Calors Fuentes e Milan Kundera - Um Encontro de Intelectualidades
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CARLOS FUENTES E MILAN KUNDERA: UM ENCONTRO DE
INTELECTUALIDADES
Wilton Barroso
Doutor - UnB
Rosimara Richard
Mestre – UnB
Este trabalho se propõe a pensar alguns escritos de Carlos Fuentes e de Milan Kundera,
como resultado de discussões, senão nascidas, aprofundadas em 1968, quando Carlos
Fuentes, Julio Cortázar e García Márquez desembarcaram em Praga, a convite da União
dos Escritores Tchecos. Os pensamentos de Fuentes e Kundera se aproximam muito na
medida em que ambos têm o romance como um espaço de discurso e de reflexão, que
vai contra o mundo determinado por forças imperialistas. Com a aproximação do
pensamento destes dois autores, mostra-se possível o estabelecimento de um paralelo
entre as intelectualidades latino-americana e centro-européia.
Palavras-chave: latino-americana, centro-européia, Fuentes, Kundera.
Coincidências históricas e ideais que aproximam
As preocupações políticas e sociais marcaram em muito a carreira de Carlos Fuentes
como escritor. Ele nasceu no Panamá e se naturalizou mexicano. Escreve romance e é um
importante ensaísta. Seus escritos muitas vezes demonstram suas preocupações com uma
identidade mexicana. Hoje, é um dos escritores hispano-americanos mais conhecidos em seu
país, ao lado de Octavio Paz, com quem fundou a Revista Mexicana de Literatura, em 1955.
Milan Kundera é tcheco. Hoje, naturalizado francês, vive na França. É dono de uma
obra que comporta poesias, ensaios, peças, romances e contos, traduzida para muitas línguas
estrangeiras. Assim como Fuentes, Kundera também retrata em seus livros grande parte da
história de seu país. Vivenciou as muitas mudanças pela quais seu país passou com a
Segunda Guerra Mundial e a Primavera de Praga e foi um importante representante na luta
pelos direitos dos cidadãos tchecos. Kundera foi protagonista de protestos contra a ordem
estabelecida. Por isso chegou a ter a publicação de seus livros proibida na antiga
Tchecoslováquia, sendo impedido de trabalhar como escritor, o que o fez deixar seu país.
Ele e Fuentes são, até hoje, representantes de uma época de contestação, revolta,
violência e repressão, ideais comuns que fizeram com que um vínculo de proximidade entre
eles fosse estabelecido:
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Fazia três meses que o Exército russo invadira a Tchecoslováquia; a Rússia ainda não
era capaz de dominar a sociedade tcheca, que vivia em angústia, mas (por alguns
meses ainda) com muita liberdade; a União dos Escritores, acusada de ser a sede da
contrarrevolução, conservava sempre suas casas, editava suas revistas, acolhia
convidados. Foi então que, a convite dela, chegaram a Praga três romancistas latino-
americanos, Julio Cortázar, Gabriel García Márquez e Carlos Fuentes. Chegaram
discretamente, como escritores. Para ver. Para compreender. Para encorajar os
companheiros tchecos. Passei com eles uma semana inesquecível. Ficamos amigos.
(2006, p. 78, grifo nosso)
No texto intitulado Milan Kundera: um idílio secreto, Fuentes relata a visita que
fizera a Praga, em dezembro de 1968, ao lado de Gabriel García Marquéz e Julio Cortázar, ao
serem convidados pela União dos escritores tchecos para participarem de uma solenidade de
premiação. Fuentes havia conhecido Kundera quando este fora a Paris por causa do
lançamento de seu primeiro livro, A Brincadeira, durante a primavera de 1968. Foram
apresentados por seu editor comum, Ugné Karvelis (1), o qual insistia, desde o início dos
anos 60, “que os dois centros mais urgentes da narrativa contemporânea se achavam na
América Latina e na Europa Oriental” (2) (1989, p. 196).
A chegada a Praga naquele momento tumultuado e o encontro com o escritor tcheco
foram acontecimentos muito marcantes para Fuentes. Afirmamos isso porque, o relato dessa
visita pode ser encontrado em pelo menos três de seus livros: no Eu e outros ensaios
escolhidos (1989), em A geografia do romance (1993) e no Em 68: Paris, Praga e México,
tendo alteradas apenas algumas palavras (3).
No texto, Fuentes descreve suas impressões sobre a cidade de Praga e como ela se
apresentava aos seus olhos naquele momento. Diz que “Entre o alto gótico e o barroco, sua
opulência e sua tristeza se consomem num casamento da pedra com o rio” (1989, p. 195) (4).
A cidade lhe causa sensação de frio e parece padecer naquele momento triste de uma
maldição que, tal qual as maldições dos contos de fada, tem suas ruas, casas e construções
envelhecidas e escurecidas, demonstrando a falta de vida. Os habitantes estavam
transformados em estátuas, impossibilitados de agir, como se aguardassem o momento em
que o encantamento seria suspenso.
Os escritores se encontraram em uma sauna para conversar, segundo Kundera, o local
escolhido era “um dos poucos lugares onde as paredes não tinham ouvidos” (1989, p. 198). A
conversa versou sobre os inúmeros acontecimentos ocorridos no leste europeu, revoltas
modernas contra a hierarquia opressora – revoltas intelectual, industrial e nacional -, que
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demonstravam que o país estava politicamente descentrado. Contudo, demonstravam também
que apesar disso, havia um planejamento central, que possibilitava a iniciativa dos conselhos
dos trabalhadores, os quais tomaram uma decisão: a democracia se exprimiria por meio de
um voto secreto (1989, p.197).
Por causa desses acontecimentos via-se que o país estava democraticamente unido e
que era possível o surgimento de uma imprensa livre e que realmente representasse os
diversos grupos sociais que, a partir daquele momento, puderam participar das discussões
sobre as iniciativas do Estado nacional. Isso possibilitou o surgimento de muitas opiniões e
poderes, exigindo o estabelecimento de uma democracia no interior do partido comunista,
fazendo com que o mesmo quase acontecesse com o Parlamento, fato que não seria aceito
pela União Soviética.
Este período tumultuado da História ocorrido em Praga, chamado de A primavera de
Praga, é melhor analisado por Fuentes em seu livro Em 68: Paris, Praga e México, junto a
outros dois acontecimentos também significativos, um ocorrido em Paris, A revolução de
maio e outro ocorrido no México, chamado de o Massacre de Tlatelolco. Segundo ele, apesar
de falar em fatos ocorridos em diferentes localidades, as coincidências entre eles são que
ambos aconteceram no mesmo ano, em 1968 e com um objetivo em comum: a reivindicação
de uma mudança social.
Em Tlatelolco, no dia 2 de outubro de 1968, cem mil estudantes – cidadãos -,
dirigidos pelo então reitor Janvier Carlos Días, seguiram em uma marcha do silêncio -
usando mordaças - em direção a Plaza de Las Tres Culturas, quando foram impedidos pelas
tropas do Exército, que haviam tomado a cidade universitária e destruído laboratórios e
bibliotecas na tentativa de conter o movimentos estudantil. Os jovens estudantes, pautados na
crença de que em seu país eram livres para dizer o que pensavam, lutavam por democracia e
pela liberdade para exercer seus direitos. Lutavam por igualdade e por mudança.
Naquele dia, muitos foram mortos, e a cidade escureceu. Eles saíram da condição de
estudantes cheios de vida e de esperança para a condição de Anjos da Reforma, cabendo aos
seus apenas irem ao necrotério para identificar os cadáveres. Para o presidente em exercício,
Gustavo Díaz Ordaz, e mandante do massacre, os mortos eram apenas “desordeiros,
subversivos, comunistas, ideólogos da destruição, inimigos da Pátria encarnada na faixa
presidencial” (1989, p. 155).
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Os dois momentos - um na história de Praga e outro na história do México -, junto a
força da rebelião estudantil, na Europa Central, em Paris, demonstram para Fuentes que “O
ano de 68 [...], é um desses ano-constelação nos quais, sem razão imediatamente explicável,
coincidem fatos, movimentos e personalidades inesperadas e separadas no espaço” (2008, p.
9). No entanto, esta onda de coincidências, em sua concepção, se explica por razões
profundas, ocorridas por causa de uma história ainda por concluir.
A sociedade civil tentava de todas as maneiras mostrar sua força perante a burocracia
comunista. De acordo com Fuentes, a Primavera de Praga, por exemplo, não combatia o
sistema comunista, mas era uma tentativa de humaniza-lo (2008, p. 12). Já, no caso do
México, o movimento foi mais nacionalista, contra práticas repressivas, antidemocráticas e
antipopulares nos poderes que eram postos em vigor pelos governos afins a revolução, os
quais se escondiam por trás de disfarces teóricos e não conseguiam acompanhar a nova
realidade cultural, econômica e social do país. Isto foi um dos motivos que fez com que o
governo de Díaz Ordaz tentasse manter, mesmo que com o alto custo da morte dos
estudantes, o sistema predominante.
Em ambos os acontecimentos aparentemente os mais fracos foram os derrotados.
Aparentemente, porque Fuentes tem muitas razões para crer que as consequências desses
movimentos apenas tornaram-se visíveis mais tarde, quando “na França o socialismo foi
renovado, desprestigiando o comunismo”. Quando em Praga “o poder Soviético e a
satelização da Europa Central foram derrubados” e no México, quando este “saiu do sistema
autoritário monopartidário para um sistema democrático pluralista” (2008, p. 15). Contudo, é
difícil dizer se suas razões se explicam ou se comprovam, todavia, “o fato é que a passagem
se abriu em maio” (2008, p. 16).
Como pudemos ver, o livro Em 68: Paris, Praga e México, de Fuentes, é um livro de
ensaios, porém apresenta muitos protagonistas, que de alguma forma, estavam naquele
momento, agindo para que a história da revolução e de suas lutas sociais tivesse um desfecho
feliz e favorável às suas causas. No México, assim como na França, temos estudantes
dispostos a mudar os rumos de sua história. A história de Praga, ao contrário das outras, nos
é contada por ele de uma perspectiva mais intimista, a partir do olhar de um de seus mais
autênticos representantes, o escritor Milan Kundera.
Em seu livro de ensaios, A cortina, Kundera deixa claro que sua amizade com
Fuentes se fortalecera quando, em 1975, ele se muda para a França, onde Fuentes atuava
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como embaixador do México. Na época, Kundera morava em Rennes e em suas curtas visitas
a Paris tinha abrigo do amigo em uma mansarda da embaixada. Seus encontros para tomar o
café da manhã se convertiam em discussões sem fim, o que lhe possibilitou uma constatação:
“De repente, vi minha Europa Central na vizinhança inesperada da América Latina; duas
orlas do Ocidente negligenciadas, desprezadas, abandonadas, duas terras párias”
(KUNDERA, 2006, p. 79), a Europa Central tinha mais coisas em comum com a América
Latina do que ele podia imaginar.
Durante as conversas dos escritores uma ponte prateada erguia-se entre a Europa
Central de Kundera e a América Latina de Fuentes, o que possibilitou a Kundera pensar em
outra afinidade entre os dois países: eles “ocupavam um lugar-chave na evolução do romance
do século XX: primeiro, os romancistas centro-europeus dos anos 20 e 30 (Carlos me falava
de Sonâmbulos, de Broch, como o melhor romance do século (5)); depois, uns vinte, trinta
anos mais tarde, os romancistas latino-americanos, meus contemporâneos” (6) (2006, p. 80).
Em seu texto, Milan Kundera: o idílio secreto, Fuentes diz que no instante em que
observa Kundera rindo, em sua opulência de “gigante eslavo”, ele imagina-o como uma
figura lendária e vê em seus olhos raiva, mas também humor. Compadeceu-se de sua luta,
pensava que assim como outros latino-americanos, tinha boas razões para falar de
imperialismo e invasões, que devido a sua história conhecem bem o princípio da não-
intervenção. E, a partir daquele momento passou a compartilhar com Kundera “uma certa
visão do romance como um elemento indispensável, um elemento que não pode ser
sacrificado, da civilização que um tcheco e um mexicano podem ter em comum: um modo de
dizer as coisas que não podem ser ditas de nenhum outro modo” (1989, p. 201).
Tanto para Fuentes como para Kundera, o romance é uma forma de conhecimento,
que reflete a vida do homem e a protege do esquecimento. E sua única razão de ser seria
descobrir o que somente um romance pode descobrir, algo ainda desconhecido da natureza
humana, da existência: “O conhecimento é a única moral do romance” (KUNDERA,1986, p.
11).
Fuentes, em A geografia do romance, levanta um questionamento: “o que é a
imaginação senão a transformação da experiência em conhecimento?” (2007, p. 13). No
romance podemos encontrar a história, que espera para ser descoberta. Nas ruas da história é
que transitam os personagens, o que faz com que no romance se possa encontrar vida,
contudo, ninguém lê Kundera ou García Márquez por causa de suas nacionalidades, mas por
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causa de suas maneiras de imaginar, pois o romance acrescenta algo à realidade e acaba por
criar uma nova realidade.
Kundera, em seus livros de ensaio A arte do romance (1986), Testamentos traídos
(1993) e A cortina (2006) expõem de maneira clara e objetiva o que pensa, entende e
considera como romance. Eles trazem reflexões realizadas por ele a partir da obra de grandes
escritores da literatura e a partir de seu próprio fazer literário. Kundera é um crítico do
romance e deixa claro que quando um autor escolhe outros autores para pensar e refletir
sobre seus processos criativos é porque, em algum lugar de sua criação, ele coabita com eles.
Em seu trabalho mais recente, o livro de ensaios Une Rencontre, lançado em 2009,
Kundera apresenta uma carta que foi escrita em comemoração ao aniversário de Carlos
Fuentes, setenta anos após seu nascimento e trinta anos após o encontro dos dois em Praga.
Confirma que conversavam muito sobre política e o romance, e diz que “Em particular sobre
este segundo tema, estávamos muito mais próximos um do outro” (2010, p. 86). Discutiam o
fato de suas “duas partes do mundo”, a Europa Central e a América Latina, serem
importantes representantes na evolução do romance do século XX, com os grandes
romancistas da Europa Central, nos ano 10, 20 e 30, como Broch, Kafka, Musil e
Gombrowics, e na América Latina, durantes os anos 50, 60 e 70, com Juan Rulfo, Carpentier,
Sabato, seguidos por Fuentes e seus amigos, Cortázar e García Márquez.
Nesse livro, Kundera segue na mesma linha de suas antologias anteriores, porém
destina um espaço para escritores latino-americanos como Juan Goytisolo e Gabriel García
Márquez e comenta seus trabalhos. Com Goytsolo percebe que pior que o escândalo da
repetição de um fato, é o esquecimento deste fato e, com García Márquez, constata que Cem
anos de solidão “é uma apoteose da arte do romance, é ao mesmo tempo um adeus à era do
romance” (2010, p. 52).
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NOTAS EXPLICATIVAS
1 Na época da publicação do livro de Milan Kundera, Karvelis era editor da Gallimard,
ao lado de Claude Gallimard.
2 O termo Europa Oriental para se referir a República Tcheca não é bem aceito por
Kundera, que afirma que no mapa seu país ocupa um lugar central e não o leste da
Europa, pautado em dados geográficos e não políticos.
3 Acreditamos que as pequenas modificações encontradas nos três textos ocorram
devido a alterações causadas por diferentes traduções.
4 Utilizaremos o texto constante no livro Eu e outros ensaios escolhidos, por ser esse o
mais antigo dos três, por acreditamos que este seja o primeiro livro em que o texto
Milan Kundera: um idílio secreto, material de base fundamental do nosso artigo,
aparece.
5 Segundo consta no livro Um encontro, de Milan Kundera, em 1999, o Frankfurter
Allgemeine Zeitung, durante todas as semanas deixava a cargo de escritores a escolha de
uma obra literária que considerassem a maior do século. Fuentes escolhera Os
Sonâmbulos, de Herman Broch.
6 Além de amigo, Kundera é também admirador de alguns escritores latino-americanos,
entre eles Gabriel García Márquez, que na ocasião da visita a Praga lhe entregou os
protótipos da edição tcheca de seu livro Cem anos de solidão, que muito o impressionou
por seu “tamanho estilo”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Wilton, BARROSO, Maria Veralice, PAULINO, Itamar Rodrigues. Artigo
Fuentes e Kundera: distâncias e aproximações na arena do romance, apresentado em
Congresso na Universidade Federal Fluminense, 2010.
FUENTES, Carlos. Eu e outros ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Rocco, 1989.
____________. A geografia do romance. Rio de janeiro: Rocco, 2007.
____________. Em 68: Paris, Praga e México. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
KUNDERA, Milan. A Brincadeira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Trad.
Fonseca, Teresa Bulhões Carvalho da.
____________. O livro do riso e do esquecimento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. Trad.
Fonseca, Teresa Bulhões Carvalho da.
8
____________. A arte do Romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. Trad.
Fonseca, Teresa Bulhões Carvalho da. e Mourão, Vera.
____________. Testamentos traídos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. Trad.
Fonseca, Teresa Bulhões Carvalho da.
____________. A cortina. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Trad. Fonseca,
Teresa Bulhões Carvalho da.
____________. Um encontro. Portugal: Dom Quixote, 2011. Trad. Isabel St. Aubyn.