelos EUA. Estou apenas adotando a
tese, amplamente aceita por cientistas polticos, de uma recorrncia histrica de perodos de
hegemonia e, necessariamente, de perodos intermedirios, ps-hegemnicos. Existe, hoje,
toda uma douta literatura procurando definir as caractersticas desses diversos perodos e
explicar os mecanismos polticos e econmicos das suas ocorrncias. No ser este o lugar
para aprofundar o assunto. Limitar-me-ei a algumas observaes que ajudaro a captar o
dinamismo das transformaes em curso no Leste Asitico.
Para o estabelecimento da ordem mundial caracterstica dos perodos de
estabilidade hegemnica imprescindvel a existncia de um pas com a aptido e a
determinao de assumir a posio de hegemonia. Os autores divergem na identificao do
atributo que revela a aptido a lder. A preponderncia militar o atributo mais geralmente
aceito, mas h quem destaque a primazia econmica ou, com mais razo, insista na
necessidade de uma combinao desses dois fatores. Examinando-se com ateno as duas
fases de estabilidade hegemnica da Idade Industrial - a Pax Britannica e a Pax American -
salta aos olhos a ocorrncia, no cerne da primazia econmica do pas lder, de um paradigma
sociotecnolgico que serviu como modelo da modernidade do perodo. S era moderno,
habilitado a desfrutar das benesses da ordem mundial prevalecente, o pas que soubesse ou
pudesse organizar sua sociedade e sua economia em conformidade com o paradigma
universalizado pelo hegemona. A viso da evoluo histrica como sucesso dinmica de
paradigmas sociotecnolgicos, cada um deles desdobrando-se do anterior em funo da
transformao tecnolgica, s recentemente comeou a impor-se aos espritos. Haja vista o
titubeio atual na busca de compreender o mundo do ps-Guerra Fria, privilegiando o fator
militar, quando a verdade que a linha divisria entre a velha ordem e a ordem mundial ainda
por constituir-se aparece bem clara no esgotamento, na dcada de 70, do valor estruturante do
paradigma americano da II Revoluo Industrial. Os vestgios da preponderncia militar dos
EUA seguem presentes, e ampliou-se inclusive a parcela do globo que tira vantagem da
existncia desse guardio da lei e da ordem. Mas a economia mundial est tendo de
reorganizar-se segundo novos parmetros, aos quais os prprios EUA vo tendo dificuldade
em adequar-se.
Tal foi o mundo ps-hegemnico diante de cujas exigncias encontrou-se a
ANSEA, quando a superao da Questo do Camboja a sacudiu da quietude confortvel sob a
qual prosperara.
O Pacfico Ocidental foi uma das reas do globo que mais preocuparam os
estrategistas da Pax American. O fortalecimento econmico do Japo foi a base sobre a qual
se levantou o dispositivo de conteno do comunismo, na margem asitica do Pacfico, e para
garantir a prosperidade da oficina natural do Oriente, viram-se as economias primrio-
exportadoras do Sudeste Asitico atreladas reindustrializao do Japo. Como supridoras de
matrias primas minerais e alimentares, e absorvedoras das manufaturas de baixa e mdia
tecnologia que o Japo devia produzir. margem dessa esfera comercial do Leste
prosperaram Coreia do Sul e Taiwan, os dois mais bem sucedidos ensaios de industrializao
tardia da segunda metade do sculo XX. J mencionei como todo esse conjunto encetou
caminho prprio nos anos 70, sob o impulso dinmico do Japo e levando consigo a China. E
como, no final dos anos 80, transformou-se o conjunto num sistema solidrio e dinmico,
prenunciador dos relacionamentos econmicos e estratgicos do sculo XXI.
25
Os prprios japoneses se encarregaram de levar aos pases da ANSEA a boa nova
de que a tradicional interdependncia entre as respectivas economias ia agora obedecer a
critrios mais consentneos com as alteraes havidas na liderana do Pacfico Ocidental. A
supremacia incontestvel dos EUA na regio, fosse no plano militar fosse no plano
econmico, era coisa do passado. As duas esferas de atuao hegemnica haviam sido
desconectadas. No pretendia o Japo contestar a ascendncia militar dos EUA, e tinha
inclusive interesse em ver os americanos tranquilizando as capitais do Sudeste Asitico
quanto ao eventual ressurgimento do expansionismo japons. Mas convinha ter presente que o
Japo ascendera o lder financeiro do mundo e principal distribuidor de ajuda econmica
oficial.
Mensagens desse tipo foram transmitidas ANSEA em vrias oportunidades: pelo
Ministro Tamura, do MITI, numa reunio em Bangkok, em meados de 1987; pelo Primeiro
Ministro Takeshita, em dezembro do mesmo ano, na Cpula de Manila; pelo Ministro do
Exterior Nakayama, na reunio dos parceiros do dilogo, aps a Conferncia Ministerial de
1991, em Kuala Lumpur. Nakayama indicou a determinao de Tquio de participar com
mais vigor no encaminhamento das questes de segurana do Sudeste Asitico, expressando a
concordncia do Japo com a ideia em discusso no mbito dos Institutos de Estudos
Estratgicos da ANSEA, no sentido de transformar as conferncias ps-ministeriais em foro
para o debate, com os parceiros de fora, dos problemas de defesa da regio. Embora essa
manifestao de interesse do Japo por assunto que lhe era tradicionalmente proibido tenha
ocasionado reaes negativas, a Cpula de Cingapura (janeiro de 1992) estabeleceu que a
ANSEA deve intensificar os seus dilogos externos em matrias polticas e de segurana,
atravs das conferncias ps-ministeriais da associao. A frmula usada no representou,
contudo, a institucionalizao desse foro.
A ANSEA manteve-se, na verdade, fiel estrutura de defesa herdada da poca da
hegemonia americana, e que se desdobra em trs planos. Os EUA efetuam exerccios militares
bilaterais com cada um dos membros da ANSEA. Os membros do Arranjo de Defesa das
Cinco Potncias (Gr-Bretanha, Austrlia, Nova Zelndia, Malsia e Cingapura) efetuam seus
exerccios conjuntos. Os pases da ANSEA conduzem entre si exerccios bilaterais. O fato
que as clivagens do Sudeste Asitico e a grande desproporo de poderio militar entre os
pases da rea e seus eventuais aliados externos tm impedido tradicionalmente o
engajamento da ANSEA em esquemas de segurana coletiva. Desenvolvimentos inesperados
podero da sair para a associao, na poca do ps-hegemonia. Em janeiro de 1993, num
discurso de impacto pronunciado em Bangkok, o Primeiro Ministro Miyazawa deu um passo
mais na desenvoltura com que o Japo passou a manifestar-se no tocante s necessidades de
defesa da sia-Pacfico, anunciando a disposio de Tquio de participar de um foro
multilateral de segurana para a sia, segundo o modelo da Conferncia Europeia de
Segurana e Cooperao. A Austrlia j vinha promovendo ideia nesse sentido, utilizando o
quadro institucional da APEC.
Tambm na esfera econmica est o ps-hegemonia colocando para a ANSEA a
necessidade de bem dimensionar suas pretenses sub-regionais, a fim de no ver sua
importncia diluda no quadro maior da cooperao pan-pacfica. As presses vm, no caso,
sobretudo da parte das firmas japonesas, em confirmao mais uma vez da concorrncia, no
atual perodo de ps-hegemonia, de duas tendncias da economia mundial: de um lado, a
regionalizao, expressando a obrigao que ainda incumbe aos Estados nacionais de
cuidarem da paz e da guerra entre os povos, bem como da ordem interna e do bem estar geral
nos territrios sob sua soberania; de outro lado a chamada globalizao, resultado do desejo
26
de firmas poderosas de atuarem em escala mundial. Forma superior da multinacionalizao, a
globalizao no uma etapa necessria do processo de concentrao dos capitais, muito
menos uma fatalidade histrica. Ela , antes de qualquer coisa, uma estratgia de expanso
dos negcios, a que recorre firma cheia de dinamismo, insatisfeita com as oportunidades
limitadas que o mercado interno veio a oferecer para o aproveitamento timo dos recursos de
conhecimento e capacidade gerencial pela firma acumulados.
At meados dos anos 80, poucas firmas japonesas investiam diretamente no
exterior. A exceo eram as companhias gerais de comrcio existentes no quadro de cada um
dos grandes conglomerados comerciais-industriais, e que se encarregavam de organizar a
produo e circulao, no mbito mundial, das matrias primas necessrias rodagem da
economia japonesa. Foi s depois da j mencionada interveno do Grupo dos 5 no mercado
monetrio mundial que tomou vulto a efetiva internacionalizao das firmas industriais
japonesas, partes integrantes como as companhias gerais de comrcio dos diversos
conglomerados, os keiretsus.
Duas motivaes principais deslancharam a globalizao das firmas industriais
japonesas. O fortalecimento do iene diante do dlar tornou o mercado domstico japons mais
acessvel s manufaturas dos EUA (objetivo buscado pela manipulao cambial do G-5), mas
aumentou em contrapartida o poder aquisitivo do iene, abrindo caminho para o surto de
aquisies e investimentos do final dos anos 80, que transferiu para os EUA e a Europa
Ocidental uma parte da produo do Japo. Simultaneamente, o maior contedo tecnolgico
da nova produo japonesa passara a reduzir a importncia das companhias gerais de
comrcio na exportao das manufaturas dos keiretsus: eram elas agora vendidas em
pequenos lotes, e beneficiavam-se com a existncia de instalaes de apoio e servios de ps-
venda, tudo o que aconselhava a presena local do prprio fabricante.
Aps um primeiro momento de expanso no quadro da OCDE, as firmas
japonesas voltaram suas vistas para os pases vizinhos, a China inclusive. Ao se deslocarem
para o Leste Asitico, os grandes fabricantes arrastaram consigo um enxame de pequenas e
mdias empresas e logo se constituiria o que os prprios japoneses chamam um colar
estratgico de bases de investimento. No Sudeste Asitico, trs economias primrio-
exportadoras - a Tailndia, a Malsia e, mais recentemente, a Indonsia - foram
particularmente sacudidas pela globalizao das firmas japonesas, num movimento que
acompanhado de perto por funcionrios do MITI, convenientemente lotados nas Embaixadas
japonesas do Sudeste Asitico. So os resultados adequadamente quantificados dessa
interao entre a globalizao das fir