Calado_revisada
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PRESENAS
ALEXANDRE PIERONI CALADO
Tese apresentada Escola de Comunicaes e Artes daUniversidade de So Paulopara obteno do ttulo deDoutor em Artes
rea de Concentrao
Formao do Artista Teatral
OrientadorProfessor Doutor Antnio Januzelli
SO PAULO2011
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Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho,por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudoe pesquisa, desde que citada a fonte.
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Prof Dr InstituioJulgamento Assinatura
Prof Dr Instituio
Julgamento Assinatura
Prof Dr Instituio
Julgamento Assinatura
Prof Dr Instituio
Julgamento Assinatura
Prof Dr Instituio
Julgamento Assinatura
Aprovado em
PRESENAS
ALEXANDRE PIERONI CALADO
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Beatriz, ao Carlos, Gabriela o cuidado.
Bruna o carinho.
Sandra a parceria.
Ao meu orientador Antnio Januzelli pelo caminho percorridojunto, pelas conversas e pelo apoio. Aos fazedores de teatropedagogos Alexander Kelly, lvaro Correia, Bruno Bravo, CarlosJ. Pessoa, Juliana Galdino, Maria Thais Lima, Phillip Zarrilli queaceitaram participar deste estudo. professora Josette Fral queme permitiu aprofundar a investigao junto do seu grupo de
pesquisa. Anabela Almeida, Anabela Mendes, Carolina Mendona, DanielCervantes, David Bastos, Dinarte Branco, Elisabete Oliveira, EugniaVasques, Filipe Barrocas, Gina Monge, Iolanda Santos, Joo Salaviza,Jorge Gomes, Juliana Monteiro, Luisa Marques, Mayra Azzi,Micaela Fonseca, Narahan Dib, Rodrigo Garcez, Sofia Dinger,Veronica Veloso, Wallace Masuko a colaborao.
Fundao para a Cincia e a Tecnologia do Ministrio daCincia, Tecnologia e Ensino Superior (Portugal) pela bolsa queme permitiu realizar este projeto.
AGRADECIMENTOS
UNIO EUROPEIAFundo Social Europeu
QUADRODE REFERNCIAESTRATGICONACIONALPORTUGAL2003.2010
PROGRAMAOPERACIONALPOTENCIAL HUMANO
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RESUMO
O objeto das linhas que se seguem a arte cnica, o problemada formao do artista cnico para ser mais exato. O que proponho uma discusso sobre a possibilidade de certa noo de presenaconstituir um eixo de trabalho em situaes de ensino e aprendi-zagem, em instituies superiores. Para responder a esta questo
desenvolvo uma metodologia compsita: discuto textos de JosetteFral, Hans-Thies Lehmann, Jacques Rancire, Anatoli Vassiliev,Tim Etchells e Giorgio Agamben; analiso situaes educativas ob-servadas no Departamento de Teatro da Escola Superior de Tea-tro e Cinema (IPL | Portugal), no Departamento de Artes Cnicasda Escola de Comunicaes e Artes (USP | Brasil), no PerformingArts Department da School of Film, Television & Performing Arts
(LMU | Inglaterra) e no Drama Department da Exeter University(Inglaterra), com nfase no trabalho desenvolvido por AlexanderKelly e Phillip Zarrilli, destas duas ltimas instituies, respetiva-mente; e, fao a exegese do trabalho de pesquisa pela criao da be-leza ou o sistema nervoso dos peixes, que desenvolvi com os diretorespedagogos Antnio Januzelli (Brasil) e Carlos J. Pessoa (Portugal),apresentado no Teatro Taborda (Lisboa | Portugal) e no Espao Viga(So Paulo | Brasil). Esta metodologia permite-me apresentar, por
fim, a proposta de um desenho curricular para uma oficina ocu-pada com trs reas de problematizao: a atuao psicofsica, aescrita cnica compartilhada e a emancipao do artista teatral.
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ABSTRACT
The subject of the following lines is the theatre, the problem of thetheatre artists education to be more precise. I present a discussionabout the possibility of a certain notion of presence being able toguide theatre teaching and learning within higher education in-stitutions. To do this I use a composite methodology: I discuss
texts by Josette Fral, Hans-Thies Lehmann, Jacques Rancire,Anatoli Vassiliev, Tim Etchells and Giorgio Agamben; I analyseeducational situations observed at the Departamento de Teatro ofthe Escola Superior de Teatro e Cinema (IPL | Portugal), at the De-partamento de Artes Cnicas from the Escola de Comunicaes eArtes (USP | Brazil), at the Performing Arts Department from theSchool of Film, Television & Performing Arts (LMU | England) and
at the Drama Department from the Exeter University (England),considering with more detail the practice of Alexander Kelly andPhillip Zarrilli, working in these two last institutions; and, I do anexegesis of the practice as research project da beleza ou o sistemanervoso dos peixesdeveloped with the directors pedagogues AntnioJanuzelli (Brazil) and Carlos J. Pessoa (Portugal), presented at theTeatro Taborda (Lisbon | Portugal) and Espao Viga (So Paulo |Brazil). This methodology allows me to propose a curricular design
for a practice based module on theatre centred on three main areasof problematization: psychophysical acting, devising and emanci-pation of the theatre artist.
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SUMRIO
2 | NO A PRESENA
Quartett
La chambre dIsabella
Estranhas presenas
Instructions for ForgettingA Ilada - canto XXIII
Singularidade de uma ausncia
1 | INTRODUO
Reviso
Referencial
Por dentro
3 | FOLHA DE PRESENAS
Estudos de campo
Escolas superiores de teatro
Inferncias
Sobre formar atores
4 | PRODUO DE PRESENAS
Estudos de cena
da beleza ou o sistema nervoso dos peixes
prlogo para um solotrs minutos
cabea de medusa
1
2
9
15
21
22
27
33
4043
46
65
67
70
82
95
221
222
228
280282
284
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5 | PRESEN 3000
Lisso
DesconhecimentoO ofcio da luz
A circulao da roda
A tripla operao
Exerccios individuais
Glossrio incompleto
6 | DISCUSSO FINAL
Sntese
Oportunidades
Autoavaliao
7 | REFERNCIAS UTILIZADAS
291
293
297299
305
313
327
331
347
348
350
352
355
ANEXOI
Registos das sesses
Entrevistas
ANEXO II
da beleza ou o sistema nervoso dos peixes | Espao Viga
ANEXO III
da beleza ou o sistema nervoso dos peixes | Teatro Taborda
cd 1
dvd 2
dvd 1
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LISTA DE ILUSTRAES
LISTA DE TABELAS
fig 1 | capelafig 2 | poro
fig 3 | agosto 2008
fig 10 | a tripla operao
fig 4 | maro 2008
fig 5 | absence - prlogo para um solo
fig 6 | standing still without standing still
fig 7 | cabea de medusa
fig 8 | o ofcio da luz
fig 9 | a circulao da roda
tab i| curricula atores dt - cac
tab v | questionrio pad - dd
tab iv | questionrio dt - cac
tab iii| atividades treino intercultural
tab ii| atividades evento performativo
243247
251
254
281
283
287
301
307
315
76
80
81
98
99
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1 | INTRODUO
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O objeto das linhas que se seguem a arte cnica, o problema
da formao do artista cnico para ser mais exato. O que proponho
uma discusso sobre a possibilidade de certa noo de presena
constituir um eixo de trabalho em situaes de ensino e apren-
dizagem, em instituies de formao superior. As artes da cena
esto de tal modo imbricadas com a ideia de presena que a relao
entre os termos carece de uma justificao delongada: a produo
e a recepo so sncrones e coextensivas para o espectador que
se apresenta, h um espetculo que acontece sempre no aqui e
agora da cena, difcil no pensar logo na presena do ator, talvezmesmo a primeira ideia que nos ocorre. que a noo de presena
persiste operante nos discursos e no pensamento dos fazedores
da cena, ela retomada na dana, nas artes visuais; ela parece ter
ganho relevncia com as experimentaes que desde a dcada de
setenta do sculo passado invadem os palcos com elementos es-
tranhos representao: incurso do real, esttica performativa,teatro psdramtico, cena abstrata. Quando se fala em teatro e no
ofcio do ator, em particular, a noo de presena aparece como
uma sombra que atormenta os discursos, difcil de apreender, im-
possvel de afastar. O que queremos saber se esta noo, se que
uma noo, nos pode servir para pensar a formao do artista que
quer fazer teatro atuando em cena.
1.1 | REVISO
A rigor, no a presena mas presenas, presenas mltiplas e
singulares, pequenas presenas em sries, sries de presenas
em arranjos articulados em movimento, a vrias velocidades. O
problema no pequeno porque o termo presena designa a rela-
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3 | INTRODUO
o de estar ou existir simultaneamente com, j se pode ver
a ordem de complicaes a que ele remete. O Dicionrio Houaiss
de Lngua Portuguesa (2003) indica quatro sentidos prprios e dois
figurados para o termo: fato de algo ou algum estar em certo
lugar; fato de algo ou algum existir em algum lugar; aparncia
geral de uma pessoa, figura; qualidade do que chama a ateno,
individualidade; participao numa atividade; influncia. Ento,
o termo presena serve simultaneamente para trs coisas no uso
comum: para localizar objetos ou pessoas num domnio determi-
nado (a presena dela na festa surpreendeu a todos); para descrevero efeito que certo estado do mundo tem sobre o observador que
se coloca perante ele (que bela presena ele faz entre os colegas); e,
para sugerir o efeito de algo ou algum em determinado estado do
mundo (presena da cultura antiga na contemporaneidade). Por aqui
se comea a compreender como a ideia de presena se enreda em
inmeras dificuldades: parece estabelecer simplesmente a posiode pessoas e objetos mas logo tambm se pode aplicar a ideias e
realidades abstratas; parece fundar-se numa distino entre sujeito
e objeto mas refere tambm certa correlao entre o que per-
cepcionado e o que percepciona; designa uma relao que tanto
espacial, quanto temporal. A complicao est bem manifesta na
diversidade de expresses comuns que apontam para estes usoscontraditrios: marcar presena, presena de esprito, na presena
do perigo, na presena dele, uma presena, a sua presena.
O tema da presena ocupa um lugar de proeminncia nos discur-
sos dos crticos e dos praticantes da cena, bem como nas prprias
prticas cnicas, faamos um rpido sobrevo s estantes. Comomostram as entrevistas realizadas ao longo da ltima dcada
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por Josette Fral e publicadas sob o ttulo Mise en scne et Jeu
de lacteur (2001), fazedores de teatro to diversos como Robert
Wilson, Richard Foremann, Elisabeth Lecompte, Robert Lepage,
Anne Bogard, Anatoli Vassiliev, Iouri Lioubimov, Eugenio Barba,
Richard Schechner, Peter Sellars e Dario Fo, entre outros, utilizam
a noo de presena no seu discurso e na sua prtica. No discurso
dos fazedores de teatro, presena parece ser uma qualidade do
ator, nebulosa, paradoxal: Fral nota que esta noo utilizada
com sentidos muito diversos, por vezes contraditrios, tanto tipo
de jogo cnico e capacidade artstica, quanto talento ou carismapessoais (feral2001: 50-55). Barba, sem dvida, est entre aque-
les que mais importncia do noo de presena, associando-a a
noes como bios cnico, pr-performatividade e princpios
que retornam e fazendo dela uma das diretrizes principais do
seu pensamento sobre o trabalho e a formao do ator (barba
1972; 1981; 1991; 1994). Na entrevista realizada por Fral, Barbadiz nada menos que : On doit definir la prsence dune manire
extrmement pragmatique. Quest-ce que ce la prsence? Cest ce
qui agit sur lespectateur, de onde Tout lentranement a un seul
objectif: btir la prsence. (barba, feral2001: 96-97) Apesar da
importncia que o pensamento de Barba apresenta no presente
mbito, o seu trabalho no ocupar o leitor nas pginas que seseguem. Alm do trabalho do diretor italiano se poder inscrever
nas crticas que sero feitas em seguida ao uso mais comum da
noo de presena entre os fazedores de teatro, o pensamento geral
deste autor pode ser considerado essencialista (calado 2007).
Dentro de uma investigao similar sobre os termos e o modocomo a noo de presena elaborada, Stage Presence: the Actor as
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5 | INTRODUO
Mesmerist (2008), de Jane Goodall, um interessante livro que,
a partir de casos de estudo de artistas do teatro, da msica e da
dana, traa um panorama dos complexos predicados, termos e
imagens que a presena em cena convoca. Dado o carter contra-
ditrio do termo, no com surpresa que vemos a autora destacar
elementos que transitam entre o eletromagnetismo e a magia, a
qumica e o sobrenatural. Goodall considera exemplos to diver-
sos como Sarah Bernhardt, Maria Callas, Vaslav Nijinsky, David
Bowie e Josephine Baker, entre outros, investiga essa qualidade
de estranhas ressonncias, motivada em parte por um cepticismoperante o orientalismo e o atavismo que esse tema tantas vezes
ressoa, no contexto da cultura ocidental contempornea (goodall
2008: 4). Presence in Play (2008), de Cormac Power, um inte-
ressante volume que argumenta a favor da centralidade do con-
ceito de presena para a reflexo no mbito dos estudos teatrais, a
partir de um conjunto diversificado de perspectivas que incluem asemitica, a fenomenologia e a filosofia ps-estruturalista. Alm
de discutir o pensamento desenvolvido por Jacques Derrida e
Phillip Auslander sobre a presena no teatro, Power prope um
modelo tridico de entendimento da presena teatral assente nas
categorias ficcional, aurtica e literal. De forma sinttica, Power
associa a categoria de presena ficcional aos fenmenos teatraisque concorrem para a construo conjunta de um mundo ficcio-
nal no momento da apresentao; remete a presena aurtica s
qualidades do ator que atraem a ateno do pblico; e, considera
como presena literal conjunto de elementos relacionados com a
partilha concreta por atores e espectadores de um mesmo espao
e tempo. Explorando estes trs planos de experincia da presena,
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Power reverte o criticismo que a noo recebeu, em particular pela
filosofia ps-estruturalista da segunda metade do sculo passado,
para afirmar o potencial singular do teatro para colocar a presena
num jogo de apario e desapario (power2008: 202).
Numa direo que algo distinta, How the World became a Stage:
presence, theatricality and modernity (2003), de William Egginton,
um trabalho de reflexo que estuda as transformaes nos espa-
os e prticas espetaculares dos teatros da Idade Mdia tardia ao
comeo da Modernidade, com nfase em Espanha e Frana, para
procurar compreender as caractersticas singulares deste ltimoperodo. A partir do reconhecimento de que houve uma transfor-
mao na representao do mundo que implicou um trnsito de
um espao cheio, mgico e carregado de presena para um espao
vazio, transitrio e teatral, Egginton argumenta que a experincia
da modernidade pode melhor ser pensada em termos espaciais
que noutros relativos subjetividade (egginton2003: 7). J no
campo dos estudos da dana, Of the Presence of the Body (2004),
editado por Andr Lepecki, rene nove artigos de especialistas
contemporneos dos estudos da dana, da performance e da cultu-
ra, centrados na problematizao dos termos corpo e presena ope-
rada pela dana contempornea europeia e norte-americana, em
particular. Tal como fizera no artigo um pouco anterior, Concept
and presence, no qual Lepcki fala da insistncia na presena
como denominador comum de certos coregrafos atuais (lepecki
2004: 180), em On the Presence od the Body o crtico portugus
radicado nos Estados Unidos da Amrica junta-se a autores como
Barbara Browning e Peggy Phelan para explorar como na danado nosso tempo os conceitos referidos de corpo e de presena so
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7 | INTRODUO
sede de um debate singular, pleno de consequncias polticas e
para o prprio campo dos estudos da cena.
No campo dos estudos da performance, os j clssicos Liveness:
performance in a mediatized culture (1999), de Phillip Auslander,e Unmarked: the Politics of Performance (1993), de Peggy Phelan,
constituem um entrada privilegiada no debate sobre as especifici-
dades das artes performativas pensadas em termos que gravitam
ao redor da noo de presena. Afirmando que pela presena
de corpos vivos que a performance implica o real, Phelan prope
que o ontolgico desaparecimento da performance no seu com-pletar-se e o correlativo mergulho desta na invisibilidade da me-
mria dos espectadores a permite constituir-se como uma forma
artstica capaz de escapar aos mecanismos de reproduo, assim
afirmando o seu valor de resistncia (phelan1997: 173). Em certo
sentido respondendo a Phelan, Auslander serve-se de alguns dos
exemplos da terica norte-americana para mostrar como o uso de
tecnologias de mediao compromete o argumento em favor de
uma ontologia da presena, ao mesmo tempo que argumenta em
favor de uma desestabilizao da oposio entre o mediatizado e o
ao vivo (auslander1999: 38-60). Um dos eixos da argumentao
de Auslander, fortemente influenciado pela filosofia de Jacques
Derrida, passa pela explorao da expresso ao vivo, utilizada
no jargo anglo-saxnico para designar transmisses em direto
em meios de comunicao como o rdio e a televiso. Outro inte-
ressante filo de trabalho de Auslander passa pela defesa de que
as mquinas tambm realizam performances, assim colocando
em crise a suposta ontologia da presena viva avanada por Phelan(auslander 2002). Para referir um exemplo no amplo campo das
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artes visuais, veja-se como Esttica Relacional (2009), de Nicolas
Bourriaud, faz um diagnstico das tendncias contemporneas
neste campo que parece confirmar o triunfo da arte minimalista
que, em 1969, Michael Fried acusou de se fundar na presena e
na teatralidade (fried 2003). Maaike Bleeker (2005), por outro
lado, utiliza o texto posterior de Fried Absortion and Theatricality:
Painting and Beholder in the Age of Diderot(1980) para reconsiderar
a noo de teatralidade nos termos de uma dialtica entre focali-
zao e absoro com relevantes ressonncias para o modo como
pensamos a relao entre teatro, performance e recepo, a partirde um referencial das artes visuais.
Em Staging Philosophy (2006), editado por David Krasner e David
Saltz, uma seo inteira dedicada a artigos que exploram diver-
sas intersees entre a noo de presena, a fenomenologia, a
poltica, a semiologia e a epistemologia da arte. Entre estes textos,
destaco o interessante artigo Embodiement and Presence: The
Ontology of Presence Reconsidered no qual Suzanne Jaeger se
serve da fenomenologia para responder a Jacques Derrida e pensar
a presena do ator como jogo de diferenas de esquema corporal.
Mas respire o leitor, estamos a chegar ao final deste trnsito cuja
finalidade apenas indicar como a noo de presena anima a
reflexo contempornea no campo dos estudos de teatro. Apenas
mais duas linhas para salientar o The Presence Project, levado
a cabo entre 2005 e 2009, em conjunto por diversas universida-
des entre as quais a Exeter University (Reino Unido), o University
College (Reino Unido) e a Standford University (EUA), do qual se
aguarda uma edio, no qual a noo de presena faz gravitar emseu torno trabalhos tericos, debates e oficinas, tanto de artes ao
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9 | INTRODUO
vivo, quanto de artes mediadas; 0 colquio Brler le planches,
crever lecran: la prsence de lacteur, realizado em 2000, orga-
nizado pelo Centre de Recherches et de Documentation des Arts
du Spectacle da Universit de Caen (Frana), do qual participaram
Beatrice Picon-Vallin e Jacques Lassale, entre outros, que se dedi-
cou especificamente reflexo sobre a presena do ator no teatro ou
no cinema, outros; e a conferncia Presence et Representation,
realizado em 2001, pelo Centre de Recherches sur les Conflits
dInterpretation da Universit de Nantes (Frana), que investigou
o potencial operatrio do conceito de presena em campos comas artes visuais, a filosofia e a psicanlise. Assim, a passos largos
percorremos um horizonte diversificado que atesta bem como a
noo de presena apresenta um carter problemtico e relevante
no mbito da reflexo e da prtica das artes da cena, revelando um
potencial operatrio transdisciplinar que abre os estudos de teatro
participao nos debates contemporneos de diversas esferas dopensamento e da cultura.
1.2 | REFERENCIAL
Como atesta o Dicionrio de Teatro, de Patrice Pavis, a expresso
ter presena, no jargo teatral, corresponde capacidade do ator
cativar a ateno do pblico e constitui, segundo opinies corren-
tes, o bem supremo a possuir pelo artista da cena e a experienciar
pelo espectador (pavis 2001: 305). Destaca o semilogo francs
que a noo de presena parece estar associada a uma forma de
comunicao corporal direta e algo misteriosa que se estabeleceria
entre ator e espectador. Procurando contornar o problema de com-
preender o fenmeno nestes termos, Pavis sugere que a sensao
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de presena que o espectador experimenta e associa qualidade do
jogo do ator se pode melhor entender como resultando da coliso
entre o evento social do jogo teatral e a fico. A considerao deste
cruzamento, onde ressaltam as ideias de deixis e de osteno, leva
Pavis a sustentar que a presena que o espectador atribui ao ator
na verdade decorrente do presente continuamente afirmado na
cena (pavis 2001: 305). Esta definio tentativa de Pavis exemplar
no modo como nos leva a pensar a noo de presena no encontro
dos trs termos ator, espectador e espetculo, circunscrevendo-se,
contudo, ao momento da apresentao cnica. Na medida em quecentra a sua definio nestes minutos, mesmo quando so horas,
Pavis assume uma posio crtica que privilegia a posio do es-
pectador, o que no sem custos para o pensamento sobre o ator.
1.2.1 | PRESENAS
Centrar o pensamento sobre a presena do ator no teatro no mo-mento do espetculo pernicioso, em particular quanto estamos
perante o problema da formao. Revertendo o ponto de vista para
o ator, a questo da presena sofre uma reconfigurao importan-
te, ainda que num primeiro momento os termos identificados por
Pavis mantenham a sua pertinncia: algum em cena faz certas
aes concretas que atualizam a composio que d forma ao es-
petculo, espetculo este que recebido pelo espectador que tem,
ento, o seu prprio papel na traduo da experincia. No entanto,
uma importante ressalva se impe se pretendemos entender o que
so essas aes concretas que o ator executa. Tomando como refe-
rncia a minha experincia pessoal, na qual a sensao de presena
em cena est associada a um estado em que estou to embrenhado
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11 | INTRODUO
na atividade que nada mais parece importar, no apenas o choque
entre a fico e a realidade na cena que importa considerar: porque
essa experincia depende largamente do perodo de trabalho que
subjaz apresentao, bem como do modo como este se inscreve
num projeto artstico mais amplo.
Dando continuidade ao pensamento de Pavis, consideremos a ques-
to segundo uma perspectiva lgica. Pode dizer-se que a noo de
presena pertence ao campo da teoria de relaes, pois ela implica
um observador (O) e um objeto (n), tais que n est presente para
O quando O consegue determinar os valores de n num referen-cial espacio-temporal (x, y, z, t): quando ser verifica esta condio,
O afirma que n tem a propriedade de estar presente. Assim sendo,
a presena tanto uma propriedade espacial, quanto temporal: isto
tambm senso comum, pois um mesmo ator est presente em
certos momentos do espetculo mais que noutros, alguns dias e
no todos, principalmente, os espetculos diferem entre si. per-
tinente retomar aqui, ento, a distino medieval entre presentia
corporalisepresentia temporalis, porquanto esta coloca em evidncia
quanto o eixo temporal do fenmeno de presena parece ter vindo
a ser negligenciado nos discursos crticos. O que me parece impor-
tante aqui salientar como estas vises centradas no espao e no
tempo do espetculo tendem a desvalorizar a participao do ator
na criao cnica e a sua interveno na vida cultural ao longo da
sua vida em atividade.
A minha posio e talvez o meu pequeno contributo para a discus-
so da pertinncia da noo de presena no mbito dos estudos da
cena o de encarar o conceito no plano, aparentemente pouco valo-
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rizado, da presena do ator no tempo. verdade que este particular
tem sido por vezes considerado ao refletir sobre a recepo, nome-
adamente por meio do questionamento da relevncia da formao
do espectador na fruio e apreciao do evento teatral, isto , no
modo como esta formao condiciona a compreenso dos signos,
cdigos e convenes implcitos em toda a experincia teatral. O
plano temporal da presena tambm surge nas discusses sobre a
formao de atores, na maior parte das vezes como sendo um plano
de rebatimento no qual, por meio de exerccios os mais diversos,
o ator conquista a capacidade de produzir essa presena em cenaque cativa o espectador. De qualquer modo, nestes casos, o tempo
considerado em funo da produo de presena no desempenho
cnico e menos ou quase nunca considerando a atividade artstica
do ator como um trabalho na esfera da vida cultural. Assim, estas
posies tendem a alienar o ator das suas liberdades e responsa-
bilidades fora dos momentos da cena, insistindo na sua funo deexecutante, em detrimento das suas potencialidades criativas en-
quanto fazedor de teatro e agente interventivo na sociedade. Este
desfavor arte do ator particularmente problemtico quando se
tem em vista a concepo de experincias formativas.
1.2.2 | O DESENHO DAS PISTASA noo de presena considerada sob o ponto de vista do ator e ao
longo de um eixo temporal ganha particular importncia quando
se pretende enfrentar a questo da formao do artista teatral. J se
sabe que no se pode ensinar ningum a ser artista, contentemo-
nos com pensar que essa uma atividade que pelo menos se pode
aprender. Gostaria de sustentar que uma forma de contribuir para
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13 | INTRODUO
que haja as condies necessrias a esta aprendizagem estabele-
cer um desenho curricular to claro quanto possvel, por um lado,
e, por outro, suficientemente flexvel para que o aluno participe
efetivamente na sua implementao.
Consideremos a definio oferecida por Daniel Tanner e Laurel
Tanner no seu livro Curriculum Development: Theory into Practice:
Conjunto de experincias de aprendizagem planeadas bem como
de resultados da aprendizagem previamente definidos, formulan-
do-se umas e outros mediante a reconstruo sistemtica da ex-
perincia e conhecimentos humanos, sob os auspcios da escola eem ordem ao desenvolvimento permanente do educando nas suas
competncias pessoais e sociais. (tanner1975: 45) Esta concepo
coloca em evidncia os trs elementos que me parecem fundamen-
tais do curriculum, objetivos, atividades e resultados esperados, ao
mesmo tempo que aponta o aspecto dinmico da sua construo.
Contudo, nesta definio o curriculum surge claramente como
uma responsabilidade da instituio, o que desresponsabiliza o
aluno da sua participao no desenho da experincia de ensino e
aprendizagem. Numa situao como esta, largamente dominante
nas instituies de ensino um pouco por todos os graus, importa
distinguir o curriculum formal, tal como estabelecido em do-
cumentos oficiais e comunicado a professores e alunos, do curri-
culum implementado pelo docente nas situaes que dinamiza,
do curriculum percepcionado pelo aluno, na sua reconstruo
das experincias realizadas. Nesta medida, quanto menor for a
participao dos alunos na definio formal do curriculum, meno-
res sero as possibilidades de uma acordo entre o que levado acabo pelo docente e aquilo que o aluno deseja aprender. Estas con-
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sideraes permitem-nos afirmar que o curriculum existe sempre,
expresso, subentendido ou mal entendido; enquanto pista que
traa um caminho da aventura da aprendizagem, grade, ele pode
pensar-se como um dispositivo, no sentido que Giorgio Agamben
entende o conceito: O termo dispositivo nomeia aquilo em que
e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo
sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem
sempre implicar um processo de subjetivao, isto, , devem pro-
duzir o seu sujeito. (agamben2009: 38) Podemos aqui encontrar
um ponto central para a discusso sobre a natureza dos processoseducativos, porquanto a maior transparncia ou opacidade destes
dispositivos curriculares, o seu maior ou menor grau de abertura
participao e realizao da singularidade de cada sujeito, tm
amplas consequncias no modo como a escola se inscreve num
lgica libertadora e de empoderamento dos que nela trabalham,
ou, pelo contrrio, se afirma como uma instituio tributria dosmais amplos mecanismos sociais de captura das foras e potenciais
vitais das geraes recm-chegadas ao mundo e tende a lan-las,
desde a sua tenra idade, nas lgicas de reproduo alienada. Alm
de defender aqui a pertinncia da noo de presena para a con-
cepo de experincias formativas em teatro desde que esta seja
considerada, pelo menos tambm, sob o ponto de vista do ator e nasua dimenso temporal, pretendo sustentar a necessidade de uma
noo de curriculum simultaneamente clara e aberta apropriao
pelo aluno.
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15 | INTRODUO
1.3 | POR DENTRO
Logo depois desta Introduo, a leitora e o leitor encontraro um
captulo intitulado No a Presena, elaborado a partir de uma
leitura de textos tericos sobre teatro, produzidos por filsofos,estudiosos da cena e fazedores de teatro. Aqui discuto a existncia
de uma tendncia esttica na cena contempornea para a produo
de estranhas presenas, articulando o pensamento de Josete Fral,
Hans-Thies Lehmann e Jacques Rancire. Focando em seguida no
trabalho de Anatoli Vassiliev e de Tim Etchells, procuro mostrar
como no mbito desta tendncia esttica se afirma na cena umafigura autoral, tal como entendida por Giorgio Agamben. Este
estudo contribui para consubstanciar a noo de presena tem-
poral a que aludi anteriormente. Ressalta da anlise empreendida
quanto a noo de presena surge associada a uma discusso tica
e poltica do teatro, em particular pelo vis da problematizao que
instaura dos modos mais difundidos de percepo teatral.
Em seguida, no captulo Folha de Presenas mostro como a noo
de presena ocupa um lugar proeminente no desenho de situa-
es de ensino e aprendizagem de artistas teatrais, em instituies
do ensino superior em Portugal, no Brasil e no Reino Unido.
Resultado de um perodo de investigao de campo empreendidoentre Maro de 2006 e Dezembro de 2008, no Departamento de
Teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema (IPL / Portugal),
no Departamento de Artes Cnicas da Escola de Comunicao e
Artes (USP / Brasil), no Performing Arts Department da Leeds
Metropolitan University (Reino Unido) e no Drama Department
da Exeter University (Reino Unido), aqui este que vos escreve
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mostra que a noo de presena aparece explicitamente nos curri-
cula formais das situaes analisadas e que ocupa um lugar ainda
mais relevante nos curricula implementados pelos docentes, em
particular nos discursos pelos quais estes referem as intenes da
sua ao pedaggica. Este trabalho de recolha de curricula formais,
de observao de sesses de ensino-aprendizagem e de realizao
de entrevistas aos docentes lvaro Correia, Carlos J. Pessoa, Bruno
Bravo, Maria Thais Lima, Antnio Januzelli, Juliana Galdino,
Alexander Kelly, Phillip Zarrilli permite corroborar a pertinncia
da valorizao da noo de presena como conceito dinamizadorda formao teatral. Atendendo em particular ao desenho das
experincias educativas, destaco neste captulo aquelas dinamiza-
das por Kelly e Zarrilli, por se aproximarem mais da viso que
prefiguro. Alm da anlise dos materiais recolhidos, este captulo
oferece uma parcela dos dados editados sob a forma de um pe-
queno dossier, que permite conhecer um pouco melhor o modocomo a formao de atores configurada formalmente, como ela
pensada por aqueles que a empreendem, como ela levada a
cabo em sala. Os restantes dados recolhidos no trabalho de campo
so apresentados em anexo, revelando-se uma importante fonte
para aqueles que pretendam conhecer melhor como se processa a
atividade no terreno.
O captulo seguinte, Produes de Presena, desenvolve a inves-
tigao sobre o lugar da noo de presena nos processos forma-
tivos, desta feita segundo uma metodologia de pesquisa-criao.
Tomando como referncia o processo de criao realizado em co-
laborao com os diretores pedagogos Antnio Januzelli e Carlos J.Pessoa, cujo objeto final se intitulou da beleza ou o sistema nervoso
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17 | INTRODUO
dos peixes, neste captulo analiso como estes pedagogos entretecem
a prtica formativa e o processo criativo, considerando em particu-
lar o papel que a noo de presena desempenha neste cruzamen-
to. Por outro lado, ao empreender uma exegese do processo de
trabalho e do objeto teatral, experimento um modo de valorizar a
formao em situao de criao por meio da reflexo crtica. Este
gesto ensaia, por um lado, o movimento que se deseja da parte dos
alunos de um curso superior artstico, ao mesmo tempo que con-
tribui para a elucidao dos meus processos pessoais de trabalho,
uma necessidade imperativa para quem pretende desempenhar aatividade docente. Para permitir a apreciao do trabalho cnico
realizado, bem como da evoluo deste, apresento em anexo dois
registos do espetculo, um feito em So Paulo e outro em Lisboa.
Segue-se o captulo PRESEN 3000, no qual proponho um desenho
curricular para uma oficina de formao teatral estruturado pela
noo de presena tal como discutida anteriormente. Partindo de
experincias pessoais anteriores, assim como da discusso empre-
endida nos captulos precedentes, delineio objetivos, atividades e
resultados esperados de uma experincia de formao para o ensino
superior de artistas teatrais. Procuro aqui iluminar alguns princ-
pios que podem ser teis no enfrentamento do desafio de preparar
artistas para a atuao cnica, a composio teatral e a emancipa-
o, sugerindo conceitos, procedimentos e valores que considero
pertinentes. Nesta proposta procuro oferecer um desenho curri-
cular aberto projeo das vontades dos alunos, ao mesmo tempo
que procuro articular a experincia em situao com a atividade
reflexiva, configurando possibilidades de articulao entre teoria eprtica, entre ensino, aprendizagem e investigao em artes. Alm
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disso, o captulo em questo apresenta um pequeno conjunto de
materiais de apoio ao educativa.
Termino esta tese com uma sntese e uma discusso final, onde
procuro salientar as oportunidades de desenvolvimento da investi-gao e as aprendizagens realizadas.
O valor do teatro , em nossa poca, por demais evidente. Dada a
forma da minha exposio, no entanto, devo, sem dvida, agrade-
cer ao leitor e leitora a indulgncia, pois a minha disposio atual
e outros motivos fortuitos no me permitem estender-me sobre omeu objeto nem aprofund-lo tanto quanto eu gostaria.
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2 | NO A PRESENA
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que talvez estejamos perante uma esttica da presena nos palcos
contemporneos, caro leitor, cara leitora. Mas uma presena mais
e mais estranha: no sabemos se ela se d no corpo do ator ou na
percepo do espectador, se, ainda, h um terceiro termo que entre
estes dois clame o seu reconhecimento, a sua presena de direito.
Uma esttica da presena carregada de implicaes polticas, num
mundo despolitizado, descrente de alternativas, marcado pela
espetacularizao massiva da cultura, uma esttica da estranha
presena na qual o espetculo um problema necessrio. Porque
talvez o espetculo mesmo a condio para essa ao politica seexercer nesse espao de encontro aberto e permanentemente rein-
ventado pelas artes da cena.
2.1 | QUARTETT
O pano sobe. E desce, vrias vezes durante o espetculo. Parece-se
com um espelho, o pano faz parte do discurso, um vu estendidouma bruma. Estamos num grande salo de festas elegantes ou
ento num depsito esquecido vazio, e logo numa paisagem ao
amanhecer sombrio, num crepsculo que, suspenso no ciclorama,
se espalha por toda a sala. S se podem ver os vrtices das cadeiras
nas quais ningum se poder sentar, na contra-luz. Trata-se de
teatro no teatro, do impossivel teatro dos sexos, do encantatrio
teatro das palavras, da construo efmera de imagens e sombras,
no bem de teatro que se trata. Ou no drama. que no h
bem ao, acontecem coisas, no h tambm indivduos, so dois
colossos que se enfrentam, no, eles no dialogam, eles contra-
pem-se monlogos, mostram os dentes, a arte cnica das feras.
um quarteto para cinco atores, eles trocam de personagem entre
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23 | NO A PRESENA
si, alis, dos trs que nunca falam h um moo bonito pendurado
de cabea para baixo, ela tambm faz poses mas sem afetao, s
tem um sapato calado, um senhor grisalho que dana, pattico
um sorriso, olha-me na plateia quando os assistentes atravessam
diligentes a cena, para recolher o pano, para subir o pano. Isabelle
Huppert (1953 - ) e Ariel Garcia Valds no so atores, so atores-
silhuetas, cabelos arquiteturais, vestido roxo, terno vermelho, so
figurinos animados; h uma chaise longue pantera negra que ela,
Madame de Merteuil, cavalga: cavalo-pantera-mulher. O peso para
frente, o brao anguloso de cada gesto recortado com rigor, vozescruzam-se, estala uma gargalhada, afinal, O que isso, nossa
alma? Um msculo ou uma mucosa? So Paulo, Setembro de
2009.
Hans Thies Lehmann diz que psdramtrico este teatro, o de Bob
Wilson (1941 - ) e Heiner Mller (1929 - 1995), figuras de proa entre
outras do movimento da cena no ocidente, j tem quatro dcadas
agora i. Suspendeu-se a ao e o conflito no palco, dissolveram-se
as personagens que dialogavam, diz Lehmann, trata-se mais de
une tranche de vie passe et vcue en communaut par des ac-
teurs et spectateurs dans lair de cet espace respir en commun o
se droulent le jeu thtral et lacte rceptif du spectateur. [Onde]
Lmission et la rception des signes et signaux soprent simulta-
nment. (lehmann2002: 19) A supresso do ilusionismo neste
teatro atira-nos para a circunstancialidade da situao concreta,
esse estar junto atores e espectadores, trabalhando em conjunto a
digesto dos estilhaos da fico. Mais e mais flutuantes as distin-
es entre teatro e outras prticas que tendem experincia do real,talvez iterao do teatro conceptual dos anos setenta, experincia
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do corpo, do tempo, do espao: Limmdiatet dune exprience
partage en commun par lartiste et le public constitue le noyau du
performance art. (lehmann2002: 216): um teatro performado
nas runas do drama.
Quartett pacto, Mller e Wilson cmplices distncia, artesos
de um objeto desejvel para o colecionador de espcies de teatro
psdramtico: v-se bem a eliminao da sntese neste objeto que
se desenvolve como um sonho ou se compe uma paisagem, ou-
vimos a par e par o texto cnico em paralelo reverberando com o
texto literrio, sentimos as sinestesias entre os elementos cons-tituintes da cena autonomizados: iluminao, espao acstico,
figurino, gesto, textura vocal (lehmann 2007: 137-143). Aliada
desestruturao dos elementos dramticos convencionais da
escrita de Mller esto as marcas da rigorosa potica cnica de
Wilson, Huppert e Valds compondo atuaes que permanecem
estranhas ao que tomamos pelo jogo do ator, a julgar pela televiso
e o cinema, a julgar pelo teatro onde os atores trabalham para nos
fazer crer que uma personagem densa de memrias e sentimentos
humanos se passeia pelas tbuas durante os quatro atos. Tempo e
espao vividos em comum, corpos postos frente a frente, O teatro
ps-dramtico teatro da presena. (lehmann 2007: 239)
Hoje, entre as massas, diz Lehmann, h um desejo de produo
de presena, menos de mimese ou de representao, hoje h um
incomparvel interesse pelo desporto que se pode entender assim:
que, no desporto, os atletas como no teatro medieval interagem
e dialogam com os espectadores, no agem como se estes ali no
estivessem (lehmann2002: 228). Contudo, Lehmann continua,
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obscuro brilhar, a presena no se pode nunca dar inteiramente;
ela conserva sempre um carter alusivo, intencional e que desa-
parece logo no momento em que se torna reflexo da experincia
(lehmann 2002: 229). A presena produo, decorre de um
gesto artstico que se desenvolve no eixo teatro, na comunicao
elaborada sobre a relao palco-plateia, contudo, produo que se
consome a si mesma, desaparessena logo a sensao se apresenta
ao teatro da conscincia: presena como mergulho na experincia,
interrupo no respiro superfcie do pensamento, permanente
vai-e-vem do espectador ao espetculo e seus produtores prim-rios. Dada esta sua natureza colaborativa, a presena nas artes ao
vivo toda ela se complica, escreve Lehmann:
Se h um paradoxo do ator, h antes de tudo um paradoxo da suapresena. Recebemos os gestos e sons que ele nos d no simplesmentecomo algo que vem dele prprio, da plenitude de sua realidade, mas
como elemento de uma situao complexa, que por sua vez no podeser resumida como totalidade. O que deparamos certamente umapresena, mas ela diferente da presena de uma imagem, de umsom, de uma arquitetura. Ela uma co-presena objetiva referida ans mesmo que no seja essa a inteno. Por isso, j no se sabe aocerto se essa presena nos dada ou se somos ns, os espectadores, queprimeiramente a produzimos. A presena do ator no contraparte
passvel de objetivao, um ob-jeto, um presente, mas com-presena,no sentido de uma implicao inevitvel.(lehmann2007: 236-237)
Desvalorizado o conflito, a personagem e o dilogo da fico,
do ator o seu corpo posto no espao a presena, o trabalho
dele: il va se prsenter comme acteur pique qui montre
(Brecht) o il va, comme performer, utiliser sa prsence comme
matriau esthtique de base (lehmann 2002: 222): o ator, diz
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o terico alemo, volue entre une mtamorphose en object de
monstration inanime et la affirmation de soi comme personne
(lehmann 2002: 268), implica-se numa ao que serve menos
transformer une ralit qui lui est extrieure et communiquer
cette ralit grce son travail esthtique quelle aspire une au-
totransformation (lehmann2002: 221) : ele, na cena atuando,
nest plus le reprsentant dun rle (actor) mais le performer qui
offre sa prsence sur la scne la contemplation (lehmann 2002:
217). Quartett mostra-nos um modo como os corpos humanos dos
atores, que parecem dificultar a realizao de um teatro abstrato,podem contribuir para a criao de um teatro no antropocntrico:
tornados silhuetas presas em redes de foras enigmticas, corpos
que ostentam significaes incompreensveis, no sendo mais
intrpretes de personagens psicolgicas claramente identificveis,
os atores transformam-se em esculturas gestuais que participam
de acontecimentos. Mas no reconhecimento que o espectador fazda natureza humana do material que se d contemplao no
placo h uma irremedivel implicao, h co-presena mutuamen-
te engendrada pelo olhar que se sabe, ainda, humano. Apario
evanescente, parecem pessoas que se eclipsam sobre as tbuas,
todas feitas de vazio, pessoas em desapario exemplar ao que no
podemos ficar indiferentes: presena sempre co-produzida.
Esta presena nas artes da cena, Lehmann compreende como
elemento de uma esttica do pavor, esttica organizada por duas
qualidades: intensidade e enigma: aparecimento sbito, choque,
perturbao nunca totalmente apreensvel, fugidia apario (leh-
mann 2007: 238). O terico alemo olha o quadro Medusa(1597?),de Michelangello da Caravaggio (1571 - 1610), discute que no o
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pavor do seu destino que abre o esgar de Medusa, que no a viso
da morte empedrecida no prprio rosto desfigurado, Lehmann
sustenta que na origem desta esttica do pavor est a morte do
olhar, seu vazio, a sua cessao (lehmann 2007: 238)ii. A pre-
sena no teatro contemporneo, portanto, Lehmann diz que tem
que ser pensada como processo e que temos que nos contentar
com o entendimento de que ela acontece, sem que possamos ter
dela um conhecimento (lehmann 2007: 239): pois a sensao de
presena est associada falncia do pensamento. Terror, pavor e
sobressalto que Lehmann encontra no fundamento de uma polti-ca de responsabilidade do espectador, convocado a implicar a sua
ateno e as suas faculdades mentais na construo de uma sntese
dos eventos em curso (lehmann2007: 239): o espectador perante
o repto da presena a si mesmo. Concluso: presena perturbado-
ra, evanescente, oscilante, experimentada sempre tambm como
ausncia, como algo que j passou, eis o fulcro da possibilidade deuma arte politica para Lehmann, arte esteticizada e pedra angular
do retorno da afirmao de Luckacs, para quem o que verdadei-
ramente social na arte a forma (lehmann2003: 9): espectador
colocado no movimento entre a presena experincia no teatro
e a presena a si mesmo face cena. Talvez assim compreender
um pouco por que a especificidade do teatro no exatamente apresena do espectador vivo, mas a presena do moribundo em
potencial. (heiner mllerapudlehmann 2007: 240).
2.2 | LA CHAMBRE DISABELLA
Amplo espao branco, o cheiro do linleo branco, este palco
uma cmera, talvez uma sala ou um quarto. Trs mesas, brancas
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tambm elas, so poucas para a coleo, ficamos a saber que
composta por mais de um milhar de peas, um arranjo etnogrfico
amador, um esplio desses outros que se espalham pelo mundo.
Jan Lauwers (1957 - ), uma mulher de uns cinquenta anos, invisu-
al, v que a histria da sua vida uma mentira, conta-nos a histria
dessa mentira, Lauwers todo o elenco que nos mente e desvela
a mentira de uma vida que no bem a sua. Eles cantam para ns,
espalham pontuadamente arabescos que ornam a sua apresenta-
o coloquial, olhos na plateia, uma narrativa na primeira pessoa
plural, lemos no programa, Lauwers fez o espetculo a partir dosobjetos que seu pai ento falecido lhe deixara como herana. Isabella
mora onde esto estes objetos, no vazio entre eles, ela procura a
sua histria verdadeira entre as prateleiras, nas estantes, sobre os
suportes onde certo olhar, romantizante, pousou estes pedaos da
frica negra e do Egito Antigo. Na reviso da sua vida, Isabella
atravessa a histria do sculo XX, da Primeira Guerra Mundial aZiggy Stardust (1972), de David Bowie, do colonialismo bomba
de Hiroshima, Lauwers est em cena e tambm fala um pouco,
algumas explicaes, comedido espectador frente aos espectador,
observa. H uma espcie de obscenidade, so pessoas ali nossa
frente a falar de si enquanto nos contam esta histria imaginada
com fragmentos de muitas histrias verdicas, afinal esta cena um quarto para dentro do qual espreitamos. So Paulo, Outubro
de 2006.
Josette Fral, estudiosa franco-canadiana das artes da cena, chama
performativo ao espetculo La Chambre de Isabella, dana falada,
teatro de movimento, parte concerto rock, parte exposio de ob-jetos, espetculo dentro de uma tendncia da cena atual. O nome
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sugere-o, Fral, como Lehmann, reconhece nas formas teatrais
dos nossos dias a influncia da arte da performance, dos estudos
culturais da performance tambm (feral2008a : 29). La Chambre
de Isabella mostra-nos alguns dos elementos que caracterizam este
trnsito nos palcos:
acteur devenu performer, vnementialit dune action scnique audtriment de la reprsentation ou dun jeu dillusion, spectacle centrsur limage et laction et non plus sur le texte, appel une rceptivitdu spectateur de nature essentiellement spculaire ou de modes deperception propes aux technologies (feral2008a : 28)iii
Em La Chambre dIsabella, com efeito, ningum fala na primei-
ra pessoa, est explodida a narrativa, portados os pedaos pelos
membros do elenco, contam junto(s) a(s) histria(s) mas prin-
cipalmente por meio do que acontece na cena. Despojamento e
alvura uniforme do espao cnico contrapem-se a esta lgica de
composio, visual, que explora as particularidades dos objetos ar-
tesanais e a sua aura de exotismo, ao mesmo tempo que, elegante,
trabalha as movimentaes, as relaes de grupo, paleta cromtica
de movimentos nuanceada e heterognea. Cmplice a relao de
Jan Lauwers e da Needcompany com o pblico, cordial, desabrida,
face a face, numa viagem de mltiplas idas e vindas a esta diviso
ntima inventada em conjunto. Diz Fral, Une esthtique de la
prsence se met en place. (feral 2008a : 33)
Dcadas atrs, no texto Performance et Thtralit, Josette Fral
antevia esta aproximao entre teatro e arte da performance, lia
nas oposies tantas vezes afirmadas de parte a parte o horizonte
partilhado que os palcos agora confirmam (feral 1985: 129)iv. Para
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uma investigao da noo de presena, este texto iluminador
do pensamento de Fral, aqui surge uma descrio da relao da
performance art com a representao: Ds lors ne racontant rien
et nimitant personne, la performance chappe toute illusion,
tout reprsentation ; sans pass, ni futur, elle a lieu, transformant
la scne en vnement () (feral 1985 : 135); tambm, da relao
desta com o tempo: Il ny a ds lors ni pass, ni futur, mais un
prsent continu qui est celui de limmediatet des choses, celle
dune action en train de se faire. (feral 1985: 129). So estes os
termos, afinal, em que Fral descreve, anos depois, o teatro per-formativo, so eles, repare-se, os eixos de uma ideia de presena.
Na conferncia Presena e Efeitos de Presena, realizada no
tusp (So Paulo) a vinte e seis de agosto de dois mil e nove, a
investigadora enfrenta mais diretamente ao problema. Perante a
dificuldade de circunscrever a noo de presena, Fral empreende
um movimento estratgico, apropria-se da designao efeito depresena: utilizada no meio dos jogos digitais, efeito de presen-
a refere a sensao despoletada no espectador de que os objetos
virtuais esto no mesmo espao e tempo que ele: nesta posio,
presena mais uma experincia do observador em situao que
algo substancial prprio do objeto. Exemplos diversos servem,
depois, para Fral mostrar que este efeito discreto e intermitente,que se d nas mudanas da relao do espectador com aquilo que
observa: espcie de atrito entre o eu e o mundo, algo sentido
com relevo, uma rugosidade, algo que acontece. Presena, alm
de intermitncia, pelo ngulo do efeito, revela uma componente
eminentemente carnal, sensao sempre do corpo, resistncia
mesmo, na vizinhana da disjuno dos sentidos, no campo de
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foras entre percepo e representao, ora ausncia, ora experin-
cia que o espectador tm de si mesmo.
Mquina dentro da mquina, dispositivo orgnico o ator parece ser
um dos locais de produo de presena, mesmo que no o nico,talvez at no o principal no teatro performativo. Mas La Chambre
dIsabellaapresenta atores que cantam, danam, por vezes encar-
nando personagens mas apenas para abandonar em seguida a
representao, assim colocando em primeiro plano o seu corpo e a
sua voz de pessoas e artesos, a singularidade do seu jogo no hic et
nunc daquele encontro particular com o pblico: Os arabescos doator, a elasticidade de seu corpo, a sinuosidade das formas que so-
licitam o olhar do espectador em primeiro plano, esto no domnio
do desempenho (feral2008b : 202). So enunciados performa-
tivos, fazem coisas mais que descrevem estados do mundo, os do
ator performativo, ele trabalha no plano do acontecimento, realiza
aes que inscreve no real, expe-se como mecanismo da represen-
tao. Assim, ele amplifica o espao de jogo, o campo ldico para
alm do palco enche a sala, todo instabilidade e fluidez nos signos
criados, teatro das convenes teatrais, investe a si-mesmo na
cena, ora banal, ora dispendendo-se, evidencia a vitalidade da sua
presena singular e concreta na situao (feral 2008a : 30-31):
Dans le thtre performatif, lacteur est appel faire (doing), tre prsent, prendre des risques et montrer le faire (showingthe doing), autrement dit affirmer la performativit du processus.Lattention se porte sur lexecution du geste, sur la cration de la forme,la dissolution des signes et leur reconstruction permanente. (FRAL,2008a : 33)
Ator performativo, dobro do ator ou a sua dobra, ator ao quadrado,
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ator no cubo iluminado de branco, identidade indefinida, presena
incompleta ou discordante, a fazer-se a cada momento, menos a
representao de personagens realistas com sua densidade psico-
lgica cheia de motivaes e objetivos definidos, ele participa de
uma ao, porta-voz das palavras mais que um intrprete, afir-
mar-se fazendo aes determinadas numa reflexo que no sem
consequncias para si-mesmo (feral2009). So as singularidades
do ator que conquistam o primeiro plano, idiossincrasias, tanto na
cena quanto no curso dos processos de criao, afirmando mais e
mais uma potica do vaporoso (feral1994: 101). La ChambredIsabella revela atores que ostentam a sua presena pessoal,
exemplificando uma das caractersticas principais do teatro de Jan
Lauwers: le jeu transparent, pensant , des comdiens, ainsi
que le paradoxe entre jeu et performance (needcompany2010:
17).
Corpos que so pessoas, os atores do teatro performativo jogam
com o seu estar em cena, so imagem, so vazio percorrido por
tenses, movem-se, atravessam o tempo, do-se a ver num jogo de
ocultaes, interpelam o espectador diretamente. H uma polti-
ca da recepo neste teatro, representao assumida e desvelada,
fico produzida diante de ns com a realidade dos meios exibi-
dos, a cena aberta enquanto lugar de acontecimentos reais. Numa
conferncia intitulada O real no teatro, realizada no Memorial
da Amrica Latina (So Paulo), a dez de novembro de dois mil
e dez, Josette Fral serve-se da noo de acontecimento cnico
para desenvolver algumas consequncias polticas de uma esttica
da presena. Fral trata aqui de uma situao particular, do casoradical de rugosidade para o espectador, da produo de presena
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por meio do uso de violncia extrema ou do seu registo no contexto
do discurso artstico. Se o acontecimento cnico o advento no
palco de algo que tira o espectador da situao especular para o
mergulhar na performatividade da ao, interrompendo a recep-
o convencional da representao, despoletando uma sensao de
adeso e implicao na ao da parte do espectador, quanto sus-
pende este recurso a distncia crtica? A estudiosa pergunta-se se a
insero de elementos de violncia extrema, por vezes de natureza
documental, no mbito de trabalhos artsticos, no pode constituir
uma espcie de ultrapassagem dos problemas morais e ticos queo testemunho coloca: podero os gestos artsticos que recorrem a
estes mecanismos de produo de presena promover uma atitude
estetizante da violncia, anloga quela promovida pela espetacu-
larizao que os meios de comunicao de massa levam a cabo em
situaes como o onze de setembro? Uma esttica da presena a
todo o custo.
2.3 | ESTRANHAS PRESENAS
Teatro da presena, esta a cena de uma discusso poltica da
arte, ainda o problema do poltico no teatro. Um passo a trs,
acompanhemos o filsofo contemporneo Jacques Rancire na
sua reflexo sobre arte e seu funcionamento na esfera da cultura
ocidental, vejamos. Entra Rancire e diz que tudo acontece num
regime, um tipo de escoamento que estabelece o que vem ao de
cima, de que modo flutua, qual a forma e o material que melhor se
destaca do caudal da vida, ele fala em regimes das artes: um tipo
especfico de ligao entre os modos de produo das obras ou das
prticas, formas de visibilidade dessas prticas e modos de concei-
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tuao destas ou daquelas. (ranciere2005: 27-28). Constelao
de fatores, signo do que o momento considera arte, fundamento
de uma leitura da tradio ocidental, que aquilo que arte depen-
de, como tudo, do tempo: para Rancire, trs grandes regimes de
identificao do que tem sido chamado arte: o tico sob governo
das ideias de Plato, o potico sob regulao do pensamento de
Aristteles, e o esttico, no qual nos encontramos no presente,
talvez desde os idos do sculo XVIII. Um sumrio: no regime tico
apenas existem artes, pelo que a arte no se individualiza enquanto
tal; apenas se distinguem, aqui, as artes que so verdadeiras, poisque imitam modelos ideais, as artes que so boas, porquanto ofe-
recem uma certa educao: no regime potico, tambm chamado
representativo, existe um princpio, a mimesis, que individualiza
as artes dos outros fazeres; o princpio mimtico que define a
tcnica adequada e permite a existncia de normas de incluso das
artes em disciplinas, de diviso em gneros, etc. (ranciere 2005:28-31):
No regime esttico das artes, as coisas da arte so identificadas porpertencerem a um regime especfico do sensvel. Esse sensvel, subtradoa suas conexes ordinrias, habitado por uma potncia heterognea,a potncia de um pensamento que se tornou ele prprio estranho a
si mesmo: produto idntico ao no-produto, saber transformado emno-saber, logos idntico a um pathos, inteno do inintencional, etc.Essa ideia de um sensvel tornado estranho a si mesmo, sede de umpensamento que se tornou ele prprio estranho a si mesmo, o ncleoinvarivel das identificaes da arte que configuram originalmente opensamento esttico: a descoberta por Vico do verdadeiro Homerocomo poeta apesar de si mesmo, o gnio kantiano que ignora a lei
que produz, o estado esttico de Schiller, feito da dupla suspensoda atividade do entendimento e da passividade do sensvel, a definio
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dada por Schelling da arte como identidade de um processo conscientee de um processo inconsciente etc. Ela percorre igualmente as auto-definies das artes prprias idade moderna: idia proustiana do livrointeiramente calculado e absolutamente subtrado vontade; ideia
mallarmeana do poema do espectador-poeta, escrito sem aparelho deescriba pelos passos da danarina iletrada; prtica surrealista da obraexpressando o inconsciente do artista com ilustraes fora de moda doscatlogos ou folhetins do sculo precedente; ideia bressoniana do cinemacomo pensamento do cineasta extrado dos corpos dos modelos que,repetindo sem pensar as palavras e gestos que dita para eles, manifestam,sem o seu conhecimento ou o deles, a verdade que lhes prpria etc.(ranciere2005: 33)
Trs regimes das artes, agora o esttico, estranhamento da presena.
Diz Rancire, a transformao do regime potico no esttico con-
duziu a uma afirmao da singularidade das artes que, ao mesmo
tempo, destri os critrios dessa singularidade; esta transformao
sustenta a autonomia da arte e, simultaneamente, a identidade de
suas formas com as formas pelas quais a vida se forma (ranciere
2005: 34); transformao para um regime atravessado por uma
contradio constitutiva que faz da arte uma forma autnoma da
vida (ranciere2005: 37). Trnsito, a passagem para o regime es-
ttico implicou uma perda da posio de destaque do teatro palavra
ao vivas sobre a imagem pintada, a palavra escrita, os artesanatos;
conduziu a que o paradigma da superfcie dos signos se opusesse
ou confundisse com o paradigma teatral da presena (ranciere
2005: 24): regime de problematizao da duplicidade mimtica e
de explorao da imanncia do pensamento na matria sensvel
(ranciere2005: 66). consistente o discurso de Rancire com
o que diz Lehmann sobre o teatro psdramtico e sua exposiodos meios, com o que diz Fral sobre o teatro performativo e seu
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jogo entre teatralidade e performatividade: cena questionando-se a
si mesma, torcida, menos a representao com signos vivos que a
apresentao da vida dos signos: estranha presena em cena. Assim,
temos a autobiografia do coreografo ficcionalizada num alter-ego
feminino, exposio dos corpos humanos lado a lado com objetos
etnogrficos, intimidades apresentadas publicamente, microfones
separando as vozes dos corpos, assistentes de cena atravessando o
palco, frases que no compem mais dilogos mas monlogos jus-
tapostos, movimentos suspensos em imagens; tambm a presena
difratada na telas digitais, em HouseLights, do Wooster Group, asesttuas vivas de Money, pelo Attis Theatre, a matria inumana
do corpo do bailarino em Self Unfineshed, de Xavier LeRoy, os
guerreiros da poesia em Ilada - Canto XXIII, dirigido por Anatoli
Vassiliev, o documentrio pessoal de Tim Etchells, em Instructions
for Forgetting, entre inmeros outros exemplos possveis, a vocao
teatral da presena est sob investigao, a cena expondo-se lugarde composio, toda uma estranha presena nos palcos.
Estamos, no h como evit-lo, perante uma discusso com impli-
caes polticas, a presena ainda um fulcro desta querela. Jacques
Rancire define a esttica, antes de mais, como um sistema de
formas que determina o que se d a sentir (ranciere2005: 16);
e, a partir desta noo de base, ele pensa as prticas artsticas en-
quanto maneiras de fazer cuja particularidade passa por intervi-
rem na distribuio geral das maneiras de fazer, por intervirem
nas relaes destas maneiras de fazer com maneiras de ser e com
formas de visibilidade (ranciere2005: 17). A relao entre esttica
e poltica passa, ento, pelo fato desta ltima implicar um modo departilha do sensvel, isto , uma economia de espaos, de tempos
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e de tipos de atividade que determina como um comum se presta
participao, e como uns e outros tomam parte nessa partilha
(ranciere2005: 15). Em O espectador emancipado (2010), Rancire
desenvolve uma reflexo sobre os modos como o teatro se articula
hoje com as mais diversas prticas artsticas e de como pode a sua
interveno poltica ser pensada. No centro deste debate, o parado-
xo do espectador, assente na noo, enraizada pelo menos desde o
romantismo, de que o teatro est singularmente associado ideia
de comunidade viva como presena a si (ranciere 2010: 13); este
paradoxo do espectador nos discursos correntes sobre teatro deque o teatro no existe sem ele e, ao mesmo tempo, ser um espec-
tador um mal, pois olhar o contrrio de conhecer, o contrrio
de atuar (ranciere 2010: 10); a abolio do espetculo, assim,
tantas vezes desejada pelos movimentos reformadores do teatro
afigura-se como o meio para restaurar essa referida assembleia ou
cerimnia comuns (ranciere 2010: 13-14). Rancire avana ques-tionando a pressuposta essncia comunitria do teatro: (...) en un
teatro, ante una performance, como en un museo, una escuela o
una calle, jams hay otra cosa que individuos que trazan su proprio
camino en la selva de las cosas, de los actos y de los signos que se
les enfrentan y que los rodean (ranciere 2010: 23). Para ele, so
antes indivduos e ainda bem, so individuos os espectadores eno h nada de inativo nesse olhar, posto que ele:
Observa, selecciona, compara, interpreta. Liga aquello que ve a otrascosas que ha visto en otros escenarios, en otros lugares. Compone suproprio poema con los elementos del poema que tiene delante. Participaen la performance rehacindola a su manera, sustrayndose por ejemplo
a la energa vital que se supone que sta ha de transmitir, para hacer deella una pura imagen y asociar esa pura imagen a una historia que ha
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ledo o soado, vivido o inventado. (ranciere2010: 20)
So oposies que talvez seja importante questionar, elas no so
quaisquer dados lgicos evidentes, olhar oposto a saber, aparncia
contrrio de realidade, atividade contraposta passividade, talvezestas oposies impliquem os prprios termos que visam abolir.
O problema da presena dos espectadores na sala com os atores,
co-presena, ento, no esgota a situao teatral, o encontro um
terceiro termo, um terceiro espao e tempo, no encontro tambm
a atuao do espectador que trabalha o espetculo. Menos que um
obstculo, o espetculo a mesa qual se sentam, frente a frente,
afastados e, simultaneamente, juntos por ela mesma, os dois co-
mensais do teatro: esta mesa, onde cada um coloca os seus de-
sejos, ela mesma outra coisa que os comensais, objeto terceiro de
equilibrio instvel, que descarta qualquer transmisso do idntico
e se abre s fruies mltiplas (ranciere2010: 21). No, ento, a
pura presena de pessoas ou energias humanas religando o crculo
comunitrio ou a assembleia, mais uma estranha presena, cujo
sentido e significado carece de decifrao e de transposio para o
dialeto singular de cada elemento na plateia; espetculo, uma estra-
nha presena: um argumento a favor do movimento entre adeso
e distncia, referido por Fral, uma crtica possvel esttica dopavor, mencionada por Lehmann: o que fica depois da surpresa e
do espanto?
Tempo ainda para sublinhar o problema poltico das artes, ele
est mesmo em querer determinar os efeitos da arte para alm
da sua indeterminao, para alm das imprevisiveis associaes e
dissociaes levadas a cabo pelos individuos. Num regime artstico
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mais e mais marcado por intercmbios de competncias, lugares
e poderes: teatro sem palavras e dana falada, instalaes e aes
entre as obras visuais, poesia cantada, entre outras modalidades:
esta aproximao entre as artes que se observa na cena contempo-
rnea, por vezes ecoa a ideia de obra de arte total, outras vezes
louvada sob o signo do hibridismo inevitvel dos nossos tempos,
duas interpretaes que parece apenas enfatizam os efeitos das
performances, sem questionar os seus princpios. Talvez seja ne-
cessrio, pelo menos acredita Rancire, entender antes o teatro dos
nossos tempos como uma cena da igualdade, o teatro no mais queas outras artes se mostrando capaz de intervir na vida em comum:
Frente al hiper-teatro que quiere transformar a representatin en
presencia y la pasividad en actividad, ella propone, a la inversa, re-
vocar el privilegio de vitalidad y de potencia comunitaria concedido
a la escena teatral para ponerla en pie de igualdad con la narracin
de una historia, la lectura de un libro o la mirada posada en unaimagen. (ranciere 2010: 27) Talvez no seja o teatro, afinal, mais
que o lugar de palavras, palavras, palavras, talvez o lugar de corpos
em movimento, tantas possibilidades h ainda, no tanto o lugar
de puras presenas, energticas ou lgicas, antes talvez o lugar de
individuos atores e de individuos espectadores investidos num
jogo de enunciao e decifrao desse objeto singular e efmeroque se constri em conjunto no momento do encontro: espetculo
jogado e de efeitos imprevisiveis, da sua estranha presena depen-
de, talvez, a possibilidade de um horizonte poltico para o teatro,
pois una comunidad emancipada es una comunidad de narrado-
res y de traductores (ranciere2010: 28). Menos, ento, que uma
intensificao do que , via a performatividade do acontecimento
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cnico, visando a surpresa e adeso afetiva dos espetadores, talvez
o horizonte poltico do teatro se possa achar na abertura de uma
arena na qual os prprios espectadores possam continuar a repre-
sentao.
2.4 | INSTRUCTIONS FOR FORGETTING
I ask my friends to send stories and videotapes. For the stories I
ask for things that are true. The topics can be anything. I ask for
short reports on things that have happened in the world. For the
tapes I say: Dont make me anything special - send what you have.Incio e refro da apresentao, ficamos a saber, o protocolo de
trabalho, a estratgia do processo, uma indicao da origem dos
materiais. Vdeos caseiros e pequenas histrias, incertamente
localizadas entre a fico e a realidade, com diferentes pesos na
boca, desenrolam-se, ora tecendo, ora sugerindo reflexes sobre as
imagens, sobre memria, sobre como diversa a experincia domundo. Na cena: uma mesa, atrs est sentado o ator, ele tambm
o encenador, tambm o dramaturgista, na verdade ele mais ele
mesmo que um ator, l, fala-nos, quase nada faz toda a hora e
meia, comove-se um pouco; outra mesa, atrs, tambm sentado, o
operador de vdeo, assistente em cena, tcnico ator sem tcnica de
atuao aparente; trs monitores de televiso, julgo que so trs,
alguns cabos espalhados pelo cho e pequenos montes de cassetes
de video. Atitude quotidiana geral, no fora a cuidada economia
do gesto, a calculada litania das narraes que se enleiam, no nos
proposta qualquer personagem ou outro espao que este teatro,
falam-nos nos olhos. O grande plano sequncia deste espetculo
termina com uma edio em paralelo de cangurus a lutar, pessoas
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na rua a fazer audies para um musical, o reflexo do sol nas guas
de um rio. Revejo tudo isto pelo enquadramento fechado sobre o
protagonista e a mesa onde est uma garrafa de vodka bom, estou
em casa frente ao cran de televiso, o comando do leitor de dvds
na mo, stop. So Paulo, Novembro de 2010.
O teatro de Tim Etchells, ele quem o diz, is often concerned with
liveness and presence, with the unfolding of events in time and
place, em cada trabalho, continua, something happens - there is
an encounter, a process, the unfolding of an event and its implica-
tions and an exploration of the dynamic relationship between thework and the viewer (etchellss/d). Presena produzida na cena,
ento, no movimento entre, no jogo de mscaras que ocultam e re-
velam, no bascular de uma tenso, quando algo que se transforma:
Showtime (1996), quando a atriz Cathy Naden, at ento dentro
de uma fantasia de cachorro, latindo, errtica pelo palco dentro
do palco, quando ela, suando e um pouco sem respirao, pela
primeira vez depois de cinquenta minutos de espetculo, mostra o
seu rosto e fala num registo intimista sobre como ela se suicidaria
se alguma vez o fizesse: Cathy is very here, and very now, very
here and now, in the ruins of the Dog game shes very present.
(etchells 2008: 57): presena quando a mscara que j havamos
esquecido, se revela, puro meio que se mostra, mscara que faz ver
e que oculta, no sabemos, o Co, a Atriz que nos fala. perti-
nente perguntar qual a relao do ator com aquilo que faz, como
perguntam os atores entre si, em A Decade of Forced Entertainment
(1994): Richard Lowdon interroga: Why work in more or less the
only field which still insists on presence? For artists interested inthe the contemporary, this area of live performance seems like
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a bit of a backwater. Do you have anything against mass repro-
duction? Do you work from some quaint notion about immediacy
and real presence? Terry OConner responde: I dont know.
(etchells 2008: 44) Ambiguidade porque h tanto uma explora-
o das emoes reais dos atores quanto uma implicao destes
no ato de fingimento (etchells 2008: 53), capacidade de jogo s
portas da morte que revela que os homens no se restringem a
fatos ou biologia (etchells 2008: 50): diz a atriz Claire Marshall,
going through a series of emotional states (forced entertain-
ment1999): indeterminao emocional que os atores constroem,evoluo entre expresso individual, comunicao entre si e os
espetadores, representao de figuras: algures entre o jogo de dis-
tanciamento brechtiano e o exerccio de transformao pessoal e
comunitrio realizado pelo xam (etchells1999: 119). A presena
em cena joga-se entre os destroos da representao, pois no o
teatro (...) just an endless rearticulation of this proxemics theplay between hereness and thereness the play between presence
and absence? (etchells 2008: 79) Mais ainda quando se trata de
entretenimento forado, a presena do pblico na sala no pode
ser inclume e sem custos.
A discusso vai para alm dos minutos da apresentao, mesmo
quando so algumas horas, a presena do ator no um compare-
cer para cumprir a funo, ele est l antes, demora mais tempo a
sair, fica sempre um pouco do ator no teatro. Processo e colabora-
o so centrais na prtica dos Forced Entertainment, no trabalho
de Tim Etchells, Instructions for Forgettingum trabalho realizado
entre vrios, Franko B, Mathew Goulish, parceiros presentes distncia, entre outros: na atuao, composta pelos atores colabo-
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rando entre si e com o diretor, na tica da vida da companhia, seu
posicionamento no contexto cultural. Processos cclicos, iterativos:
gerao e desenvolvimento de material, anlise e interpelao das
cenas, seleo e edio: It spirals. It overlays. (etchells2008:
118). Projetos de escrita cnica que implicam os atores desde o
momento da eleio dos materiais de partida at composio
da montagem, passando pela apreciao das hipteses, das cenas
encontradas. Mas os prprios processos de criao esto sob inves-
tigao, no so dados conhecidos, h uma necessidade se colocar
em problemas (etchells 1999: 52), pois o sentido descobrir osentido no processo mesmo de construo (etchells 1999: 53):
emergncia. Trata-se de uma esttica que materializa uma tica,
um compromisso com a cultura contempornea, urbana: rever as
fitas do sculo XX: fazer um espetculo para algum que cresceu
numa casa com a televiso sempre ligada, um espetculo que tenha
as coisas da cidade onde mora (forced entertainment 1999).Colagem de olhares, de criatividades diversas, esgar inquisitivo
sobre o quotidiano dos elementos da companhia (etchells1999:
61), teatro pensado como criao de enquadramentos artsticos
para a vida (etchells1999: 55). A presena do ator que atua a
do arteso que escreve a cena a do companheiro de viagem num
mundo que como quem diz um tempo de atividade.
2.5 | A ILADA - CANTO XXIII
sada do teatro S. Joo, depois da apresentao um amigo per-
guntava-se: Ser que este trabalho me deixa sem ter como falar
dele? Tratava-se da narrativa dos funerais de Ptroclo e outras
vtimas de Troia que Aquiles celebra, dos jogos realizados imor-
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talizados por Homero; mas este episdio no na cena cantado
ou recitado, ele posto em ao: um coro entra e sai de cena,
danando canta, rio imenso abrindo e fechando os quadros como
pginas se desfolham, num espao amplo branco vertical, despido
no fora uma ponte em madeira que desce esquerda. Onde est
o teatro? Nessa ponte que o nosso ancoradouro, sentada durante
as quatro horas imvel exceo de um esgar que abre certo ins-
tante, est uma velha atriz; a seu lado vir um cantor da Sibria
lembrar-nos a astcia do corredor de cavalos, na curva apertada.
No centro da arena de jogos, os atores, se forem atores, executamcomplexas sequncias marciais ao mesmo tempo que enunciam o
texto de uma forma violenta e percurtida mas algo humano ou vital
sustenta esta movimentao annima de quimonos, de espadas e
de chicotes, a cujos ps tombam centenas de bonecos de criana.
Porto, Novembro de 2004.
Anatoli Vassiliev resume o percurso: A chaque tape de ma bio-
graphie artistique, en changent de style, jai toujours tudi lart de
la prsence authentique. Et mon art sest plus loign de lillusion
de la vie. Certes, cest l que jai commence, mais jai dit adieu aux
illusions scniques. En recherchant un acteur authentique, natu-
rel, vivant, je restais fidle lcole russe (vassiliev1999: 163).
Presena do ator construda, jogada no fluir da composio, inves-
timento na sustentao do fluxo continuo da vida, o fluxo da
vida (poliakov2006: 93): ator autntico, natural cnico, termos
no centro da potica de Vassiliev, ele quem o diz, herdados do
vocabulrio do teatro psicolgico sovitico, reapropriados para a
prtica e a teoria das estruturas ldicas: aqui o ator cria no planode fundo, escreve o seu monlogo interior (knebel 1991: 62-
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65); nas palavras da atriz Valerie Dreville, a atriz coloca-se perante
o imperativo tico de, a cada momento, rinventer absolument,
comme si ctait moi qui, dans linstant, en respectant exactement
le programme prtabli, imaginais les postures, les gestes, les
intonations... (dreville; gotti2006: 52): no Canto XXIII, foi o
que eu experimentei, h atores artesos pessoas dentro dos fatos
brancos, a lanar os versos hericos est um guerreiro da poesia
animado, as formas esto habitadas. que h sempre pelo menos
dois elementos presentes na composio, um dos quais permane-
ce escondido, como que ausente, dissimulado: e h contraponto,paralelismo, divergncia, h polifonia na composio do ator, h
improviso fsico, uma cano, um nmero de cena, um truque,
uma armadilha (poliakov2006: 133-134). No teatro de Vassiliev,
ele quem o diz, a presena do ator est no centro: Lauthenticit de
lexistence de lhomme sur scne, cest la syllabe de lart thtral,
son atome, sa particule indivisible. Ensuite, on peut partir de cessyllabes constituues tout les mots que lon veut. Mais tout com-
mence rellement par l. (vassiliev apudpoliakov 2006: 131).
Presena produzida, a cena apenas um momento do processo,
h anlise e sntese, o estdio um laboratrio, experimenta-se,
ensaia-se para abrir a porta para que o anjo passe: os estudos
testam articulaes entre a sucesso determinada pelo texto e
aquela determinada pela natureza criadora do ator, ouro do teatro,
presena cnica (poliakov 2006: 101): o ator joga com as suas
palavras, as suas imagens, os seus impulsos, lana-se na ao,
improvisa para iluminar o texto, pois Il est trs rare que lacteur
soit naturel lorsquil dit un texte litteraire: presena dos atores edo diretor na presena do texto: Un groupe dacteurs se runit
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pour tudier une pice. Ils choisissent une scne, ils la lisent,
lanalysent. (...) Pendant lanalyse, lquipe dfinit les points par
lesquels lacteur doit passer au cours de ltude. (...) Les acteurs
vont sur le plateau et, dans une improvisation totalment libre, en
suivant ltude, ralisent ce quils viennent dtablir ensemble.
(vassiliev 2000: 345-346). Trabalho conjunto, o estudo permite
o acordo dos colaboradores sobre o desenvolvimento do percurso
sugerido pelo texto e descoberto na sua leitura, anlise pela ao,
experimentao, discusso, no palco e pelo palco; e o processo no
cessa necessariamente depois da estreia (dreville; gotti2006:52). Alm disso, o estudo cnico um processo de descoberta, de
trabalho pessoal do ator, diz Vassiliev num ensaio (vassilievapud
poliakov2006: 99): trabalha a vida mesmo: entende a atriz Valrie
Drville, o trabalho no teatro com Vassiliev est ligado ideia de
transformao: Lart de lacteur est li la transformation. (...) Or
cette transformation implique que lon se transforme soi-mme etque, par-del, on participe la grande transformation humaine
(dreville; gotti2006: 51) : o que brilha neste teatro, diz Drville,
so os atores que nont pas seulement acquis la matrise de tout
ce qui fait leur instrument, mais qui font oeuvre deux-mmes
(dreville 2006: 9). Antes e depois do espetculo, o processo;
alm e durante o processo, a presena do ator no mundo.
2.6 | SINGULARIDADE DE UMA AUSNCIA
Atores poetas, compositores da cena, artesos do gesto, da pala-
vra, jogadores e investigadores de teatro, um estranho ator que
ocupa os palcos contemporneos, mscara animada, corpo morto,
pode ser um artista. Instructions e Canto XXIII so objetos muito
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diversos, Tim Etchells e Anatoli Vassiliev artistas muito distintos,
apesar de partilharem o problema da presena do ator fazedor de
teatro agente de cultura, de contribuirem para pensar esta estranha
presena. Para Vassiliev, o nosso tempo Cest tellement abject
quil vaut mieux nen rien savoir... (VASSILIEV, 1999: 99), ele
prefere estar junto da tradio artstica e filosfica, na companhia
de Poushkin e Molire, de Pirandello e Heiner Mller, Homero,
Plato, trabalhar a literatura como material de cena, faz-la estalar
no aqui e agora do palco, t-la vibrante no corpo do ator, animada.
Na rua Sretenka, em Moscovo, o teatro escola e estdio, h muitaluz branca, verticais de catedral, Vassiliev diz que seus colaborado-
res so companheiros de batalha, parceiros nos valores espirituais,
contudo, h hierarquias e papis bem definidos, a soberania do
diretor no teatro de atores: h o importante perodo de estudos,
conjunto, mas o sentido do trabalho estabelecido pelo encena-
dor, ele quem define a ideia que o espetculo faz concreta: oator tende para o anonimato na corporizao dos conceitos, uma
relao teatral com a palavra, mesmo dentro do jogo que o liberta,
no ironismo: o ator organicidade v. Na rua Union, em Sheffield,
Etchells prefere o quotidiano, a cidade, a televiso, articula-se
com prticas das artes visuais e performativas contemporneas:
a catedral, aqui, est em frente ao shopping, h mais bares navizinhana, h hoteis de madrugada onde esto os elementos da
companhia, a dramaturgia e a escrita de cena so digestes par-
ticipadas de comida rpida e baixa cultura produzindo mltiplas
vises do mundo. Neste teatro, o processo de criao questiona o
fazer teatral, h sempre mltiplos pontos de partida e quase nunca
um texto dramtico existe de incio, este vai-se fazendo presente
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pela prpria produo, ele um texto da cena antes de ser literatu-
ra. A presena do ator no palco, tambm, chega a convencer-nos
do seu amadorismo, parecem atores do grupo da escola, por vezes,
simples, na incerteza frgil da autenticidade fingida, da revelao
mascarada, banal vi.
Tentemos o monstro: A Ilada Canto XIII (1996-2004), criao
coletiva dirigida por Anatoli Vassiliev (Russia, 1942 - ), Instructions
for Forgetting (2001), concebido e interpretado por Tim Etchells
(Reino Unido, 1962 - ), dois espetculos que no podem ser pensa-
dos procurando o conflito, o dilogo, a personagem, a entrada ou ocentro da cena. H narrativas ou, talvez, o que resta delas, canto ex-
trado do antigo pico transposto para verso russo, mirade de est-
rias verdicas, parece, mas trabalhadas no palco como um material:
ao de levar cena histrias, em nome prprio, aos espectadores
presentes. Protagonismo dos artesos perante o pblico, tambm
exposio do processo de criao que, alis, no parece poder sepa-
rar-se do produto, o objeto em curso no momento que se partilha.
Canto XXIII resultado de dez anos de trabalho, possibilidade
entre d