Caio Prado Jr. Rebeliao Moral - Florestan Fernandes

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    intransigente proletrio-comunista. Mantendo-se na mesma posio de classe,

    inverteu as baterias de seu combate e tornou-se um militante, um poltico de

    proa (em 1935 j era vice-presidente da Aliana Nacional Libertadora) e,reiterando a troca de identidade, em 1947 tornou- se deputado por So Paulo

    (alis, um deputado inovador e exemplar).

    bvio que a ruptura poltica respondia s frustraes provocadas pelo

    destino do Partido Democrtico (PD) e pela traio dos "revolucionrios"

    de 1930 aos ideais de subverso da ordem. Havia, porm, outra ruptura

    paralela, de natureza moral: no a substituio de mores, mas a ressocializao

    da pessoa dentro de mores antagnicos. A passagem envolvia um

    renascimento para a vida, do qual brotou e cresceu um comunista

    confiante na opo, na qual jogara tudo, desde a lealdade de classe at

    a relao intelectual com o mundo e o comportamento poltico.

    Os cincos anos de Faculdade de Direito tambm no explicam uma

    evoluo que converte o radicalismo intelectual em transgresso. A

    instituio-chave na seleo e preparao dos guardies civis da ordem

    sempre alimenta o aparecimento de um pugilo de filhos prdigos, que

    submergem na contestao aos costumes, ao conservadorismo cultural

    e ao reacionarismo poltico; e depois renascem, como Fnix, para resguardar

    a austeridade dos costumes e a lei como a ltima ratioda defesa da ordem.

    O certo que Caio Prado Jnior no poderia escapar desse lapso de

    liberdade tolerada. E convm reconhecer que, enquanto ela dura, essaliberdade

    seminal. Ela sulca a imaginao, forjando uma insurgncia

    compensatria de curta durao. Contudo, ela criadora e deixa

    cicatrizes. Estimula muitas leituras e excurses proibidas ou

    demolidoras: ainda agora os bacharis contam entre os universitrios que mais

    lem, dentro de um campo de irradiao muito vasto.

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    Portanto, suponho que o modernismo e a atividade estudantil tiveram seu

    peso. Mas estes no parecem decisivos. Dir ia que contaram como

    reforo ps ico lgico predispos io arra igadamente or ientadapara o inconformismo moral (a l is , o ano de 1920, passado no

    Chelmsford Hall, na Inglaterra, possui o mesmo significado, pelo avesso: como

    demonstrao do que uma sociedade civil civilizada).

    Se a proposio do enigma est correta, a resposta procede de uma

    ruptura moral interior. Ns, no interior do marxismo, sentimos alguma

    dificuldade em aceitar uma explicao fundada exclusiva ou

    predominantemente em uma ruptura moral. Parece que resvalamos para

    uma centralidade idealista, que coloca no mesmo nvel diversas rupturas

    convergentes (ideolgicas, sociais, polticas etc.). Todavia, h um

    momento de cr ise da personal idade no qual o desabamento de

    estruturas mentais se conjuga com a busca de outros contedos, com

    uma reorganizao completa de suas bases perceptivas e cognitivas. As

    tentativas de uma revoluo dentro de linhas radicais (a participao no PD e

    as expectativas relacionadas com a "revoluo liberal") precipitaram o

    processo psicolgico e poltico em outra direo, mas congruente,

    desvendada pelo Partido Comunista (PCB).

    Esse o significado de uma ruptura moral plena, pois ela no

    se confina a certos fins circunscritos: desencadeia-se e prossegue. O

    paradigma fornecido por Gandhi (mas pode ser inferido de alteraessimilares, experimentadas por revolucionrios marxistas, como Lenin ou

    Trotsk i , s i tuados nos l imi tes de suas pos ies de classe de

    origem). A vantagem desta interpretao est em que ela permite

    entender as razes da consistncia de Caio Prado Jnior, quando confrontado

    pelo partido (na desobedincia ao pragmatismo da disciplina e da hierarquia e,

    mesmo, no conflito com as concepes nucleares extramarxistas da essncia e

    dos rumos da revoluo socialista).

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    Portanto, no existe ligao "mecnica" entre as decepes e a

    reorientao poltica, o entusiasmo militante inicial e a publicao em

    1933 (aos 26 anos de idade) do seu livro mais vibrante e, ao mesmotempo, o que reclama explicitamente o seu carter marxista: A evoluo

    poltica do Brasil e outros estudos - Ensaios de interpretao materialista da

    histria do Brasil.

    O subttulo continha uma confisso para "escandalizar", um testemunho

    de que a ruptura avanara to longe que no evocava uma "ovelha

    negra" convencional, mas um pensador revolucionrio, com quem a

    sociedade burguesa teria de se haver. Uma "exploso juvenil" que precisa

    ser compreendida no contexto histrico, em termos da concepo de si

    prprio e da histria sustentada vivamente pelo autor. O livro resvala

    por lapsos lgicos, descritivos e interpretativos, que mereceriam reparos de

    marxistas experimentados. Mas quem poderia ser, dentro de nosso cosmos

    cultural, mais marxista? Ainda carregamos limitaes que somente uma

    dura e longa experincia no manejo do materialismo histrico convidaria a

    ultrapassar. As contradies no so situadas ao fundo e no lanam luz

    sobre o "inferno" da vida nos trpicos e nas determinaes recprocas que

    vinculavam a opresso senhorial dinmica da opresso escravista, de

    escravos e "homens livres pobres". O "Estado escravista" continuou de

    p, dent ro da t ica dos que o viam como um Estado

    constitucional, parlamentar e democrtico.No entanto, A evoluo poltica do Brasil um rebento maduro e

    correspondia, como obra marxista, aos intentos de Caio Prado Jnior. No

    patamar incipiente e mais puro de sua ruptura, ele desenha a verso do

    Brasil que animaria suas investigaes ulteriores e d sua resposta aos

    membros da classe soc ia l dominante e ao PCB, no qual

    ingressara. queles, para quedescobrissem que construam e

    reproduziam, cotidianamente, a cadeia dentro da qual prenderam e

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    degradaram a sua conscincia social, a condio humana e a

    ausncia de sadas histricas dentro de falsos padres de democracia. Ao

    ltimo, para afirmar-se em toda a plenitude como um intelectualrevoluc ionr io l iv re, pronto a avanar na conquis ta da revoluo

    social e na emancipao dos excludos, dotado, porm, de uma faculdade

    prpria de submeter-se disciplina e s orientaes partidrias. Compartilhava

    de sua estratgia: reformar, primeiro; e destruir mais tarde aquele gigantesco

    presdio, designado como Estado "moderno".

    No obstante, no se prestaria a servir de peo a qualquer

    conciliacionismo ou oportunismo "tticos". O livro pe em evidncia,

    principalmente no ensaio primordial, qual o sentido que carrega e os

    desdobramentos que exige do autor para que a construo de uma nova

    sociedade possibilitasse a criao de um Estado realmente democrtico

    e aberto aos aper feioamentos vindos de baixo.

    A obra seguinte, aparec ida nove anos depois ( Formao do

    Brasil contemporneo - Colnia), adere a out ro hor izonte

    intelectual e pol t ico. Mais depurado, como marxista e histor iador,

    prope-se uma ambio ciclpica: uma devassa em quatro volumes da

    formao e evoluo do Brasil, do regime colonial escravocrata

    contemporaneidade. Como historiador, Caio Prado Jnior preocupava-se

    em cobrir as lacunas da histria descritiva da maioria dos cultores da

    matria, e em corrigir as armadilhas das obras de sntese histrica, algumasde alta qualidade, que prevaleciam naquele instante. Como marxista, pretendia

    forjar uma obra-mestra, que servisse de fundamento para que as correntes

    socialistas e democrticas (especialmente o PCB) pudessem formular uma

    representao slida das debilidades, do trajeto e dos objetivos especficos da

    revoluo brasileira.

    Saiu apenas o primeiro volume, que evidencia uma solidez na

    reconstruo emprica e uma firmeza nos delineamentos tericos a que

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    no chega o livro anterior. Ento, tivera tempo de absorver rebentos da

    transplantao cultural, mediada pela Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras,

    os quais aproveitou inteligentemente, em particular nas reas da geografia eda histr ia. Foi pena que no fizesse o mesmo com referncia

    sociologia, pois a que refluem as conseqncias negativas das

    omisses ou vacilaes mais graves. O talento para combinar vrias

    disciplinas, entretanto, enriquece o questionamento histrico e toma a

    contribuio mais compreensiva e esclarecedora.

    A sociedade colonial e o modo de produo escravista encontram,

    finalmente, o intrprete que iria consider-las como uma totalidade in statu

    nascendi e no seu vir-a-ser. Ela no seduziu s os leitores eruditos e

    obrigatrios. Impregnou a imaginao histrica de Caio Prado Jnior,

    convertendo-o em inventor e propagador de uma viso prpria da histria do

    Brasil. Essa viso estava contida no primeiro livro. Todavia, na segunda

    obra que ela se expande como a fonte de suas grandes descobertas e a

    objetivao de seus amplos limites.

    No conjunto, aproxima-se mais da histria "positiva" que em outras de

    suas realizaes. O que no impede que elucide, por vezes de modo

    definitivo, a problemtica especfica do nossomundo colonial. A comear pelo

    sentido da colonizao e do desmascaramento dos interesses da Metrpole,

    dos senhores e da grande explorao mercantil, at o embrutecimento

    do escravo como coisa e dos mestios e brancos "pobres" comoexcludos e ral. Por isso, a se acham os andaimes de seus estudos

    sobre a questo agrria e o capitalismo mercantil, assuntos que o

    atrairiam sem cessar, embora no possam ser devidamente explorados aqui.

    O espao tambm no comporta uma discusso, sumria que seja, de

    sua Histria econmica do Brasil (1945), que o compeliu a observar o

    vasto painel de longa durao como foco de referncia de problemas

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    concretos. Se se impuseram algumas correes, estas no tiveram,

    contudo, porte para impor uma da concepo global.

    O seu livro de maior repercusso foi divulgado em 1966, A revoluobrasileirae possui uma importncia poltica excepcional. Contm um desafio

    ousado ditadura. Mas constitui uma reflexo desafiadora e um repdio

    ao mecanicismo "marxista", reviso significativa forjado depois da

    ascenso de Stalin ao poder e da influncia manietadora da III Internacional.

    Nessa obra, Caio Prado Jnior procede a uma crtica severa dos desvios

    de rota da revoluo socialista, programados e impostos como deformao do

    marxismo; o uso invertido e ditatorial do centralismo democrtico; a

    simplificao grosseira da teoria e das prticas marxistas da luta de classes e

    da revoluo em escala mundial. Os pases dependentes, coloniais e

    neocoloniais tinham sido metidos em um mesmo saco e em mesma

    camisa-de-fora, que pressupunham que a revoluo pudesse ser

    "unvoca", monoltica, dirigida segundo uma frmula nica, a partir das diretrizes

    da III Internacional e da Unio Sovitica.

    Desse ngulo, o livro retoma o marxismo como processo, que nasce e

    cresce por dentro das classes trabalhadoras e na busca de sua auto-

    emancipao coletiva, atravs da construo de uma sociedade nova.

    O ncleo de referncia vem a ser o Brasil do momento da

    ditadura mili tar e do auge da Guerra Fria. O que impele Caio

    Prado Jnior a retomar os temas de suas invest igaes,dissertando sobre os marcos coloniais da dominao econmica, cultural e

    poltica da burguesia, a debilidade dessa burguesia em termos de sua situao

    histrica, associada e dependente, e os parmetros da conquista da cidadania

    e da democracia como requisitos da reforma agrria e de outras

    transformaes sociais. Ele fica exposto a vrias crticas tericas e prticas,

    inclusive a da via reformista, gradualista e por etapas da implantao do

    socialismo. No obstante, recupera o entendimento de Marx e Engels a

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    respeito da revoluo permanente, segundo o qual ela produto da luta

    de classes, no de utopias melhoristas ou humanitrias.

    Nessa ocasio, Caio Prado Jnior atingiu o clmax de sua grandezacomo marxista, cientista social e agente histrico. Marchando contra a

    corrente, realizou urna sntese da evoluo do Brasil e uma reviso

    em profundidade de questes concretas, intrnsecas a certos dilemas

    pol t i cos , como a reforma agrr ia . Buscou o alargamento do

    marxismo para adequ-lo s condies histricas variveis da periferia,

    da Amrica Latiria e do Brasil. E demonstrou como o intelectual,

    desempenhando seus papis e sem transcend-los pela eficcia de

    partidos, pode alcanar o cume da militncia exigente e criativa.

    No carecemos estar de acordo com ele em tudo para realar o seu

    perfil marxista. Basta que enxerguemos a sua coragem de enfrentar sozinho os

    riscos de errar e a represso poltica brutal, para admir-lo ainda mais

    dent ro e acima de sua produo como his tor iador ,

    gegra fo ,economista, cultor da lgica e da teoria da cincia, homem de ao

    e poltico representativo.