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    PRESENAS

    ALEXANDRE PIERONI CALADO

    Tese apresentada Escola de Comunicaes e Artes daUniversidade de So Paulopara obteno do ttulo deDoutor em Artes

    rea de Concentrao

    Formao do Artista Teatral

    OrientadorProfessor Doutor Antnio Januzelli

    SO PAULO2011

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    Autorizo a reproduo e divulgao total ou parcial deste trabalho,por qualquer meio convencional ou eletrnico, para fins de estudoe pesquisa, desde que citada a fonte.

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    Prof Dr InstituioJulgamento Assinatura

    Prof Dr Instituio

    Julgamento Assinatura

    Prof Dr Instituio

    Julgamento Assinatura

    Prof Dr Instituio

    Julgamento Assinatura

    Prof Dr Instituio

    Julgamento Assinatura

    Aprovado em

    PRESENAS

    ALEXANDRE PIERONI CALADO

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    Beatriz, ao Carlos, Gabriela o cuidado.

    Bruna o carinho.

    Sandra a parceria.

    Ao meu orientador Antnio Januzelli pelo caminho percorridojunto, pelas conversas e pelo apoio. Aos fazedores de teatropedagogos Alexander Kelly, lvaro Correia, Bruno Bravo, CarlosJ. Pessoa, Juliana Galdino, Maria Thais Lima, Phillip Zarrilli queaceitaram participar deste estudo. professora Josette Fral queme permitiu aprofundar a investigao junto do seu grupo de

    pesquisa. Anabela Almeida, Anabela Mendes, Carolina Mendona, DanielCervantes, David Bastos, Dinarte Branco, Elisabete Oliveira, EugniaVasques, Filipe Barrocas, Gina Monge, Iolanda Santos, Joo Salaviza,Jorge Gomes, Juliana Monteiro, Luisa Marques, Mayra Azzi,Micaela Fonseca, Narahan Dib, Rodrigo Garcez, Sofia Dinger,Veronica Veloso, Wallace Masuko a colaborao.

    Fundao para a Cincia e a Tecnologia do Ministrio daCincia, Tecnologia e Ensino Superior (Portugal) pela bolsa queme permitiu realizar este projeto.

    AGRADECIMENTOS

    UNIO EUROPEIAFundo Social Europeu

    QUADRODE REFERNCIAESTRATGICONACIONALPORTUGAL2003.2010

    PROGRAMAOPERACIONALPOTENCIAL HUMANO

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    RESUMO

    O objeto das linhas que se seguem a arte cnica, o problemada formao do artista cnico para ser mais exato. O que proponho uma discusso sobre a possibilidade de certa noo de presenaconstituir um eixo de trabalho em situaes de ensino e aprendi-zagem, em instituies superiores. Para responder a esta questo

    desenvolvo uma metodologia compsita: discuto textos de JosetteFral, Hans-Thies Lehmann, Jacques Rancire, Anatoli Vassiliev,Tim Etchells e Giorgio Agamben; analiso situaes educativas ob-servadas no Departamento de Teatro da Escola Superior de Tea-tro e Cinema (IPL | Portugal), no Departamento de Artes Cnicasda Escola de Comunicaes e Artes (USP | Brasil), no PerformingArts Department da School of Film, Television & Performing Arts

    (LMU | Inglaterra) e no Drama Department da Exeter University(Inglaterra), com nfase no trabalho desenvolvido por AlexanderKelly e Phillip Zarrilli, destas duas ltimas instituies, respetiva-mente; e, fao a exegese do trabalho de pesquisa pela criao da be-leza ou o sistema nervoso dos peixes, que desenvolvi com os diretorespedagogos Antnio Januzelli (Brasil) e Carlos J. Pessoa (Portugal),apresentado no Teatro Taborda (Lisboa | Portugal) e no Espao Viga(So Paulo | Brasil). Esta metodologia permite-me apresentar, por

    fim, a proposta de um desenho curricular para uma oficina ocu-pada com trs reas de problematizao: a atuao psicofsica, aescrita cnica compartilhada e a emancipao do artista teatral.

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    ABSTRACT

    The subject of the following lines is the theatre, the problem of thetheatre artists education to be more precise. I present a discussionabout the possibility of a certain notion of presence being able toguide theatre teaching and learning within higher education in-stitutions. To do this I use a composite methodology: I discuss

    texts by Josette Fral, Hans-Thies Lehmann, Jacques Rancire,Anatoli Vassiliev, Tim Etchells and Giorgio Agamben; I analyseeducational situations observed at the Departamento de Teatro ofthe Escola Superior de Teatro e Cinema (IPL | Portugal), at the De-partamento de Artes Cnicas from the Escola de Comunicaes eArtes (USP | Brazil), at the Performing Arts Department from theSchool of Film, Television & Performing Arts (LMU | England) and

    at the Drama Department from the Exeter University (England),considering with more detail the practice of Alexander Kelly andPhillip Zarrilli, working in these two last institutions; and, I do anexegesis of the practice as research project da beleza ou o sistemanervoso dos peixesdeveloped with the directors pedagogues AntnioJanuzelli (Brazil) and Carlos J. Pessoa (Portugal), presented at theTeatro Taborda (Lisbon | Portugal) and Espao Viga (So Paulo |Brazil). This methodology allows me to propose a curricular design

    for a practice based module on theatre centred on three main areasof problematization: psychophysical acting, devising and emanci-pation of the theatre artist.

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    SUMRIO

    2 | NO A PRESENA

    Quartett

    La chambre dIsabella

    Estranhas presenas

    Instructions for ForgettingA Ilada - canto XXIII

    Singularidade de uma ausncia

    1 | INTRODUO

    Reviso

    Referencial

    Por dentro

    3 | FOLHA DE PRESENAS

    Estudos de campo

    Escolas superiores de teatro

    Inferncias

    Sobre formar atores

    4 | PRODUO DE PRESENAS

    Estudos de cena

    da beleza ou o sistema nervoso dos peixes

    prlogo para um solotrs minutos

    cabea de medusa

    1

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    27

    33

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    5 | PRESEN 3000

    Lisso

    DesconhecimentoO ofcio da luz

    A circulao da roda

    A tripla operao

    Exerccios individuais

    Glossrio incompleto

    6 | DISCUSSO FINAL

    Sntese

    Oportunidades

    Autoavaliao

    7 | REFERNCIAS UTILIZADAS

    291

    293

    297299

    305

    313

    327

    331

    347

    348

    350

    352

    355

    ANEXOI

    Registos das sesses

    Entrevistas

    ANEXO II

    da beleza ou o sistema nervoso dos peixes | Espao Viga

    ANEXO III

    da beleza ou o sistema nervoso dos peixes | Teatro Taborda

    cd 1

    dvd 2

    dvd 1

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    LISTA DE ILUSTRAES

    LISTA DE TABELAS

    fig 1 | capelafig 2 | poro

    fig 3 | agosto 2008

    fig 10 | a tripla operao

    fig 4 | maro 2008

    fig 5 | absence - prlogo para um solo

    fig 6 | standing still without standing still

    fig 7 | cabea de medusa

    fig 8 | o ofcio da luz

    fig 9 | a circulao da roda

    tab i| curricula atores dt - cac

    tab v | questionrio pad - dd

    tab iv | questionrio dt - cac

    tab iii| atividades treino intercultural

    tab ii| atividades evento performativo

    243247

    251

    254

    281

    283

    287

    301

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    315

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    1 | INTRODUO

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    O objeto das linhas que se seguem a arte cnica, o problema

    da formao do artista cnico para ser mais exato. O que proponho

    uma discusso sobre a possibilidade de certa noo de presena

    constituir um eixo de trabalho em situaes de ensino e apren-

    dizagem, em instituies de formao superior. As artes da cena

    esto de tal modo imbricadas com a ideia de presena que a relao

    entre os termos carece de uma justificao delongada: a produo

    e a recepo so sncrones e coextensivas para o espectador que

    se apresenta, h um espetculo que acontece sempre no aqui e

    agora da cena, difcil no pensar logo na presena do ator, talvezmesmo a primeira ideia que nos ocorre. que a noo de presena

    persiste operante nos discursos e no pensamento dos fazedores

    da cena, ela retomada na dana, nas artes visuais; ela parece ter

    ganho relevncia com as experimentaes que desde a dcada de

    setenta do sculo passado invadem os palcos com elementos es-

    tranhos representao: incurso do real, esttica performativa,teatro psdramtico, cena abstrata. Quando se fala em teatro e no

    ofcio do ator, em particular, a noo de presena aparece como

    uma sombra que atormenta os discursos, difcil de apreender, im-

    possvel de afastar. O que queremos saber se esta noo, se que

    uma noo, nos pode servir para pensar a formao do artista que

    quer fazer teatro atuando em cena.

    1.1 | REVISO

    A rigor, no a presena mas presenas, presenas mltiplas e

    singulares, pequenas presenas em sries, sries de presenas

    em arranjos articulados em movimento, a vrias velocidades. O

    problema no pequeno porque o termo presena designa a rela-

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    3 | INTRODUO

    o de estar ou existir simultaneamente com, j se pode ver

    a ordem de complicaes a que ele remete. O Dicionrio Houaiss

    de Lngua Portuguesa (2003) indica quatro sentidos prprios e dois

    figurados para o termo: fato de algo ou algum estar em certo

    lugar; fato de algo ou algum existir em algum lugar; aparncia

    geral de uma pessoa, figura; qualidade do que chama a ateno,

    individualidade; participao numa atividade; influncia. Ento,

    o termo presena serve simultaneamente para trs coisas no uso

    comum: para localizar objetos ou pessoas num domnio determi-

    nado (a presena dela na festa surpreendeu a todos); para descrevero efeito que certo estado do mundo tem sobre o observador que

    se coloca perante ele (que bela presena ele faz entre os colegas); e,

    para sugerir o efeito de algo ou algum em determinado estado do

    mundo (presena da cultura antiga na contemporaneidade). Por aqui

    se comea a compreender como a ideia de presena se enreda em

    inmeras dificuldades: parece estabelecer simplesmente a posiode pessoas e objetos mas logo tambm se pode aplicar a ideias e

    realidades abstratas; parece fundar-se numa distino entre sujeito

    e objeto mas refere tambm certa correlao entre o que per-

    cepcionado e o que percepciona; designa uma relao que tanto

    espacial, quanto temporal. A complicao est bem manifesta na

    diversidade de expresses comuns que apontam para estes usoscontraditrios: marcar presena, presena de esprito, na presena

    do perigo, na presena dele, uma presena, a sua presena.

    O tema da presena ocupa um lugar de proeminncia nos discur-

    sos dos crticos e dos praticantes da cena, bem como nas prprias

    prticas cnicas, faamos um rpido sobrevo s estantes. Comomostram as entrevistas realizadas ao longo da ltima dcada

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    por Josette Fral e publicadas sob o ttulo Mise en scne et Jeu

    de lacteur (2001), fazedores de teatro to diversos como Robert

    Wilson, Richard Foremann, Elisabeth Lecompte, Robert Lepage,

    Anne Bogard, Anatoli Vassiliev, Iouri Lioubimov, Eugenio Barba,

    Richard Schechner, Peter Sellars e Dario Fo, entre outros, utilizam

    a noo de presena no seu discurso e na sua prtica. No discurso

    dos fazedores de teatro, presena parece ser uma qualidade do

    ator, nebulosa, paradoxal: Fral nota que esta noo utilizada

    com sentidos muito diversos, por vezes contraditrios, tanto tipo

    de jogo cnico e capacidade artstica, quanto talento ou carismapessoais (feral2001: 50-55). Barba, sem dvida, est entre aque-

    les que mais importncia do noo de presena, associando-a a

    noes como bios cnico, pr-performatividade e princpios

    que retornam e fazendo dela uma das diretrizes principais do

    seu pensamento sobre o trabalho e a formao do ator (barba

    1972; 1981; 1991; 1994). Na entrevista realizada por Fral, Barbadiz nada menos que : On doit definir la prsence dune manire

    extrmement pragmatique. Quest-ce que ce la prsence? Cest ce

    qui agit sur lespectateur, de onde Tout lentranement a un seul

    objectif: btir la prsence. (barba, feral2001: 96-97) Apesar da

    importncia que o pensamento de Barba apresenta no presente

    mbito, o seu trabalho no ocupar o leitor nas pginas que seseguem. Alm do trabalho do diretor italiano se poder inscrever

    nas crticas que sero feitas em seguida ao uso mais comum da

    noo de presena entre os fazedores de teatro, o pensamento geral

    deste autor pode ser considerado essencialista (calado 2007).

    Dentro de uma investigao similar sobre os termos e o modocomo a noo de presena elaborada, Stage Presence: the Actor as

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    5 | INTRODUO

    Mesmerist (2008), de Jane Goodall, um interessante livro que,

    a partir de casos de estudo de artistas do teatro, da msica e da

    dana, traa um panorama dos complexos predicados, termos e

    imagens que a presena em cena convoca. Dado o carter contra-

    ditrio do termo, no com surpresa que vemos a autora destacar

    elementos que transitam entre o eletromagnetismo e a magia, a

    qumica e o sobrenatural. Goodall considera exemplos to diver-

    sos como Sarah Bernhardt, Maria Callas, Vaslav Nijinsky, David

    Bowie e Josephine Baker, entre outros, investiga essa qualidade

    de estranhas ressonncias, motivada em parte por um cepticismoperante o orientalismo e o atavismo que esse tema tantas vezes

    ressoa, no contexto da cultura ocidental contempornea (goodall

    2008: 4). Presence in Play (2008), de Cormac Power, um inte-

    ressante volume que argumenta a favor da centralidade do con-

    ceito de presena para a reflexo no mbito dos estudos teatrais, a

    partir de um conjunto diversificado de perspectivas que incluem asemitica, a fenomenologia e a filosofia ps-estruturalista. Alm

    de discutir o pensamento desenvolvido por Jacques Derrida e

    Phillip Auslander sobre a presena no teatro, Power prope um

    modelo tridico de entendimento da presena teatral assente nas

    categorias ficcional, aurtica e literal. De forma sinttica, Power

    associa a categoria de presena ficcional aos fenmenos teatraisque concorrem para a construo conjunta de um mundo ficcio-

    nal no momento da apresentao; remete a presena aurtica s

    qualidades do ator que atraem a ateno do pblico; e, considera

    como presena literal conjunto de elementos relacionados com a

    partilha concreta por atores e espectadores de um mesmo espao

    e tempo. Explorando estes trs planos de experincia da presena,

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    Power reverte o criticismo que a noo recebeu, em particular pela

    filosofia ps-estruturalista da segunda metade do sculo passado,

    para afirmar o potencial singular do teatro para colocar a presena

    num jogo de apario e desapario (power2008: 202).

    Numa direo que algo distinta, How the World became a Stage:

    presence, theatricality and modernity (2003), de William Egginton,

    um trabalho de reflexo que estuda as transformaes nos espa-

    os e prticas espetaculares dos teatros da Idade Mdia tardia ao

    comeo da Modernidade, com nfase em Espanha e Frana, para

    procurar compreender as caractersticas singulares deste ltimoperodo. A partir do reconhecimento de que houve uma transfor-

    mao na representao do mundo que implicou um trnsito de

    um espao cheio, mgico e carregado de presena para um espao

    vazio, transitrio e teatral, Egginton argumenta que a experincia

    da modernidade pode melhor ser pensada em termos espaciais

    que noutros relativos subjetividade (egginton2003: 7). J no

    campo dos estudos da dana, Of the Presence of the Body (2004),

    editado por Andr Lepecki, rene nove artigos de especialistas

    contemporneos dos estudos da dana, da performance e da cultu-

    ra, centrados na problematizao dos termos corpo e presena ope-

    rada pela dana contempornea europeia e norte-americana, em

    particular. Tal como fizera no artigo um pouco anterior, Concept

    and presence, no qual Lepcki fala da insistncia na presena

    como denominador comum de certos coregrafos atuais (lepecki

    2004: 180), em On the Presence od the Body o crtico portugus

    radicado nos Estados Unidos da Amrica junta-se a autores como

    Barbara Browning e Peggy Phelan para explorar como na danado nosso tempo os conceitos referidos de corpo e de presena so

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    7 | INTRODUO

    sede de um debate singular, pleno de consequncias polticas e

    para o prprio campo dos estudos da cena.

    No campo dos estudos da performance, os j clssicos Liveness:

    performance in a mediatized culture (1999), de Phillip Auslander,e Unmarked: the Politics of Performance (1993), de Peggy Phelan,

    constituem um entrada privilegiada no debate sobre as especifici-

    dades das artes performativas pensadas em termos que gravitam

    ao redor da noo de presena. Afirmando que pela presena

    de corpos vivos que a performance implica o real, Phelan prope

    que o ontolgico desaparecimento da performance no seu com-pletar-se e o correlativo mergulho desta na invisibilidade da me-

    mria dos espectadores a permite constituir-se como uma forma

    artstica capaz de escapar aos mecanismos de reproduo, assim

    afirmando o seu valor de resistncia (phelan1997: 173). Em certo

    sentido respondendo a Phelan, Auslander serve-se de alguns dos

    exemplos da terica norte-americana para mostrar como o uso de

    tecnologias de mediao compromete o argumento em favor de

    uma ontologia da presena, ao mesmo tempo que argumenta em

    favor de uma desestabilizao da oposio entre o mediatizado e o

    ao vivo (auslander1999: 38-60). Um dos eixos da argumentao

    de Auslander, fortemente influenciado pela filosofia de Jacques

    Derrida, passa pela explorao da expresso ao vivo, utilizada

    no jargo anglo-saxnico para designar transmisses em direto

    em meios de comunicao como o rdio e a televiso. Outro inte-

    ressante filo de trabalho de Auslander passa pela defesa de que

    as mquinas tambm realizam performances, assim colocando

    em crise a suposta ontologia da presena viva avanada por Phelan(auslander 2002). Para referir um exemplo no amplo campo das

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    artes visuais, veja-se como Esttica Relacional (2009), de Nicolas

    Bourriaud, faz um diagnstico das tendncias contemporneas

    neste campo que parece confirmar o triunfo da arte minimalista

    que, em 1969, Michael Fried acusou de se fundar na presena e

    na teatralidade (fried 2003). Maaike Bleeker (2005), por outro

    lado, utiliza o texto posterior de Fried Absortion and Theatricality:

    Painting and Beholder in the Age of Diderot(1980) para reconsiderar

    a noo de teatralidade nos termos de uma dialtica entre focali-

    zao e absoro com relevantes ressonncias para o modo como

    pensamos a relao entre teatro, performance e recepo, a partirde um referencial das artes visuais.

    Em Staging Philosophy (2006), editado por David Krasner e David

    Saltz, uma seo inteira dedicada a artigos que exploram diver-

    sas intersees entre a noo de presena, a fenomenologia, a

    poltica, a semiologia e a epistemologia da arte. Entre estes textos,

    destaco o interessante artigo Embodiement and Presence: The

    Ontology of Presence Reconsidered no qual Suzanne Jaeger se

    serve da fenomenologia para responder a Jacques Derrida e pensar

    a presena do ator como jogo de diferenas de esquema corporal.

    Mas respire o leitor, estamos a chegar ao final deste trnsito cuja

    finalidade apenas indicar como a noo de presena anima a

    reflexo contempornea no campo dos estudos de teatro. Apenas

    mais duas linhas para salientar o The Presence Project, levado

    a cabo entre 2005 e 2009, em conjunto por diversas universida-

    des entre as quais a Exeter University (Reino Unido), o University

    College (Reino Unido) e a Standford University (EUA), do qual se

    aguarda uma edio, no qual a noo de presena faz gravitar emseu torno trabalhos tericos, debates e oficinas, tanto de artes ao

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    9 | INTRODUO

    vivo, quanto de artes mediadas; 0 colquio Brler le planches,

    crever lecran: la prsence de lacteur, realizado em 2000, orga-

    nizado pelo Centre de Recherches et de Documentation des Arts

    du Spectacle da Universit de Caen (Frana), do qual participaram

    Beatrice Picon-Vallin e Jacques Lassale, entre outros, que se dedi-

    cou especificamente reflexo sobre a presena do ator no teatro ou

    no cinema, outros; e a conferncia Presence et Representation,

    realizado em 2001, pelo Centre de Recherches sur les Conflits

    dInterpretation da Universit de Nantes (Frana), que investigou

    o potencial operatrio do conceito de presena em campos comas artes visuais, a filosofia e a psicanlise. Assim, a passos largos

    percorremos um horizonte diversificado que atesta bem como a

    noo de presena apresenta um carter problemtico e relevante

    no mbito da reflexo e da prtica das artes da cena, revelando um

    potencial operatrio transdisciplinar que abre os estudos de teatro

    participao nos debates contemporneos de diversas esferas dopensamento e da cultura.

    1.2 | REFERENCIAL

    Como atesta o Dicionrio de Teatro, de Patrice Pavis, a expresso

    ter presena, no jargo teatral, corresponde capacidade do ator

    cativar a ateno do pblico e constitui, segundo opinies corren-

    tes, o bem supremo a possuir pelo artista da cena e a experienciar

    pelo espectador (pavis 2001: 305). Destaca o semilogo francs

    que a noo de presena parece estar associada a uma forma de

    comunicao corporal direta e algo misteriosa que se estabeleceria

    entre ator e espectador. Procurando contornar o problema de com-

    preender o fenmeno nestes termos, Pavis sugere que a sensao

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    de presena que o espectador experimenta e associa qualidade do

    jogo do ator se pode melhor entender como resultando da coliso

    entre o evento social do jogo teatral e a fico. A considerao deste

    cruzamento, onde ressaltam as ideias de deixis e de osteno, leva

    Pavis a sustentar que a presena que o espectador atribui ao ator

    na verdade decorrente do presente continuamente afirmado na

    cena (pavis 2001: 305). Esta definio tentativa de Pavis exemplar

    no modo como nos leva a pensar a noo de presena no encontro

    dos trs termos ator, espectador e espetculo, circunscrevendo-se,

    contudo, ao momento da apresentao cnica. Na medida em quecentra a sua definio nestes minutos, mesmo quando so horas,

    Pavis assume uma posio crtica que privilegia a posio do es-

    pectador, o que no sem custos para o pensamento sobre o ator.

    1.2.1 | PRESENAS

    Centrar o pensamento sobre a presena do ator no teatro no mo-mento do espetculo pernicioso, em particular quanto estamos

    perante o problema da formao. Revertendo o ponto de vista para

    o ator, a questo da presena sofre uma reconfigurao importan-

    te, ainda que num primeiro momento os termos identificados por

    Pavis mantenham a sua pertinncia: algum em cena faz certas

    aes concretas que atualizam a composio que d forma ao es-

    petculo, espetculo este que recebido pelo espectador que tem,

    ento, o seu prprio papel na traduo da experincia. No entanto,

    uma importante ressalva se impe se pretendemos entender o que

    so essas aes concretas que o ator executa. Tomando como refe-

    rncia a minha experincia pessoal, na qual a sensao de presena

    em cena est associada a um estado em que estou to embrenhado

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    11 | INTRODUO

    na atividade que nada mais parece importar, no apenas o choque

    entre a fico e a realidade na cena que importa considerar: porque

    essa experincia depende largamente do perodo de trabalho que

    subjaz apresentao, bem como do modo como este se inscreve

    num projeto artstico mais amplo.

    Dando continuidade ao pensamento de Pavis, consideremos a ques-

    to segundo uma perspectiva lgica. Pode dizer-se que a noo de

    presena pertence ao campo da teoria de relaes, pois ela implica

    um observador (O) e um objeto (n), tais que n est presente para

    O quando O consegue determinar os valores de n num referen-cial espacio-temporal (x, y, z, t): quando ser verifica esta condio,

    O afirma que n tem a propriedade de estar presente. Assim sendo,

    a presena tanto uma propriedade espacial, quanto temporal: isto

    tambm senso comum, pois um mesmo ator est presente em

    certos momentos do espetculo mais que noutros, alguns dias e

    no todos, principalmente, os espetculos diferem entre si. per-

    tinente retomar aqui, ento, a distino medieval entre presentia

    corporalisepresentia temporalis, porquanto esta coloca em evidncia

    quanto o eixo temporal do fenmeno de presena parece ter vindo

    a ser negligenciado nos discursos crticos. O que me parece impor-

    tante aqui salientar como estas vises centradas no espao e no

    tempo do espetculo tendem a desvalorizar a participao do ator

    na criao cnica e a sua interveno na vida cultural ao longo da

    sua vida em atividade.

    A minha posio e talvez o meu pequeno contributo para a discus-

    so da pertinncia da noo de presena no mbito dos estudos da

    cena o de encarar o conceito no plano, aparentemente pouco valo-

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    rizado, da presena do ator no tempo. verdade que este particular

    tem sido por vezes considerado ao refletir sobre a recepo, nome-

    adamente por meio do questionamento da relevncia da formao

    do espectador na fruio e apreciao do evento teatral, isto , no

    modo como esta formao condiciona a compreenso dos signos,

    cdigos e convenes implcitos em toda a experincia teatral. O

    plano temporal da presena tambm surge nas discusses sobre a

    formao de atores, na maior parte das vezes como sendo um plano

    de rebatimento no qual, por meio de exerccios os mais diversos,

    o ator conquista a capacidade de produzir essa presena em cenaque cativa o espectador. De qualquer modo, nestes casos, o tempo

    considerado em funo da produo de presena no desempenho

    cnico e menos ou quase nunca considerando a atividade artstica

    do ator como um trabalho na esfera da vida cultural. Assim, estas

    posies tendem a alienar o ator das suas liberdades e responsa-

    bilidades fora dos momentos da cena, insistindo na sua funo deexecutante, em detrimento das suas potencialidades criativas en-

    quanto fazedor de teatro e agente interventivo na sociedade. Este

    desfavor arte do ator particularmente problemtico quando se

    tem em vista a concepo de experincias formativas.

    1.2.2 | O DESENHO DAS PISTASA noo de presena considerada sob o ponto de vista do ator e ao

    longo de um eixo temporal ganha particular importncia quando

    se pretende enfrentar a questo da formao do artista teatral. J se

    sabe que no se pode ensinar ningum a ser artista, contentemo-

    nos com pensar que essa uma atividade que pelo menos se pode

    aprender. Gostaria de sustentar que uma forma de contribuir para

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    13 | INTRODUO

    que haja as condies necessrias a esta aprendizagem estabele-

    cer um desenho curricular to claro quanto possvel, por um lado,

    e, por outro, suficientemente flexvel para que o aluno participe

    efetivamente na sua implementao.

    Consideremos a definio oferecida por Daniel Tanner e Laurel

    Tanner no seu livro Curriculum Development: Theory into Practice:

    Conjunto de experincias de aprendizagem planeadas bem como

    de resultados da aprendizagem previamente definidos, formulan-

    do-se umas e outros mediante a reconstruo sistemtica da ex-

    perincia e conhecimentos humanos, sob os auspcios da escola eem ordem ao desenvolvimento permanente do educando nas suas

    competncias pessoais e sociais. (tanner1975: 45) Esta concepo

    coloca em evidncia os trs elementos que me parecem fundamen-

    tais do curriculum, objetivos, atividades e resultados esperados, ao

    mesmo tempo que aponta o aspecto dinmico da sua construo.

    Contudo, nesta definio o curriculum surge claramente como

    uma responsabilidade da instituio, o que desresponsabiliza o

    aluno da sua participao no desenho da experincia de ensino e

    aprendizagem. Numa situao como esta, largamente dominante

    nas instituies de ensino um pouco por todos os graus, importa

    distinguir o curriculum formal, tal como estabelecido em do-

    cumentos oficiais e comunicado a professores e alunos, do curri-

    culum implementado pelo docente nas situaes que dinamiza,

    do curriculum percepcionado pelo aluno, na sua reconstruo

    das experincias realizadas. Nesta medida, quanto menor for a

    participao dos alunos na definio formal do curriculum, meno-

    res sero as possibilidades de uma acordo entre o que levado acabo pelo docente e aquilo que o aluno deseja aprender. Estas con-

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    14 |

    sideraes permitem-nos afirmar que o curriculum existe sempre,

    expresso, subentendido ou mal entendido; enquanto pista que

    traa um caminho da aventura da aprendizagem, grade, ele pode

    pensar-se como um dispositivo, no sentido que Giorgio Agamben

    entende o conceito: O termo dispositivo nomeia aquilo em que

    e por meio do qual se realiza uma pura atividade de governo

    sem nenhum fundamento no ser. Por isso os dispositivos devem

    sempre implicar um processo de subjetivao, isto, , devem pro-

    duzir o seu sujeito. (agamben2009: 38) Podemos aqui encontrar

    um ponto central para a discusso sobre a natureza dos processoseducativos, porquanto a maior transparncia ou opacidade destes

    dispositivos curriculares, o seu maior ou menor grau de abertura

    participao e realizao da singularidade de cada sujeito, tm

    amplas consequncias no modo como a escola se inscreve num

    lgica libertadora e de empoderamento dos que nela trabalham,

    ou, pelo contrrio, se afirma como uma instituio tributria dosmais amplos mecanismos sociais de captura das foras e potenciais

    vitais das geraes recm-chegadas ao mundo e tende a lan-las,

    desde a sua tenra idade, nas lgicas de reproduo alienada. Alm

    de defender aqui a pertinncia da noo de presena para a con-

    cepo de experincias formativas em teatro desde que esta seja

    considerada, pelo menos tambm, sob o ponto de vista do ator e nasua dimenso temporal, pretendo sustentar a necessidade de uma

    noo de curriculum simultaneamente clara e aberta apropriao

    pelo aluno.

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    15 | INTRODUO

    1.3 | POR DENTRO

    Logo depois desta Introduo, a leitora e o leitor encontraro um

    captulo intitulado No a Presena, elaborado a partir de uma

    leitura de textos tericos sobre teatro, produzidos por filsofos,estudiosos da cena e fazedores de teatro. Aqui discuto a existncia

    de uma tendncia esttica na cena contempornea para a produo

    de estranhas presenas, articulando o pensamento de Josete Fral,

    Hans-Thies Lehmann e Jacques Rancire. Focando em seguida no

    trabalho de Anatoli Vassiliev e de Tim Etchells, procuro mostrar

    como no mbito desta tendncia esttica se afirma na cena umafigura autoral, tal como entendida por Giorgio Agamben. Este

    estudo contribui para consubstanciar a noo de presena tem-

    poral a que aludi anteriormente. Ressalta da anlise empreendida

    quanto a noo de presena surge associada a uma discusso tica

    e poltica do teatro, em particular pelo vis da problematizao que

    instaura dos modos mais difundidos de percepo teatral.

    Em seguida, no captulo Folha de Presenas mostro como a noo

    de presena ocupa um lugar proeminente no desenho de situa-

    es de ensino e aprendizagem de artistas teatrais, em instituies

    do ensino superior em Portugal, no Brasil e no Reino Unido.

    Resultado de um perodo de investigao de campo empreendidoentre Maro de 2006 e Dezembro de 2008, no Departamento de

    Teatro da Escola Superior de Teatro e Cinema (IPL / Portugal),

    no Departamento de Artes Cnicas da Escola de Comunicao e

    Artes (USP / Brasil), no Performing Arts Department da Leeds

    Metropolitan University (Reino Unido) e no Drama Department

    da Exeter University (Reino Unido), aqui este que vos escreve

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    mostra que a noo de presena aparece explicitamente nos curri-

    cula formais das situaes analisadas e que ocupa um lugar ainda

    mais relevante nos curricula implementados pelos docentes, em

    particular nos discursos pelos quais estes referem as intenes da

    sua ao pedaggica. Este trabalho de recolha de curricula formais,

    de observao de sesses de ensino-aprendizagem e de realizao

    de entrevistas aos docentes lvaro Correia, Carlos J. Pessoa, Bruno

    Bravo, Maria Thais Lima, Antnio Januzelli, Juliana Galdino,

    Alexander Kelly, Phillip Zarrilli permite corroborar a pertinncia

    da valorizao da noo de presena como conceito dinamizadorda formao teatral. Atendendo em particular ao desenho das

    experincias educativas, destaco neste captulo aquelas dinamiza-

    das por Kelly e Zarrilli, por se aproximarem mais da viso que

    prefiguro. Alm da anlise dos materiais recolhidos, este captulo

    oferece uma parcela dos dados editados sob a forma de um pe-

    queno dossier, que permite conhecer um pouco melhor o modocomo a formao de atores configurada formalmente, como ela

    pensada por aqueles que a empreendem, como ela levada a

    cabo em sala. Os restantes dados recolhidos no trabalho de campo

    so apresentados em anexo, revelando-se uma importante fonte

    para aqueles que pretendam conhecer melhor como se processa a

    atividade no terreno.

    O captulo seguinte, Produes de Presena, desenvolve a inves-

    tigao sobre o lugar da noo de presena nos processos forma-

    tivos, desta feita segundo uma metodologia de pesquisa-criao.

    Tomando como referncia o processo de criao realizado em co-

    laborao com os diretores pedagogos Antnio Januzelli e Carlos J.Pessoa, cujo objeto final se intitulou da beleza ou o sistema nervoso

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    17 | INTRODUO

    dos peixes, neste captulo analiso como estes pedagogos entretecem

    a prtica formativa e o processo criativo, considerando em particu-

    lar o papel que a noo de presena desempenha neste cruzamen-

    to. Por outro lado, ao empreender uma exegese do processo de

    trabalho e do objeto teatral, experimento um modo de valorizar a

    formao em situao de criao por meio da reflexo crtica. Este

    gesto ensaia, por um lado, o movimento que se deseja da parte dos

    alunos de um curso superior artstico, ao mesmo tempo que con-

    tribui para a elucidao dos meus processos pessoais de trabalho,

    uma necessidade imperativa para quem pretende desempenhar aatividade docente. Para permitir a apreciao do trabalho cnico

    realizado, bem como da evoluo deste, apresento em anexo dois

    registos do espetculo, um feito em So Paulo e outro em Lisboa.

    Segue-se o captulo PRESEN 3000, no qual proponho um desenho

    curricular para uma oficina de formao teatral estruturado pela

    noo de presena tal como discutida anteriormente. Partindo de

    experincias pessoais anteriores, assim como da discusso empre-

    endida nos captulos precedentes, delineio objetivos, atividades e

    resultados esperados de uma experincia de formao para o ensino

    superior de artistas teatrais. Procuro aqui iluminar alguns princ-

    pios que podem ser teis no enfrentamento do desafio de preparar

    artistas para a atuao cnica, a composio teatral e a emancipa-

    o, sugerindo conceitos, procedimentos e valores que considero

    pertinentes. Nesta proposta procuro oferecer um desenho curri-

    cular aberto projeo das vontades dos alunos, ao mesmo tempo

    que procuro articular a experincia em situao com a atividade

    reflexiva, configurando possibilidades de articulao entre teoria eprtica, entre ensino, aprendizagem e investigao em artes. Alm

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    disso, o captulo em questo apresenta um pequeno conjunto de

    materiais de apoio ao educativa.

    Termino esta tese com uma sntese e uma discusso final, onde

    procuro salientar as oportunidades de desenvolvimento da investi-gao e as aprendizagens realizadas.

    O valor do teatro , em nossa poca, por demais evidente. Dada a

    forma da minha exposio, no entanto, devo, sem dvida, agrade-

    cer ao leitor e leitora a indulgncia, pois a minha disposio atual

    e outros motivos fortuitos no me permitem estender-me sobre omeu objeto nem aprofund-lo tanto quanto eu gostaria.

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    2 | NO A PRESENA

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    que talvez estejamos perante uma esttica da presena nos palcos

    contemporneos, caro leitor, cara leitora. Mas uma presena mais

    e mais estranha: no sabemos se ela se d no corpo do ator ou na

    percepo do espectador, se, ainda, h um terceiro termo que entre

    estes dois clame o seu reconhecimento, a sua presena de direito.

    Uma esttica da presena carregada de implicaes polticas, num

    mundo despolitizado, descrente de alternativas, marcado pela

    espetacularizao massiva da cultura, uma esttica da estranha

    presena na qual o espetculo um problema necessrio. Porque

    talvez o espetculo mesmo a condio para essa ao politica seexercer nesse espao de encontro aberto e permanentemente rein-

    ventado pelas artes da cena.

    2.1 | QUARTETT

    O pano sobe. E desce, vrias vezes durante o espetculo. Parece-se

    com um espelho, o pano faz parte do discurso, um vu estendidouma bruma. Estamos num grande salo de festas elegantes ou

    ento num depsito esquecido vazio, e logo numa paisagem ao

    amanhecer sombrio, num crepsculo que, suspenso no ciclorama,

    se espalha por toda a sala. S se podem ver os vrtices das cadeiras

    nas quais ningum se poder sentar, na contra-luz. Trata-se de

    teatro no teatro, do impossivel teatro dos sexos, do encantatrio

    teatro das palavras, da construo efmera de imagens e sombras,

    no bem de teatro que se trata. Ou no drama. que no h

    bem ao, acontecem coisas, no h tambm indivduos, so dois

    colossos que se enfrentam, no, eles no dialogam, eles contra-

    pem-se monlogos, mostram os dentes, a arte cnica das feras.

    um quarteto para cinco atores, eles trocam de personagem entre

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    23 | NO A PRESENA

    si, alis, dos trs que nunca falam h um moo bonito pendurado

    de cabea para baixo, ela tambm faz poses mas sem afetao, s

    tem um sapato calado, um senhor grisalho que dana, pattico

    um sorriso, olha-me na plateia quando os assistentes atravessam

    diligentes a cena, para recolher o pano, para subir o pano. Isabelle

    Huppert (1953 - ) e Ariel Garcia Valds no so atores, so atores-

    silhuetas, cabelos arquiteturais, vestido roxo, terno vermelho, so

    figurinos animados; h uma chaise longue pantera negra que ela,

    Madame de Merteuil, cavalga: cavalo-pantera-mulher. O peso para

    frente, o brao anguloso de cada gesto recortado com rigor, vozescruzam-se, estala uma gargalhada, afinal, O que isso, nossa

    alma? Um msculo ou uma mucosa? So Paulo, Setembro de

    2009.

    Hans Thies Lehmann diz que psdramtrico este teatro, o de Bob

    Wilson (1941 - ) e Heiner Mller (1929 - 1995), figuras de proa entre

    outras do movimento da cena no ocidente, j tem quatro dcadas

    agora i. Suspendeu-se a ao e o conflito no palco, dissolveram-se

    as personagens que dialogavam, diz Lehmann, trata-se mais de

    une tranche de vie passe et vcue en communaut par des ac-

    teurs et spectateurs dans lair de cet espace respir en commun o

    se droulent le jeu thtral et lacte rceptif du spectateur. [Onde]

    Lmission et la rception des signes et signaux soprent simulta-

    nment. (lehmann2002: 19) A supresso do ilusionismo neste

    teatro atira-nos para a circunstancialidade da situao concreta,

    esse estar junto atores e espectadores, trabalhando em conjunto a

    digesto dos estilhaos da fico. Mais e mais flutuantes as distin-

    es entre teatro e outras prticas que tendem experincia do real,talvez iterao do teatro conceptual dos anos setenta, experincia

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    do corpo, do tempo, do espao: Limmdiatet dune exprience

    partage en commun par lartiste et le public constitue le noyau du

    performance art. (lehmann2002: 216): um teatro performado

    nas runas do drama.

    Quartett pacto, Mller e Wilson cmplices distncia, artesos

    de um objeto desejvel para o colecionador de espcies de teatro

    psdramtico: v-se bem a eliminao da sntese neste objeto que

    se desenvolve como um sonho ou se compe uma paisagem, ou-

    vimos a par e par o texto cnico em paralelo reverberando com o

    texto literrio, sentimos as sinestesias entre os elementos cons-tituintes da cena autonomizados: iluminao, espao acstico,

    figurino, gesto, textura vocal (lehmann 2007: 137-143). Aliada

    desestruturao dos elementos dramticos convencionais da

    escrita de Mller esto as marcas da rigorosa potica cnica de

    Wilson, Huppert e Valds compondo atuaes que permanecem

    estranhas ao que tomamos pelo jogo do ator, a julgar pela televiso

    e o cinema, a julgar pelo teatro onde os atores trabalham para nos

    fazer crer que uma personagem densa de memrias e sentimentos

    humanos se passeia pelas tbuas durante os quatro atos. Tempo e

    espao vividos em comum, corpos postos frente a frente, O teatro

    ps-dramtico teatro da presena. (lehmann 2007: 239)

    Hoje, entre as massas, diz Lehmann, h um desejo de produo

    de presena, menos de mimese ou de representao, hoje h um

    incomparvel interesse pelo desporto que se pode entender assim:

    que, no desporto, os atletas como no teatro medieval interagem

    e dialogam com os espectadores, no agem como se estes ali no

    estivessem (lehmann2002: 228). Contudo, Lehmann continua,

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    25 | NO A PRESENA

    obscuro brilhar, a presena no se pode nunca dar inteiramente;

    ela conserva sempre um carter alusivo, intencional e que desa-

    parece logo no momento em que se torna reflexo da experincia

    (lehmann 2002: 229). A presena produo, decorre de um

    gesto artstico que se desenvolve no eixo teatro, na comunicao

    elaborada sobre a relao palco-plateia, contudo, produo que se

    consome a si mesma, desaparessena logo a sensao se apresenta

    ao teatro da conscincia: presena como mergulho na experincia,

    interrupo no respiro superfcie do pensamento, permanente

    vai-e-vem do espectador ao espetculo e seus produtores prim-rios. Dada esta sua natureza colaborativa, a presena nas artes ao

    vivo toda ela se complica, escreve Lehmann:

    Se h um paradoxo do ator, h antes de tudo um paradoxo da suapresena. Recebemos os gestos e sons que ele nos d no simplesmentecomo algo que vem dele prprio, da plenitude de sua realidade, mas

    como elemento de uma situao complexa, que por sua vez no podeser resumida como totalidade. O que deparamos certamente umapresena, mas ela diferente da presena de uma imagem, de umsom, de uma arquitetura. Ela uma co-presena objetiva referida ans mesmo que no seja essa a inteno. Por isso, j no se sabe aocerto se essa presena nos dada ou se somos ns, os espectadores, queprimeiramente a produzimos. A presena do ator no contraparte

    passvel de objetivao, um ob-jeto, um presente, mas com-presena,no sentido de uma implicao inevitvel.(lehmann2007: 236-237)

    Desvalorizado o conflito, a personagem e o dilogo da fico,

    do ator o seu corpo posto no espao a presena, o trabalho

    dele: il va se prsenter comme acteur pique qui montre

    (Brecht) o il va, comme performer, utiliser sa prsence comme

    matriau esthtique de base (lehmann 2002: 222): o ator, diz

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    o terico alemo, volue entre une mtamorphose en object de

    monstration inanime et la affirmation de soi comme personne

    (lehmann 2002: 268), implica-se numa ao que serve menos

    transformer une ralit qui lui est extrieure et communiquer

    cette ralit grce son travail esthtique quelle aspire une au-

    totransformation (lehmann2002: 221) : ele, na cena atuando,

    nest plus le reprsentant dun rle (actor) mais le performer qui

    offre sa prsence sur la scne la contemplation (lehmann 2002:

    217). Quartett mostra-nos um modo como os corpos humanos dos

    atores, que parecem dificultar a realizao de um teatro abstrato,podem contribuir para a criao de um teatro no antropocntrico:

    tornados silhuetas presas em redes de foras enigmticas, corpos

    que ostentam significaes incompreensveis, no sendo mais

    intrpretes de personagens psicolgicas claramente identificveis,

    os atores transformam-se em esculturas gestuais que participam

    de acontecimentos. Mas no reconhecimento que o espectador fazda natureza humana do material que se d contemplao no

    placo h uma irremedivel implicao, h co-presena mutuamen-

    te engendrada pelo olhar que se sabe, ainda, humano. Apario

    evanescente, parecem pessoas que se eclipsam sobre as tbuas,

    todas feitas de vazio, pessoas em desapario exemplar ao que no

    podemos ficar indiferentes: presena sempre co-produzida.

    Esta presena nas artes da cena, Lehmann compreende como

    elemento de uma esttica do pavor, esttica organizada por duas

    qualidades: intensidade e enigma: aparecimento sbito, choque,

    perturbao nunca totalmente apreensvel, fugidia apario (leh-

    mann 2007: 238). O terico alemo olha o quadro Medusa(1597?),de Michelangello da Caravaggio (1571 - 1610), discute que no o

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    27 | NO A PRESENA

    pavor do seu destino que abre o esgar de Medusa, que no a viso

    da morte empedrecida no prprio rosto desfigurado, Lehmann

    sustenta que na origem desta esttica do pavor est a morte do

    olhar, seu vazio, a sua cessao (lehmann 2007: 238)ii. A pre-

    sena no teatro contemporneo, portanto, Lehmann diz que tem

    que ser pensada como processo e que temos que nos contentar

    com o entendimento de que ela acontece, sem que possamos ter

    dela um conhecimento (lehmann 2007: 239): pois a sensao de

    presena est associada falncia do pensamento. Terror, pavor e

    sobressalto que Lehmann encontra no fundamento de uma polti-ca de responsabilidade do espectador, convocado a implicar a sua

    ateno e as suas faculdades mentais na construo de uma sntese

    dos eventos em curso (lehmann2007: 239): o espectador perante

    o repto da presena a si mesmo. Concluso: presena perturbado-

    ra, evanescente, oscilante, experimentada sempre tambm como

    ausncia, como algo que j passou, eis o fulcro da possibilidade deuma arte politica para Lehmann, arte esteticizada e pedra angular

    do retorno da afirmao de Luckacs, para quem o que verdadei-

    ramente social na arte a forma (lehmann2003: 9): espectador

    colocado no movimento entre a presena experincia no teatro

    e a presena a si mesmo face cena. Talvez assim compreender

    um pouco por que a especificidade do teatro no exatamente apresena do espectador vivo, mas a presena do moribundo em

    potencial. (heiner mllerapudlehmann 2007: 240).

    2.2 | LA CHAMBRE DISABELLA

    Amplo espao branco, o cheiro do linleo branco, este palco

    uma cmera, talvez uma sala ou um quarto. Trs mesas, brancas

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    tambm elas, so poucas para a coleo, ficamos a saber que

    composta por mais de um milhar de peas, um arranjo etnogrfico

    amador, um esplio desses outros que se espalham pelo mundo.

    Jan Lauwers (1957 - ), uma mulher de uns cinquenta anos, invisu-

    al, v que a histria da sua vida uma mentira, conta-nos a histria

    dessa mentira, Lauwers todo o elenco que nos mente e desvela

    a mentira de uma vida que no bem a sua. Eles cantam para ns,

    espalham pontuadamente arabescos que ornam a sua apresenta-

    o coloquial, olhos na plateia, uma narrativa na primeira pessoa

    plural, lemos no programa, Lauwers fez o espetculo a partir dosobjetos que seu pai ento falecido lhe deixara como herana. Isabella

    mora onde esto estes objetos, no vazio entre eles, ela procura a

    sua histria verdadeira entre as prateleiras, nas estantes, sobre os

    suportes onde certo olhar, romantizante, pousou estes pedaos da

    frica negra e do Egito Antigo. Na reviso da sua vida, Isabella

    atravessa a histria do sculo XX, da Primeira Guerra Mundial aZiggy Stardust (1972), de David Bowie, do colonialismo bomba

    de Hiroshima, Lauwers est em cena e tambm fala um pouco,

    algumas explicaes, comedido espectador frente aos espectador,

    observa. H uma espcie de obscenidade, so pessoas ali nossa

    frente a falar de si enquanto nos contam esta histria imaginada

    com fragmentos de muitas histrias verdicas, afinal esta cena um quarto para dentro do qual espreitamos. So Paulo, Outubro

    de 2006.

    Josette Fral, estudiosa franco-canadiana das artes da cena, chama

    performativo ao espetculo La Chambre de Isabella, dana falada,

    teatro de movimento, parte concerto rock, parte exposio de ob-jetos, espetculo dentro de uma tendncia da cena atual. O nome

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    sugere-o, Fral, como Lehmann, reconhece nas formas teatrais

    dos nossos dias a influncia da arte da performance, dos estudos

    culturais da performance tambm (feral2008a : 29). La Chambre

    de Isabella mostra-nos alguns dos elementos que caracterizam este

    trnsito nos palcos:

    acteur devenu performer, vnementialit dune action scnique audtriment de la reprsentation ou dun jeu dillusion, spectacle centrsur limage et laction et non plus sur le texte, appel une rceptivitdu spectateur de nature essentiellement spculaire ou de modes deperception propes aux technologies (feral2008a : 28)iii

    Em La Chambre dIsabella, com efeito, ningum fala na primei-

    ra pessoa, est explodida a narrativa, portados os pedaos pelos

    membros do elenco, contam junto(s) a(s) histria(s) mas prin-

    cipalmente por meio do que acontece na cena. Despojamento e

    alvura uniforme do espao cnico contrapem-se a esta lgica de

    composio, visual, que explora as particularidades dos objetos ar-

    tesanais e a sua aura de exotismo, ao mesmo tempo que, elegante,

    trabalha as movimentaes, as relaes de grupo, paleta cromtica

    de movimentos nuanceada e heterognea. Cmplice a relao de

    Jan Lauwers e da Needcompany com o pblico, cordial, desabrida,

    face a face, numa viagem de mltiplas idas e vindas a esta diviso

    ntima inventada em conjunto. Diz Fral, Une esthtique de la

    prsence se met en place. (feral 2008a : 33)

    Dcadas atrs, no texto Performance et Thtralit, Josette Fral

    antevia esta aproximao entre teatro e arte da performance, lia

    nas oposies tantas vezes afirmadas de parte a parte o horizonte

    partilhado que os palcos agora confirmam (feral 1985: 129)iv. Para

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    uma investigao da noo de presena, este texto iluminador

    do pensamento de Fral, aqui surge uma descrio da relao da

    performance art com a representao: Ds lors ne racontant rien

    et nimitant personne, la performance chappe toute illusion,

    tout reprsentation ; sans pass, ni futur, elle a lieu, transformant

    la scne en vnement () (feral 1985 : 135); tambm, da relao

    desta com o tempo: Il ny a ds lors ni pass, ni futur, mais un

    prsent continu qui est celui de limmediatet des choses, celle

    dune action en train de se faire. (feral 1985: 129). So estes os

    termos, afinal, em que Fral descreve, anos depois, o teatro per-formativo, so eles, repare-se, os eixos de uma ideia de presena.

    Na conferncia Presena e Efeitos de Presena, realizada no

    tusp (So Paulo) a vinte e seis de agosto de dois mil e nove, a

    investigadora enfrenta mais diretamente ao problema. Perante a

    dificuldade de circunscrever a noo de presena, Fral empreende

    um movimento estratgico, apropria-se da designao efeito depresena: utilizada no meio dos jogos digitais, efeito de presen-

    a refere a sensao despoletada no espectador de que os objetos

    virtuais esto no mesmo espao e tempo que ele: nesta posio,

    presena mais uma experincia do observador em situao que

    algo substancial prprio do objeto. Exemplos diversos servem,

    depois, para Fral mostrar que este efeito discreto e intermitente,que se d nas mudanas da relao do espectador com aquilo que

    observa: espcie de atrito entre o eu e o mundo, algo sentido

    com relevo, uma rugosidade, algo que acontece. Presena, alm

    de intermitncia, pelo ngulo do efeito, revela uma componente

    eminentemente carnal, sensao sempre do corpo, resistncia

    mesmo, na vizinhana da disjuno dos sentidos, no campo de

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    foras entre percepo e representao, ora ausncia, ora experin-

    cia que o espectador tm de si mesmo.

    Mquina dentro da mquina, dispositivo orgnico o ator parece ser

    um dos locais de produo de presena, mesmo que no o nico,talvez at no o principal no teatro performativo. Mas La Chambre

    dIsabellaapresenta atores que cantam, danam, por vezes encar-

    nando personagens mas apenas para abandonar em seguida a

    representao, assim colocando em primeiro plano o seu corpo e a

    sua voz de pessoas e artesos, a singularidade do seu jogo no hic et

    nunc daquele encontro particular com o pblico: Os arabescos doator, a elasticidade de seu corpo, a sinuosidade das formas que so-

    licitam o olhar do espectador em primeiro plano, esto no domnio

    do desempenho (feral2008b : 202). So enunciados performa-

    tivos, fazem coisas mais que descrevem estados do mundo, os do

    ator performativo, ele trabalha no plano do acontecimento, realiza

    aes que inscreve no real, expe-se como mecanismo da represen-

    tao. Assim, ele amplifica o espao de jogo, o campo ldico para

    alm do palco enche a sala, todo instabilidade e fluidez nos signos

    criados, teatro das convenes teatrais, investe a si-mesmo na

    cena, ora banal, ora dispendendo-se, evidencia a vitalidade da sua

    presena singular e concreta na situao (feral 2008a : 30-31):

    Dans le thtre performatif, lacteur est appel faire (doing), tre prsent, prendre des risques et montrer le faire (showingthe doing), autrement dit affirmer la performativit du processus.Lattention se porte sur lexecution du geste, sur la cration de la forme,la dissolution des signes et leur reconstruction permanente. (FRAL,2008a : 33)

    Ator performativo, dobro do ator ou a sua dobra, ator ao quadrado,

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    ator no cubo iluminado de branco, identidade indefinida, presena

    incompleta ou discordante, a fazer-se a cada momento, menos a

    representao de personagens realistas com sua densidade psico-

    lgica cheia de motivaes e objetivos definidos, ele participa de

    uma ao, porta-voz das palavras mais que um intrprete, afir-

    mar-se fazendo aes determinadas numa reflexo que no sem

    consequncias para si-mesmo (feral2009). So as singularidades

    do ator que conquistam o primeiro plano, idiossincrasias, tanto na

    cena quanto no curso dos processos de criao, afirmando mais e

    mais uma potica do vaporoso (feral1994: 101). La ChambredIsabella revela atores que ostentam a sua presena pessoal,

    exemplificando uma das caractersticas principais do teatro de Jan

    Lauwers: le jeu transparent, pensant , des comdiens, ainsi

    que le paradoxe entre jeu et performance (needcompany2010:

    17).

    Corpos que so pessoas, os atores do teatro performativo jogam

    com o seu estar em cena, so imagem, so vazio percorrido por

    tenses, movem-se, atravessam o tempo, do-se a ver num jogo de

    ocultaes, interpelam o espectador diretamente. H uma polti-

    ca da recepo neste teatro, representao assumida e desvelada,

    fico produzida diante de ns com a realidade dos meios exibi-

    dos, a cena aberta enquanto lugar de acontecimentos reais. Numa

    conferncia intitulada O real no teatro, realizada no Memorial

    da Amrica Latina (So Paulo), a dez de novembro de dois mil

    e dez, Josette Fral serve-se da noo de acontecimento cnico

    para desenvolver algumas consequncias polticas de uma esttica

    da presena. Fral trata aqui de uma situao particular, do casoradical de rugosidade para o espectador, da produo de presena

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    por meio do uso de violncia extrema ou do seu registo no contexto

    do discurso artstico. Se o acontecimento cnico o advento no

    palco de algo que tira o espectador da situao especular para o

    mergulhar na performatividade da ao, interrompendo a recep-

    o convencional da representao, despoletando uma sensao de

    adeso e implicao na ao da parte do espectador, quanto sus-

    pende este recurso a distncia crtica? A estudiosa pergunta-se se a

    insero de elementos de violncia extrema, por vezes de natureza

    documental, no mbito de trabalhos artsticos, no pode constituir

    uma espcie de ultrapassagem dos problemas morais e ticos queo testemunho coloca: podero os gestos artsticos que recorrem a

    estes mecanismos de produo de presena promover uma atitude

    estetizante da violncia, anloga quela promovida pela espetacu-

    larizao que os meios de comunicao de massa levam a cabo em

    situaes como o onze de setembro? Uma esttica da presena a

    todo o custo.

    2.3 | ESTRANHAS PRESENAS

    Teatro da presena, esta a cena de uma discusso poltica da

    arte, ainda o problema do poltico no teatro. Um passo a trs,

    acompanhemos o filsofo contemporneo Jacques Rancire na

    sua reflexo sobre arte e seu funcionamento na esfera da cultura

    ocidental, vejamos. Entra Rancire e diz que tudo acontece num

    regime, um tipo de escoamento que estabelece o que vem ao de

    cima, de que modo flutua, qual a forma e o material que melhor se

    destaca do caudal da vida, ele fala em regimes das artes: um tipo

    especfico de ligao entre os modos de produo das obras ou das

    prticas, formas de visibilidade dessas prticas e modos de concei-

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    tuao destas ou daquelas. (ranciere2005: 27-28). Constelao

    de fatores, signo do que o momento considera arte, fundamento

    de uma leitura da tradio ocidental, que aquilo que arte depen-

    de, como tudo, do tempo: para Rancire, trs grandes regimes de

    identificao do que tem sido chamado arte: o tico sob governo

    das ideias de Plato, o potico sob regulao do pensamento de

    Aristteles, e o esttico, no qual nos encontramos no presente,

    talvez desde os idos do sculo XVIII. Um sumrio: no regime tico

    apenas existem artes, pelo que a arte no se individualiza enquanto

    tal; apenas se distinguem, aqui, as artes que so verdadeiras, poisque imitam modelos ideais, as artes que so boas, porquanto ofe-

    recem uma certa educao: no regime potico, tambm chamado

    representativo, existe um princpio, a mimesis, que individualiza

    as artes dos outros fazeres; o princpio mimtico que define a

    tcnica adequada e permite a existncia de normas de incluso das

    artes em disciplinas, de diviso em gneros, etc. (ranciere 2005:28-31):

    No regime esttico das artes, as coisas da arte so identificadas porpertencerem a um regime especfico do sensvel. Esse sensvel, subtradoa suas conexes ordinrias, habitado por uma potncia heterognea,a potncia de um pensamento que se tornou ele prprio estranho a

    si mesmo: produto idntico ao no-produto, saber transformado emno-saber, logos idntico a um pathos, inteno do inintencional, etc.Essa ideia de um sensvel tornado estranho a si mesmo, sede de umpensamento que se tornou ele prprio estranho a si mesmo, o ncleoinvarivel das identificaes da arte que configuram originalmente opensamento esttico: a descoberta por Vico do verdadeiro Homerocomo poeta apesar de si mesmo, o gnio kantiano que ignora a lei

    que produz, o estado esttico de Schiller, feito da dupla suspensoda atividade do entendimento e da passividade do sensvel, a definio

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    dada por Schelling da arte como identidade de um processo conscientee de um processo inconsciente etc. Ela percorre igualmente as auto-definies das artes prprias idade moderna: idia proustiana do livrointeiramente calculado e absolutamente subtrado vontade; ideia

    mallarmeana do poema do espectador-poeta, escrito sem aparelho deescriba pelos passos da danarina iletrada; prtica surrealista da obraexpressando o inconsciente do artista com ilustraes fora de moda doscatlogos ou folhetins do sculo precedente; ideia bressoniana do cinemacomo pensamento do cineasta extrado dos corpos dos modelos que,repetindo sem pensar as palavras e gestos que dita para eles, manifestam,sem o seu conhecimento ou o deles, a verdade que lhes prpria etc.(ranciere2005: 33)

    Trs regimes das artes, agora o esttico, estranhamento da presena.

    Diz Rancire, a transformao do regime potico no esttico con-

    duziu a uma afirmao da singularidade das artes que, ao mesmo

    tempo, destri os critrios dessa singularidade; esta transformao

    sustenta a autonomia da arte e, simultaneamente, a identidade de

    suas formas com as formas pelas quais a vida se forma (ranciere

    2005: 34); transformao para um regime atravessado por uma

    contradio constitutiva que faz da arte uma forma autnoma da

    vida (ranciere2005: 37). Trnsito, a passagem para o regime es-

    ttico implicou uma perda da posio de destaque do teatro palavra

    ao vivas sobre a imagem pintada, a palavra escrita, os artesanatos;

    conduziu a que o paradigma da superfcie dos signos se opusesse

    ou confundisse com o paradigma teatral da presena (ranciere

    2005: 24): regime de problematizao da duplicidade mimtica e

    de explorao da imanncia do pensamento na matria sensvel

    (ranciere2005: 66). consistente o discurso de Rancire com

    o que diz Lehmann sobre o teatro psdramtico e sua exposiodos meios, com o que diz Fral sobre o teatro performativo e seu

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    jogo entre teatralidade e performatividade: cena questionando-se a

    si mesma, torcida, menos a representao com signos vivos que a

    apresentao da vida dos signos: estranha presena em cena. Assim,

    temos a autobiografia do coreografo ficcionalizada num alter-ego

    feminino, exposio dos corpos humanos lado a lado com objetos

    etnogrficos, intimidades apresentadas publicamente, microfones

    separando as vozes dos corpos, assistentes de cena atravessando o

    palco, frases que no compem mais dilogos mas monlogos jus-

    tapostos, movimentos suspensos em imagens; tambm a presena

    difratada na telas digitais, em HouseLights, do Wooster Group, asesttuas vivas de Money, pelo Attis Theatre, a matria inumana

    do corpo do bailarino em Self Unfineshed, de Xavier LeRoy, os

    guerreiros da poesia em Ilada - Canto XXIII, dirigido por Anatoli

    Vassiliev, o documentrio pessoal de Tim Etchells, em Instructions

    for Forgetting, entre inmeros outros exemplos possveis, a vocao

    teatral da presena est sob investigao, a cena expondo-se lugarde composio, toda uma estranha presena nos palcos.

    Estamos, no h como evit-lo, perante uma discusso com impli-

    caes polticas, a presena ainda um fulcro desta querela. Jacques

    Rancire define a esttica, antes de mais, como um sistema de

    formas que determina o que se d a sentir (ranciere2005: 16);

    e, a partir desta noo de base, ele pensa as prticas artsticas en-

    quanto maneiras de fazer cuja particularidade passa por intervi-

    rem na distribuio geral das maneiras de fazer, por intervirem

    nas relaes destas maneiras de fazer com maneiras de ser e com

    formas de visibilidade (ranciere2005: 17). A relao entre esttica

    e poltica passa, ento, pelo fato desta ltima implicar um modo departilha do sensvel, isto , uma economia de espaos, de tempos

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    e de tipos de atividade que determina como um comum se presta

    participao, e como uns e outros tomam parte nessa partilha

    (ranciere2005: 15). Em O espectador emancipado (2010), Rancire

    desenvolve uma reflexo sobre os modos como o teatro se articula

    hoje com as mais diversas prticas artsticas e de como pode a sua

    interveno poltica ser pensada. No centro deste debate, o parado-

    xo do espectador, assente na noo, enraizada pelo menos desde o

    romantismo, de que o teatro est singularmente associado ideia

    de comunidade viva como presena a si (ranciere 2010: 13); este

    paradoxo do espectador nos discursos correntes sobre teatro deque o teatro no existe sem ele e, ao mesmo tempo, ser um espec-

    tador um mal, pois olhar o contrrio de conhecer, o contrrio

    de atuar (ranciere 2010: 10); a abolio do espetculo, assim,

    tantas vezes desejada pelos movimentos reformadores do teatro

    afigura-se como o meio para restaurar essa referida assembleia ou

    cerimnia comuns (ranciere 2010: 13-14). Rancire avana ques-tionando a pressuposta essncia comunitria do teatro: (...) en un

    teatro, ante una performance, como en un museo, una escuela o

    una calle, jams hay otra cosa que individuos que trazan su proprio

    camino en la selva de las cosas, de los actos y de los signos que se

    les enfrentan y que los rodean (ranciere 2010: 23). Para ele, so

    antes indivduos e ainda bem, so individuos os espectadores eno h nada de inativo nesse olhar, posto que ele:

    Observa, selecciona, compara, interpreta. Liga aquello que ve a otrascosas que ha visto en otros escenarios, en otros lugares. Compone suproprio poema con los elementos del poema que tiene delante. Participaen la performance rehacindola a su manera, sustrayndose por ejemplo

    a la energa vital que se supone que sta ha de transmitir, para hacer deella una pura imagen y asociar esa pura imagen a una historia que ha

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    ledo o soado, vivido o inventado. (ranciere2010: 20)

    So oposies que talvez seja importante questionar, elas no so

    quaisquer dados lgicos evidentes, olhar oposto a saber, aparncia

    contrrio de realidade, atividade contraposta passividade, talvezestas oposies impliquem os prprios termos que visam abolir.

    O problema da presena dos espectadores na sala com os atores,

    co-presena, ento, no esgota a situao teatral, o encontro um

    terceiro termo, um terceiro espao e tempo, no encontro tambm

    a atuao do espectador que trabalha o espetculo. Menos que um

    obstculo, o espetculo a mesa qual se sentam, frente a frente,

    afastados e, simultaneamente, juntos por ela mesma, os dois co-

    mensais do teatro: esta mesa, onde cada um coloca os seus de-

    sejos, ela mesma outra coisa que os comensais, objeto terceiro de

    equilibrio instvel, que descarta qualquer transmisso do idntico

    e se abre s fruies mltiplas (ranciere2010: 21). No, ento, a

    pura presena de pessoas ou energias humanas religando o crculo

    comunitrio ou a assembleia, mais uma estranha presena, cujo

    sentido e significado carece de decifrao e de transposio para o

    dialeto singular de cada elemento na plateia; espetculo, uma estra-

    nha presena: um argumento a favor do movimento entre adeso

    e distncia, referido por Fral, uma crtica possvel esttica dopavor, mencionada por Lehmann: o que fica depois da surpresa e

    do espanto?

    Tempo ainda para sublinhar o problema poltico das artes, ele

    est mesmo em querer determinar os efeitos da arte para alm

    da sua indeterminao, para alm das imprevisiveis associaes e

    dissociaes levadas a cabo pelos individuos. Num regime artstico

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    mais e mais marcado por intercmbios de competncias, lugares

    e poderes: teatro sem palavras e dana falada, instalaes e aes

    entre as obras visuais, poesia cantada, entre outras modalidades:

    esta aproximao entre as artes que se observa na cena contempo-

    rnea, por vezes ecoa a ideia de obra de arte total, outras vezes

    louvada sob o signo do hibridismo inevitvel dos nossos tempos,

    duas interpretaes que parece apenas enfatizam os efeitos das

    performances, sem questionar os seus princpios. Talvez seja ne-

    cessrio, pelo menos acredita Rancire, entender antes o teatro dos

    nossos tempos como uma cena da igualdade, o teatro no mais queas outras artes se mostrando capaz de intervir na vida em comum:

    Frente al hiper-teatro que quiere transformar a representatin en

    presencia y la pasividad en actividad, ella propone, a la inversa, re-

    vocar el privilegio de vitalidad y de potencia comunitaria concedido

    a la escena teatral para ponerla en pie de igualdad con la narracin

    de una historia, la lectura de un libro o la mirada posada en unaimagen. (ranciere 2010: 27) Talvez no seja o teatro, afinal, mais

    que o lugar de palavras, palavras, palavras, talvez o lugar de corpos

    em movimento, tantas possibilidades h ainda, no tanto o lugar

    de puras presenas, energticas ou lgicas, antes talvez o lugar de

    individuos atores e de individuos espectadores investidos num

    jogo de enunciao e decifrao desse objeto singular e efmeroque se constri em conjunto no momento do encontro: espetculo

    jogado e de efeitos imprevisiveis, da sua estranha presena depen-

    de, talvez, a possibilidade de um horizonte poltico para o teatro,

    pois una comunidad emancipada es una comunidad de narrado-

    res y de traductores (ranciere2010: 28). Menos, ento, que uma

    intensificao do que , via a performatividade do acontecimento

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    cnico, visando a surpresa e adeso afetiva dos espetadores, talvez

    o horizonte poltico do teatro se possa achar na abertura de uma

    arena na qual os prprios espectadores possam continuar a repre-

    sentao.

    2.4 | INSTRUCTIONS FOR FORGETTING

    I ask my friends to send stories and videotapes. For the stories I

    ask for things that are true. The topics can be anything. I ask for

    short reports on things that have happened in the world. For the

    tapes I say: Dont make me anything special - send what you have.Incio e refro da apresentao, ficamos a saber, o protocolo de

    trabalho, a estratgia do processo, uma indicao da origem dos

    materiais. Vdeos caseiros e pequenas histrias, incertamente

    localizadas entre a fico e a realidade, com diferentes pesos na

    boca, desenrolam-se, ora tecendo, ora sugerindo reflexes sobre as

    imagens, sobre memria, sobre como diversa a experincia domundo. Na cena: uma mesa, atrs est sentado o ator, ele tambm

    o encenador, tambm o dramaturgista, na verdade ele mais ele

    mesmo que um ator, l, fala-nos, quase nada faz toda a hora e

    meia, comove-se um pouco; outra mesa, atrs, tambm sentado, o

    operador de vdeo, assistente em cena, tcnico ator sem tcnica de

    atuao aparente; trs monitores de televiso, julgo que so trs,

    alguns cabos espalhados pelo cho e pequenos montes de cassetes

    de video. Atitude quotidiana geral, no fora a cuidada economia

    do gesto, a calculada litania das narraes que se enleiam, no nos

    proposta qualquer personagem ou outro espao que este teatro,

    falam-nos nos olhos. O grande plano sequncia deste espetculo

    termina com uma edio em paralelo de cangurus a lutar, pessoas

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    na rua a fazer audies para um musical, o reflexo do sol nas guas

    de um rio. Revejo tudo isto pelo enquadramento fechado sobre o

    protagonista e a mesa onde est uma garrafa de vodka bom, estou

    em casa frente ao cran de televiso, o comando do leitor de dvds

    na mo, stop. So Paulo, Novembro de 2010.

    O teatro de Tim Etchells, ele quem o diz, is often concerned with

    liveness and presence, with the unfolding of events in time and

    place, em cada trabalho, continua, something happens - there is

    an encounter, a process, the unfolding of an event and its implica-

    tions and an exploration of the dynamic relationship between thework and the viewer (etchellss/d). Presena produzida na cena,

    ento, no movimento entre, no jogo de mscaras que ocultam e re-

    velam, no bascular de uma tenso, quando algo que se transforma:

    Showtime (1996), quando a atriz Cathy Naden, at ento dentro

    de uma fantasia de cachorro, latindo, errtica pelo palco dentro

    do palco, quando ela, suando e um pouco sem respirao, pela

    primeira vez depois de cinquenta minutos de espetculo, mostra o

    seu rosto e fala num registo intimista sobre como ela se suicidaria

    se alguma vez o fizesse: Cathy is very here, and very now, very

    here and now, in the ruins of the Dog game shes very present.

    (etchells 2008: 57): presena quando a mscara que j havamos

    esquecido, se revela, puro meio que se mostra, mscara que faz ver

    e que oculta, no sabemos, o Co, a Atriz que nos fala. perti-

    nente perguntar qual a relao do ator com aquilo que faz, como

    perguntam os atores entre si, em A Decade of Forced Entertainment

    (1994): Richard Lowdon interroga: Why work in more or less the

    only field which still insists on presence? For artists interested inthe the contemporary, this area of live performance seems like

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    a bit of a backwater. Do you have anything against mass repro-

    duction? Do you work from some quaint notion about immediacy

    and real presence? Terry OConner responde: I dont know.

    (etchells 2008: 44) Ambiguidade porque h tanto uma explora-

    o das emoes reais dos atores quanto uma implicao destes

    no ato de fingimento (etchells 2008: 53), capacidade de jogo s

    portas da morte que revela que os homens no se restringem a

    fatos ou biologia (etchells 2008: 50): diz a atriz Claire Marshall,

    going through a series of emotional states (forced entertain-

    ment1999): indeterminao emocional que os atores constroem,evoluo entre expresso individual, comunicao entre si e os

    espetadores, representao de figuras: algures entre o jogo de dis-

    tanciamento brechtiano e o exerccio de transformao pessoal e

    comunitrio realizado pelo xam (etchells1999: 119). A presena

    em cena joga-se entre os destroos da representao, pois no o

    teatro (...) just an endless rearticulation of this proxemics theplay between hereness and thereness the play between presence

    and absence? (etchells 2008: 79) Mais ainda quando se trata de

    entretenimento forado, a presena do pblico na sala no pode

    ser inclume e sem custos.

    A discusso vai para alm dos minutos da apresentao, mesmo

    quando so algumas horas, a presena do ator no um compare-

    cer para cumprir a funo, ele est l antes, demora mais tempo a

    sair, fica sempre um pouco do ator no teatro. Processo e colabora-

    o so centrais na prtica dos Forced Entertainment, no trabalho

    de Tim Etchells, Instructions for Forgettingum trabalho realizado

    entre vrios, Franko B, Mathew Goulish, parceiros presentes distncia, entre outros: na atuao, composta pelos atores colabo-

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    rando entre si e com o diretor, na tica da vida da companhia, seu

    posicionamento no contexto cultural. Processos cclicos, iterativos:

    gerao e desenvolvimento de material, anlise e interpelao das

    cenas, seleo e edio: It spirals. It overlays. (etchells2008:

    118). Projetos de escrita cnica que implicam os atores desde o

    momento da eleio dos materiais de partida at composio

    da montagem, passando pela apreciao das hipteses, das cenas

    encontradas. Mas os prprios processos de criao esto sob inves-

    tigao, no so dados conhecidos, h uma necessidade se colocar

    em problemas (etchells 1999: 52), pois o sentido descobrir osentido no processo mesmo de construo (etchells 1999: 53):

    emergncia. Trata-se de uma esttica que materializa uma tica,

    um compromisso com a cultura contempornea, urbana: rever as

    fitas do sculo XX: fazer um espetculo para algum que cresceu

    numa casa com a televiso sempre ligada, um espetculo que tenha

    as coisas da cidade onde mora (forced entertainment 1999).Colagem de olhares, de criatividades diversas, esgar inquisitivo

    sobre o quotidiano dos elementos da companhia (etchells1999:

    61), teatro pensado como criao de enquadramentos artsticos

    para a vida (etchells1999: 55). A presena do ator que atua a

    do arteso que escreve a cena a do companheiro de viagem num

    mundo que como quem diz um tempo de atividade.

    2.5 | A ILADA - CANTO XXIII

    sada do teatro S. Joo, depois da apresentao um amigo per-

    guntava-se: Ser que este trabalho me deixa sem ter como falar

    dele? Tratava-se da narrativa dos funerais de Ptroclo e outras

    vtimas de Troia que Aquiles celebra, dos jogos realizados imor-

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    talizados por Homero; mas este episdio no na cena cantado

    ou recitado, ele posto em ao: um coro entra e sai de cena,

    danando canta, rio imenso abrindo e fechando os quadros como

    pginas se desfolham, num espao amplo branco vertical, despido

    no fora uma ponte em madeira que desce esquerda. Onde est

    o teatro? Nessa ponte que o nosso ancoradouro, sentada durante

    as quatro horas imvel exceo de um esgar que abre certo ins-

    tante, est uma velha atriz; a seu lado vir um cantor da Sibria

    lembrar-nos a astcia do corredor de cavalos, na curva apertada.

    No centro da arena de jogos, os atores, se forem atores, executamcomplexas sequncias marciais ao mesmo tempo que enunciam o

    texto de uma forma violenta e percurtida mas algo humano ou vital

    sustenta esta movimentao annima de quimonos, de espadas e

    de chicotes, a cujos ps tombam centenas de bonecos de criana.

    Porto, Novembro de 2004.

    Anatoli Vassiliev resume o percurso: A chaque tape de ma bio-

    graphie artistique, en changent de style, jai toujours tudi lart de

    la prsence authentique. Et mon art sest plus loign de lillusion

    de la vie. Certes, cest l que jai commence, mais jai dit adieu aux

    illusions scniques. En recherchant un acteur authentique, natu-

    rel, vivant, je restais fidle lcole russe (vassiliev1999: 163).

    Presena do ator construda, jogada no fluir da composio, inves-

    timento na sustentao do fluxo continuo da vida, o fluxo da

    vida (poliakov2006: 93): ator autntico, natural cnico, termos

    no centro da potica de Vassiliev, ele quem o diz, herdados do

    vocabulrio do teatro psicolgico sovitico, reapropriados para a

    prtica e a teoria das estruturas ldicas: aqui o ator cria no planode fundo, escreve o seu monlogo interior (knebel 1991: 62-

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    65); nas palavras da atriz Valerie Dreville, a atriz coloca-se perante

    o imperativo tico de, a cada momento, rinventer absolument,

    comme si ctait moi qui, dans linstant, en respectant exactement

    le programme prtabli, imaginais les postures, les gestes, les

    intonations... (dreville; gotti2006: 52): no Canto XXIII, foi o

    que eu experimentei, h atores artesos pessoas dentro dos fatos

    brancos, a lanar os versos hericos est um guerreiro da poesia

    animado, as formas esto habitadas. que h sempre pelo menos

    dois elementos presentes na composio, um dos quais permane-

    ce escondido, como que ausente, dissimulado: e h contraponto,paralelismo, divergncia, h polifonia na composio do ator, h

    improviso fsico, uma cano, um nmero de cena, um truque,

    uma armadilha (poliakov2006: 133-134). No teatro de Vassiliev,

    ele quem o diz, a presena do ator est no centro: Lauthenticit de

    lexistence de lhomme sur scne, cest la syllabe de lart thtral,

    son atome, sa particule indivisible. Ensuite, on peut partir de cessyllabes constituues tout les mots que lon veut. Mais tout com-

    mence rellement par l. (vassiliev apudpoliakov 2006: 131).

    Presena produzida, a cena apenas um momento do processo,

    h anlise e sntese, o estdio um laboratrio, experimenta-se,

    ensaia-se para abrir a porta para que o anjo passe: os estudos

    testam articulaes entre a sucesso determinada pelo texto e

    aquela determinada pela natureza criadora do ator, ouro do teatro,

    presena cnica (poliakov 2006: 101): o ator joga com as suas

    palavras, as suas imagens, os seus impulsos, lana-se na ao,

    improvisa para iluminar o texto, pois Il est trs rare que lacteur

    soit naturel lorsquil dit un texte litteraire: presena dos atores edo diretor na presena do texto: Un groupe dacteurs se runit

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    pour tudier une pice. Ils choisissent une scne, ils la lisent,

    lanalysent. (...) Pendant lanalyse, lquipe dfinit les points par

    lesquels lacteur doit passer au cours de ltude. (...) Les acteurs

    vont sur le plateau et, dans une improvisation totalment libre, en

    suivant ltude, ralisent ce quils viennent dtablir ensemble.

    (vassiliev 2000: 345-346). Trabalho conjunto, o estudo permite

    o acordo dos colaboradores sobre o desenvolvimento do percurso

    sugerido pelo texto e descoberto na sua leitura, anlise pela ao,

    experimentao, discusso, no palco e pelo palco; e o processo no

    cessa necessariamente depois da estreia (dreville; gotti2006:52). Alm disso, o estudo cnico um processo de descoberta, de

    trabalho pessoal do ator, diz Vassiliev num ensaio (vassilievapud

    poliakov2006: 99): trabalha a vida mesmo: entende a atriz Valrie

    Drville, o trabalho no teatro com Vassiliev est ligado ideia de

    transformao: Lart de lacteur est li la transformation. (...) Or

    cette transformation implique que lon se transforme soi-mme etque, par-del, on participe la grande transformation humaine

    (dreville; gotti2006: 51) : o que brilha neste teatro, diz Drville,

    so os atores que nont pas seulement acquis la matrise de tout

    ce qui fait leur instrument, mais qui font oeuvre deux-mmes

    (dreville 2006: 9). Antes e depois do espetculo, o processo;

    alm e durante o processo, a presena do ator no mundo.

    2.6 | SINGULARIDADE DE UMA AUSNCIA

    Atores poetas, compositores da cena, artesos do gesto, da pala-

    vra, jogadores e investigadores de teatro, um estranho ator que

    ocupa os palcos contemporneos, mscara animada, corpo morto,

    pode ser um artista. Instructions e Canto XXIII so objetos muito

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    diversos, Tim Etchells e Anatoli Vassiliev artistas muito distintos,

    apesar de partilharem o problema da presena do ator fazedor de

    teatro agente de cultura, de contribuirem para pensar esta estranha

    presena. Para Vassiliev, o nosso tempo Cest tellement abject

    quil vaut mieux nen rien savoir... (VASSILIEV, 1999: 99), ele

    prefere estar junto da tradio artstica e filosfica, na companhia

    de Poushkin e Molire, de Pirandello e Heiner Mller, Homero,

    Plato, trabalhar a literatura como material de cena, faz-la estalar

    no aqui e agora do palco, t-la vibrante no corpo do ator, animada.

    Na rua Sretenka, em Moscovo, o teatro escola e estdio, h muitaluz branca, verticais de catedral, Vassiliev diz que seus colaborado-

    res so companheiros de batalha, parceiros nos valores espirituais,

    contudo, h hierarquias e papis bem definidos, a soberania do

    diretor no teatro de atores: h o importante perodo de estudos,

    conjunto, mas o sentido do trabalho estabelecido pelo encena-

    dor, ele quem define a ideia que o espetculo faz concreta: oator tende para o anonimato na corporizao dos conceitos, uma

    relao teatral com a palavra, mesmo dentro do jogo que o liberta,

    no ironismo: o ator organicidade v. Na rua Union, em Sheffield,

    Etchells prefere o quotidiano, a cidade, a televiso, articula-se

    com prticas das artes visuais e performativas contemporneas:

    a catedral, aqui, est em frente ao shopping, h mais bares navizinhana, h hoteis de madrugada onde esto os elementos da

    companhia, a dramaturgia e a escrita de cena so digestes par-

    ticipadas de comida rpida e baixa cultura produzindo mltiplas

    vises do mundo. Neste teatro, o processo de criao questiona o

    fazer teatral, h sempre mltiplos pontos de partida e quase nunca

    um texto dramtico existe de incio, este vai-se fazendo presente

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    pela prpria produo, ele um texto da cena antes de ser literatu-

    ra. A presena do ator no palco, tambm, chega a convencer-nos

    do seu amadorismo, parecem atores do grupo da escola, por vezes,

    simples, na incerteza frgil da autenticidade fingida, da revelao

    mascarada, banal vi.

    Tentemos o monstro: A Ilada Canto XIII (1996-2004), criao

    coletiva dirigida por Anatoli Vassiliev (Russia, 1942 - ), Instructions

    for Forgetting (2001), concebido e interpretado por Tim Etchells

    (Reino Unido, 1962 - ), dois espetculos que no podem ser pensa-

    dos procurando o conflito, o dilogo, a personagem, a entrada ou ocentro da cena. H narrativas ou, talvez, o que resta delas, canto ex-

    trado do antigo pico transposto para verso russo, mirade de est-

    rias verdicas, parece, mas trabalhadas no palco como um material:

    ao de levar cena histrias, em nome prprio, aos espectadores

    presentes. Protagonismo dos artesos perante o pblico, tambm

    exposio do processo de criao que, alis, no parece poder sepa-

    rar-se do produto, o objeto em curso no momento que se partilha.

    Canto XXIII resultado de dez anos de trabalho, possibilidade

    entre d