Caetana diz não

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 - W _ Caetana diz  não patriarcado  perturbado Nas  semanas  precedentes ao casamento, fizeram-se os prep; rativos  católicos  usuais: assinaram-se  papéis pagaram-se taxa publicaram-se  os banhos.  Então nu m dia de  primavera,  em  outi br o  de 1835, na fazenda Rio  na  província  de  S ã o  Paulo, ui padre, que  viera  da  vila próxim a  de Santo  Antônio  de Paraibun preparou-se para celebrar a missa na capela da fazenda. Com  < bancos arrumado s, el e  aprontou  o altar c om o s  castiçais de  quati palmos  de altu ra, missal, sino e  cálice e  vestiu  os trajes  sagradí sobre sua ba tin a preta. Duas testemunhas estavam a postos, ei quanto o  noivo  espera va à port a da ca pela.  A  jovem»noiva que  d < morou-a  s e  vestir  da  melhor  forma,  finalmente se apres entou pai a  cerimónia. Dita a  missa  e  dadas  a s  bênçãos  matrimoniais,  o padj partiu  da fazenda e  retornou  a sua  casa  na  vila. 1 Essa  cena  agradável mas aparentemente sem interesse,  rev< la  u m casamento de escravo s e,  com .iss o, capta  nossa  atenção noiva,  Caetana, co m talvez  dezessete  anos, e o  noivo,  Custódio d vinte  e tantos anos, eram companheiros de  escravidão ou  parce r os ter mo que os reconhecia como pertencentes ao mesmo senho 3

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por que uma escrava jovem l u tou co m tenacidade contra seu casa-mentp.JEssas fontes nã o reve lam co rn j ãc i l i dade ou diretamente a

vida í n t i m a da mulher que atrai nossa curiosidade tanto tempo

depois de sua época . Após encontrar o caso da ape lação no arqui

vo eclesiást ico da Bahia, o processo o r ig ina l inc lu ído em suas p ág inas, retornei a Paraibuna e ao lugar onde tudo c o m e ç o u , para

investigar os acontecimentos circundantes. Com os mapas dep o p u l a ç ã o , os testamen tos e os i n v e n t á r i o s post mortem y posso

reconstruir contextos vivos, esboçar cenár ios prováveis e sugerir

possibilidades imprevistas.

Essas mesmas fontes nos conduze m dos eventos imediatos dah i s t ó r i a de Caetana para os m ú l t i p lo s contextos em que ela estáinserida e l a n ç a m luz sobre a sociedade mais ampla de qUe Rio

Claro era uma parte tão pequena: vida de v i la ; conflitos entre

fazendeiros; p ad rões de posse de terras, d ív idas e heranças ; as ins

t i t u i ções da autoridade civil; e as leis da Igreja. Oco r r ênc i a de casa-^mentos entre escravos, usos do apadrinhamento, hierarquias àé

trabalho, d i s t inções nas cond ições de vida, a precariedade da vidaV^famil ia r dos escravos e sua estabilidade — tud o isso ganha novo.'

relevo quando visto a t r avés daexpe r i ênc i ades s a escrava. Podemos\

examinar as expressa masculina e os usos da au tp ^

ridade dos homens, tanto c ív ica quanto d o m é s t i c a ; a amizade -

entre fazendeiros; o celibato feminino desej ado; e os degraus de

autoridade dentro de uma família escrava.A l é m disso, esse texto legal no t áve l e s e r r rdúv ida ún i c o nos

fpermite descobrir como os eventos n um pequeno c í rculo de rela-[ ç õ e s escravo-senhor, quan do e xaminado s de perto , se revela m» instrutivamente mais complexos e menos a r b i t r á r i o s do que

supo mos. Seria simples descartar Tolosa como u m senhor pode

roso e Caetana como a escrava indefesa, mas essa i n t e rp re t açãofácil não funciona. Ele, de fato, or deno u que ela casasse e ela sabia

que tinha de obedecer, mas ela l u tou e ele cedeuAUm la r quase

modelar de ordem patriarcal e escravista se tornou p r o b l e m á t i c oquando Caetana disse n ão . Po r causa dela, toda a hierarquia

masculina — dono, t io, marido e Igreja — fo i pertur bada. Por

tanto, é uma h i s t ó r i a diferente: um senhor arrependido, umafamí l ia escrava severa e uma Igreja indiferente. Nessa sociedade

de poder radic almente desigual, havia mais escolhas para todo s

os lados do que podemos imaginar em p r i n c í p i o . ParifCaetana,liberdade não era escapar da s e r v i d ã o , mas simplesmente levarum a vida de solteira. Sua luta n ão se d i r i g i a contra a e s c r av idãoem n en hum sentido co mum, mas era a r e s i s t ê n c i a de umá

mulher jovem^contra a autoridade masculina. Nã o é o que esperamos , mas é o que aconteceu,

E N Á R I O S

Os c ená r io s da h i s tór ia de Caetana — fazenda, v i la , mun ic íp i o — - c o m e ç a m co m a propr iedade do c ap i t ão Tolo sa e sua espo

sa, dona A na Joaquina Moreira de Tolosa, na d é c a d a de 1830. Nã o

sabemos quase nada sobre o passado de Tolosa, exceto que era umc idadão brasileiro , apesar do nome aparentemente espanhol, e

nascera em Ta u b a t é , enquanto A na Joaquina pertenc ia à proemi

nente famí l ia Moreira da Costa, t a m b é m de Ta u b a t é , importante

centro regional do rio Para íba , a cerca de dez légu as çle Paraibuna.É quase cert o que Ana Joaqu ina tivesse her dad o uma gra ndeextensão de terra de seus pais, sesmaria concedida n o século xvinpelo r ei p o r t u g u ê s a seu pai e a um parente, pro vavelment e umi r m ã o , que media uma l égua de frente e t r ê s l éguas de fundos,

situada entre os rios Paraitinga e Paraibuna. U m i n v e n t á r i o dos

bens dos Tolosa feito em 1834 descrevia uma co lcha de retalhos de

terras medidas nã o por coordenadas de agrimensor, mas demar

cadas po r re ferências a vizinhos, tais co mo as 424 b r aças de terras

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c o m l imi tes irregulares ao lado de uma c o n c e s s ã o real outrora

feita a um padre j â falecido, o u a meia l é g u a entre as terras perten- —.centes a um a certa dona Marc iana e à v i ú v a dona Maria C u s t ó d i a .N ã o havia necessidade de registrar nomes completos: os contem

p o r â n e o s os reconheceriam. R e f e r ê n c i a s a acidentes igualm ente

familiares da paisage m, tais com o abaixo da cachoei ra do inve r

n o (àp que tudo i ndica seca dura nte as outras e s t a ç õ e s ) , ou a l é mdo rio Paraibuna indic avam outras p o r ç õ e s de te rra. Um lote era

identificado simplesmente como uma quantidade de terra de

meia l é g u a de fundos, outro era uma pequena p o r ç ã o de terra

onde vive A n t ô n i a da Cunha . As propriedades nã o eram c o n t íguas e nã o há um n ú m e r o só que resuma clarament e a á r e a que

cobr i am, mas sabendo que pelo menos quatro lotes de terra

t i nham cada um meia l é g u a de fundos, ou cerca de 3,3 q u i l ó m etros, e que u m qui nto terre no tin ha cerca de sete q u i l ó m e t r o s qua

drados, podemos dizer que as terras da fazenda Rio Claro eramextensas, s e n ã o vastas. Bem irrigadas pelo ri o Paraibuna, u m dos

formadores do P a r a í b a , essas terras compreendiam t a m b é m tre

chos substanciais de s e r t ã o .6

T a l c omo a maio ria das propriedades do distrito, as terras c u l --. J à y a d a s da fazenda R i o Claro estavam dedicadas principalmente ao

oa£ê*£rnbora os censos de 1830 e 1835 in di que m que Tolosa p l a n

tava grandes quantidades de m i l h o , f e i j ã o e arroz, os dados de

e x p o r t a ç ã o de 1835 do porto mais p r ó x i m o mostram que só

pequenas quantidades desses produtos (e u m pouco de tabaco)

i a m para mercados de fora da r e g i ã o , sugerindo que os fazendeirosusavam essas colheitas para s u b s i s t ê n c i a p r ó p r i a e dos escravos,

vendendo de vez em quando os excedentes no mercado local. E tal

como os muitos fazendeiros que criavam gado, cavalos ou porcos,

Tolosa abatia ou vendia animais para outras pessoas da r e g i ã o .7

Mas o ca fé era o valioso produto de e x p o r t a ç ã o . De i n í c i o planta

do no Brasil na r e g i ã o a m a z ô n i c a , em 1727, o ca fé só se tornou

cS

Ti f r m f TO a l m ç q t e significativo na d é c a d a de 1820, quando u m

punhado de f a m í l i a s , que l o g o se t o r n a r i a m p o d e r o ^ s , s f _ Stfl .be-

leceu no vale do m é d i o P a r a í b a e c o m e ç o u a exportar ca fé pelo

porto do Rio de TãnêTfo; Mais ou menos na mesma é p o c a , o caféapareceu no alto P a r a í b a , no norte da p r o v í n c i a de S ã o Paulo, e emá r e a s entre o vale e a costa. Já em 1814, uma autoridade de São

Paulo, Manuel da Cunha de Azeredo Souza Chichorro, o homem

que depois aparece como am igo de Tolosa e aliado e s p o n t â n e o de

Caetana, inform ava ao c a p i t ã o - g e r a l que os dist ritos da capitania

plantavam mui to café .8 E os pés flores ciam. Na d é c a d a de 1830,

quando se podia contar apenas um senhor de engenho de a ç ú c a rentre os 83 grandes fazendeiros de café e outros 267 pequenos agri

cultores que t a m b é m plantavam esse produto e criavam algum

gado, o ca fé claramente c o n s t i t u í a o s u st e n t á c u l o e c o n ó m i c o do

distrito. 9

Q u ã o rico Tolosa f i cou c om o café? Uma medida aproximadade sua fort una pode ser calculada seguindo a estimat iva de Danie l

Pedro M u l l e r e m 1838 de que um p é v i ç o s o de ca fé produzia duaslibras (quase um q u i l o ) de café por ano. Em 1834, havia cerca de

30 m i l p é s de café na fazenda Rio Claro. De modo c o m p a t í v e l com

essa estim ativa, emj.830 Tolosa vendeu 2; mil arrobas do produto,

- cerca de 30 m i l quilos. 10 A colheita de Tolosapode parecer i n s i g n ificante se comparada com a p r o d u ç ã o da d é c a d a de 1850, quandoo c a f é estava em seu auge no vale do P a r a í b a e u m ú n i c o fazendeiro colhia café de v á r i a s centenas de milhares de p é s , mas em com

p a r a ç ã o com outro s produtore s dessa parte do vale, mais oumenos da mesma é p o c a , Tolosa era um produtor importante.

Como uma das 83 fazendas de café da r e g i ã o , Rio Claro respondeup o r quase um d é c i m o de todo o ca fé vendido pelo d is t r i to em

1830. 11 Com cerca de quarenta anos de idade quando o processo deCaetana c o m e ç o u , Tolosa deve ter inici ado relativame nte jovem

sua p l a n t a ç ã o , o que o situa na primeira g e r a ç ã o de fazendeiros a

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apostar suas fortunas e seus futuros no café. A aposta valeu. Nadécada de 1830, supondo-se uma colheita anual de pelo menos 2m i l arrobas, a um preço médio de 3$2ÓÓ por arroba, Tolosa pocfiã

contar com uma renda bruta anual de 6:400$000, sobre a qualpagava dez por cento de imposto agrícola para a província e setepor cento de impost o de exportação para o governo imperial. Era

uma renda substancial, suficiente para comprar duas casas nacidade ou até dez escravos de primeira. Em 1834, os bens de Tolosaé sua esposa ti nham um valor líquido de 55 contos de réis. 12 Entreseus colegas fazendeiros, Tolosa era ujnjiólido homem rico numaeconomia próspera.

O título de propried ade de Rio Claro nã o é simples de reconstruir. Como o inventário de 1834 deix a claro, Tolosa e sua esposapossuíam em conjunto somente metade d os maiores lotes de terrada propriedade e metade dos pés de café, bem como metade dogado, das mulas e juntas de mulas, porcos, ovelhas e cabras e, portanto, tinham direito à metade do lucro. Por outro lado, eramdonos sozinhos das casas, das oficinas de c arpintar ia e ferraria, ferramentas, paióis, engenhos de moer e moinhos — ou seja, dasinstalações físicas. Os escravos listados em 1834 somavam umpouco mais da metade daqueles contados em um censo de toda afazenda em.1830. Supondo-se que novos escravos foram comprados ou nasceram n o intervalo de quatro anos, o número sugere queTolosa e Ana Joaquina também eram donos apenas de metade dosescravos de Rio Claro. 13 —

Quem, então, era o dono da outra metade? Em 1830, o fogo deTolosa incluía dois padres residentes, os reverendos Valério deAlvarenga Ferreira e Manuel Inocêncio Muniz Barreto. Sobre opadre Manuel, sabemos apenas que continuou a morar em RioClaro e que era amigo do padre Valério, que o mencionou em seutestamento. Mas o padre Valério era importante em Rio Claro, porser sócio de Tolosa e co-proprietário da fazenda. A transcriçã o da

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certidão de casamento de Caetana e Custódio identifica o casalcomo escravos do reverendo Valério de Alvarenga Ferreira eCompanhiVT emBora em todas as páginas da petição de anulaçãoTolosa apareça como único dono de ambos os escravos. Com certeza, Tolosa tomava as decisões. Desconhec emos como os doi shomens se associaram e nenhum laço familiar visível entre o padre

Valério e Tolosa ou sua esposa (não era irmão ou co-herdeiro, porexemplo) explica seu envolvimento financeiro com Rio Claro.Talvez o padre tenha apoiado Tolosa com investimentos na fazenda, ou, ao contrário, talvez tivesse a terra e Tolosa entrou com ocapital,. De qualquer modo , em algum momento antes de 1847,quando p padre fez seu'testamento, eles di ssolveram a sociedade,mas continuaram a fazer negócios de tempos em tempos. O padrereferia-se afetuosamente a Tolosa como meu bom , constante e f i l

amigo e sócio e, confiando muito na [sua] probidade , designou-o seu testamenteiro. Ao tempo da morte do padre , em 1848, suaparticipação em Rio Claro havia sido reduzida a apenas metade deum canavial, um quarto das terras de produção de chá, um ranchoe metade d o valor de umas taipas , ao passo que ti nha partic ipação substancial em terras, café e laranjais em três outras fazendas,além de um armazém e casas na vila. Sem filhos, netos ou parentesvivos para receber seus bens como a lei requeria, pad re Valérioestava livre para designar c omo herdeiros a viuva Gertrudes Teresade Jesus (a relação deles nã o é explicada, embora seja provável quetivesse mais a ver com o papel do padre como prot etor local do quecom conc ubina to) e Tolosa. A parte que coube a Tolosa foi umpedaço de terra na fazenda Cedro, a quilómetros de Rio Claro, com407 braças de testada com três quantos mais ou menos de fundo,

sertão que um d íá seria partilhad o po ;seus filhos. 14

Esse padrão de propriedades dispersas e descontínuas —lotes menores espremidos entre extensões de terreno maiores dediversos donos — tinha amplas implicações sociais e é fundamen-

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j l q u a l Tolosa t a m b é m herdou um p e d a ç o , num excelente exemploid e como uma grande propriedade se d e s p e d a ç o u em lotes meno-

res, que acabaram nas m ã o s de muitos donos. 18

A d í v i d a revelou-se rancorosa. Carvalho, descontente com oacordo, disse que a terra fora avaliada por um p r e ç o quatro vezesmaior que seu verdadeiro valor e processou O e s p ó l i o . Ele alegou

que o j u i z , o e s c r i v ã o do tribunal e os avaliadores eram todos suspeitos , sendo parentes, amigos e dependentes do testamenteiroe herdeiro, Tolosa. Em conluio, eles haviam pago credores favorecidos comas terras de mais fácil venda, enquanto os que n ã o estav a m nas boas g r a ç a s do falecido padre, do testamenteiro, e dosherdeiros ganharam terras i n ú t e i s , porque, como era bem sabido,estando situadas no alto das terras montanhosas da fazenda Ced r o , estavam sujeitas a geadas anuais: Os mot ivos deles estavamclaros: se pagassem o que o e s p ó l i o devia, pouco sobrar ia para elesTIgnorando o argumento do advogado de Tolosa de que, em um

lugar pequeno, os l a ç o s de f a m í l i a e amizade eram inev i táve is emquase todas as t r a n s a ç õ e s , o j u i z rejeitou a ação jud ic ia l por m o t ivos legais. 19 Os acusados havi am gastado t empo e dinheir o pararepudiar as a c u s a ç õ e s de um homem poderoso de uma f a m í l i apoderosa que se sentia enganado. É p r o v á v e l que Tolosa e Carvalhotivessem ent rad o em choque antes. Co m toda a probabil idadenenhum dos dois i r i a esquecer essa o c a s i ã o , e nessa pequena v i la ,cara a cara, eles se encontrariam com f r e q u ê n c i a .

I n f i n d á v e i s idas e vindas ligavam ainda mais as fazendas circundantes da v i la de Santo A n t ô n i o de Paraibuna, de ta l modo quequalquer d i s t i n ç ã o n í t i d a entre vida urbana e rural é enganadora.Nenhuma lista de habitantes contava a p o p u l a ç ã o da v i la em separado, e os ú n i c o s n ú m e r o s existentes abrangem toda a freguesia:

F 143 fogos e quase 3 m i l pessoas, das quais cerca de um quarto eramescravas. N ão obstante, certos s e r v i ç o s estavam reunidos na v i l a ecertos n e g ó c i o s só podiam ser feitos nela. A l é m dos vinte comer-

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ciantes locais, a vi la contava com as habilidades de cinco carpinteiros, um fabricante de t i jo los e telhas, seis alfaiates e seis sapateirose, em 1835, os residentes sustentavam quatro ferreiros, nove lo j i stas que pagavam aluguel por suas lojas e cerca de vinte mulheresque v i v i a m da costura. Havia somente qua tro tropeiros de aluguelna v i la , pois, como o recenseador obser ypuem 1832, a maioria dos

fazendeiros tinha seus p r ó p r i o s tropeiros; 39 jornaleiros podiamser contratados. Nos dois a r m a z é n s gerais, é p r o v á v e l que os comerciantes estocassem e vendessem ferramentas a g r í c o l a s , p ó l v ora e sal, ou comprassem couros, m i l h o o u mandioca de produtoreslocais para revender. 20 A t é a capacidade de ler e escrever pareciadizer respeito sobretudo à v i l a . A l é m das pessoas cujas p r o f i s s õ e sdependiam de uma i n s t r u ç ã o especial, outros noventa moradorescapazes de ler e escrever v i v i a m com decente s u b s i s t ê n c i a , e aú n i c a escola p r i m á r i a ensinava a 23 meninos. ( Embora a maioriados grandes terratenentes e exportadores fosse certamente alfabe

tizada, o censo não registrou o grau de i n s t r u ç ã o dos fazendeiros.)Poré m a v i la não podia supr ir todas as necessidades. Que m quisesse um b o t i c á r i o , t e c e l ã o , ourives, marceneiro ou t a b e l i ã o precisavaviajar até a vizinha cidade de Jacare í , distante cerca de 45 q u i l ó m etros. Tolosa p o s s u í a pelo menos uma casa na v i l a , que talvez alugasse, ou e n t ã o usasse quando tratava dos n e g ó c i o s de seus v á r i o scargos p ú b l i c o s .2 1

Uma sér ie de j u r i s d i ç õ e s sobrepostas — ec les iás t ica , jud ic ia l ,civil e m i l i t a r — - ligava ainda mais fazendas como a Rio-Claro à vi lae, por f i m , a n íve is de autoridade para a l é m de suas fronteiras. Elevada em 1832 de freguesia a v i la e assim investida de uma c â m a r amunicipal, Paraibuna assumiu a responsabilidade de manter asfontes e pontes p ú b l i c a s e as poucas estradas p r e c á r i a s que commuita f r e q u ê n c i a se transf ormavam em l a m a ç a l ou se enchiam depoeira sufocante. O t r á f e g o usual que se arrastava por elas era depessoas a pé , mulas e cavalos; os carros de bois, com eixos fixos ran-

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gentes, vi er am depois. À câ mara t a m ' é m m s p i ê c i ò r t àvápesos 'è G

medidas, açougues e outr os fornecedores de géneros comestíveisde secos e molhados , e aplic ava mult as aos infratores de suas posturas municipais. Porém a câmara se reunia em recintos emprestados, pois os dois únicos prédios públicos em 1838 eram á igrejaparoquial e uma casa que Muller descreveu c om desprezo como

construída de madeira, que serve de prisão . (Ele se esqueceu deobservar, noT entanto, que em muitos lugares a câmara e a prisãoocu pavam o mesmo prédio.) Cinco padres e a irmandade do San

t í s s i m o Sacramento cu idavam dâ s almas dós 3169 habitantes-^ér-certidão de casamento de Caetana èstàvà làv è m ú m dos grandeslivros de registro da igreja paroq ui al —, enquanto a justiça c iv i lcontava com um juiz municipal, u ni promotor público e dois juízes de paz. 22 •

Tolosa destacava-se como homem de autoridade local. N o

começo da década de 1830, seus companheiros de freguesia, aqueles qualifi cados pela renda para vot ar (a quanti a estipulada efámínima, mas tin ha de deri var de propriedade, e não de salárioscomuns), o elegeram juiz de paz. O cargo, criado pela primeiraConstituição do Brasil, em 1824, e com seus poderes especificadose ampliados três anos depois, era o mesmo tempo u ma maneira

C de evitar o atravançamento dos tribunais com pequenas querelase u m contrapeso liberai à autoridade central e deliberadamenteseparado dos canais das nomeações e do clientelismo pelo qual óimperador concentrava e distribuía seu podéfT Sua criaç ão foi úrhá

tentativa de tornar as autoridades locais sensíveis à s necessidadeslocais. Sem formação específica, má s muito bem pago com o

^i mesmo salário• de ú m magistr ado de alta hierar qu ia formado emdireito, o juiz de páz er ã responsáver pélã c onciliaçã o de disputasentre membros da comunidade, brigões e desordeiros, antes queseus conflitos chegassem aos tribunais, o que fazia dele uma figurabastante conhecida no município. O juiz de paz resolvia as dúvidas

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sobre 6 ús t fõ^recúrsds l ocais, tais como acesso a estradas, travessia de rios, águas usadas na agricultura, pastagens e pequenos açudes de pesca, e mediava as disputas em torno de direitos de caça,limites, cercas e os danos causados por escravos ou animais domésticos. Cuidava da conservação de florestas. Tratava das ameaças àordem pública, dispersando reuniões turbulentas e, em caso detumulto, c hamando as tropas, que s ó podiam agir por sua or demexplícita.-Estava encarregado de imped ir e destru ir quil ombos deescravos. Encarcerava bêb ados, punha vagabundos e mendigospara trabalhar, fazia as prostitu tas promete rem boa c onduta e d i v idia seu distrito em quarteirões de nã o mais que 25 famílias, a fimde contar e manter o controle da população. M antinha uma listade criminosos procurados, fazia prisões, interrogava os acusados,reunia provas, fazia cumprir as posturas muni cipais e protegia osdireitos de propriedade de crianças órfãs. Conhecia seus vizinhose bastante sobre seus negócios.

• •«*- E, como autoridade eleita pela maioria deles, dificilmente eraimparcial. Com amplos poderes que o colocavam no centro dasdisputas locais, em que as paixões corriam soltas, o próprio cargopodia ser uma fonte de controvérsia e tensão. Ele t ambém faziaparte do conselho local que determinava quem estava qu alificadopara votar, questão muitas vezes abertamente^ contenciosa. Pen-sava-se, em geral, que u m home m qualificado t inha o dever de servira súàeomunidade.-lJma vez eleito, só doenças graves e prolongadaspermitiam'qu eufrij uiz de paz não^cumprisse seu mandato

de três anos; se aceitasse um segundo mandato — u m prolongamento de autoridade tentador para muitos homens —, podiaentão, sim, recusar-se a ocupar pela teí cei ra vez este cargo poderoso, mas pesado. 23 Tolosa foi juiz de paz nos anos i mediatamenteanteriores;áocasamento de Caetana, e ela teria percebido a importância dele, as demandas de seu tempo. Com certeza, não era fácilpara uma jovem escrava se opor abertamente a tal homem.

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Tolosa saiu-se bem, o p r e s t í g i o perdurou e sua r e p u t a ç ã ocresceu. Em 1848, na é p o c a da d i s c u s s ã o do e s p ó l i o do padre, já

fora nomeado primeiro j u i z municipal suplente por quatro anos,

p o s i ç ã o não remunerada , mas que demonstr ava que ele a t r a í r a aa t e n ç ã o e as boas g r a ç a s d o governo p r o v i n c i a l . N ã o era preciso ter

curso de direito para suplente, como ocor ria com a judicatura;

Toiosa fo i escolhido po r ser um c i d a d ã o l o c al que correspondia àf ó r m u l a : n o t á v e l po r sua f ortuna, i n t e l i g ê n c i a e boa conduta .

Quando f o i contestado po r Carvalho em r e l a ç ã o ao e s p ó l i o do pa-

-dre Valério^ Tolosa j u l g o ú - s e 4 m p e d i d o como j u i z , passando a res

ponsabilidade n ã o para o segundo suplente, seu genro, mas para oterceiro.* 4 Co m a autoridade de Tolosa gara ntida, ela passou para

a p r ó x i m a g e r a çã o de homens da f a m í l i a . Mas isso fo i depois da

é p o c a de Caetana.

A ca rreira de Tolosa t a m b é m estava ancorada nos regimentos

militares de pequena-escala designados par a manter a ord em

p ú b l i c a . Depois de entrar nas fileiras d a m i l í c i a como soldado decavalaria, fo i promovido a segundo-tenente em 1824 e acabou por

conquistar o t í t u l o de c a p i t ã o . Reformadas em 1831 com a c r iação^ da Guarda Nacional, essas m i l í c i a s c i d a d ã s deveriam ser organi-

^ zadas em todo o I m p é r i o , mesmo nos mais remotos m u n i c í p i o s e^menores p a r ó q u i a s , para defender a C o n s t i t u i çã o , a Liberdade,

I n d e p e n d ê n c i a e integridade do I m p é r i o e p a r á manter a obe-

, • d i ê n c i a à s Leis, conservar, ou restabelecer a ordem e a t r a n q ú i l i d a -^ de p ú b l i c a .2 5 A renda exc lu ía os mais pobres , enquanto o status ex i --7 - mia os já privilegiados, excé to se escolhessem^servir como oficiais-,-

para os quais a Guarda Nacional era uma fonte i rresist ível de poder

l o c a l .2 6 Seus membros tinham não somente a m i s s ã o de reagir às

a m e a ç a s de s e d i ç ã o o u debelar i n s u r r e i ç õ e s escravas, mas t a m b é mprovidenciar homens para os deveres rotineiros de capturar c r i m inosos, conduzir prisioneiros ao julgamento, transportar valores,

patrulhar as cidades, v ig ia r a p r i s ã o , pr ocura r escravos fugit ivos ou

restaurar a o rd em depois de um tumult o eleitoral. Embor a os o f i

ciais que comandavam a Guarda Nacional ganhassem p r e s t í g i o nacomunidade por supervisionar esses deveres policiais comuns, ap r ó p r i a Guarda estava subordinada ao j u i z de paz em cada m u n ic íp io , uma d e m o n s t r a ç ã o concreta da supremacia d o J u d i c i á r i osobre a autor idade m i l i t a r.2 7

A n o ç ã o de um e x é r c i t o de c i d a d ã o s baseava-se no pressuposto de que homens inerentemente desordeiros só po di am ser leva

dos a obedecer às leis do p a í s se eles mesmos fossem recruta dos

para impor essas leis. Co mo disse um deputado dura nteos deba

tes parlamentares de 1831 , não se pode negar que nunca a segu

r a n ç a dos c i d a d ã o s é mais bem guardada do que pelos mesmos

c i d a d ã o s interessados na sua c o n s e r v a ç ã o .2 8 Mas a m a n u t e n ç ã o daordem gerava novas p r e o c u p a ç õ e s que uma d e l e g a ç ã o de poder amuitos poderia tornar-se i n c o n t r o l á v e l . Os legisladores adverti

ra m nervosamente que as tropas nã o podia m pegar em armas ou

agir como um co rpo sem ordens de seus chefes , e os oficiais foramproibidos de d i s t r i b u i r cartuchos sem a u t o r i z a ç ã o .

A l é m disso, como os mais abastados evitavam servir nos bai

xos e sca lões da Guarda, os pequenos agricultores, comerciantes ea r t e s ã o s — homens que mal podiam se afastar do trabalho —assumiram cada vez mais o fardo de garantir á ordem loca l , bem

como seus custos. 29 Cada recruta tinha de pagar por seu p r ó p r i ouniforme, suas armas e cavalo, se aspirasse a entrar para a presti

giosa cavalar ia. Por seus e s f o r ç o s , esses c i d a d ã o s - s o i d a d o s eram

eles mesmos vigiado s de perto. Quebras de disciplina, como não

comparecer ao posto, embriagar-se ou pro mover desordem, er am

puníve is co m multas ou dias na p r i s ã o , causando mais perdas detrabalho e renda. 30 Homens como Severino José Moreira esperava m evitar completamente a Guarda. Hom em l iv re e solteiro, elefo i convocado para a infantaria. N ã o tinha d o e n ç a s o u defeitos f í s icos que o desqualif icassem, mas era pobre e v iv ia afavor d o padre

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Va l é r i o de Alvarenga e companhia nas terras de Rio Claro. Em1834,. na é p o c a do casamento de Caetana, sua p e t i ç ã o para sere x c l u í d o do s e r v i ç o foi negada, embora ele sustentasse sozinho am ã e , uma i r m ã e os sobri nhos co m seu trabalho. 31 Se o objetivo dag ú á f d á era reunir homens de s i t u a ç õ e s sociais desiguais em corposdisciplinados, e n t ã o funcionava mal.

Em 1832, ao mesmo tempo que exercia o cargo de j u i z de paz,Tolosa assumiu a autoridade sobre a companhia dè infantaria dèParaibuna, com 52 soldados a pé e trinta de cavalaria, o que atraiua fazenda Rio Cla ro ainda mais d i r e t a m e n t e . p á r a às linhas depoder, o b r i g a ç õ e s \o é f acções que se estendiam da vi lae do m u n i c í p io até a p r o v í n c i a e o i m p é r i o .3 2 No mesmo ano, donaA n a Joaquina deu à luz seu quinto f i l h o ; ela estava gravementeenferma. 33 Com seu senhor quase sempre chamado para longe dafazenda, Caetana f i c o u o c u p a d í s s i m a , tendo de ajudar a cuidar deu m b e b é , das outras c r i a n ç a s pequenas e de uma dona doente.

Nesse microcosmo de uma sociedade int enciona lmente d i v idida, Tolosa estava em seu á p i c e . Sua carreira resumia o funciona-men to e as desigualdades do poder local e refletia a p r e o c u p a ç ã ogeral com a ordem p ú b l i c a . Contra esse pano de fundo, seguia otrabalho familiar e sem f i m da fazenda Rio Claro.

T R B L H D O R E S

E n i especial naqueles primeiros anos, mas mesmo* depois queas m á q u i n a s se tornaram de mais fácil acesso, o trabal ho em todoo Vale do P a r a í b a era humano e principalmente, embora nunca demodo exclusivo, escravo. As rotinas de trabalho seguiam as esta-ç õ e s apenas de maneira aproximada. A p l a n t a ç ã o era feita nosmeses de inverno, junho e j u l h o , mas podia continuar durante aprimavera e entrar pelo v e r ã o , nas ú l t i m a s chuvas primaveris de

•i<>

novembro e dezembro. A p r e p a r a ç ã o de novos campos para plan-tar compreendia a limpeza de florestas densas. Nas encostas maisí n g r e m e s , as á r v o r e s podiam ser parcialmente cortadas, sempre apartir de baixo e a v a n ç a n d o mor ro acima, e depois derrubadasquando uma á r v o r e - ' m a t a d o r a era jogada do alto do morro 5 comas á r v o r e s derrubando umas as outras — atividade exercida com

muita p e r í c i a . Somente um homem experiente podia identificar aárvore matadora ideal, e o corte podia ser mortal se as á r v o r e s c a í ssem cedo demais oú em d i r e ç õ e s imprevistas. Em d é c a d a s poste-riores, quando os escravos se tornaram escassos e mais caros, osfazendeiros contratavam homens livres para a derrubada, reser-vando seus dispendiosos escravos para trabalho mais seguro. Napressa de limpar os campos, os fazendeiros queimavam a madeiraderrubada, confiando na chuva para apagar o fogo latente, e pla n-tavam aò redor dos tocos remanescentes. 34 Escrevendo no f i n a l dadécada de 1840, úm fazendeiro ergueu sua voz cont ra o d e s p e r d ício^ instando seus colegas a cortar e remover os troncos para as t r ilhas, onde poderiam ser recolhidos e usados para a c o n s t r u ç ã o ,como se isso nã o fosse a p r á t i c a normal. 35 Ambos os m é t o d o s e x igiam fo rça masculina.

N a Rio Claro, como na maioria das fazendas de ca fé e a ç ú c a r,o trabalho no campo era feito por homens emulheres, que labut a-va m lado a lado, muitas vezes com bs filhos a reboque. M ã o s habi-lidosas transferiam plantas jovens da sementeira para o campo, ecada muda era colocada com cuidado em seuburaco e depois cer-

cada com terra para p r o t e g ê - l a da chuva pesada, que poderiaa r r a n c á - l a . Cuidar dos arbustos, manter o solo fofo junto ao tron-co de cada um deles, e capinar duas d,u t r ê s vezes po r ano eram tra-balho c o n t í n u o . Ôs cafeeiros maduros abriam suas pequenas f lores brancas bú eòr -de-T osa pá l ido até t r ê s vezes por ano, fazendoeom qúe òs frutos de alguns p é s amadurecessem e ficassem verme-lhos, enquanto outros ainda estavam verdes. Muitas vezes, frutos

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verdes e vermelhos cresciam em um mesmo pé ou ramo. Uma boacolheita durava do c o m e ç o do inverno a t é a primavera Òs frutosem todos os e s t á g i o s de m a t u r a ç ã o è f á r n ^ a r rá h c á d ò s á partir MKftronco, c a í a m no c h ã o e eram recolhidos em grandes peneiras depalha para depois serem joeirados, num trabalho que consumiamuito t empo dos escravos e que só mais tarde seria acelerado com

bateias em que a á g u a separava os frutos da sujeira e dos galhos, osfrutos maduros dos verdes. Os escravos equilibravam cestas cheiassobre a c a b e ç a ou as traziam amarradas às costas, maximizando aef ic iênc ia do corpo. Dos campos, homens e mulheres carretavamp café para u m terrei ro central onde bs frutos eram espalhadospara secar ao so l . Vi ravam os frutos com grandes e pesados ancinhos de madeira, juntavam-nos em montes durante a noite ecobriam cada mont e com uma lona para p r o t e g ê - l o s do orvalho eda chuva, um processo que leva muito tempo e é muito fatigantepara os escravos , segundo u m observador. 36 Descascar o café seco

era tarefa para os escravos homens que supervisionavam o uso deu m p i l ã o de madeira movido à á g u a para quebrar a casca externados g r ã o s . Somente depois de separado e ensacado o café estavapronto para ser enviado ao mercado.

A maioria dos escravos trabalhava grande parte do tempo nocafé, mas alguns t a m b é m plantavam mi l ho , fe i jão e arroz e criavamgado. Escravos a r t e s ã o s — - carpint eiros, ferreiros, pedreiros —c o n s t r u í a m as casas, estradas e pontes cíe uma fazenda. Escravasd o m é s t i c a s cozinhavam, limpavam, lavavam e passavam roupas,carregavam á g u a , esvaziavam os restos de cozinha e dejetos not ur-nos e entregavam recados. Urria escrava com leite de sua p r ó p r i agravidez podia amamentar o b e b é .da senhora ou, como á i r ia -seca , cuidar dos f i lhos mais velhos dela. As c r i a n ç a s escravas t inham suas tarefas p r ó p r i a s : separar café, cuidar de cabras, descascar f e i jões , regar jardins ou cuidar dos menores. O n ú m e r o é avariedade de escravos qualificados dependiam do tamanho e da

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prosperidade da fazenda, da diversidade de sua p r o d u ç ã o e dosconfortos q ú è a f amí l ia quisesse ter. Em d é c a d a s posteriores, quando o cate v i r o u fortuna e os fazendeiros dedicaram terras e escravos de campo quase exclusivamente para sua p r o d u ç ã o , eles passara m a comprar não somente artigos de l u x o como até v í v e r e sb á s i c o s . Mas os primeiros fazendeiros, corno Tolosa, valiam-se

mais de sua p r o d u ç ã o p r ó p r i a .3 7

U m p e r f i l dos escravos da Rio Claro pode ser recomposto apartir dos mapas da p o p u l a ç ã o realizados na r e g i ã o nas d é c a d a s de1820 e 1830. Na é p o c a da h i s t ó r i a de Caetana, R io Claro s o b r e s s a í acorno a maior fazenda do m u n i c í p i o , com 134 escravos. Uma v i ú v ae seu f i lho ocupavam o segundo lugar, com a metade desse n ú m ero» enquanto o vizinho i mediato e amigo de Tolosa tinha 53 escravos. 38 Tendo em.vista a alta mortalidade i n f a n t i l e a p r e f e r ê n c i ageneralizada pela compra de escravos já criados, em vez de c r i á - l o sdo nascimento a té a idade de trabalhar, as 25 c r i a n ç a s escravas commenos de dez anos, quase um quinto dos cativos de Rio Claro,sugerem que Tolosa levava mais a s é r i o a c r i a ç ã o de escravos do queoutros fazendeiros. D i s t i n g u i r adolescentes de adultos é mais d i f íci l porque o anotador do censo nã o considerou a idade exata dosescravos, acreditando provavelmente que uma idade aproximadaera sufic iente, e os ag ru pou em faixas grosseiras de dez anos.A t r i b u i u a todos os 3 adolescentes entre dez e dezenove anos aidade de dez, enquanto os 78 adultos foram classificados simplesmente em vinte, trinta ou quarenta anos de idade. No conjunto,havia cerca de dois homens para cada mulher, mas entre os adultoso d e s e q u i l í b r i o era menos acentuado, com as mulheres respondendo por quase a metade dos escravos. Caetana podia encont rarcompanhia entre as 39 escravas meninas e mulheres da fazenda. On ú m e r o desproporcionai de meninos adolescentes, 26 em compar a ç ã o com apenas cinco meninas, metade africanos e metadecrioulos, sugere que, em vez de se fiar no aumento natural de seus

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c á , serv iço domést ico o u ofícios especializados. Os escravos.,incapacitados pela idade ou por doença não foram distinguidosdos saudáveis. A maioria dos cativos de Rio Claro era minimamente id entifi cada por seu pri me ir o nom e e idade aproximada;suas origens étnicas eram anotadas apenas co mo africana o u

crioula , sem d izer onde havi am nascido, se. na África ou noBrasil.

N ão obstante, as distinções de ocupações e status despertama atenção pára lima hier arquia entre os trabalhadores. É possível seter uma contabilidade pelo menos parcial daqueles que pertenciam à elite trabalhadora de Rio Claro a parti r dos trâmites no t r i - .bunal. Descobrimos que nem todos os que trabalhavam paraTolosa eram escravos. Embor a a list ados residentes da fazenda.em1830 incluísse somente os dois padres, membros da família e escravos e nenhum t rabalhador livre ou ex-escravp, entre a pequenaamostra de trabalhadores que testemunharam sete anos depois

aparecem dois não-escravos. Luísa Jacinta des empenhou umpapel importante nos eventos como tia e madrinha de Caetana.Nascida escrava, mas li bert a, era casada com Alexandre e, commais de cinquenta anos, era uma mulher idosa. Tendo outroragozado do status de mucam a, agora vive de lavoura com o agregada de Rio Claro. 4. 3 Se lavo ura signifi cava tr abalho usual nocampo, teria sido um amargo rebaixamento; é mu it o mais provável que Luísa Jacinta tenha sido aposentadae ganhado uma pequena roça para plantar.

Por outr o lado, o mulato João Ribeiro da Silva nascera livre

As fontes nã o di zem quando d ei xou seufugar natal, a cidade• sulista-de Curitiba, ou chegou a Paraibuna. Ele figura na história

dé Càètana como sen cunhado, casado c o m a i r m ã dela, umhomem livre que vivia no m ei o de escravos. Aos 25 anos de idade,estava em sua plenitud e; contud o, nada em seu tes tem unho revela qual o seu verd adeiro t rabalho, apenas que vive de sua lavou-

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ra , a mesma descrição geral usada para o próprio Tolo sa. O escr ivão do tribunal atribui-lhe ainda o igualmente ambíguo statusde agregado , sugeri ndo que cultivava terras em Ri o Claro coma permissão de Tolosa. 44 Ele pode m uit o bem ter si do capataz deTolosa, dirigindo o trabalho dos escravos e cont rol ando para verse as instruções d o patrão eram cumpridas. Ne nhuma outra pessoa mencionada em qualquer das fontes é identificada comocapataz e, no entanto , à medi da que a produção de café da fazenda se expandia, a n ú m e r o de escravos aumentava e Tolosa ganhava outras obrigações.,, ele t alvez precisasse de alguém para assumi r as funções de capataz. Das pessoas que conhecemos, JoãoRibeiro era a escolha mais provável. O cargo o colocaria comoin termediár io , ap mesmo tempo respondendo perante Tolosapelo trabalho,reali zado e tr ansm it ind o as queixas dos escravos,inclusive de sua família, ao senhor, uma posição potencialmentetão influente quanto poderia ser incómoda. Porém nenhumcapataz teria m ui to a dizer sobre a direção das coisas em Rio Claro, pois Tolosa aparece como o dono-administr ador em pleno

comando.Em termos práticos, o escravo Alexandre, marido de Luísa

Jacinta e ti o- padr inho de Caetana, estava acima de João Ribeiro.Se necessário, Tolosa podia s upervisi onar sua^força de trabalhosozinho, com o fi zera no passado, mas Alexandre era indispensável. Como armador da tropa, ele cpinandava as tropas de mulasqueJevavam o café d è Rio Claro para o pequeno povo ado çostei-r o de Caraguatatuba, a f i m de ser levado de lá para um po rt o

maior. Em Caraguatatuba, Tolosa ti nha um a rmazém para depositar o café, guardar canoas e atracar asjduas sumacas (barco à velade dois mastros) ^ a o a Vi a g e m e a Sa n t o n t ô n i o >, das quais era

.sócio^JNÍãa estáclaro-seseus barcos iam direto para o por to maispróximo de Santos, o u para o Rio de Janeiro, ou se transf eri am ocafé para navios maiores em algum ponto da rota, provavelmente

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em Ubat uba ou Ang ra dos Reis: Dè qualquer modo; para t rans

portar o café pelos cinquenta q u i l ó m e t r o s da perigosa descidaescarpada da serra at é a costa era preciso ter conhe cimentos especializados, sob chuva torrenci al, ou na primavera, quando umaespessa nebli na envol via os vales mais altos. Os perigos podem ser

avaliados pelas pedras de p a v i m e n t a ç ã o usadas para prote ger as

curvas mais fechadas e provavelmente colocadas al i por escravos,ainda v i s íve is quando desci por uma estrada de terra de sulcos

profundos, no f ina l da d é c a d a de 1970. Sem um trope iro expe

riente para conduzir animais e escravos, o café n ão chegaria ao

mercado e nenhu m artigo do R io de Janeiro poderia subir da costa

para a fazenda. As viagens signific avam t a m b é m que Alexandre,em . cujas mãos r f i cava a riqueza da fazenda e o bem-estar de sua

equipe, era seu p r ó p r i o senhor durante muitos dias. Ele era, semd ú v i d a , homem de plena c o n f i a n ç a , um homem influente na

fazenda de Tolosa.

Tanto C u s t ó d i o como Caetana eram membros da elite es

crava de Rio Claro . Por nã o tra balh arem no campo, estavam en

tre òs escravos mais capazes, tre inados e favorecidos da fazenda.C u s t ó d i o foi descri to com o "mestr e alfaiate", o que significa quen ã o era autodidata mas tinha feito apren dizado. Ele talvez cortas

se e çps tu j rasse as roupas de a l g o d ã o grosso reservadas para osescravos, ou dirigisse a con fecção delas, po r ém é_ma i s.p rováve lque esse trabalho fosse féi tó por uma das escravas. Outra h i p ó t ese menos p f Ò v à v é i r r n as n ã o í m p i a u s i v e l , e que iblo sa alugasse'

seus s e rv i ços de alfaiate para outras pessoas do distrito. Em todocaso, tratava-se de um ofício valorizado, e C u s t ó d i o talvez fizes

se roupas para os homens da f amí l i a : os padres, Tolosa e seusf i l hos . No entanto, 1 ê m outro t fécfoó d ós documentos, há umar e f e r ênc i a passageira a C u s t ó d i o como escravo d o m é s t i c o , sem

especificar suas tarefas, o que sugere que a alfaiataria não ocupava todo o seu tempo: 46

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Caetana era mucama das mulheres da família na casa-gran-

_de. 47 Ela estaria entre as várias criadas da casa que cozinhavam, l i mpavam e lavavam, mas, como a que gozava de mais confiança, entrari a rotineiramente nos aposentos privados da família. O se rv içdentro de casa era considerado p r i v i l égio , põ i s^eTãmehõs exte

nuante que as longas horas de trabalho duro no campo, sob o calor

direto do sol ou o frio ú m i d o do inverno. Uma mucama podia contar com roupas melhores, talvez uma dieta mais variada ou copiosa

restolhada da mesa da família, atenção mais imediata às doenças eco m as pequenas e desejadas p ro teções que um senhor ou senhora

deveria proporcionar. No entanto, tais favores tinham um p reçouma elevada expectativa de obed i ênc i a e se rv iço leal, uma quaseconstante vigilância exercida por uma senhora sempre de olho.

O historiador Stuart Schwartz censurou os recentes e t n ó g r afos da cultura escrava por buscarem.compreender os p a d r õ e s defamília, comunidade e rel igião ao "custo" de esquecer a centralida

de do trabalho na con fo rmação da vida dos escravos, uma p rá t icque chamou de "fantasia etnográfica .48 Penso que seria enganador

colocar "trabalho" e "cultura" em o p o s i ç ã o , como se o trabalhoestivesse de algum modo separado dos pressupostos, compreensões e respostas pelas quais escravas e escravos tornavam in te l ig íveis todos os aspectos de suas vidas. Mas, por mais penetrante, exigente e a té br utal que fosse o trabalho, por mais que ele permeassecompletamente a expe r i ênc i a escrava e estabelecesse os p a r â m etros da identidade de um escravo aos s,eus p r ó p r i o s olhos, bem

como aos olhos de seus

companheiros e seus

senhores; nos autos

deste caso, as rotina s reais de trabalho n ã o e s tão mu it o descritas ouobservadas. O trabalho permanece 1 como pano de fundo, como

algo impl íc i to , um ponto de partida. A q u i , para escravos e senhor,sã o outras p r eocupações que adqui rem relevo. \

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U m casamento entr e escravos não é algo que se espere. A ver

s ã o c om um é que aos escravos era negada a oportunidade de casaro u formar um lar. Mais de u m s é c u l o antes dos acontecimentosdesta h i s t ó r i a , em 1707, um s í n o d o c a t ó l i c o reunido em Salvador,

e n t ã o capital da c o l ó n i a , publicou u ma c o m p i l a ç ã o de leis diocesanas conhecida como Constituições primeiras Essas leis se preten-

dia ím condizentes com o direito c a n ó n i c o e o C o n c í l i o de Trento e,

ao mesmo tempo, a p li e á v e is - à s c i r c u n s t â n c i a s especiais do Brasil .O s í n o d o j u l g o u n e c e s s á r i o declarar que os escravos podi am casar

cor r i outras pessoas cativas ou l iv res e seus senhores não deve

r i a m í m p e d i - í o s co m a m e a ç a s ou m á o tratamento A l e i ainda

advertia os senhores a nã o vender u m escravo casado para u m

lugar tão distante que o c ô n j u g e n ã o pudesse s e g u i - l ò . Mas, ao

mesmo tempo, as Constituições primeiras t a m b é m asseguravam ao

senhor que um escravo continuava cativo, mesmo casado comum a pessoa l i v r e o u liberta, e estava ob rig ado a contin uara servir

ao senhor, ainda que isso significasse a s e p a r a ç ã o d o marido ou.da

esposa. No d o m í n i o da autoridade privada e pessoal que prendia

senhor e escravo, a Igreja nã o podi a impor o casamento entr e

escravos, mas somente encorajar os senhores a aquiescer, enquan

t o reconheciam que os casamentos deveri am ocorrer em tempo elugar convenient e — ou seja, com a p e r m i s s ã o do senhor. 49 A rea-

çã o esperada de um senhor e s tá resumida na concisa resposta de

duas palavras de um senhor e m 1876 ao pedido para se casar de seu

escravo: Hora i m p r ó p r i a .5 0 As Constituições primeiras transmi

t e m o claro ent end ime nto de que tipieamente.os escravos proc u

rariam se casar, enquanto os senhores negavam p e r m i s s ã o ^ e era

preciso implorar-lhes para que cumpris sem seu-deverçri&tãp. . , .

Apesar de a Igreja defender o m a t r i m ó n i o , suas p r ó p r i a s e x ig ê n c i a s n ão raro impediam essa possibilidade. Tal.como.estabele-

5

c r á a ? . P e . l ? ^ em 1563, e praticadas rotineiramen

te no Brasi l ca tó l ic o do s é c u l o x i x , as provas n e c e s s á r i a s de paren

tesco e falta de impedi mento s eram desanimadoras pai a-ospobresem geral e, em especial, para os escravos, e compl icadas para seusdonos. A Igreja pedia prova de que nenhum dos noivos tivessecasado antes, o que, por sua vez, exigia que o padre de qualquer

p a r ó q u i a em que eles tivessem v i v i d o quando adultos por mais deseis meses precisava fornecer uma d e c l a r a ç ã o por escrito de que o

requerente era solteiro. Obte r tal documen to era uma tarefa de

morada e custosa que supunha a l fabe t ização e habilidades sociais

que poucos escravos t er ia m opor tun ida de para adquirir. A provade identidade e elegibilidade, a p u b l i c a ç ã o de banhos, o pagamen

to do padre para rezar a missa — tudo dependiado empenho dedi

cado do senhor, be m .como de c o n t r i b u i ç õ e s do p r ó p r i o bolso. 51

. .QjflHÇ. surpreende é que tantos senhores concordassem com o

desejo de casar de seus escravos. Embora tenhamos de confiar emi n c i í c i o s fragmentários-extraídos de tempos e lugares muito dispersos, onde quer que existam registros encontramos f a m í l i a sescravas a b e n ç o a d a s por casamentos religiosos. Outrora de pro

priedade dos j e s u í t a s , a fazenda Santa Cruz pertencia à Coroa

^ e s 4 e 1759, quando os j e s u í t a s foram expulsos do Brasil e suas pro

priedades, confiscadas. Em 1791 , os administradores da Coroa

prepararam um^ i n v e n t á r i o dos extensos bens da fazenda, i n c l u i n -do os 1342 escravos residentes (out ros cinco havia m f u g i d o ) . Oses^y9 s f9^^S9M^àos_como membros de agrupamentos f a m i -^ a r e s ; casais, pais e seus f i lhos , avós e netos, pais solteiros (tantom ^ e í e ? . c o m o homens e seus f i lhos, i rm ão s e i r m ã s . Quase dois* e r Ç o s das mulheres e homens adultos eram casados e mais de 77%d e t o d o s os escravos v i v i a m em f a m í l i a s de u m t ipo ou outro,

• e .^ an t ?-.hpmens, e mulheres solteiros e grupos de homens com-

P^Jjam 0 resto P i n v e n t á r i o i m p l i c a que os escravos nã o foram

somente contados assirn, mas v i v i a m como f a m í l i a s , na m i x ó r d i a

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dè cabanas de-tamanho irregular situadas de um lado da praça daigreja/tal como aparecem nu m desenho de 1844. Os escravos pro-vavelmente havi am sido chamados às suas choças, onde o funcioná r io do censo os listou em famílias.52

Seria fácil considerar Santa Cruz uma exceção, por ser pro

priedade primeiro dos jesuítas, depois da Coroa, nã o sujei ta a d i v i -sões por herança e às separações que a herança geralmente significava jjàra os escravos, se não encontrássemos, quase com a mesmafrequência, escravos casados em propriedades privadas. Eles aparecem rios numerosos mapas de fogos das cidades da província deSã o Paulo feitos no final do século x v i n e nas primeiras décadas doséculo xrx; casamentos entre escravos eram regi strados nas igrejasparoquiais; e, às vezes, o inventário da propriedade feito por ocasião da morte do dono especificava escravos casados ou, mais raramente, outras conexões f amiliares. Em I t u cidade da região açucareira p róx ima da cidade de S ão Paulo, uma lista de fogos de 1822contou quatrcTèngenhos de açúcar com 137 escravos. Embor aescravos outrora casados e agora viúvos fossem identificados e asesposas dispostas em pares, as crianças eram quase sempre listadasem separado, condenando ao fracasso nossos esforços de ligar paisa filhos. Nã o obstante, uma estimativa conservadora sugere que

. pelo menos 81 escravos, ou cerca de 59% de todos os escravos desses engenhos, viviam em famílias, enquanto 53% de todos osescravos''.cÓOT\'m^s'/dê 'd^zèSSêl-s''a n'o de idade eram casados. Na

mesma zona açucareira, poré m mais distante no tempo, na déca-;,: da de 1740* 83% dos escravos das três propriedades principais de. : Santana do Parnaíba viviam em famílias, u ma porcentagem ainda

--májór-do^que a da aparentemente excepcional fazenda Santa Cruz.Em 1829, na maior propriedade açucareira de Guaratinguetá, noalto vale do Paraíba, pouco mais da metade dos 135 escravos adultos eram casados. 53 Santa Cr uz talvez se dist ingu isse mais pela

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meticulosidade de seus registros do que pelo fato de possuir famí-Jias escravas.

O padrão se repetiu nas novas regiões do café. Um resumofeito em 1828 de pessoas casadas ou viúvas no distrito adjacente aParaibuna revela números que mu dam ainda mais a visão anterior

de poucos casamentos entre escravos: 40% de todas as escravas e24% dos escravos eram casados. Os cativos, que compunham 21 %da populaçã o total, respondiam por a té 18% dos novos casamentos contratados naquele ano. É claro que as taxas de mat r imóniovariavam de uma fazenda para outra. Em Paraibuna, 90% dosescravos adultos da vizhtkà de Iblusa» a viúva Maria CustódiaAlvarenga* eram casados, inclusive todas as escravas co m vinteanos ou mais e 87% dos homens cativos. E homens e mulheresmais jovens, ainda no final da adolescência na época do censo,poderiam se casar mais tarde. Dos 37 escravos adul tos que Cláudio

José Machado possuía, somente 32% estavam casados em 1829,enquanto dez dos doze escravos adu ltos, ou 83%, da pequenafazenda de Inácio Bicudo de Gouveia eram casados. Um poucomais da metade dos sessenta escravos adul tos — 56% — pertencentes ao cafeicultor Cus tódio Ferreira Braga, a sua esposa e aoadministrador eram casados. Em comparação, as taxas de casamento entre pessoas brancas e de cor er am quase iguais: 7 1% dosbrancos eram casados, enquanto entre os negros e mulatos, tantolivres como ex-escravos, esse número chegava a 68%. 54 v

Na fazenda dè Cfficfiõrrõ7ó~arnigoej vizinho de TóiõsaTunía contagem- feita-em 1835 registrou informações ausentes paraoutras fazendas. O funcionário do censo anotou que idades dosescravos s ão pelo que representão . Igualmente incomum é o fatode os 53 escravos serem listados em grupos familiares: onze famílias podem ser identificadas, a maioria com filhos, inclusive u mviúvo africano que vivia com seus dois filhos. Nove homens eramsolteiros, a maioria deles africanos. Os homens mais jovens ainda

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poderiam casar, mas é duvidoso que Jacinto, de 48 anos, JoãojCongOv.de cinquenta anos, e A n t ô n i o , de 52, viessem a fazê-lo.Cipriana, uma africana e ú n i c a mulher adulta solteira, com 35anos, t a m b é m já ultrapassara p rovave lmente a idade de casar. Op a d r ã o era quase sem exceção esposa e mari do africanos e filhosnascidos no local, refletindo a forte p r e s e n ç a de escravos importa

dos entre os adultos de uma economia em e x p a n s ã o . Não haviafamílias em que os dois côn juges fossem escravos crioulos e apenasú m casamento misto em que o marid o, D o m ê n c i o , era africano ea jovem esposa, Benedita, crioula. Havia apenas um filho africano,o menino Lauriano, de oito anos, entre doze outras c r ianças , sugerindo que os pais não haviam trazido seus filhos da África, ou queeles havi am sido vendidos separadamente, ou tinham morrido. Ap r ó x i m a g e r a ç ã o de m a t r i m ó n i o s seria entre crioulos. Como eracomum em Paraibuna, quase dois t e r ços dos escravos da fazendade Chichor ro eram casados.

Os casamentos entre escravos n ã o eram t ã o ihcomuns, embora historiadores anteriores nos tenham levado a pensar assim. Emseu estudo escrito em 1957 sobre Vassouras, Stanley Stein ignoroua q u e s t ã o desses casamentos e referiu-se de passagem a escravosacasalados , ou escravos que coabitavam . 56 Entre os historiadoresrecentes que reexaminam profundamente nosso entendimento davida familiar dos escravos, a obra de Robert Slenes é no tável e convincente, sobretudo ta l como apresentada em seu l ivro de 1999, Na

serizuta -ttma flor fruto de uma longa e meticulosa pesquisa, comum a i n t e r p r e t a ç ã o instigante. Podemos e n t ã o dizer que, nasregiões rura is até agora estudadas, é comum descobrir que entreu m quarto e um t e r ço dos escravos adultos se casava e, em algunslugares, muito mais do que isso. 57

A q u e s t ã o não é mais por que tão poucos casamentos entreescravos, mas por que tantos? É possível dizer que os senhores sebeneficiariam das r édeas mais curtas sobre os homens casados

que, com uma preciosa f amí l i a para proteger, ficariam menosinclinados a fugi r o u se rebelar e mais propensos à s e g u r a n ç a doserv iço obediente. Quase com certeza, fugiam menos mulheres doque homens das fazendas. M ã e s que se recusavam a deixar os filhospara t r á s n ão podi am se mover em terreno dif íci l ou esconder-secom facilidade levando c r i anças pequenas, barulhentas e depen

dentes. E, se havia sempre de u m lado o medo de represá l ias contraos parentes que ficavam para t r á s , a chance de visitar parentes e moutras fazendas era muitas vezes motivo suficiente para se ausentar durante a noit e ou num domingo. As mulheres e, às vezes, f a m ílias inte iras figuravam nos quil omb os que os fugitivos formavamnos mor rose florestas das prox imidades de vilas e cidades com quefrequentemente negociavam. Na costa me ri di ona l da Bahia, noc o m e ç o do século x ix , uma mulher jovem fugiu da fazenda de a ç úcar à qual pert encia, viajou q u i l ó m e t r o s pela costa para o sul a fimde se encon trar co m seu companh eiro escravo; foi e n t ã o amea

çada de d e v o l u ç ã o para seu dono por um c a p i t ã o - d o - m a t o e, porf im, fo i defendida com vigor por seu companhei ro. Eles permaneceram juntos no quilombo, onde ela depois deu à luz o filho deles. 58 .

Se alguns senhores brasileiros contava m com l aços familiarespara ligar seus escravos à fazenda, out ros l ogo descobriam os cons=_ .trangimentos que a posse de escravos casaclos podia impor . Em - .bora até 1869 nã o houvesse l ei que impedisse a vendaseparada demarido e mulher ou de pais e filhos, a Igreja se manifestara haviamuito tempo contra vendas que obstassem o casamento de escravos. Mas a Igreja pod ia ser ignora da. Talvez fosse mais convincente o fato de que os senhores sabiam que suas tentativas de romperfamílias podiam causar graves p e r t u r b a ç õ e s , provocando n ã o apenas descontentamento, mas t a m b é m a m e a ç a s , fugas e possivelmente v io l ênc i a ; po r fim, talvez fossem a té necessár ias conce ssõesPara restaurar o e q u i l í b r i o inqui eto das r e l ações normais entresenhor e escravos. 59

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À ideia de SÍenes de que os senhores esti mulavam deliberada

mente seus escravos a se casar a f im de controlá-Jos_é_ exagerada.

Escrevendo sobre re lações de pode r entre senhores e seus escra

vos no oeste da p rov ínc i a de São Paulo e, em especial, a reg ião em

torno de Campinas, Slenes descreve uma classe senhorial prepo

tente e frequentemente a r b i t r á r i a , mas sobretudo ardilosa: uma

classe que brande a força e o favor para prender o cati vo na armadilha de seus p r ó p r i o s anseios . Os senhores agiam, segundo ele,

no intuito de tornar os cativos dependentes e re féns de suas p r óprias solidariedades e projetos domés t icos .6 0 Trata-se de uma l in^guagem forte que equivale a dizer que os donos de escravos agiam

a partir d é uma es t ra tégia deliberada de m a n i p u l a çã o persistente.

Como exp l i cação para as famí l ias escravas nã o é convincente, não

porque os. senhores nã o fossem astutos e imp lacáve i s , mas porquen ã o há dados que demonstrem uma po l í t ica coletiya de comum

acordo. Pode ser verdade que as fidelidades familiares às vezes

tivessem como resultado prender ainda mais os escravos, mas oresultado n ã o prova a i n t e n ç ã o , e provas detalhadas e persuasivas

da intencio nalida de delas ainda n ã o foram encontradas.

Exp l i cações menos-ambiciosas e mais rotineiras são suficien

tes. Uma i n t e r p r e t a ç ã o alternativa não é um senhor brando, mas

uma conjectura bem mais simples de que naquela época a famíliaera considerada o mod o normal de ordenar a sociedade, inclusive

seus escravos. U m a _ p r e o c u p a ç ão com as pessoas que vagavam delugar em lugar e o desejo de fazê-las se acomodar é u m tema muito

comentado tanto por autoridades coloniais seculares como pelosclér igos e aparece no direito c a n ó n i c o brasileiro como uma recom e n d a ç ã o geral para estimular os pobres a honra r seus votos matri

moniais e viver em famílias estáveis.61 Ép rováve l que os fazendeiros

compartilhassem essas p r e o c u p a ç õ e s , julgando o casamento de

seus escravos conveniente n ão só porque se encaixava na cult uracató l ica que permeava toda a vida social brasilei ra, livrando-os da

56

T A B E L A 2 E S TA D O C I V I L D E E S C R AV O S A D U LT O SNA FA Z E N D A R I O C L A R O , 8 3 O (E M P O R C E N TA G E M )

AFRICANOS CRIOULOS

Mulheres Homens Mulheres Homens T O T A L

S O L T E I R O

2 0 a n o s p u m í ú s > . 3 9 2,5

CASADO' • : • .. -

20 anos ou mais ÍOÒ; ' 97 87~~ 91Menos de 20 anos 6 13 97,5

TOTAL 100 100 ÍOO 100 100

(n = 21) (n = 33) (n=15) ( n = l l ) (n = 80)

Nota os n ú m e r o s absolutos estão entre parênteses.a Nenhum adulto foi identificado como viúvo.

Embora duas mulheres tivessem menos de vinte anos e, portanto, não fossemadultas por minha definição, elas eram casadas e en tão as incluí . Porque não hámaneira de distinguir jovens adultos entre, digamos, dezesseis e vinte anos, onúmero de homens jovens em Rio Claro foi quase certamente subestimado.

onte Mappa dos Habitantes alistentes desta Segunda e Nova Com[panhi]a daFreguesia de S [ anto ] Antonio de Paraibuna distrito da Villa de Jacarehei, em apresentes com seus Nomes, Empregos; Naturalidades, Idades, Estados, Cores, O c u -pasões, Cazoalidades que aconteserão em cada huma de Suas Respectivas famíliasdesde a fatura da data do Anno antesedente. Arquivo do Estado de São Paulo,Seção de Manuscritos, M a ç o s de Po pulação , Jacareí , Santa B r a n c a , Paraibuna,1830-1850, M a ç o 2, Parahybuna, 2 Companhia, 1830, C aixa 86, Ordem 86, Fogo

•89, Luiz Mar ianh õdé Toloza.

necessidade de inventar e impor uma alternativa, mas porque osescravos casados ficavam claramente mais satisfeitos.

Na fazenda Rio Cla ro, os escravos casados c o n s t i t u í a m a

regra quase absoluta. Em 1830, aproximada mente 9 8 % de todos

os adultos eram casados, inclusive todas as 34 mul here s e todos ,

menos dois, os 44 homens cativos. 62 Será que dois padres resi-

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dentes tornavam essa fazenda mais escrupulosa do que outras,u m lugar onde o sacramento d o m a t r i m ó n io era uma exigência_tanto quant o um favor? Se assim era, o casamento se tornou, nã o

obstante, mais do que uma formalidade. Caetana v i v i a entre

seus parentes de sangue: m ã e i r m ã e t i o . E essa famí l ia nuclear

expandiu-se para i nc lu i r o mar id o de sua i r m ã o mulato l ivre

João Ribeiro da Silva, e a esposa de seu t i o a liberta Luísa Jacinta.H á t a m b é m uma r e f e r ênc i a a um t i o de C u s t ó d i o . Talvez existis

sem outros — sobrinhas ou sobrinhos, primos, até mesmo

outros i r m ã o s — que nã o testemunh aram e que, poTtanto, noss ã o desconhecidos. 63 Ter parentes era imp ort an te na varian te

escrava dessa cultura que localizava e validava a identidade deum a pessoa dent ro da f amí l i a . Os que não tinham l aços fami l iares nã o era m membro s plenos da sociedade e perm ane cia m

mais v u l n e r á v e i s aos desgastes das difi culdades cotidianas do

que aqueles cercados pela p r e s e n ç a protetora da famí l ia . Cae

tana gozava desse pertencimento.O que tor na o caso de Caetana especial nã o é a p r e sença dos

parentes, mas a oportunidade que nos proporciona de discernirum a rede maior de parentesco que n ã o costuma estar visível nosl a ços de casamento e parentesco mi ni mame nte registrados e

encontrados na maioria dos do cume ntos. A busca de parentes de

sangue ou de casamento é em geral preju dicada pela p r á t i c a com u m dos senhores de designa r apenas o prenome de seus escra

vos. 6 Uma i r m ã como a de Caè t à r i ácasada e morando em suap r ó p r i a casa, mas listada por seu prenome, estaria perdida para

n ó s porque os documentos raramente preservam as re lações de

parentesco cruzado de i r m ã o s tios, primos, sobrinhos, avós e,

menos ainda, os l a ços advindos do m a t r i m ó n i o . Nesse c sp }o

esc r ivão não identifica em momento algum a i r m ã por algum

nome. A mã e delas, Pulicena, cujo nome aparece uma ún i ca vez,

permanece nas sombras, e o pai de Caetana está totalmente perdi-

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do para n ó s . M o r t ovendido para outra fazenda, fugitivo? Os

documentos nã o dizem; jamais se referem a ele. T a m b é m não

sabemos se o tio de^aeta na era materno óu paterno, fato q ue t a lvez tenha contado nas r e ações entre eles, mas que perman ece fora

do nosso alcance..

A i r m ã e o ti o de Caetana alarg am nossa c o m p r e e n s ã o das

famílias escravas ao introduzir n ão -e sc ravos no c í rculo do parentesco. O cunhado de Caetana, um mulato l ivre que nunca f o i cati

vo se casara co m uma escrava, a i r m ã de Caetana; seu ti o casou-seco m uma escrava que, em algum moment o posterior, ganh ou a

liberdade, enquanto ele permanecia cativo. N ão há motivos para

supor que essa famí l ia era excepcional: com certeza, havia outras

que atravessavam os limites legais entre as cond ições de escravo,

pessoa livre e liberto, se p u d é s s e m o s recuperar as relações.Os historiadores sugeriram que a f requência do casamento de

escravos dependia mais de p a d r õ e s d e m o g r á f i c o s regionais dos

cativos do que das regras da Igreja ou da complacênc i a dos senhores. Eles sustentam que d e sequ i l í b r io s persistentes entre os n ú m eros de escravos machos e f êmeas — em geral, mais homens do que

mulheres, devido à maior oferta de homens no t rá f ico africano,

pois as mulhe res na África eram valiosas demais para serem vendi

das — prejudicavam arnossibilidade de os escravos formarem

famílias e explica a suposta baixa taxa dè m a t r i m ó n i o entre os

escravos. 65 Pensando bem, parece um argumento estranhamentemgênuo que assume o pont o de vista masculino, n ã o o das mulhe

res: é evidente que elas tinham u ma ampla escolha de homens dis

poníveis . E, de qualquer modo, as escolhas de uma escrava nãoestavam necessariamente limitadas aos cativos, como o casamento da i rmã de Caetana co m u m homem l ivre nos indica. A escassezde possíveis esposas escravas pode ser a razão do celibato dos cati

vos ou de se unirem a n ão -e sc ravasmas n ã o explica o comporta

mento das cativas.

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E r ri Pa rà ibú r iVò i rá^ re> 1d ú z i a as chances de os homens encontrarem esposas em suas fa- |zendas. Era o caso da fazenda de José L obato de Moura e Silva, em f1829. Dos 66 cativos que ele e seu f i l ho pos su í am , 52 eram adultos | |de vinte anos ou mais e, com exceção de dois, eram todos africa- |nos. Havia forte d e s e q u i l í b r i o d e g ê n e r o r 4 2 homens para apenas •••§dez mulheres. Todas as mulheres mas apenas sete homens er am k

casados, o que indica qu ê t r ê s delas 1 èYànirdà&tâàs corri homens de

f o r á da fazenda. Ú rn: nume ro des propo rci onal dé 35 escravos -|jovens permaneceria sem esposa, èxcètòse^élés tàmbelíi éhêón-'• '-*-§trass em parceiras em fazendas v izi nhas ou-se casassem co m ^mulheres l ivres, evento i m p r o v á v e l , tendo em vist a o excedente Igeral masculino. Era um mercado vantajoso para as mulheres.'

À esse respeito, havia uma crise em f e rmen tação na fazenda |R io Claro: O d e sequ i l í b r io sexual tã o pronunci ado entre escravos rf

na sociedade Colonialj e que aparentemente c o m e ç o u a d i m i n u i r %durante o século x ix numa p o p u l a ç ã o crescente de escravos; c r i òú - los, 67 ainda era evidente nessa fazenda na d é c a d a de 1830. Os 26 |africanos jovens que pod er ia m em breve desejar companheirasn ã o as encontrariam na fazenda, e a p r e f e r ênc i a de Tolosa pelocasamento dè seus escravos se tornaria i m p r a t i c á v e l . EnquantoCaetana poderia ter escolhido para marido qualquer um dosvá r io s jovens cativos, C u s t ó d i o era um dos muitos q u ê di sputavamas outras duas mulheres jovens d i sponíveis .6* Pará ele, que reconhecia que queria casarrdeve ter sido a l t a - a - f i v ^ u H à ^ T ^ r ^ m - - -

escravo favorecido e ter mais de vinte aribs deu evidentemente aC u s t ó d i o uma vantagem sobre os outros na dec isão de Tolosa decasá-lo corri Caetana. '*•

Os h i s t ó r i á d ò r è s c õ m e ç a m a indagar sè as famí l ias escravasv i v i a m em á l o j áí t i è ri t ó s p róp r io s , com todos ós grandes ou pequenosconfortos é i r r i tações da vida p r ó x i m a j è que•-autonomiad o m é s t i c a esse t i po ' dê 'morad i a permitia. Stanley Sfèiri, ém seu ;

o

estudo dá Soicièdadè cáféeira do Vale M é d i o do Pa ra íba na segunda metade do s é c u l o xix enfatiza os c u b í c u l o s sem janelas dosescravos acasalados e os igualmente desolados d o r m i t ó r i o s queabrigavam as mulheres solteiras separadas dos homens. Na década de 1830, o autor de um manual d i r i g ido aos fazendeiros aconselhava que at é os escravos casados deveriam viver separados,com pe rm is são apenas para breves encontros noturnos. 69 A o contrário, 'urri rico e respeitado cafeicultor do Vale do Pa ra íba defendia que se alojassem juntas as famí l ias de escravos. Escrevendo em1847, disse quê òs alojamentos apropriados para escravos deveriam ser organizados numa única f i leira e divididos em quartos de24 palmos quadrados , co m uma larga varanda e m toda a extensãoda cons t rução . Cada quarto destes deve acomodar quatropretossolteiros, e se forem casados, mar ido e mulher com s f i lhos un icamente , 70 recomendava ele. Essas senzalas padronizadas , longas,baixas e caiadas e ram c o n s t r u í d a s na forma de um quad r i l á t e rnas fazendas maiores , e faziam parte do conjunto central de edif icações de trabalho. Segundo um fazendeiro, esse arranjo era considerado repugnant e pelos escravos, ao passo que, para ossenhores, t inha a vantage m de lhes permitir uma vigilância diáre casual. 71 Um i n v e n t á r i o de unidades individuais de moradianum engenho de a ç ú c a r na Bahi a, em 1850, ano to u uma casanova de telha em que mor a o feitor , uma casa velha de telhas para©•embaladorde açúcar, bem como 55 casas de telhado de sapé,provavelmente mais bem caracterizadas ç ó m o c h o ç as , semelhan

tes às 71 casas de palha que servem de senzalas , a lém das outrasedificações de pedra e argamassa de um dos muit os engenhos queAntôn io Pedroso de Al buquerque p o s s u í a nas d écadas de 1870 e1880. 72

Más , para os escravos casados, tanto na reg ião de Campinascorno na p rovínc ia do Rio de Janeiro, o m a t r i m ó n i o era uma qualificação para ter acesso à terra e cultivar uma r o ç a p r ó p r i a de

l

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milho , fe i jão , batata, café e c a n a - d e - a ç ú c a r. Esse cu l t ivo significava uma di eta mais farta ou variada, ou o di nh ei ro de sua ven dapoderia ser gasto em pequenos luxos, economizado para temposmais d i f íce i s ou ac umulad o para a compr a da liberdade. E, co m at é r r á , esses escravos ganha vam à s vezes o p r i v i l é g i o de ter uma casa— e e s p a ç o para dormir e comer, enfatiza Slenes — separada da

senzala coletiva e do olhar vigilante do senhor. Eles ganhavam seup r ó p r i o fogo e a possibil idade de prepa rar a li mentos de acordo |

' c om seus gostos e p r e s c r i ç õ e s espirituais, e c o m ê - l o s com parentes 1escolhidos, longe das turmas de trabal ho. 73

- - O caso de Caetana fornece apenas algumas pistas — masi ns-tigantes — sobre a moradi a de sua f a m í l i a . J o ã o Ribeiro da Silva, o |cunhado deC)aetaTia,-Telembrou uma-eonversa que aconteceu na J

casa da m ã e da Caetana —- nã o no q uar to ou na senzala, p o r é m |na casa sugerindo n ã o somente moradia separada, mas talvez umacasa que por sua longa o c u p a ç ã o era reconhec ida como pertencen - |

te à mãe de Caetana. 74 Parece i m p l a u s í v e l que i i m " c u b í c u l o sem

janel as se transformasse nu ma casa apenas na n a r r a ç ã o . O caso |revela ainda que, depois de casados, Caetana e C u s t ó d i o foram 1v i v e r n a casa dos tios dela. Co m essas provas — que admi to serem |poucas —, parece que pelo menos alguns dos escravos de Tolosa |moravam em casas ou c h o ç a s individuais, ainda que de c o n s t r u ç ã ogrosseira. Suas casas conta vam provavelmente com uma ou maisr o ç a s familiares, onde sua tia e seu cunh ado plantavam. A moradi a 1s e p á f a d á r è r n vez da senzala coletiva dos outros ese-ravosrera uma^írecompensa reservada a escravos privilegiados, como a f a m í l i a de|Caetana. 75

Sobre o m o b i l i á r io da mora dia dos escravos sabemos pouco, l

exceto que a p e ç a p r i n c i p a l era uma cama. Stein oferece um magroi n v e n t á r i o que i n c l u í a uma cama ou catre fei to de " t á b u a s sobredois cavaletes de serrador, cobertas com uma esteira de capimt r a n ç a d o " .7 6 Uma cama elevada acima do c h ã o era rara; uma estei-

•J1

ra estendida diretamente sobre o c h ã o batido ou piso de tijolosteria sido o mais comum. A p ó s o casamento, C a e t a n a " n ã o consenti u que se [ fosse] meter na cama com ela apesar das ins i s tênc ias queele fez", de acordo com C u s t ó d i o .7 7 A l iteralidade da linguagem —

na cama — sugere que cama n ã o era um eufemismo para relações sexuais, apenas a n a r r a ç ã o do que aconteceu, mas jamais fica

mos sabendo se cama significa catre no c h ã o ou elevado.Escravos da r o ç a trancados na senzala coletiva à noi te e cria

dos d o m é s t i c o s man ti dos em quartos apinhados per to da cozinhasã o uma imagem domin an te da vida escrava brasileira, confirmada po r uinJazen deiro pauli sta que removeu os cadeados da senzala de sua fazenda qu an do trabalhadores livres s u b s t i t u í r a m osescravos no f ina l da d é c a d a de 1880. Os viajantes descreviam escravos, sobretudo homens e mulheres solteiros, dormi nd o em quartos ou d o r m i t ó r i o s trancados e a rotina do fechamento noturno,embora a eficácia das trancas, tendo em vista a má qualidade da

c o n s t r u ç ã o das senzalas em geral e o n ú m e r o de fugas, possa serquestionada. 78

Mas, na é p o c a dos escravos, quem ficava com as chaves? Umcomerciante f rancês de a l g o d ã o que visi tou a p r o v í n c i a de Pernambuco em 1816 nos dá motivos para d ú v i d a s ao rel atar que, nos alojamentos de escravos da fazenda Salgado, cada um ti nh a uma porta e que os escravos eram muito cuidadosos em fechar as suasportas à chave e, quand o e s tão trancados em casa, só abrem comre P W g n ân c ia " . * A p a r t i r de u m processo-crime deT878, a historia*,dora Hebe M a r i a Mat tos de Castro descreve a senzala de umamodesta fazenda de cana na p rovínc ia do R io de Jarteiro. A escravaJustina v iv ia n um quar to ao lado da cozinha c om seus trê s filhos,enquanto o filho adolescente e dois outros escravos dormiam nacozinha. Ela guardava a chave de seu quarto e podia t r a n c á - l o . OuU m feitor podia ficar com as chaves, como aconteceu quando umdeles correu para destran car as senzalas onde escutara gritos. 80 Se

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alguns escravos da fazenda R io Claro eram trancados à noite, Cae- |tana n ã o estava entre eles. Tarde da noi te ela saiu corre ndo da casados tios para pro cur ar seu senhor, cuja p r ó p r i a casa aparentemen-te t a m b é m n ã o estava trancada.

Se pensamos que, em geral, á v i d a dos escravos era p r e c á r i a ei m p r e v i s í v e l , a estabilidade da vida d o m é s t i c a de Caetana parece -surpreendente. Escrava da casa era uma e x p r e s s ã o corrente dos '%senhores de escravos brasileiros^ de Iambos os sexos, mas mais comum eri te mulheres -^n as ci dos e

criados na r e s i d ê n c i a d o senhor. A e x p r e s s ã o sugeria anos de f a rh i - |l i a r i d a d ê , c o n f i a n ç a acumulada aos poucos e eventualmente (friasjamais com certeza) as recompensas devidas a uma escrava p i ró te -gida. Nascidas em R io Claro e cativas desde sempre de Tolosa, Caetana e sua i r m ã eram escravas da casa q ú é n ã o haviam enfrentado |o horror de serem vendidas para u m lugar estranho o u um sérif ior

desconhecido. Em 1835, duas g e r a ç õ e s da f a m í l i a de Caetana v iv i a m r ia fazenda, e se, como é p r o v á v e l , s u à i r m ã teve filhos, a Imha-gem se estender ia a t r ê s . Embora l i v r e , J o ã o Ribeiro optou porcasar com a i r m ã de Caetana ao custo de se l igar a uma escrava,cujos f i lhos nasceriam escravos, e ficar sujeito, por me io dela, àvontade potencialmente a r b i t r á r i a do senhor dela, bem como aolugar de sua fazenda, assim como L u í s a Jacinta ficou com o. m a r id o escravo Alexandre, apesar de sua liberdade adquirida. No cá l - 'culo do afeto em c o m p a r a ç ã o com as vantagens reais ou i m a g i n á -rias-da mobilidade, os l a ç o s familiares mantiveram-se firmes. A

d i s p o s i ç ã o deles de permanecer .em R io Clar o com Tolosa sugereq u ê acreditavam ter Utn trato r a z o á v e l com seu senhor.

M a s os escravos nã o podiam contar com essa estabilidade.Toda a vida escrava tinha como pano de fundo a possibilidade devenda e m u d a n ç a para u m lugar estranho. Caetana aprendeu quea d e s o b e d i ê n c i a podia solapar de repente a fr á g i l c o n f i a n ç a quemantinha seu mun do no lugar, pois Tolosa podia retirar seu favor

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da mesma forma que o concedera. Quando Tolosa se apresentoupara tratar dos p a p é i s e Caetana recusou de noyo_o^asamento, elea m e a ç o u p ô - l a fora da casa . Essa tenebrosa a m e a ç a apontavapara uma retirada punitiva da c o n f i a n ç a e o rebaixamento para otrabalho no campo, ou até uma p o s s í v e l venda. 81 C om essas poucas palavras, o luga r aparentemente seguro de Caetana com oescrava da casa tornou-se p recá r io . E la teve de compreender o queesteve sempre i m p l í c i t o : somente cum pr in do a vonta de delepoderia manter sua p o s i ç ã o privilegiada. Era uma l i ç ã o curta egrossa sobre o funcionamento do poder do senhor, e ela prestoua tenção .

A p u n i ç ã o podia ser adiada, reduzida ou suspensa, mas, nolongo prazo, estava em a ç ã o outra fo rça quê nã o podia ser impedida. Inevitavelmente, a morte de um senhor l a n ç a v a uma largasombra de incerteza sobre a vida de todos os escravos. A mor te sig

nificava que a propriedade, inclusive os cativos, passava para osherdeiros e, no Brasil , onde os filhos herdavam partes iguais, a n ã oser que houvesse apenas um herdeiro sobrevivente, isso queriadizer que os bens seriam partilhados. O direito brasileiro, seguindo o p o r t u g u ê s , especificava que dois t e r ç o s dos bens de uma pessoa ou de um casal deveriam ser divididos em partes iguais entre osfilhos ou netos ou, caso não houvesse herdeiros descendentes, osbens revertiam para os pais ou a v ó s . A pessoa podia dispor do

-outro te rço como be m quisesse—dizia-se que tinhaliberdade tes

t a m e n t á r i a sobre este t e r ç o ; e, se n ã o houvesse herdeiros necessários, a pessoa podia deixar todo o e spól io para um herdeiro de suaescolha. O valor de todos os presentes, e m p r é s ti m o s e dotes dadosaos filhos antes da morte dos pais tinha de ser devolvido ao e s p óli o para a contabilidade final e, se um filho já tivesse recebido maisdo que sua parte final dos bens, e n t ã o devia a d i f e r e n ç a ao e spól io .O resultado era que, inevitavelmente, a morte de um senhor fazia

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c om que os escravos fossem divididos entre os herdeiros, junt o

com os outros bens. 82

Como as coisas aconteceram em Rio Claro? Uma resposta

aproximada pode ser montada comparando-se os escravos lista

dos no censo do m u n i c í p i o de 1830 com aqueles que apareceramem inven tá r io s post mortem Dos 134 escravos que havi a na fazen

da em 1830, no m á x i m o 21 ainda estavam lá em 1853 e, desses,somente quinze t inham nomes d is tintos o bastante para ser iden

tificados, com s e g u r a n ç a .8 3 Alguns haviam certamente morrido,

mas o regi stro de suas mortes, sé é que houve algum, se perdeu e

seus nomes n ã o aparecem em documen tos posteriores. Outr osforam vendidos e espalhados.

Alguns foram libertados. Em seu testamento de 1832 na l i n -g u a g e m - p a d r ã o de tais documentos, dona Ana Joaquina promete u liber dade em sua mort e para sete escravos pelos bons serviçose fid elidad e com que me serviram . Entre esses, nomes de lugares

de origem t omados como sobrenomes identificavam José Nagô eA na Rebola como africanos, capturados, transportados no t ráficonegreiro e, em algu m momento , comprados por Tolosa. Mari a

Nova, Bueno, José Carioca e Cipriano talvez tivessem nascido no .Bras i l ;CrÍQulo Bonifác io certamente era nativo do país. Com exce-ção de Ana Rebola, que tinha mais de trinta anos, n ã o sabemos suasidades ou como poderiam estar relacionados entre si OÚ com

outros da fazenda. Talvez a ord em de sua listag em indicasse duasfamí l ias .8 4 Eram.provavelmente criados domés t i cos a quem.a dona

viera a favorecer em de tr iment o dos escravos do campo* os quais

ela talvez mal conhecesse. A liberdade, por desejada que fosse, nãoprovocaria mais p r e o c u p a ç õ e scomo não saber para onde ir e

como achar trabalho? Em 1832, a p o p u l a ç ã o do m u n i c í p io tinha

poucos escravos libertos: 32 mulheres e 25 homens, ern.compara-. t

ção com 776 escravos de ambos os sexos. 85 Como viveriam com a.

marca de ex-escravos quando a maioria dos trabalhadores eram

cativos e os fazendeiros se inclinavam a acreditar que negros e

negras só trabalhavam sob a chibata? Os l a ços que mantinhamcom Rio Claro seriam muito fortes? Quem eles deixara m para trás?Caetana, que teria trabalhado com eles, acharia seu lugar na casaalterado pela ausência deles? Haveri a novos deveres? O apoio dos

mais velhos eex per ime ntados fazia falta? Eles sabiam sobre sua

liberdade condicional e esperavam p or ela? Se dona Ana Joaquina

tivesse v iv ido até a velhice, poderi a ter sobrevivido a eles, que

jamais teriam conheci do a liberdade, ou pode ri am ter envelhecidot a m b é mcom mais medo das m u d a n ç a s da liberdade do que ale

gria. Alexandre, que era crioulo e provavelmente nascera em Rio

Claro, teve sorte suficiente para ser liberto pelo testamento do

padre quando era um jovem de 22 anos, com toda uma vida pelafrente. 86

Nem todos os escravos que deixaram R io Claro partiram com

suas cartas de alforria. Dona A na Joaquina deu os cativos Francisco

Guedes e Vi tór ia de presente para sua afilhada e para a mã e dela;Rosa foi legada a uma amiga ou parente chamada A n t ô n i a de Poia,ou à filha dela, a quem vivesse mais. Talvez esses t rês se julgassemem boa s i t uaçãotalvez n ã o ; at é que ponto suas p r e f e r ênc i a s i n

fluenciaram as escolhas de sua senhora? Por volta de 1846 Abelum crioulo que pertencia ao padre, fugiu da fazenda depois de láter vívid o pelo mertbs dezesseis anos, quando j á estava mais velho,

com quarenta é tantos ou ci nquent a e poucos anos. A mort e d o

Padre, se é que-ficou sabendo dela, deve t ê - lo afetado pouco, exce-to por tornar sua captura um pouco menos p rováve l .8 7

No curso usual da d ec i s ão de uma h e r ança após a morte doscônjugesos bens eram transferidos para os herdeiros necessár iosPejo partidor legalmente designado, cuja tarefa era calcular par

tes iguais, ço m basenas estimativas dos avaliadores . Para os cinco^ o s ^ . e To Í o s a? adultos e casados quando ele morreu, em 1853 os°ens abrangiam terras, ed i f icações e escravos, bem como gad o e

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animais de t r a ç ã o , prataria variada, m ó v e i s , u t e n s í l i o s de cozinha-. (todos os objetos de metal ti nha m valor) e m o b i l i á r io da capela. Os A -..

dez escravos já dados a eles for am levados em conta, e cada um dosfilhos recebeu outros cativos. Muitos eram velhos e quase a metadej á v iv ia em R io Claro no c o m e ç o da d é c a d a d ê 1830, quando algunsainda era m c r i a n ç a s . Teodora e Fortunato, ambos entre dez e deze-

nove anos de idade em 1830, teriam conhecido Ana Francisca, afilha mais m o ç a de Tolosa e agora dona deles, desde que nascera. O iescravo Faustino e J o ã o Batista, o filho mais m o ç o de Tolosa,haviam crescido juntos, tendo mais ou menos a mesma i d a d e f õmesmo acontecera com outro filho, Joaquim Mariano, e os escra- |vos T o m é e Felicidade. A t r a n s f e r ê n c i a para donos conhecidos pode •n ã o ter sido muito per turbador a, exceto pelo fato de que apenas umdos filhos parece ter cont inua do a ser fazendeiro em Paraibuna, ao

passo que os outros se mudaram para a v i la ou mesmo para fora dar e g i ã o , e teriam vendido ou ret irado os escr avos—que haviam v i v i - 4

do e trabalhado juntos por mais de vinte anos — de arredores

conhecidos e os afastado de colegas conhecidos. 88 ' •, .; sN ã o obstante, entre os que enfrentaram tais s e p a r a ç õ e s dos

companheiros, seis cativos continuaram como casais: o africano %Manuel Monjolo e sua esposa Rita, que devia m estar muito velhos |em 1853, a julgar pelo baixo valor que lhes atribuiu o avaliador; o |carpinteiro J e r ô n i m o e sua mulher Josefa, que haviam sido crian- ....ças em Rio Claro; e Domingos Vie i ra e sua esposa Felicidade, que ít a m b é m estavam em Ri o Clar o desde a i n f â n c i a . Tr ê s dos filhos de ^

Tolosa receberam, cada um, u m casal. As fontes n ão dizem o queaconteceu com os filhos que porventura tivessem. 89

N o entanto, os casamentos entre escravos nem sempre foramrespeitados em Rio Claro. As d í v i d a s de u m senhor quando de sua—1morte podiam ser devastadoras para seus escravos. Em 1848, dez |casais de escravos foram mencionados no i n v e n t á r i o dos bens do

padre Va l é r i o , metade dos quais v iv ia em Ri o Clar o havia pelo 8

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menos dezoito anos. Enquanto a metade dos cativos f i cou paraherdeira escolhida pelo padre, a v i ú v a Gertrudes, os outros, inc lusive t r ê s casais, foram transferidos para diversos credores, dispers a d ò s è m pagamentos d e e m p r é s t i m o s . Joaquina foi usada par

pagar parte da d í v i d a do padre com Tolosa, com m u d a n ç a s provavelmente m í n i m a s em sua vida at é alguns anos depois, quand

Tolosa a transferiu para um terceiro dono para quitar outra dív:da, e ela foi levada para uma fazenda si tuada em out ra parte dm u n i c í p i o . Quando o padre morreu, I n ê s e Jonas, casadosmorando' e m R i o Claro desde pelo menos 1830, foram separadosentregues a credores diferentes. Sua dor deve ter sido i n d i z í v e lFamí l ias escravas protegidas por seus donos nu ma é p o c a antericficavam desamparadamente v u l n e r á v e i s quando eles morri anN o fim, a n o t á v e l estabilidade de Rio Claro se revelou nã o mais dque t e m p o r á r i a .

P A D R I N H O S

A s a l i a n ç a s familiares estabelecidas por sangue e casamenlampliavam-se ainda mais com a p r á t i c a da cultura católica d<l aç o s v o l u n t á r i o s do apadrinhamento r i t u a l . A escolha de u:padrinho e uma madrinha para batizar uma c r i a n ç a ligava as famlias a redes mais amplas de clientelismo, com trocas constantes favores ou d e f e r ê n c i a s . Os padrinhos tinham o dever sé r io esai

cionado pela Igreja de guiar o bem-estar espiritual de uma cria:Ça; podia m ser chamados para corrigir pais i r r e s p o n s á v e i s , csubstituir aqueles que, por morte, d o e n ç a ou a u s ê n c i a , nã o pdiam c umprir com seus deveres. N ão contente apenas com o crdado mat erial das c r i a n ç a s , a Igreja proporcionava pais e sp i r i tu íae Dáiisrhó, quando a a í m a se tornava capaz de sa lvação eterna ]

presença de Deus. U m a vez que os padr inhos poderi am ser cham

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dos a.suhstituit.o,s..pais verdadeiros, sua escolha era umassunt o jdelicado e produzia um intrincado p a d r ã o de parentesco r i t u a lque escorava e espelhava a c o m p r e e n s ã o da ordem e n t r e l a ç a d a da

hierarquia sagrada e secular.As re f lexões sobre as p r á t i c a s do apadrinhamento brasileiro

entre escravos c o m e ç a r a m c om o trabalho de Stuart Schwartz^obrc j j

a zona a ç u c a r e i r a baiana, o qual, embora descreva uma r eg ião geo- |graficamente distante e uma economia diferente e é p o c a anterior,continua a ser um dos estudos mais detalhados d i s p o n í v e i s . Observando a dout rin a ca tó l ica , Stephen Gudeman é Schwartz enfatiza^ |r a m a igualdade espiritual do sacramento do batismo concedido a ....almas a b e n ç o a d a s e o consideraram i n c o m p a t í v e l com as r e laçõesno mundo cotidiano. Segundo eles, no c e n á r i o de uma sociedade Iescravista de desigualdades exageradas e f o r ç a d a s , a r e lação comer- *ciai que. ligava senhoj.e escravo estava totalrnente em c o n t r a d i ç ã o .c o m a igualdade que supostamente advinha do parentesco r i t u a l e

p o r ela era a m e a ç a d a . Eles v i r a m nisso uma e x p l i c a ç ã o para ump a d r ã o persistente: na d é c a d a de 1780, em quatro p a r ó q u i a s ,nen hum escravo t e v ê seus senhores como padrinhos. 91

O p a d r ã o se repetiu em outros lugares e outros tempos. Nos Iengenhos de a ç ú c a r de S ã o Paulo co lon ia l , Al id a Metca l f descobriu Isomente um senhor quê de forma urgente e excepcional assumiu IjR.papelde padre e padri nho para batizar um b e b é escravo agonizante. Nem depois na Bahia, nem nos cafezais do oeste de SãoPaulo do s é c u l o x i x . a l g u m dono-de .escravos serviu de.padrinhoparaseus p r ó p r i o s cativos, e somente em dois casos, no sécu lo x ix ,

senhores de escravos de Curitiba foram padrinhos de batismo deseus escravos. Do mesmo modo, K â t h l e e n Higgins descobriu que

. os. escravos do distrito mineiro de S a b a r á , nas Minas Gerais do. . sécu lo xvm: , n ã o . t i n h a m seus donos como padrinhos. 92

M a s , se o p a d r ã o é constante e ind iscu t í ve l , a expl icaçã o é maisdifíci l . Como elegibilidade para a s a l v a ç ã o eterna, o batismo esta-

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beieç ia a igualdade dos batizados perante Deus, não perante opapa ou C é s a r. À teologia ca tó l ica celebra uma hierar quia celestialque desce da S a n t í s s i m a Trindade aós~anjo~s — t a m b é m arrumados em coros, cada um com suas especialidades e o f íc ios — é aossantos e depois à Igreja terrestre, ordenada da mesma forma compapa, cardeal, arcebispo, bispo e padre, para chegar finalmente aosfiéis laicos. Ta l com o outros c a t ó l i c o s , os brasilei ros aprenderam arezar para a Vi r g e m M a r i a e aos santos para que intercedessem poreles em seus apelos à g r a ç a de Deus. Por e x t e n s ã o , a s ú p l i c a e ain te rcessão pro porciona vam uma base religiosa para a rede forte,mas flexível, de r e l a ç õ e s de clientelismo secular que amarrava umasociedade de outro modo d i v i d i d a e potencialmente q u e b r a d i ç a .Ta m b é m na vida secular a s ú p l i c a e a i n t e r c e s s ã o conectavam pessoas de v i s íve l desigualdade e, ao atravessar suas d i f e r e n ç a s sociais,serviam nã o para d i s p e r s á - l a s , mas para r e a f i r m á - l a s . Longe de seri n c o m p a t í v e l com a e s c r a v i d ã o , o parentesco r i t u a l repetia a relaçã o paternal desigual e sua r e l a ç ã o senhor-escravo a n á l o g a .

Por que, e n t ã o , a surpreendente a b s t i n ê n c i a ? De acordo comGudeman e Schwartz, nenhu m senhor podia assumir a responsabilidade sagrada por um escravo e ao mesmo tempo afirmar seudireito a disciplinar, vender ou fazer trabalhar sem fim o cativosem comprometer suas o b r i g a ç õ e s religiosas ou l i m i t a r severamente sua i n t e n ç ã o de lucra r com o cativo. 93 Nessa e x p l i c a ç ã o , elessã o sustentados pel o viajante do i n í c i o do s é c u l o x i x Henry Koster,u m i n g l ê s . r e s i d e n t e por muito tempo em Portugal e fluente emp o r t u g u ê s , que a f i r m o u que jamais o u v i dizer que o senhor no

Brasil fosse t a m b é m o padrinho [...] pois t al é a con exã o [ . . . ] queosenhor jamais pensaria em mandar castigar o escravo . 94 No entanto , nada no c ó d i g o do paternalismo luso-brasileiro, em sua formacivil ou re ligiosa, impedia o chefe da f a m í l i a de punir corp oralmente aqueles sobre os quais, inclusive membros da f a m í l i a , eleexercia a autoridade d o m é s t i c a . A o c o n t r á r i o , o Código filipino pro-

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mulgadoem 1603 e base do direito c iv i l no Brasil at é 1916, lhe perm i t i a de modo expresso o direito de castiga r fisicamente suaf a m í l i a , seus dependentes e escravos. Embora , na q u e s t ã o do trabal h o , a Igreja orientasse os senhores a não obrig ar os escravos á trabalhar aos domingos e dias santos, ela reconhecia no momentoseguinte que a cana j á cortada exigia a moenda urgente, mesmo aos

domingos, aliviando assim os fazendeiros de qualquer conflito quepudessem sentir entre o dever religioso e seus interesses e c o n ó m icos. 95 É duvidoso, portanto, que isso servisse de motivo para que osenhor evitasse ser padrinho. P o r é m é i n q u e s t i o n á v e l q ú é õ senhorque vendesse seu afilhado, cortando todo o contato e deixando depoder cuidar do bem-estar espiritual dá c r i a n ç a , de fato repudiariaseu dever sagrado. Assim, penso, embora nenhuma a utori dade institucional restringisse forma lmente os donos de serem padrinhos,e nenhuma ideologia da igualdade d i lu ísse a auto ridade do senhorsobre os escravos, uma p e r c e p ç ã o de interesses c o n t r a d i t ó ri o s e

um a p r e f e r ê n c i a por se distanci ar dos escravos parece que dissuadiam os senhores de assumir o papel de padri nho.

M a s , se voltarmos nosso foco para os escravos, quem elesescolhiam para pa drinhos? Em geral, outras pessoas livres: Nosengenhos de a ç ú c a r col oni ai s da Bahia e de São Paulo sobre osquais temos i n f o r m a ç õ e s , a maioria dos cativos com padrinhos —dois t e r ç o s ou mais — escolhia pessoas dos e s c a l õ e s mais baixos dasociedade l i v r e , com f r e q u ê n c i a homens ou mulheres Solteiros, emgeral, de pele mais clara do .que a deles e, muitas-vezes, lavradoresque cultivavam suas p r ó p r i a s terras, ou, na melho r das h i p ó t e s e s ,pequenos fazendeiros c om poucos escravos. Às vezes esses padrinhos livres eram ex-escravos (cerca de dez por cent o no exemplobaiano). 96 Em Curitiba, durante um longo p e r í o d o de-duzentosanos, e em S a b a r á , no i n í c i o do s é c u l o x v m , os cativos escolhiamgeralmente pessoas livres para padrinhos e, em especial, homenslivres. 97 Os escravos estavam em s i t u a ç ã o de se benefi ciar das rela-

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ções verticais com p e j s o ã $ ) q u e não eram muito distantes dele.socialmente, mas que, n â u 4 > b s t a n t e , podiam prestar alguns favores e que, por sua vez, ganh^am por ter clientes que confirmavanseu status. Mesmo quandb^er tencia m a outr a fazenda, os clienteescravos deviam d e f e r ê n c i a ao padri nho e era p o s s í v e l contar con

-eles para o trabalho obediente quando alugados de uma propriedade ma io rd ur an te a colheita. E, se u m dia fossem libert os, ohomens podiam empenhar seus votos em apoi o às a s p i r a ç õ e s du m padr inho ao poder local.

Os escravos t a m b é m escolhiam outros escravos para padrinhos. É n o t á v e l que a té um t e r ç o dos escravos nos exemplos baian<e paulista preferisse outros cativos, em geral de sua p r ó p r i a senzaàs vezes de Outras fazendas, mas raramente de fora da freguesia,que talvez refl i ta os limites de seus conhecimentos pessoais e exper i ê n c i a . Na Bahia, em 1835, os escravos adultos preferiam claramente outr os escravos e escravas para padrinhos e madr inhas. Er

vez de compet ir por padr inhos livres, esses escravos se apadrinhv am mutuame nte . Ao servir de padr inho, o cativo ganhava seip r ó p r i o s dependentes e seguidores fiéis, reproduzindo na senzaos p a d r õ e s de clientelismo que, em geral, se pensa que i n c l u í a m cativos apenas como recebedores de favores, n ã o como protetoreOs l a ç o s que ligavam alguns escravos e x c l u í a m outros, marcanainda mais uma hierarquia entre eles. Robert Slenes descreve dfamí l ias escravas de uma fazenda de Campi nas na d é c a d a de 187eada uma com t r ê s g e r a ç õ e s presentes; como as f a m í l i a s fundadras da senzala que deti nham a maioria das o c u p a ç õ e s d e . trabal

fora do campo e que forneciam a mai or ia dos padri nhos, em espciai para os cativos r e c é m - c h e g a d o s que ainda n ão haviam cosolidado l a ç o s familiares locais. Os escravos d o m é s t i c o s e especilizados eram especialmente procurados pelos outros porqtinham i n f l u ê n c i a e podi am ser i n t e r m e d i á r i o s eficazes ou ofecer os recursos materiais para assegurar o bem-estar de uma fa

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l i a . 9 8 Os b e n e f í c i o s eram r e c í p r o c o s . Ao escolher padrinhos e s ç r a -vos eles elevavam alguns companheiros a p o s i ç õ e s de i n f l u ê n c i ao u r e f o r ç a v a m o status já reconhecido de u m cativo nà senzala.

N a f a m í l i a de Caetana formou-se uma r e l a ç ã o dupla: parentes escravos foram padrinhos de um bebe escravo. Luísa Jacinta,que tinha entre trinta e quarenta anos na é p o c a do batismo de Caetana e quase com certeza ain da era escrava, e Alexandre eram tiose padrinhos dela, a l é m de escravos da fazenda R io Claro. Presentesna vida de Caetana desde o nascimento, eles continuavam a serum a p r e s e n ç a forte em sua vida de^essete anos depois. A x n b ó seram crioulos: Alexandre nascera em Ta u b a t é ao norte da fazendade Tolosa, po r onde se chegava por um a estrada escarpada a t r a v é sda serra do Quebra Cangalha, perto do rio Para íba ; Luísa Jacinta

vinha de.Vila Nova.de $ão L u í s perto da b a í a de Guaratuba, nacosta meridional da p r o v í n c i a num distrito que plantava ca fé ealguma cana. Não sabemos como e quando passaram a per tencer

a Tolosa, mas apenas que em algum momento do passado eles secasaram, talvez na p r ó p r i a Rio Claro. 99 Na qualidade de muc amaque acabou sendo libertada e de tropeiro da fazenda, Luísa Jacintae Alexandre se tor nar am escravos inf luentes em R io Claro. E comoparentes de sangue e de r i t u a l parti cipav am inevitavelmente dosassuntos da vida de Caetana.

Os cativos nã o se enganavam ao ver vantagens em p adri nhoscativos. Consideremos o significado das r e l a ç õ e s de Caetana. Sem

d ú v i d a ^ - f a l t a m os l a ç o s com padrinhos livres, com os b e n e f í c i o st a n g í v e i s que poderiam oferecer: i n t e r v e n ç ã o protetora ou de

apoio junto ao senhor, talvez até a alforria. 10 0 N ã o obstante> outroescravo, especialmente u m da mesma fazenda, podia ser mais acess íve l e c o n f i á v e l a l g u é m inclinado a ter em alta c o n s i d e r a ç ã o o af ilhado e os pais e responder com mais rapidez ou generosidade aalguma necessidade. Cativos de c o n s i d e r a ç ã o como Alexandre e

L u í s a Jacinta, poderiam ser mais eficazes do que padrinhos livres,

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mas pobres, que m a l conseguiam sobreviver nas margens da socie

dade branca r e s p e i t á v e l . Em vez de buscar a l i a n ç a s com as fileirasincertas dos pobres livres, a farriTiia de C a ê l a n a formou um v í n c ulo que consolidava e afirmava os l a ç o s existentes e enfatizava a

pos ição de alguns escravos sobre outros na fazenda.

O apadrinhamento abrangia n ã o apenas a r e l a ç ã o entre padrinhos e afilhados, rrias t a m b é m o l aço importante entre os padrinhose os pais da c r i a n ç a que se tornavam compadres. O compadrio,compreendido na troca, como em todas as r e l a ç õ e s de clientelismo,

n ão era somente a conc essã o cie favores de cima para baixo, mas tam

bém uma promessa r e c í p r o c a de s e r v i ç o d e f e r ê n c i a o b e d i ê n c i a elealdade. Koster captou o sentido disso quando descreveu o esperto comandante de um distrito remoto que havia c o n s t r u í d o um clãapadrinhando um f i lho de cada um de dez homens, que se torna

r a m e n t ã o seus compadres. Era um v í n c u l o cont inua Koster, quepermite ao hom em pobre falar com seu superio r com um tipo de

familiaridade afetuosa e os une . 101 O mesmo desejo de c o n e x ã oque podia acalmar a t e n s ã o de desigualdades t a n g í v e i s e persistentes funcionava dent ro da senzala. Os escravos t a m b é m c o n s t r u í a mnovas a l i a n ç a s entre os companheiros ou r e f o r ç a v a m as já existen

tes. A p r o m o ç ã o de alguns deles a padrinhos demonstrava as estra

tégias dos cati.vos.para encontrar uma s a í d a aos dif íceis problemascotidianos. Uma a p r o p r i a ç ã o alerta de l a ç o s de apadrinharhentopara a m ú t u a vantagem, dos escravos.

O C P I T Ã O T O L O S

Por que, em-primeiro lugar, Tolosa quis o casamento e por que

mudou de i d é i avd e p o i s ? A resposta nã o é simples de descobrir. Otrabalho de mucama de Caetana levou-a para den tro da vida c o t i -diana da f amí l ia de Tolosa ejlos aposentos privados da casa-gran-

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de,-sendo sua responsabilidade particular prestar o s e r v i ç o de criada pessoal para as filhas jovens e solteiras. Ser uma escrava da casa,uma pessoa de c o n f i a n ç a , era uma p o s i ç ã o privilegiada e comot ã r d ô m ^ r ^ n d f d ã , Caetana seguia os passos da madri nha. Mas op r i v i l é g i o tinha seus custos. Embora Caetana testemunhasse-osacontecimentos da casa-grande mais de perto do que a maioria dos

escravos de R io Claro, a f amí l ia v ia nela u m ã estranha em seu meio.Devido à p r e s e n ç a d i á r i a de Caetana em suas vidas, essa escrava eravista como tendo o poder de influenciar as filhas cujos vestidoslavava e cujos cabelos penteava, cujas r e fe ições e passeios supervi-siOnava.E, se n ã o fosse vigiada de perto, dizia a sabedoria comum, elapoderia causar-lhes danos: d o e n ç a s f í s ic a s , h á b i t o s relaxados, corr u p ç ã o moral. A p o s i ç ã o dela era ambivalente e misturava apreensivamente c o n f i a n ç a com suspeita. 102

E Tolosa via Caetana com a m b i v a l ê n c i a . N ã o mais dispostodo que qualquer senhor de sua classe a dispensar os s e r v i ç o s deuma mucama, ele tomou medidas para proteger seu lar. É aqui quedescobrimos.seu motivo para impor ura casamento que ela achava repugnante. Caetana forneceu os detalhes daqui lo a que Tolosan ã o mais do que aludiu em seu testemunho. Numa segunda entrevista para a qual o senhor a ch amou, ele lhe disse com palavrasr h à i s brandas, mas não T H T I O S T instantes , que decidira que ela secasaria porque de maneira nenhuma queria tef.em casa, e menosn ó interior dela para servi r a suas filhas, escravas solteiras . E, por-

que* estava empregada nesse s e r v i ç o de mucama, continuou ele, erapreciso true ela tomasse o partido de casar com seu parceiroC u s t ó d i o .1 0 3 Tolosa apresentou-se e n t ã o como um pai r e s p o n s á v e le protet or do bem-estar de suas i m p r e s s i o n á v e i s filhas jovens. Asexualidade feminina não estava sendo negada, pois, i m p l i c i t a -mente, ele a reconhecia tanto na escrava como em suas filhas. Emsua o p i n i ã o , a n ú b i l Caetana corria o risco de se tornar uma in f luên-ci a imoral pelo exemplo de sua i n e v i t á v e l conduta sexual. Como

7

mulher casada, com sua sexualidade devidamente contida, elatornaria uma mucama r e s p e i t á v e l . Diante das p r e o c u p a ç õ e sTolosa com suas filhas, os desejos de Caetana foram desconsidedos. A d e c i s ã o dele reconhecia a complexa i n t e r s e ç ã o entre far

—kas-de escravos e senhores: por causa das filhas do senhor, uiescrava tinha de casar. -

U m a e x p l i c a ç ã o p l a u s í v e l , mas um pouco esquisita. Cccerteza, a esposa e mãe não cuidaria desses assuntos intermN ã o , porque isso n ã o era mais p o s s í v e l na fazenda Rio Claro. Tanos antes, doente e em perigo de morte, dona Ana JoaquiMoreira de Tolosa ditou prudentemente sua ú l t i m a vonta(embora analfabeta, a l g u é m assinou por ela). Ela morreu*a b r i l de 1834. Sua mor te fez de Tolosa, e n t ã o com cerca de qirenta anos, um v i ú v o r e s p o n s á v e l por cinco filhos. As meniicuja p r o t e ç ã o o preocupava eram Maria do Carmo, de doze ane Ana Francisca, de dois anos de idade. 10 4 Sem uma esposa p

guiar a c r i a ç ã o delas e supervi sionar a vida d o m é s t i c a de seu 1e sem i r m ã , pr ima ou tia que a s u b s t i t u í s s e nessas tarefas, Tol<teria de confiar mais do que nunca em sua escrava da casa. P<tanto, ela deveria casar-se.

A q u e s t ã o n ã o acaba aqui: e os meninos da casa? Os t r ê s il l

de Tolosa — João Baptista, com onze anos quando a mãe morFrancisco, de treze anos, e o mais velho, Joaquim, de c ã t ò r znunca foram mencionados em r e l a ç ã o a Caetana. 105 A omissa

... n o t á v e l . Dizia-se que os meninos brasileiros tinham sua miciacsexual com escravas (que podem ou n ã o ter consentido no queuma s i tuação inerentemente coerciva). Será que, ao providencilh e u m mar ido, Tolosa pretendia; proteger Caetana, ai nda qumodo imperfeito, das e x p e r i ê n c i a s sexuais de seus filhos? ( Ocerteza, ela saberia que a r e l a ç ã o com um filho, jovem demais e sautoridade para lhe oferecer alguma coisa em troca, só aumenta

.|2sua vulnerabilidade.) 106

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Além disso, há t a m b é m a q u e s t ã o da r e lação do p r ó p r i o To-

lo.sa_çom Caetana. Será que ele queria evitar os cochichos que poderiam surgir sobre um v i ú v o morando numa casa onde urhá~es-crava solteira cuidava de seus filhos e onde nã o havia nenhumapareTitaTroxomando?-No-elima das relações com os escravos bra-sileiros, um marido para~Caetana seria u m ã ~ s õ l u ç ã o i n g é n u a enada persuasiva, n ã o adotada pelos senhores de escravos, que nãop r e c i s l r v ^ d i s t a r ç a r s u á s ftlA Çõ eft COID escravas, erpara os mais

brutais deles, a p r e s e n ç a de um marido nã o significava impedi-

-ment o. Os brasileiros reconheciam com frequência os filhos que^- t inham com escravas, como fez Elias Baptista de Mello. Senhor de

~ ~ - escravos da r êg iãõcáfêe i ra r io abaixo derParaibuna, em lST&ele-re—

conheceu como seus l e g í t i m o s herdeiros e sucessores , ao lado dos

f i lhos legít imos que tivera com a falecida esposa, os dois filhos damulata livre Florinda e de uma segunda mulata, Paula, que ele l i -

bertou por seu testamento. Teria sido uma p r e o c u p a ç ã o com res

peitabilidade que o levou a acrescentar que gerara essas criançasdepois de f icar viúvo, ou estava especialmente preocupado emestabelecer a legalidade de n o m e á - l o s herdeiros? 107 Se Tolosa que

r i a Caetana para si mesmo, um maridoescravo dif ici lmente^xph-- —carra-TRiaicruerfaho-f tivesse, a p resença dele poderia

atrapalhar seu acesso a-ela-emerrrvizinhos nem família seriamenganados. Um mar ido de fachada não seria convincente, c ó m odo nem necessár io . Senhores diferentes procuravam diferentes

— - n í v e i s de respeitabilidade social e se comportavam de acordo com

isso. Tolosa escolheu agir com maior c i rcunspeção e decoro.

N em há nenhum i n d í c i o de que Tolosa desejasse Caetana.

— Mais tarde ele estabeleceu uma r e lação ín t ima com uma mulher

l ivre, Sabina Leonor de F r a n ç a , mas não está registrado quantoij tempo depois, nem o status ou a cor dela, somente que a relação

deles durou e foi reconhecida pelos f i lhos crescidos de Tolosa.

Embora n ã o tenham casado, o fazendeiro deu-lhe presentes: qua-

t ro escravos, em documento registrado no t abe l ião de Jacareí em1849; três anos depois, uma casa na vi la, de frente para o p á t i o damatriz*, e outra na rua de Cima; e por f i m , um par de cast içais de

prata, uma bandeja de prata e tesouras. (Os filhos disputaram a

prataria, e Sabina pagou ao e spól io pelos cast içais .) Ele instruiu em

seu testamento que, na mor te de Sabina, os bens deveriam passarpara os filhos dela, seus herdeiros o u , caso n ã o houvesse herdeiros

sobreviventes, à igreja local de Nossa Senhora do Rosár io , mas deforma alguma poderiam ser usados para cobrir d í v i d a s . Dessemodo, Tolosa protegeu Sabrina de credores potencialmente ines-

crupulosos, ao mesmo tempo que, ao n ã o casar de novo, preservou

o grosso dé seus berts-para os- p r ó p r i o s filhosrEra o^arranjpTrnaiS

justo que ele poderia imaginar, e, de acordo com um velho amigo

que serviu de testemunha da t ransação , algo em que ele havia-pen-

sado durante muito tempo, 108 Embora eu admita que os ind íc iossejam apenas sugestivos, Tolosa havia aparentemente d i r ig ido suas

energias sexuais e afeição para longe da fazenda.Se, em 1835, a p r e o c u p a ç ã o com as filhas n ã o permitia tran

sigência, por que e n t ã o Tolosa mudou subitamente sua pos ição ,dando a Caetana amparo e p e r m i s s ã op a m d o r m k sozinha? Q uan

do ela fugiu da casa dos padrinhos, chorando e se recusando a dei

xar que C u s t ó d i o deitasse em sua cama, Tolosa finalmente com-preendeu,disse ele, que de fato impusera o casamento. Seria eleapenas um tolo sem convicção , persuadido pelas l ágr imas de uma

garota? Por-que, além disso* tomou a p rovidênc ia incomume d r á stica de entrar com uma p e t i ç ã o de a n u l a ç ã o de casamento em

nome dela? P o d e r í a m o s dizer que, n ã o sendo cruel nem arrogam

te, ele agiu de acordo com os preceitos de seu tempo e, sendo mais

consciencioso do que alguns e levando o casamento mais a sério,se arrependeu do que fizera. Talyez. Mas há mais do que isso.

U m amigo e fazendeiro vizinho de Tolosa chamado Manuel

da Cunha de Azeredo Cout inho Souza Chichorro — o r o s á r i o de

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sobrenomes anunciava sua i m p o r t â n c i a — fo i a Rio Claro paraassisty à missa, como estava acostumado, na mesma noite des á b a d o em que Caetana fug iu para a casa-grande. Chichorro testemunhou que já se havia retirado para dormir quando o cap i tãoLuís foi até ele bastantemente aflito , contou-lhe que tendo [... ]feito casar Caetana, esta estava antes disposta a sofrer p u n i ç ã o

física do que a aceitar seu mar ido imposto. Õ que nos surpreendeé a falta de i n d i f e r e n ç a de Tolosa depois que a c e r i m ó n i a se realizou. Ele poderia ter dado as costas, mas, em vez disso, deu ouvidose buscou o conselho do amigo. De acordo com Chichorro, f oi eleque instou Tolosa a separar o casal naquela noite. 109 Assim foi evitada a crise ly. • .. .- ~~

—^-Vemos dois homeuspoderosos finalmente atentos à profunda afl ição de uma jovem e v u l n e r á v e l esCravarVemos t a m b é mcomo até a autoridade de um senhor podia ser constrangida.Embora Tolosa pudesse mandar sua cativa casar — ele já o demonstrara —, exigir que ela vivesse como esposa era uma i n t r omissão in to le ráve l no d o m í n i o privado, como ele aos poucos veioa reconhecer. Diante da opos iç ão in ic ia l dela, a a m e a ç a r a com castigo f í s i c o — um recurso custoso que revelava que temia perder ocontrole sobre sua escrava. A legitimidade do poder do senhorn u m regime escravista é necessariamente uma ques tão precár ia .Na ausênc ia de uma ideologia exp l íc i ta baseada na r aça , que osfazendeiros brasileiros nunca se senti ram obrigados a elaborar, osdonos de escravos justificavam seu poder por meio de condutaque o costume estabeleceu aos poucos como apropriada. Seuapoio posterior à escrava p e r m i t i u que Tolosa se apresentassecomo um homem justo que merecia ao mesmo tempo a lealdadede seus cativos e o respeito de seus vizinhos fazendeiros. Emoutros textos, comentei as s i tuações em que donos de escravos deambos os sexos eram obrigados por seus pares a se conformar àsregras da conduta aceitável para pessoas de sua condiç ão , às vezes

o

ao custo da r e p u t a ç ã o e da propriedade. 110 Nisso, Tolosa nã o erafora do comum e, de fato, tinha uma considerável reputação locala proteger.

Na adminis t ração imediata de sua fazenda, Tolosa d r ib lou adissensão que poderia d e s p e d a ç a r essa família de seus escravosmais valiosos e que provavelmente provocaria descontentamento

entre os outros cativos. Mas p ô d e fazer isso graças à discreta intervenção de uma pessoa de fora com prest ígio e sem interesse diretono resultado.

N o copioso léxico brasileiro de termos de parentesco, padrinho não é somente aquele que leva a c r iança à pia batismal, mast em também o significado mais amplo d e- u m p r ó t e t ó r t e m p o r ár io , a lguém que atua como mediador ou-intercessor. Esse s ignifi-cado nã o tem conotação de compromisso delongo prazo ou preoc u p a ç ã o geral com o b e m - e s t â r do protegido r certamente

nenhuma obrigação religiosa — e tais in te rvenções não se l i m i t ava m aos escravos. Um padrinho t e m p o r á r i o fazia a m e d i a ç ã onuma s i tuaç ão específica em que o poder era visível e decididamente desigual e, em geral, a pedido daqueles com menos poder. Oautor de um estudo recente sobre escravos e senhores no m u n i c íp io cafeeiro de Vassouras, baseado em processos criminais queenvolviam escravos, interpreta o papel do padrinho como o.de unisubstituto informal do oficial de justiça. Nesses casos, o protetorera, em geral, uma.pessoa de p r o e m i n ê n c i a , çom autoridade ereputação para intervir convincentemente em defesa do escravo e

quase sempre contra a violência excessiva ou a rb i t rá r ia de um feitor: uma ocasião em que as expectativas costumeiras de condutatolerável haviam sido violadas. Os indícios demonstram os riscosconsideráveis que o escravo assumia ao procurar um defensor —caminhando q u i l ó m e t r o s à noite, depois do toque de recolher esem permissão para sair da fazenda, arriscando-se a ser preso — e

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são uma medida do sentimento percebido pelos cativos de u rg ê n

cia, perigo e da correção de sua ação .111

Desse modo, o escravo buscava remédio para o aftttsd sem pro

vocar uma confrontação cara demais entre um senhor e seu feitor

—que poderia comprometer a autoridade do dono ou , com maior

probabmdãcTe deixar o escravo nas mãos de um feitor denunciado

è irado. Uma pessoa influente de fora — fazendeiro ou comercian

te no distrito — com motivos para querer que as relações permanecessem e s táve is poderia concordar em intervir até em favor de

escravos que n ão conhecia pessoalmente. O dono tinha razão em

admitir a mediação de tal prptetor como um modo de evitar a acei

tação da palavra do feitor ou do escravo contra o outro. No f im a

presença dé um padrinho podia acalmar u m momento perigosa

mente tenso e restaurar um senso de just iça—e contribuir para queperdurasse a flexibilidade do regime escravista.

Chichorro cumpria facilmente os requisitos para ser eminen

te. Nascido no Rio de Janeiro, estudou direito na universidade de

Coimbra, exerceu altos cargos no governo colonial, f oi elevado a

fidalgo cavalheiro da casa imperial e comandante da Ordem de

Cristo e ganhou extensas terras reais na paróquia de Paraibuna e

no distrito vizinho de Jacareí . Tendo sido fiel defensor de dom

Pedro i primeiro imperador do Brasil, f oi depois homenageado

por seu f i l h o Pedro n com a cadeira de fundador do prestigioso

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Outrora juiz local, em

1835 Chichorro já se aposentara de seu posto de desembargador de

uma das quatro Relações do i m p é r i o na província de Pernam

buco De meia.-idade e casado, vivia de seus investimentos, numa

fazenda vizinha. 1 ,2

No entanto, os eventos em Rio Claro afastavam-se significa

tivamente dos padrões de Vassouras. N ão há indício de que Cae

tana tenha saído da fazenda para buscar a intervenção de C h ichorro. Nem ele f oi à fazenda naquela noite com a intenção de ser

S2

mediador. Foi depois de assistir à missa e se retirar para dormir queTolosa o acordou para contar o que lhe passava pela c a b e ç a .11 3 O atode Tolosa era uma admissãcTdò triste impasse a que chegara comsua escrava, pois somente um homem aflito perturbaria o descanso do seu amigo. .

Alguns detalhes daquela noite permanecem obscuros. Onde

estava Caetana enquanto os dois homens conversavam? Espe

rando na cozinha da casa-grande? Mandada de volta para sua mãe?Sabemos que nã o retornou para a casa do t io . Contudo, de acordo

com Chichorro, seu conselho fo i decisivo e, port anto, só depois

que ele se encontrou com Tolosa é que Caetana ganhou um lugar

para ficar. Nesse cascvnãofoix escravo, mas o senhor que chamou

uma terceira parte para as negociações ampliando assim as f ron- _teiras sociais da fazenda e restringindo ainda mais qualquer pres

suposição de que a relação senhor-escravo era um assunto estrita

mente particular. Como in te rmediár io um fazendeiro possibilitava

que o outro voltasse atrás sem perder prestígio e, ao mesmo tempo,

tornava ainda mais fortes os laços de lealdade de uma escrava

assustada e aliviada. Embora nã o haja nada que mostre que C h ichorro insistiu na a n u l a ç ã o Tolosa fo i certamente encorajado por

seu conselho e, como ex-juiz familiarizado com a le i e os procedi

mentos legais, Chichorro podia sugerir de que forma proceder.

Cõ m oU sem o aconselhamento profissional do amigo, Tolosa

comprometeu-sé a apresentar uma petição^ao tribunal eclesiást i-co. O que nos leva a presenciar um instante do funcionamento

íntimo da cultura dos fazendeiros.

C E T N

A recusa de Caetana ao casamento se divide em duas fases. Naprimeira, ela lutou contra as ordens de Tolosa para aceitar u m

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rhafidó: Qualquer que fosse o apoio que esperava da farrííliàVOqueela obteve inicialmente f oi a participação ambígua de sua madri

nha. Sem conseguir o consent imento de Caetana para casar, Tolosa

precisava que outr a pessoa o tentasse. Aproveitando-se daTeiaçãóespecial entre madrinha e afilhada, com suas nuànces sobrepostas

de intimidade, autoridade e deferência, Tolosa chamou Luísa Ja

cinta. As conversas entreos dois não estão registradas. Quer ela

tenha ou não pensado que o casamento é fabbhi par a sua: sobrinha,

tudo o-que sabemos é que concordou em falar pessoalmente com

ela. Caetana t amb ém já apelara para a tia quando qúisqi ié a lguémrepetisse para Tolosa o que ela já dissera para ele. U4 Como gozava

da confiança de ambas as partes, Luísa Jacinta era a intermediáriaideal.

M a s o resultado n ão satisfez Caetana. Ela declarou que apesardas mi l ins tâncias para que adotasse a un ião projetada de sua

madrinha, respondera rispidament e que estava decidida a nãoresolvesse a isso , e a madrin ha deveria dizer isso ao seu senhor,

da parte de quem ela dizia que vinha . Caetana declarou que

nunca soube se a madrinha havia transmitido essa mensagem acre.

Luísa Jacinta disse claramente que fez o que Caetana pedira, riíãsseu senhor fazia pouco-caso . Dè início, OS a tósde Tolosatransmi-

tema confiança fácil de a lguém acostumado à obediência ; mas

quando Caetana se recusou a ser persuadida, ele recorreu à apl ica

ção de pressão indireta por in termédio de sua tia-madrinha. Os

esforços dela t a m b é m fracassaram. Tolosa então marcou resoluta

mente á data do casamento sem a anuência de Caetana. 115 - : ~Mais tarde, Caetana diria que a concordância com a decisão

do seu senhor fora inevitável. Em contraste, Tolosa enfatizou sua

disposição de negociar. Ele lhe deu ampla liberdade para queescolhesse um dos outros escravos solteiros que serviam riã casa'*(Valerapena observar que os homensiinhar rr m e n o s é s c Ò l n á n à1

questão do que Caetana). Ela não levou èm conta à oferta; enten-

«4

ctencTo que era t udo a mesma coisa: teria de se casar com um

homem ou outro. Ele era seu senhor, disse ela, e comotal, fizesse

o que quisesse . Nas palavras de seu advogado, Caetana, não passando cie unia escrava, estava reduzida à dura necessidade de obe

decer unicamente por temor de graves castigos e males duradou

ros , meSmo que ele fosse incapaz de ásperas sevícias [...] como

[ela] depois se convenceu . Cont udo , se Caetana compreendeudesde òlhício qúe deveria e iria ceder, por que se arriscou à ira e aocastigo, recusando-se repetidamente a obedecer, de forma cada vez

K mais i n r í è ^ v é i t t ò m o o advogado da Igreja apontou, o alegado

meclo de Tolosa hão a impediu de resistir às ordens dele. 116 Nos dias

anteriores ao casamento, nada do que ele fez a encorajou à acredi

tar què seria dissuadido, mas mesmo assim ela resistiu at é o últ imomomento. Algo lhe deu coragem. Que relações entre Tolosa e seus ,

escravos ela testemunhara em Ri o Claro no passado, ou experi£mèntàrà éla mèsmà, que a levaram a reclamar uma reação indul

gente dele agora? As fontes s ão muito limitadas para proporciona ruma resposta. Tudo o que podemos dizer é que, reconhecend

finalmente que as instruções de Tolosa nã o toleravam desobediência e que não podia evitar o casamento, ela compareceu. Ao ficar ao

lado de Custódio diante do altar, de mãos dadas, escutando as pala

vras do padre, será qúej á t inha em mente um plano para rejeitar omarido? 7 (

A cerimónia concluída, a luta de Caetana logo se transferiu ao

seu marido e sua família.Era saiu da; casa da mãe afim de viver comCustodio na casa dos padrinhos, para onde retornava todas as noites depois dó trabalho na casa-grande. Durante t rês noites não

' consentiu que Cus tód io a tocasse ou se fosse meter na cama ,

ãpèsaf-ua insistência dele. Cus tód io queixou-se de Caetana para

sua sogra,'ria esperança de que ela conseguisse persuadi-la em seu

home, è contou francamente para ela e para ò cunhado de Caetana| ifr que ela nem quisera por modo algum consumar o matrimónio .

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A q u i l o não podia continuar, anunciou ele. Não sabemos por

quanto tempo Caetana esperava manter o marido à distância, por

que na quarta noite ela enfrentou uma crise. Seu ti o Alexandre, queestava ausente da fazenda com suas mulas no dia do casamento,retornou dois dias depois e a encontrou vivendo com Cus tódio em

sua casa. No quarto dia, já estava consternado de que ela con t inuasse a recusar C u s t ó d i o , apesar das ins tânc ias que ele, Tio e

Padrinho, fez com ela . Alexandre contou como a chamou naquele dia para advert i-la de que havia de s u r r á - l a se ela [...] não sesujeitasse ao marido Tanto C u s t ó d i o como o cunhado de Caetanaconfirmaram ter ouvido essa a m e a ç a . Caetana disse que seu tio

queria obr igá- la a consumar o casamento. 118 O tempo se esvanecia.

N ã o há ind icação nos documentos de que o tio de Caetana

agiu sob i n s t r u ç õ e s de Tolosa, nem explíci tas, nem simplesmente

subentendidas. Embora Tolosa pudesse com facilidade retirarAlexandre (e o resto da família) de sua pos ição privilegiada, tomaressa medida lhe custaria o escravo mais valioso e de confiança, em

cujas m ã o s entregava o transporte de seu café. Alexandre não era

u m homem fácil de substituir e, portanto, não era alguènTâTsèra m e a ç a d o de modo precipitado. E, seja como for, que impor tânc iatinha para Tolosa que o casamento continuasse a ser de fachada,desde que Caetana parecesse ser uma mulher devidamente casada?Fo i a a f i r m a ç ã o de autoridade patriarcal de seu p r ó p r i o tio quelevou a batalha de Caetana para u m novo terreno desconcertante,

em que ela n ã o se defrontou com as ordens_de um senhor, mas com

a exor tação diferentemente opressiva de um parente e parceiro —

/ seu igual na e sc rav idão , mas u m homem com autoridade d o m é s -/ tica e familiar convincente.

A p r inc íp io , a posição inflexível do t io causa perplexidade. Elesentiu-se provocado pelo desafio continuado de Caetana à sua auto

ridade. At é aí está claro. Talvez achasse que ela deveria ser posta nostrilhos: o patriarcado em seu trabalho impert urb^ ei^ e^n tr ol ar

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uma mulher indisciplinada com ameaças de violência. Mas, afinal,por que ele insistiu em que o casameriTõ~prossegúísse? Por que não

apoiá-là? Talvez compartilhasse o temor de Tolosa de uma sexuali

dade feminina sem freios, ou talvez tivesse uma amizade especial

com C ustódio e f icou do lado masculino. Para ele, seriam favas con

tadas os direitos sexuais de um marido no casamento, pressuposto

sancionado t anto pelo sentimento popular como pela Igreja. 9 A

rejeição do marido como companheiro sexual deve ter chocado nã oapenas a ele, mas t a m b é m ao tio e ao resto da família. Vista de fora,

era uma afronta impensáve l e despropositada que aquela garota of i

cialmente casada recusasse seu óbvio papel. A exasperação , mais do

que o rancor, talvez explique a explosão raivosa de seu t io.

U m relato adicional de aniêãçã de v io lênc ia contra Caetanaaparece nos artigos formalmente apresentados que abrem o cãsó. Adeclaração diz que, no quarto dia, Caetana ficou sabendo que C u s t ódi o (ajudado por u m parente nã o nomeado) p r o p ô s infligir v io lência, aço ites e torturas a f im de forçá-la ao leito matrimonial. 120 Sefeita, essa a m e a ç a aumentava a violência já anunciada por seu ti oAlexandre. Mas, em seu p rópr io testemunho, Caetana n ã o se refere

a essa ameaça de C u s t ó d i o . E, uma vez que nenhuma testemunhaconfirmou ter escutado tais palavras, podemos nos perguntar se o

advogado dela n ão exagerou uma advertência menos ameaçadoran u m ã tentativa de oferecer uma razão legal para Caetana ter aban

donado o marido, de ta l modo que ele apareceria como um agressor

e ela, vítim a digna de com paixão. Confiei mais nas declarações acu

muladas das testemunhas, como sendo mais persuasivas.

Naquela noite, desesperada, sem nenhum parente a quemapelar e, com certeza, nenjium escravo com idade, autoridade ouinclinação para desafiar seu padrinho, Caetana fugiu. Ela correu

para o ú n i c o lugar aonde poderia ir, a casa-grande. Chorando,implorou ao seu senhor que desfizesse o que provocara. Numainversão de resultados esperados, ela escapou das a m e a ç a s do tio

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porque seu dono"intervei o e lhe ofereceu abri go. Daqueles de

quem ela poderia esperar ajuda, Caetana recebeu um silêncio am

bíguo. Tia, mã e e i rmã não disseram nem fizeram nada, enquanto

os homens dá família fechavam fileiras contra eia 121 No espaçoestreito entre aquiescência e desafio -— único espaço que lhe-so

brou — , Caetana lutou por suaindependência . p , num único gesto .

deiproteção, Tolosa afirmou sua autoridade sobre sua escrava, o .marido e o ti o dela. ,.

Esses são os. acontecimentos t a l como podem ser recupera

a partir das fontes. Mas o que dizer de Caetana? De onde ela t irousua de t e rminação , a convicção inflexível de que estava certa ao

desafiar todas as pressões para casar, primeiro de seu dono, depois

de sua família? Como é que uma jovem escrava que crescera entre

famílias de cativos — todas as escravas de Rio Claro eram casadas,inclusive duas que ainda não-haviam completado vinte anos, per

fazendo 38 casais e seus filhos — chegou a pensar sobre si mesma

como a lguém que poderia permanecer sem marido? Aos dezesse-te anos, ela deveria saber que seu momento estava chegando. O que

lhe deu a ideia de que poderia optar por não. casar?

Na população l ivre, nem todas as mulheres se casavam, nem

queriam se casar. Nãó há como saber quantas das 93 mulheres sol

teiras com mais de trinta artõs listadas no censo de Paraibuna de

1832 v iv i am, de fato, em união consensual com homens, quantas

estavam condenadas a ser solteironas por serem desagradáveis ou

tão miseráveis que nenhum homem as queria, Òu quantas se peci-

diram pe ío celibato. Caetana pode ter escutado suas histórias em

Rio Claro, ou dos escravos delas; ou pode ter visto tais mulheres se

alguma delas visitou ocasionalmente a fazenda. Uma mulher

"hones ta" que vivesse solteira, mesmo sendo pobre, era vista

publicamente co m respeito. 122 Talvez uma mulher assim tenha sido

o modelo para Caetana quando ela formou seu desejo de viver

/ solteira.

|

. .A longa , t r ad ição de conventos e recolhimentos oferecia às

mulheres o exemplo de uma vida castae celibatária.-Desde 1677,

quando 0 primeiro. &pnvento fo i fundado em Salvador, as mulhe

res tiveram a chance de assumir qs votos de ordens sagradas em

solo brasileiro, sem precisar voltar para Portugal. Mas a vida religiosa só estava ao alcance de mulheres de meios, cujas famílias as

patrocinavam com dotes substanciais que beneficiavam a ordem.Q convento podia assim investir em imóveis e, com a renda resul

tante, funcionar como banqueiro para muitas das mesmasfamíliascujas filhas,: i rmãs qu tias viviam no interior dê seus muròs.-Seantes de consumar o ma t r imón io , mesmo contra a vontade do

cônjuge, um dos esposos-decidisse entrar para a vida religiosa, o

casamento poderi a ser totalmente dissolvido e o outro cônjugeficava livre para se casar de novo. 123

Já os recolhimentos proporcionavam uma alternativa secular

para mulheres que quisessem proteção, muitas vezes temporária,dos perigos percebidos no mundo exterior. Embora frequente

mente supervisionados por freiras, os recolhimentos eram susten

tados por insti tuições leigas de caridade, como a Santa Casa de

Misericórdia, para abrigar mulheres cuja honra estivesse tempora

riamente sob risco: um marido na Europa durante meses; umajovem órfa e ainda não casada; uma ;mulher que quisesse sair dó

casamento, mas n ão tivesse razão para uma separaçã o eclesiástica,ou talvez não desejasse o escândalo público que adviria disso. Se

aceita, ela pagava seu sustento: casa, comida e vestuário.12 4 Ambas -

as soluções estavam reservadas a mulheres que podiam pagar.--. Não era uma escolha ao alcance de uma escrava. Contudo, em

conventos ou recolhimentosJuma mulher podia ser acompanha

da por uma criada escrava (à s vezes, mais de uma), que preparava

refeições especiais, cuidava de suas roupas e levava recados. Umafreira do convento de Desterro, em Salvador, ficou rica fazendodoces no forno do convento que depois sua escrava vendia nas ruas

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da cidade, tirando um belo lucro. 12 5 Caetana pode ter sido estimu

lada e se imaginar levando uma vida assim pelo interesse de sua

senhora por Santa Teresa, o mais antigo e p r ó s p e r o dos dois recolhimentos existentes na cidade de São Paulo na década de 1830.Dona Ana Joaquina manti nha laços tão p r ó x i m o s com essa instit u i ç ã o — p or meio de uma i r m ã , prima ou t ia , ela nã o especifica—

que, ao morrer, deixou um generoso legado para as 29 i rmãs e suasdezesseis escravas. 126 Caetana teria ouvido sua dona falar sobre olugar, suas freiras e as reclusas que lá v i v i a m ; talvez tivesse dado

a t e n ç ã o especial a alguma m e n ç ã o a suas criadas escravas.

Por ser escrava, é evidente que Caetana não podia fazer os

votos de uma vida religiosa enclausurada, mas podia desejar a castidade e uma vida de solteira no mundo secular: Tolosa testemu-

u que Caetana não somente recusou C u s t ó d io , mas qualquer

i d o , n ão querendo casar com n i n g u é m .1 2 7 Ela nã o rejeitara

t ó d i o por capricho ou mesmo por recato, mas po r uma convic-

ão contra o p r ó p r i o casamento. Estaria ela tentando escolher avida do celibato, do modo mais convincente que uma escravapodia fazer ?

N o fim, não sabemos com certeza os motivos particulares deCaetana para recusar o casamento. O que certamente sabemos é

que ela lutou contra a autoridade mascul ina do seu dono e de seut io . Sua h i s t ó r i a demonstra que o patriarcado não era apenas odireito de um senhor branco, mas era reivindicado t a m b é m por

u m homem escravo. V

N U L Ç Ã O N E G D

Ta l como estabelecido pelo Concí l io de Trento em 1563, só

era possível pedir anu lação se o casamento n ão tivesse sido consu

mado e: um dos cônjuges fosse impotente e incapaz de produzir

9

filhos; um dos cônjuges já fosse casado ou decidisse tardiamente

desistir do casamento e se dedicar à vida religiosa de padre, freira

ou monge; ou os cônjuges fossem parentes de sangue ou de casa-\o dentro dos graus proibidos de consanguinidade ou afinida

de. Uma vez concedida, a a n u l a ç ã o declarava que o casamento

jamais ocorrera e ambos os esposos ficavam livres para se casarorno se fosse ã primeira vez. Aqui lo que a Igreja brasileira do sécu

lo xix chamava de divórcio , significando apenas a separação amensa et thoro , ou de cama e mesa , sem o direito de casar de

novo, diferia muito da a n u l a ç ã o e era o procedimento exigido se ocasamento houvesse sido consumado. Os casais só podiam divor-

ciar-se se um ' dos côn juges houvesse abandonado o casamento,

cometido adu l té r io ou ferido o outro esposo tão gravemente que

pusesse em risco a vida dele. A Igreja exigia t a m b é m que houvesse

uma parte culpada e outr a inocente: se ambos os cônjuges tivessem

cometido a d u l t é r i o e fossem mutuamente culpados, a Igreja se

recusava a separá- los

e eles estavam condenados a ficar juntos. O

Concí l io de Trento afirmava o m a t r i m ó n i o como sacramentosagrado e fonte de g r a ç a e, portanto, ind isso lúve l . Os côn jugesdeveriam fazer os votos sagrados perante u m padre e testemunhas,

à luz do dia e numa igreja co m portas abertas para quem quises

se apresentar algum motivo para que o casamento n ã o prosseguis

se exatamente como Caetana e C u s t ó d i o se casaram. 128

Esse casó já ex t r aord inár i o f icou ainda mais no táve l ao ser

.arikuiadQ.p^ta_clar çcmta não das p r e o c u p a ç õ e s das duas partesopostas usuais de uma disputa legal, mas de um t r ip lo conjunto de

interesses: os da requerente, do dono e da Igreja. Os sete artigos quecompreendem a p e t i ç ã o de abeVtura, delineando a sequênc ia de

eventos e a a r g u m e n t a ç ã o que seria defendida pelo lado de Cae

tana, podem ser lidos como alegações contra Tolosa, do qual se diz

que i m p ô s o casamento, ignorando as recusas da escrava e a i n t imidando, de ta l modo que a eventual concordânc ia dela seria con-

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sentimento forçaao". Porém é óbv io que Tolosa'fíadfôi formalmente acusador não aparece no processo como réu, mas apenascomo mais uma testemunha. Pouparam-lhe a indignidade de terde se defender no tribunal das acusações de uma escrava, não j>ófuma estratégia deliberadamente tramada, mas apenas p Ò r c ó h v é - 'n iência , por uma ques tão de procedimento. Como regra, a Igreja

n ã o permitia que um cônjuge pedisse anulação sem dar ao outrouma. oportunidade de responder em defesa do casamento: Desser n ó d q , C u s t ó d i o , sendo o marido, tornou-se inevitavelmente or éu . E, embora ele não tenha sido acusado e n ão tenha prendidoCaetana ao casamento, sua p resença no caso teve a consequênciade proteger Tolosa e de proporcionar uma abertura para a Igrejanomear um "Defensor do M a t r i m ó n i o " a fim de defender a indissolubilidade do casamento. 129

A apresentação do caso de Caetana se desenrola com muit acautela, escrita para persuadir um tribunal eclesiástico a seu favor.

Sua p e t i ç ã o não pedia uma s epa ração ou "divórcio eclesiástico",que presumiria uma parte injuriada e outra culpada, e Caetanan ã o tinha a cusação a fazer contra Cus tód io . Em vez disso, ela.requeria uma anulação . Mas baseada em quê? A n ão -consumação ,embora fosse uma exigência necessária para que a anulação fosselevada em conta, n ão era suficiente para garanti-la, èm especial

uando um dos cônjuges escolhera recusar a c o n s u m a ç ã o da^ n i ã o , como fizera Caetana. Nenhum dos motivos permissíveis —parentesco em certo grau7irrip"ôtência, bigamia ou votosreligrosos— se enquadrava na s i tuação dela. •• ) jjp

Mas havia mais uma exigência para estabelecer a validade dequalquer casamento: o livre consentimento de ambos os cônjuges,pois,somente nessa s i tuação a pessoa era digna de receber a graçado sacramento concedido. Se um deles se casasse por "fòrça~qúmedo", o m a t r i m ó n i o seria inválido e podia ser anulado. 130 Õ fatode Caetana ter se casado contra a vontade, por insistência dê seu

9

dono e por medo de punição , tornou-se o argumento central desua pçtição. Se tivesse êxito, a anulação seria a solução ideal: Caetana ficaria livre do casamento, Cus tódio tera permissão para secã:sârHVnovó e se restauraria a calma na fazenda de Tolosa.

" Na ir icom um mas não.impo ssívélcireunstância^de-um escravo apresentar pe t ição perante um tribunal eclesiástico, o protoco

lo da corte explicava devidamente as várias exceções ao procedi-m è n t ó - p a d r ã o .1 3 1 Não apenas o dono da escrava dera permissãopara o "Caso prosseguir, como se abriu mão da ordem usual de"depositaria esposa. Em casos de separação que envolviam acusações de crueldade física, o tribunal costumava retirar a esposa dola r conjugal, e pô- la sob a cus tódia de um parente ou gua rd i ãosupostamente respeitável e responsável, ou às vezes em um convento, confinando-a para siia segurança .13 2 Neste caso, não haviaacusação de agressão do marido e Caetana já estava sob os cuidados de seu dono; depositá-la seria remover uma escrava do d o m í

nio de seu d õ h o , algo que o tribunal preferiu não fazer e que, nocaso em ques tão , era desnecessário. Porém a corte estava preparada para obrigar Tolosa, na qualidade de seu senhor, a conferir "todaa p ro teção contra quaisquer excessos quê seu marido se aba lançasse a querer praticar". ^Durante o processo, Caetana viveria separada do marido, e o casamento ficaria efetivamente suspenso, aguardando'^ dècísaó dó t r ibunal. A lém disso, Tolosa f o i requisitado econcordou "por sua assinatura" a não vender os dois escravos

los. Se ele julgasse necessário vende-los ou enviá- los para algumlugar distante, en tão precisaria notificar o advogado oposto. O t r ibunal eclesiást ico não impô s nenhuma outra l imitação a sua autoridade. Uma vez que "o senhor está muito longe de hostilizá-los", a

: corte confirmava sualiberdade de exercer seus direitos como dono»«, ""tfgflg^gjfl tõdás as outras formas. 133

O juiz da instância inferior, representando a diocese de São

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Paulo, concordou em ouvi r nove testemunhas, quatro delas escra

vos. O advogado de Caetana just if icou o procedimento incomum

de apresentar o testemunho de cativos — neste caso,''escravos da

casa — pelo fato de que eles eram as pessoas co m mais probabil idade de ter i n f o r m a ç õ e s sobre os fatos alegados. As ques tões do

mést icas eram em geral dif íceis de provar, disse ele, mas podiam ser

claramente substanciadas po r testemunhas como aquelas, que não

apenas v iv iam no lar da fazenda, como não tinham interesse emjogo e, pqr t an to ^não tinham motivo para dar dec la rações falsas. Otribunal^aceitou sua a rg u m e n t a ç ã o . C o n t r á r jo ao direito civil, que

negava aos escravos vo z no t r ibuna l , exceto em casos especiais, co

m o quando a condiçã o de u m escravo estava em qu es tão , e ao direito c r imina l , que permitia o testemunho de cativos em casos em que

se alegava, por exemplo, v io lênc ia extrema, tanto Caetana como

C u s t ó d i o tiveram p e r m i s s ã o para testemunhar: Caetana pô s siia

m ã o direita sobre [a Bíblia] e prometeu jurar a verdade . O t r i b una l considerou informadores , em vez de testemunhas, dois

outros escravos, Alexandre e Margarida — uma mulata que estava

p r ó x i m a o bastante dos eventos para confirmar as declarações de

outros — , mas que de outro modo n ã o aparecem na h i s tór ia .1 3 4

Os procedimentos legais não avançaram com rapidez. Em 24

de abri l de 1837, mais de um ano depois que a petição, de Caetana

fora protocolada e aceita, a tomada por escrito de depoimentos das

testemunhas finalmente c o m e ç o u . O foro não foi a sala do t r i b una l , mas a casa do cap i tão Tolosa na fazenda Rio Claro, aonde o

escrivão chegara dois dias antes. F oi respeitosamente anotado que

o senhor Chichorro fora chamado para comparecer à s nove horasda m a n h ã para responder aos artigos do l ibe io . '35 Supervisio

nando, os. procedimentos estava o reverendo A n t ô n i o Moreira de

Siqueira, descrito, como um morador na v i z i n h a n ç a da vila de

Santo. A n t ô n i o de Paraibuna deste bispado , o mesmo padre que

casara,Caetana. Mais tarde, ele contribuiria c om seu p r ó p r i o teste-

9

munho. Os outros que testemunharam foram Caetana, Cus tódio ,AlèxándféVLiiísà Jacinta, João Ribeiro da Silva, Margarida e o capi

tã o Tolosa. —

Afora o padre, todas as testemunhas, tanto os escravos como /

as pessoas l ivres^déclararam que Caetana n ã o queria casar e que o

casamento com C u s t ó d i o era especialmente repugnante para ela;

elas confirmaram suas repetidas recusas à ordem do senhor, bem

como à s ameaças posteriores do ti o para que consumasse o casamento. Além dessa caracterização geral, as dec la rações de t rês tes

temunhas merecem comentár ios .

Chichorro, que só testemunhou os eventos depois do m a t r im ó n i o , estabeleceu cuidadosamente que conversara depois com

Caetana e C u s t ó d i o , que confirmou o que ouvira de Tolosa — ou

seja, ele n ã o testemunhou por ouvi r dizer, mas a partir de prova

direta. Ne m se podia dizer que interviera no casamento, pois, comoele disse, instara que o casal fosse separado durante a rioite, deixan-

do a reconcil iação para outro dia , mas, depois de falar mais tarde

co m Caetana ele reconhecia que a reconcil iação era imposs íve l .1 3 6

O testemunho de C u s t ó d i o apresenta outro problema. Ele

precisava explicar que se casara voluntariamente, mas sem impor

o casamento á Caetana, ao mesmo tempo que reconhecia que ela

n ão o queria. C u s t ó d i o disse que não tem ódio dela , acrescentan

do que, estivesse ela disposta ou n ã o á s é casar, ele sabia c om certe

za que ela nã o queria casar com ele, pois isso lh e contou, antes de

casar, p u b l i i à n i é h t ê diante dos outros escravos uma h u m i l h a ç ã oque deve ter afligido ambos naquele momento e de novo ao pres

tar depoimento. E le lhão podia dizer o que a persuadira a aparecern o ú l t i m o momen to porqUe já estava na po rt a da igreja, mas,

quando ela depois ò impediu de en trar na cama, ele compreendeu

que o casamento n ão fora por escolha dela. C u s t ó d i o declarou

t a m b é m que n ã o queria obr igá- la a cumprir o contrato, visto ser

ela forçada para o casamento . 137

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- Q. dò cap i tão Tolosa f o i o testemunho conduzido com maisdelicadeza. A p e t i ç ã o não fazia sentido, a nã o ser que ele confirmasse que as a legações eram verdadeiras, mas, nesse caso, comodescuipar se?' Suas primeiras ameaças de p u n i ç ã o foram feitas por 'engano> escreveu o advogado, quando ele erroneamente atribuiu àrecusa dela "a um simples motivo dê vergonha", a r e l u t â n c i a de

uma mulher jovem de assumir um papel sexual adulto. A concordânc ia f inal de Gaetana fò i explicada como "mais uma demonstra^

<de escrava jdQ ^Jjrjaâ opção hvremente d ã d a i J . » conio ele tal-v e ^ í r a 4 a m e n t ^ A t r i b u í d a a Gaetana, ê bem possívelque essa defesa em fraseado elegante seja i n v e n ç ã o de u m advogado astuto, em vez da resposta e s p o n t â n e a de uma escrava. Pensoque devemos ver um pequeno conluio nesses testemunhos, apesarda dec la ração of ic ia l de que nem "a sombra L J d ^ f l u ê r j ^ ^ f o iexercida. 138 Com certeza, em cada um dessesWpoimentos podemos ler a linguagem do advogado. -

O testemunho do padre A n t ô n i o More@idebiqueira ofereceu o relato essencial da c e r i m ó n i a . Escrito d í - p t ó p r i o punho, eledescreveu laconicamente sua chegada a Ri o Claro para confessarCaetana e C u s t ó d i o sem saber, disse, que eles i r i a m se casar Nódia seguinte, Tolosa lhe apresentou uma carta do bispo autori-

' zando-oa ca sá- los . No momento da c e r i m ó n i a , lhes fez a pergunta "de estilo" e eles responderam afirmativamente: cada um deles

-queriase casar co m o outro. Conforme o padre, depois que "os fizreceber e dar^lhes a b e n ç ã o matrimonial", saiu da fazenda. Disseque não sabia nada em r e lação às outras a legações , das quais sóteve n o t í c i a quando veio para supervisionar a tomada de depoimentos. 139

O advogado c o n t r á r i o , "defensor do m a t r i m ó n i o " , nãoencontrava motivo na l e i canónica para a n u l a ç ã o : como a cert idãodexasamento atestava e o padre confirmava, Caetana consentira

9

ao comparecer à capela. Mais enérg ico e astuto do que o advogadode Caetana, eleapelou para a reputação . A dec la ração da querelan-te de q u ê concordara por "temor de castigos Tmaus tratamentos""seinão^acha'tva'l-provada e nem pod[ia] presumir-se", sustentouelei^sabendo-se as qualidades,do Senhor", que, sendo"nimiamen-te^humanovj amais seriacapaz de coagi-la a um consórc io contra

sua vontade" É como ela era escrava e, portanto, carecia de todahonra ou reputação^suas a legações deveriam ser desqualificadas.<"Nem posso-perceber qual o motivo de uma tamanha r e lu tânc iado m a t r i m ó n i o , n ã o habilitando para tanto sua condição servil , a

-que e s t ã o anexos nenhuns sentimentos de pundonor". E assirn,continuava ele* sua resistência continuada às ordens dominicais deseu senhor só podiam levá-lo a supor que ela se recusou a consumar o casamento "por causas muito diferentes", que não podiamjustificar a a n u l a ç ã o (ele deixou de especificar que r azões eramessas). Sem "dúvida , que a primeira vez será que uma escrava recu

se o t á l a m o " aludindo à v i s ã o , p r e d o m i n a n t e das escravas comolascivas. "Por certo n ã o oferece exemplo semelhante a história dosTribunais Eclesiást icos." O casamento, c o n c l u í a ele, cumpriu assolenidades prescritas pelo Concí l io de Trento, sendo essencial oconsentimento m ú t u o dado perante um padre. 140

O juiz eclesiást ico pronunciou^se contra Caetana. Emborareconhecesse que u m "medo reverenciai" poderia tê-la influenciado a contratar um casamento, apesar da sua r e p u g n â n c i a , ele j u l

gou- apr-ova«de abuso a m e a ç a d o r : insuficiente ^ ^

t a m b é m duvidou da força da d e t e r m i n a ç ã o dela contra o mat r im ó n i o ) . Desse modo, dois anos depois do início do processo, emjunho de 1838i o padre L o u r e n ç o Justiniano Ferreira, vigário-geralda diocese de S ão Paulo, concluiu que um casamento legalmentecontratado não-podia ser anulado e declarou à Caetana: "va viver

co m seu marido"." 11

No entanto» essa consequên c ia fo i adiada porque, dentro de

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dois dias, uma ape lação fo i apresentada e aceita. O caso subiu parao Tribunal da Relação Metropolitana, em Salvador, Bahia. 142 Nessemomento, as coisas andaram com velocidade incomum. Ém doisdias não haveria tempo para um mensageiro ir da sede do bispadoà fazenda R io Claro, entregar a dec isão a Tolosa, receber a apelaçãopo r escrito, retornara São Paulo e o tribunal au tor izá- la . E a apelação seria a u t o m á t i c a somente se a anu lação tivesse sido concedida,dando ao outro côn juge uma oportunidade para defender o casamento pela ú l t i m a vez. Tolosa deve ter providenciado a apelaçãocom antecedênc ia , caso fosse necessár ia . Seu compromisso com acausa de Caetana se tornou ainda mais claro.

Diante da R e l a ç ã o na Bahia, o advogado da a p e l a ç ã o queatuou na defesa de Caetana levou a a rg u m e n t a ç ã o para outro terreno. C o m e ç o u com bastante cautela, lembrando aos ju ízes dosmales que devem resultar de uma u n i ã o nula em sua origem pela

falta de consenso l iv re pois tal u n i ã o era uma ofensa contra as

Leis Divinas e Humanas, e com ofensa da Religião . O sacramentoperdia o significado na a u s ê n c i a de consentimento, em que aspalavras são expressivas dos sentimentos do coração . Depois,declinando de oferecer prova ou argumento em relação ao consentimento, destacou que o p r ó p r i o c a p i t ã o Tolosa, pessoa sem suspeita , que não ganhava nada desfazendo o casamento, de doisescravos que ele mesmo obrigara a casar, queria anular o m a t r i m ónio . Em vez de perguntar como a coerção poderia ter sido impos-t a > e ^ . * e Y a i l t o u uma d i scussão espinhosa, a de saber se-a anuênciade uma escrava poderia ser considerada um consentimento livre

mente dado. Considere-se, escreveu ele, a condição miseráve l deuma escrava ; era evidente que não se aplicava o mesmo grau demedo a uma cativa e a uma pessoa l ivre: a probabilidade de sofreru m castigo e sevícias muito difere quando é da parte do escravo, desorte que a c o a ç ã o externa que produziria o efeito de arrancardeste um 'sim' f o r ç a d o [. ..] e, a falar com verdade, a ordem do

9

senhor, o seu 'quero e mando', é mais que bastante para coagir oescravo. Basta refletir por um pouco nas relações que existem entreum e outro . 143

Os escravos podiam ser processados po r crimes que transcendiam a autoridade de determinado dono — atos violentos, porexemplo, sobretudo assassinato ou rebelião. Contudo, ao mesmo

tempo, como pessoas legalmente reduzidas ao status de propriedade, a eles era negado o direito de exercer sua vontade. O advogado da ape lação procurou centrar seu argumento de o consentimento para casar ter sido dado livremente - exigido pela Igreja Jpara que um casamento fosse v á l i d o — , mas tornado imposs íve l e jirrelevante dada a condição de escravo, e que poderia abalar todos los casamentos de escravos no pa í s . ;

Sua e s t ra tég ia fracassou. Na Bahia, o tribunal designou JoséJoaquim da Fonseca L i m a para ser o Defensor do M a t r i m ó n i o .Padre jovem que tinha apenas 23 anos em 1838, L i m a fez depois

uma carreira moderadamente di sti nta sob a p r o t e ç ã o de seudedicado amigo , o arcebispo dom Romualdo, tendo sido p á r o c o ,professor de h i s tór ia e direito eclesiást ico, presidente do conselhode ins t rução públ ica , inspetor de vár ias paróquias , deputado provinc ia l e administrador do recolhimento São Raimundo paramulheres, entre outros cargos. Quando seu protetor morreu, porvolta de 1860, Lim a foi para o Rio dê Janeiro, onde se tornou c ó n ego da capela imperial. Tanto na Bahia como no Rio ficou conhecido como um orador talentoso, convidado a proferir s e r m õ e s ,discursos e o rações fúnebres .14 4 Mas êm 1838, com a carreira ainda

n ã o garantida, o sucesso no caso de uma escrava era importantepara ele. 1

O defensor do m a t r i m ó n i o evitpu a questão irre spondíveL doconsentimento de um escravo, preferindo, fazer uma perguntadiferente e mais segura. Como, queria ele saber, era possível que osenhor lhe incutisse tão injusto e grave medo, pois que quando j»

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[ele] lhe falava no seu casamento àirida mésrriò corri tom positivo,ela tinha a coragem de lhe dizer <júe nao queria*? Esse medo eraainda mais duvidoso porque ele era um homem bom e benigno ,co m efeito, t ão bondoso que, quando e íá haò quis consumar ocasamento, ele a protegeu e ainda a protege. Devemos acreditar,perguntou ele7 que nesses assuntos importantes ele a coagiria? É

persistiu: como se pode dizer que a escrava foi coagida pelo medoquando ela n ão demonstrou o menor medo ao recusar a consumação do casamento, desobedecendo assim ao mesmo senhor que sehavia empenhado ria sua celebração? Com certeza, foi a estratégia,e n ã o uma falta de imaginação, que impediu o advogado de reco-

\nhecer que, ao casar, ela estava obedecendo a uma ordem de seulaono cujo poder ela sabia que não podia evitar, enquanto sua. recusa a d e i t a r- s ê com o marido era uma ques tão entre escravosiguais. 5 -

O padre L ima piamente recomendou que fosse confirmada

a sentença fazendo-se assim a costumada justiça . Presididos peloreverendíss imo João Nepomuceno Moreira de Pinho, cavaleiro daOrdem de Cristo, ordenado vigário da paróquia de Pilar e juiz doTribunal da Relação Metropolitana, os cinco juízes eclesiásticosforam u n â n i m e s em confirmar a dec isão da instância inferior e,em outubro de 1840, exatps cinco longos anos depois da cer imónia, pela Sahtà Madre Igreja é rh toda p á z e caridade , eles julgaramo casamento indissolúvel. Com confiança, assinaram com a codal a t i n a : F í f l r ^ s r í r i a ^ - ~-= - .....-

Os autos n ã o dizem quando a notícia chegou firiàlmehf e aRíòClaro, ou se surpreendeu Caetana. Com certeza, ela não ficousabendo da pequena notoriedade que seu caso sem precedenteshavia a lcançado. O alongado processo legal, com suas páginas dedepoimentos escritos, resumos dosadvogados e opiniões dos juízes, recopiado por um escrivão e despachado para a corte de apelação, onde se repetiu, tudo isso aconteceu em lugares distantes da

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fazenda e da experiência de Caetana, e, de qualquer forma, sendoanalfabeta, ela n ão poderia lê-lo. Somente os dois ou três dias decoleta de depoimentos pelo escrivão que fo i à fazenda teriam sidoreais para ela. Caetana nunca escutou as vozes ou vi u os rostos doshomens importantes e ambiciosos que, um ap ós outro, discutirame julgaram seu caso.

Em todas as culturas, os processos legais e judiciais, por maisdiferentes que sejam em grau desutileza, em seus pressupostos ounos detalhes de seus preceitos, tê m por objetivo resolver o conflitoe possibilitar que as pessoas retomem a conduta usual de suasvidas. Nb caso de Caetana, os juízes não ofereceram uma possibilidade de acordo éj portanto, nenhuma solução, nem mesmo odivórcio, que permitiria que um casal vivesse separado sem dissolver o casamento. N ão obstante, suspeito, embora sem poder provar, que no i inaLÇaetana escapou do casamento. Afinal, seu donodera início e insistira no processo de anulação em nome dela; do

no, vizinho, marido, família e outros companheiros escravos semparentesco, todos haviam dito em público que ela se casara contraa vontade; Custódio a havia liberado verbalmente do casamento; edurante quase cinco anos ela vivera separada dele, sem consumara união. Diante de tudo isso e, em especial, da sua oposição obstinada - é difícil imaginar. Caetana s s u m i n d o o papel de esposa.Com certeza k casamento fo i cancelado de fato. 1 1

Enquanto o caso percorreu lentamente a burocracia legal, aprópria Càètànà desaparece dè nossa vista. Em vez de devolvê-la aomarido como o tribunal ordenara, Tolosa tinha o poder de vendê-la, alugá-la ou dá-la, destino temido pelos escravos, mas que paraCaetana talvez fosse uma solução. Em 1853, quando Tolosa morreu, Caetana teria cerca de 35 anos,. Àquela altura, ele já venderaRio Claro. O negócio com o novo proprietário, o negociante do Riode Janeiro An tôn io Tertuliano dos Santos, a quem Tolosa deviadinheiro, ocorrera algum tempo antes. Tolosa evidentemente fez

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u m acordo com Santos para conti nuar na fazenda embora .nãoesteja claro se fez isso ou f oi morar na vi la com a amante. A m o b íl ia os utensíl ios de cozinha os objetos da capela e os animais dec r i a ç ã o ainda lhe pertenciam. Junto com as terras de Rio ClaroSantos comprara 84 escravos cujos nomes nã o aparecem. SeriaCaetana um deles? Se assim f o i e n t ã o ela pode ter continuado a

viver em Rio Claro embora seu nome não apareça no inventáriopost mort m de Santos em 1857. Tolosa.ficou com os outros 47cativos que s ão nomeados. Entre eles estava C u s t ó d i o e n t ã o com

42 anos um de um grupo de nove escravos-especializados e avalia

dos por um p reço caro que Tolosa já d i s t r ibu í ra entre seus filhos.Embora os casais de cativos fossem cuidadosamente mencionados

na lista de bens n ã o há m e n ç ã o de que C u s t ó d i o tivesse uma espo

sa. O nome de Caetana n ã o aparece. 147

P Í L O G O

A história de Caetana tem a capacidade de nos surpreender

aprimorando nossa c o m p r e e n s ã o do funcionamento esperado de

u m regime escravista nessa pequena mas densamente urdida

comunidade. Temos um vislumbre da ocas ião sem alegria de umcasamento de escravos e encontramos mais f amí l ias de cativos

a b e n ç o a d a s por casamentos religiosos do que se supunha antes;

observamos famílias outrora protegidas que se tornam vu lneráveis pela morte do senhor o desmantelamento do lar da fazenda c

as vendas e separações de escravos surpreendidos pelo inevitávelprocesso de herança . Exemplificadas nesta família de cativos dis-.t inções de origem étnica e habilidades de trabalho refletem ainda

mais os favores e privilégios de uma hierarquia entre cativos. Osescravos duplicavam entre eles as reciprocidades desiguais de

superior e dependente velho e jovem masculino e feminino. Por

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meio de p r á t i c a s c a t ó l i c a s de apadrinhamento reproduz iam na

senzala uma expressão dos laços flexíveis mas duráve is de cliente

lismo que ligavam as pessoas nã o obstante as diferenças de s i tuaçãosocial raça e género . Vemos como a autoridade polí t ica e e c o n ó m ica de um senhor se estendia para além das fronteiras d o m é s t i c a s de

sua fazenda penetrando numa rede mais ampla de cargos e encar

gos hierarquicamente organizados sublinhando sua responsabilidade soGÍal ;-e vemos como d í vi d a e morte podiam provocar a r u í n ada riqueza da r eputação e de uma vida domés t ica à primeira vista

estável.Um a jovem escrava enfrentou p ressão desaprovação a té v io

lência física e com sua d e t e r m i n a ç ã o perturbou a o r d e n a ç ã opatriarcal vigente num lar complexo e quase ideal. Um senhor

inclinado a fazer cumprir suas ordens voltou atrás para interceder

a favor dela tirando o tio de seu papel patriarcal dentro da famíliaescrava; dois homens foram impedidos de infl igir a uma escra

va/sobrinha o castigo físico a que tinham direito. U m homem mais

velho de v i sível p roem inênc i a convidado a agir como interme

diár io pelo senhor indeciso or ientou a decisão de seu amigo de

apoiar sua escrava — momento raras vezes testemunhado no funcionamento in formal privado e em geral sem registro das relaçõesde um fazendeiro — invocando o poder ainda maior da Igreja

para libertá-lá oficial e definitivamente do m a t r i m ó n i o indeseja

do . Ao negar duas vezes a pe t ição os juízes eclesiást icos falando

em nome da Santa Madre Igreja rejeitaram nã o somente uma

escrava mas seu protetor um fazendeiro proeminente e porextensão seu ainda mais ilustre fazendeiro amigo e e x - d e s é m b a r-gador da Relação. Contudo mesmo na p e r t u r b a ç ã o se revelam osgrandes fios coesivos do patriarcado e do clientelismo que conf inavam a vida social brasileira. Trata-se decididamente de umaspecto brasileiro das relações escravistas.

Ao mesmo tempo que sob essa lu z desestabilizadora as p r á t i -

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Fogo de u ís Marianode Tolosa 1830 -

BAIRRO DO RIO CLARO [ 1830] ESCOADRA DO CABO

Mapa dos Habitantes alistentes desta Segunda e Nova Com[panhi]a da Freguesia de S[anto] An-

tônio de Paraibuna distrito da Vila de Jacareí em apresentes com seus Nomes, Empregos, Naturali-dades, Idades, Estados, Cores, Ocupações Casualidades que acontecerão em cada uma de Suas

Respectivas famílias desde a fatura da data do Ano antecedente. (Fogo 89)

N O M NATURAL IDADE ESTADO COR

O Reverendo Sr. Valériode Alvarenga Ferreira • Taubaté 56

O Reverendo S r. Manuel

Inocêncio M. Barreto Taubaté 34

0 Capitão Luís Mariano

de Tolosa Taubaté 36

Dona Ana Joaquina Moreira Taubaté 36

B

B ; Agricultor

B Milho alqueires' 1000

Feijão 100

Arroz 80

Colheitado café arrobas' 2000

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NOME NATURAL IDADE ESTADO*b

CORBrás Crioulo 9 S NBaltasar ' Crioulo 9 S NFidélis Crioulo 9 s NMateus Crioulo 8 S NAmbrósio Crioulo 7 S NVitoriano Crioulo 6 s NBento , Crioulo 6 s NAlexandre Crioulo 4 s NSilvério Crioulo s NJacó Crioulo 4 s NGeronimo Crioulo 4 S . N .Boaventura Crioulo 1 s NRafael Crioulo 1 s NFelizardo Crioulo 1 s N

ESCRAVAS

Joana Africana 30 c NClara Africana 30 c .NFeliciana Africana 30 c N

Felipa Africana 30 c ~NMatildes Africana 30 c NJoana Africana 30 c NAna Africana 30 c NMaria Africana 30 c NCipriana Africana 30 c NMaria Africana 30 c NRita Africana 30 c • ; NBrígida Africana 30 c NMaria Crioula 30 c NRita Africana 30 c NMaria Crioula 30 c NCatarina Africana 30

cN

Joana Crioula 30 c NMaria Africana . . 30 c NJoaquina Africana 30 c NLiberata Africana 30 c NFelizarda Crioula 30 c NRomana Africana 30 c NBenedita Crioula 30 c N

U

N O M E NATURAL IDADE ESTADO COR

Francisca Crioula 30 C NLuísa ~ Crioula 30 c N

[Iúdi?] Crioula 30 c N

Inês Crioula 30 c NGertrudes Crioula • 30 c NCatarina Crioula 20 c N

Lucrécia Africana 20 _c_ N

Dominga Crioula 20 c NEfigênia Africana 20 c NJoana Africana 20 c N

Maria Africana 20 c N

Isabel • Crioula 10 cN

Teodora . Crioula 10 c NVirênia Crioula 10 . s NClaudiana Africana 10 s N

Isabel Crioula 10 s N

Paulina Crioula . 9 s N

Josefa Crioula 9 s . NBárbara Crioula 9 s. N .

Caetana Crioula 9 s NCustódia Crioula 8 s N

Felicidade Crioula 8 s NMaria Crioul a 7 s M

Ismênia Crioula 7 s M

Manuela Crioula 1 s N

Arcângela Crioula 1 s N

a Estado civil: Casado C ); solteiro (S); nenhum viúvo ou viúva aparece nà lista.

D C or: Branco (B); negro (N); mulato (M).c Um alqueire como medida de volume equivale a 13,8 litros 1 uma arroba equiva-

le a 15 quilogramas. ~~

onte Mappa dos Habitantes alistentes desta Segunda e Nova Com[panhi]a daFreguesia de S [ anto] Antonio de Paraibuna distrito da Vil la de Jacarehei, em apre-

sentes com seus Nomes Empregos Naturalidades Idades Estados Cores, Ocu-pasões, Cazoalidades que acontese rão em.cada huma de Suas Respectivas famílias desde a fatura da data do Anno antesedènte, Arquivo do Estado de São Paulo

Seção de Manuscritos Maços de População, Jacareí, Santa Branca, Paraibuna,1830 1850 Maço 2, Paraibuna, 2' Companhia 1830 Caixa 86 Ordem 86 Fogo89 Luiz Marianno de Toloza.

u i

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Fogo dè Manuel da CunhadeAzeredo Coutinho SouzaChichorro 1835

[Mapa dos Habitantes do] Segundo Distr ito de Juiz de Paz da Vara de Santo.Antônio de Paraibuna do Município da mesma, Quarteirão n° 2, no ano de 1835.

(Fogo 38) ,--

N O M E I D A D E C O R L I V R E U

C A P T I V O

N A T U R A L E S T A D O

Manuel da Cunha de

Azeredo Coutinho

Souza Chichorro 61 Livre. Pvio de Janeiro C

[ ESCRAVOS]

Felicidade

Rita :: '41

44

M

M

Captiva Crioula

Crioula

Proprietário e comendador, desembargadoraposentado da Relaçãode Pernambuco; a fazenda é de plantação e.produz café e géneroscomestivos, cria porcosé gado vacum é deu derendimento 338 000 reis;as idades dos escravossão pelo que representão

N O M E I D A D E C O R L I V R E U

C A P T I V O

N A T U R A L E S T A D O

Domingos . P Captivo Africano C

Joana 39 p Captiva Africana C

Benedito 20 p Captivo Crioulo S

Isabel 15 p Captiva Crioula sBenedito 18 p Captivo Crioulo sIsabel 12 p Captiva Crioula sLuísa 11 p Crioula sAntônio 50 p Captivo Africano sJoão 50 p Africano V

Manuel •• 49" p Africano cCatarina 39 p Captiva Africana cFelícia 12 p Crioula sMaria 11 p Crioula sInácia 2 p Crioula sSebastião 49 p Captivo Africano cJosefa 38 p Captiva Africana cFelisberto 15- p Captivo Crioulo sManuel 12 p «c Crioulo sHelena 12 p Captiva Crioula sApolônia 8 p . Crioula sMatias 2 p Captivo Crioulo sJoão Benguella 40 " p -

Captivo

-Africano cRosa 38 p Captiva Africana cFelipe' o p Captivo Crioulo sElentêria p Captiva Crioula sRaimundo' 1 ' , í "" -•• ; : - 30 p Captivo Africano sJosé ? 6 Africano c

: Maria.Rosa 38 P s Captiva Africana cBenedito.. 35 P Captivo Africano V

. .Mar ia , , . P Captiva Crioula sTomé 2 P Captivo Crioulo sLuís 25 P Africano sCaetano 38 P Africano c