Câmara Escura, por Guilherme Dearo

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1 Câmara escura _Guilherme Dearo Maio de 2015

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Peça escrita por Guilherme Dearo. Todos os direitos reservados. Apresentada no festival Satyrianas 2014, em novembro de 2014.

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Câmara escura

_Guilherme Dearo

Maio de 2015

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PERSONAGENS

O jovem

O irmão

Uma testemunha

Um fotógrafo

Homem

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Prefácio

HOMEM – Sobrevoo a velha Síria na volta para casa. Escolhi sentar na

janela. Na verdade, o único lugar vago. Olho pelo vidro. Nada vejo.

Saí do hotel onde estava havia uma semana ainda à tarde. O Sol era

forte. Dava para ver as casas e as pessoas e o que ainda estava de pé. A

destruição já chegou por aqui. Mas o horizonte era visível, ainda que

em chamas.

O meu voo saiu de Damasco depois de três horas de atraso, após uma

ameaça de bomba ser descartada. O avião decolou com a escuridão

tomando conta de todos nós.

É nessa hora que olho pela janela. Nada mais existe. Cinco minutos

depois, não há mais luz. A capital ficou para trás. O deserto, onde antes

existiam pequenas cidades, não conhece mais ninguém.

É o quarto ano da guerra e são mais de duzentos mil mortos. Perdi três

amigos. Outros, com mais dinheiro, fugiram faz tempo. Eu tive de

trabalhar mais para conseguir sair daqui. Alguns deles não tiveram a

mesma sorte e sei que nunca terão.

Leio que estamos na Idade das Trevas. Uma nova era de escuridão nos

abateu em pleno século 21. Estamos cegos. Não enxergamos nossa

própria mão à frente, não vemos quem amamos.

Leio que 83% das luzes desse país se apagaram. Eles as apagaram,

entre os flashes dos bombardeios e o cheiro da morte. É como um

grande medidor oficial. Conseguimos contar quanta energia e quantas

vidas ainda restam antes do fim. Em Aleppo, 97% se foram.

Eu esperava ver as ruas e os prédios, mas o que vi foi o grande vácuo.

Grande vácuo da razão e do entendimento. Estão sendo enterrados

vivos. Onde não há mais rastro no céu, as pessoas lutam pela

sobrevivência até o último suspiro.

O JOVEM – Estamos esquecidos onde não há mais nada. Foram embora.

Viraram as costas, partiram enquanto ainda viviam. Não tinham outra

escolha.

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Dissolvidos entre as sombras, não podemos ser vistos. Assim, nos resta

o esquecimento. Eles querem esquecer porque não podem fazer nada

por nós. É uma forma cruel de piedade. O que nos aguarda, o que nos

foi reservado: o apagamento.

Nós, apenas, imersos na própria escuridão e consciência, nesse espaço

flutuante. Silêncio. Ouço apenas meus pensamentos quando a noite cai.

Deito na cama e não preciso fechar os olhos. A grande questão, o que

não me deixa dormir, é que nada poderei escrever. Sem luz, não há o

que desenhar, o que dizer. Sem luz, não há nada.

O que farei das coisas que precisam ser vistas? O que farei das coisas

que precisam ver?

I. Quero ser terrorista

1.

O JOVEM – Quero ser terrorista. É este meu desejo agora.

UMA TESTEMUNHA – Quando o vi pela primeira vez, não imaginei essa

frase saindo de sua boca.

O JOVEM – Eu preciso ser um terrorista. Enquanto estou aqui,

pensando nisso, ele empilha os corpos, um por um, com a frieza de um

tecnocrata em seu terno de muitos mil dólares.

UMA TESTEMUNHA – Ele causa esse efeito nas pessoas.

O JOVEM – O futuro não podia me reservar mais nada. Não tinha como

ser diferente. Tinha?

UMA TESTEMUNHA – Eu não sei.

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O JOVEM – Olhe para mim. Veja o que fizeram com minha família. Veja

meu irmão. Tinha como ser diferente?

UMA TESTEMUNHA – Cabelo cortado de acordo com a moda. Jaqueta

de couro, camisa da Grã-Bretanha. Calça jeans. Sapatos caros.

Smartphone no bolso.

O JOVEM – Eu amarraria bombas em meu corpo.

UMA TESTEMUNHA – Ele sorri para as fotos. Tira as suas com um

iPhone. Posa na frente de espelhos, brinca com os reflexos. Fotografa

os seus amigos, que lhe sorriem.

O JOVEM – Eu vi o meu amigo morrer. E ontem uma criança foi retirada

dos escombros.

UMA TESTEMUNHA – Ele olha para a câmera com decisão. Sorri de

canto de boca. Fixa os olhos direto em seu interlocutor. Não tem medo.

Sorri. Ele sabe o que não sabemos.

O JOVEM – É preciso por um fim nisso tudo.

UMA TESTEMUNHA – Ele tem um perfil no Facebook. E no Twitter. E

no Instagram. Ele sabe falar inglês.

O JOVEM – Aqui tinha uma rua. Eu costumava andar por aqui. Nessas

pedras.

UMA TESTEMUNHA – É um garoto normal. É seu amigo, seu vizinho.

O JOVEM – Serei o próximo?

UMA TESTEMUNHA – Dias normais em um mundo anormal.

O JOVEM – Ele se veste como um ocidental. Eu me visto com um

ocidental? Somos parecidos?

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2.

O JOVEM – “Se Deus quiser, vou voltar amanhã para Aleppo. Deus

garante a vitória ao que é certo”.

UMA TESTEMUNHA – Muita gente não vai sair dessa terra arrasada.

Eles acreditam na vitória. Acredita que é certo.

O JOVEM – Eu vi Arabs Got Talent ontem à noite. A televisão lá de casa

ainda funciona. Mas eu tive de contar ao meu amigo quem ganhou

porque no bairro dele não tem luz. Ele é tão viciado quanto eu. Eu

gosto de música. Gosto desse Arabs Got Talent.

UMA TESTEMUNHA – A vida nunca deixa de continuar, hora após hora,

mesmo que o mundo exploda lá fora.

O JOVEM – Mas muita gente por aqui não assiste e acha um absurdo.

O IRMÃO – O meu irmão é especial. Ele é um garoto comum. Ele tem

amigos. Reza sempre. Sonha com uma Síria melhor. Antes disso, entra

no Facebook, assiste aos seus programas, ouve as suas músicas.

O JOVEM – Acham estranho que eu goste de Katy Perry, Shakira, essas

coisas. Não sei por quê. Todo mundo na América escuta, não escuta?

Elas são bem famosas. Então a gente escuta aqui também.

O IRMÃO – Não gostam do meu irmão. Dizem que ele é estranho. Ele

posta fotos dos seus amigos, muitas fotos. Gosta de fotografar. Sempre

com muitos corações nos comentários. Ele os ama.

UMA TESTEMUNHA – A quem pertence o seu coração?

O JOVEM – Este aqui é meu melhor amigo, Khalid.

UMA TESTEMUNHA – É preciso ter amigos do lado nos momentos

difíceis.

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O IRMÃO – E eu sou o irmão.

UMA TESTEMUNHA – Há o nosso sangue e o sangue que escolhemos

para nós. Podemos morrer por ambos.

3.

O IRMÃO – Não me lembro de como aconteceu.

O JOVEM – Eu nem tinha nascido.

O IRMÃO – Não me lembro dele.

O JOVEM – Eu o vejo em fotos. E sinto a devida raiva.

O IRMÃO – Mas um escrito em um túmulo em Maqburat me lembra a

sua vida. Vêm algumas memórias.

O JOVEM – Foi quando ele nasceu para o que é hoje.

O IRMÃO – Sinto saudade do meu avô.

O JOVEM – Queria me lembrar mais dele.

O IRMÃO – Estamos aqui, combatendo, afinal.

O JOVEM – Ele quer nos derrubar.

O IRMÃO – Estamos aqui, dia após dia. Estamos em pé.

O JOVEM – Eu preciso de dinheiro. E ele deve morrer.

O IRMÃO – E estamos aqui.

O JOVEM – Sonho em conhecer a Inglaterra.

O IRMÃO – Não há nada lá. Eles não fazem nada por nós.

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O JOVEM – Mas jamais explodiria a Inglaterra. Eu queria ir e andar

naqueles ônibus vermelhos.

O IRMÃO – Um dia não terá diferença.

O JOVEM – Não vou destruir o lugar que eu quero conhecer.

O IRMÃO – A nossa luta é longa. Não terminará tão cedo. Mas

venceremos.

O JOVEM – Eu sei.

O IRMÃO – Somos os libertadores.

O JOVEM – Conte-me. Do tempo dos libertadores.

O IRMÃO – Eu também não sei. E nossa mãe não fala.

O JOVEM – Nunca falou?

O IRMÃO – Silenciou desde aquele dia. Nunca me contou nada.

O JOVEM – Mas ela guarda a foto, não guarda?

O IRMÃO – Sim, a única foto. Ele vive ali.

UMA TESTEMUNHA – Um dia ele me mandou por e-mail esta frase:

“Após o fim do evento, a foto ainda existirá, conferindo ao evento uma

espécie de imortalidade (e de importância) que de outro modo ele

jamais desfrutaria. Enquanto pessoas reais estão no mundo real

matando a si mesmas ou matando outras pessoas reais, o fotógrafo se

põe atrás de sua câmera, criando um pequeno elemento de outro

mundo. O mundo-imagem, que promete sobreviver a todos nós”.

O JOVEM – Há um imortal vivendo dentro de nós.

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4.

O JOVEM – “Ele destruiu a nossa civilização, o nosso futuro. Mas tudo é

barato se comparado com a liberdade”.

UMA TESTEMUNHA – Não faça isso.

O JOVEM – Recebo onze mil libras sírias enquanto analisam a minha

candidatura.

UMA TESTEMUNHA – É isso mesmo? É o que realmente quer?

O JOVEM – Esse dinheiro é suficiente. Compro as minhas coisas. Ajudo

a minha família. Será bom por um tempo.

UMA TESTEMUNHA – Você não precisa.

O JOVEM – Quando eu morrer, já não importa. Ficará para a minha mãe.

Ajudará o meu irmão.

UMA TESTEMUNHA – Você morreria por essa causa?

O JOVEM – Mas sei que não irão me aceitar.

UMA TESTEMUNHA – Essa é a sua causa?

O JOVEM – Eles irão pagar diante de Deus por tudo o que estão fazendo.

UMA TESTEMUNHA – Você pode vir comigo.

O JOVEM – Mas não irão me aceitar.

UMA TESTEMUNHA – Por quê?

O JOVEM - Não tenho barba. Tenho muitas amigas mulheres no

Facebook. Não mostro que sou religioso o suficiente. Eles não gostam

disso.

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UMA TESTEMUNHA – Você reza todos os dias?

O JOVEM – Não irão me aceitar. Sei que não.

UMA TESTEMUNHA – Eu não contei para ele. Mas estava torcendo por

isso.

O JOVEM – O que farei, então?

UMA TESTEMUNHA – Eu também não sabia o que fazer.

O JOVEM – Como poderei olhar para meu irmão? Como serei digno a

ele?

5.

O IRMÃO – Sempre me orgulhei de lutar pelo meu país, pelo meu povo.

Garantindo a segurança dos nossos, garantia a segurança deles. Sempre

tive essa convicção.

O JOVEM – Quando decidirem se posso me juntar à luta, vão lhe avisar,

certo? Eles disseram que você deveria me falar.

O IRMÃO – Certos sacrifícios precisam ser feitos na busca pela

salvação. Nossas vidas precisam estar à disposição do bem maior,

quando chegar a hora. Daria a vida por cada um deles.

O JOVEM – A resposta está demorando.

O IRMÃO – Mas agora sou fraco. Eu me descubro um fraco e tenho raiva

por isso. Porque todos morrem. Todos os irmãos morrem nessa luta,

assim como um dia me acontecerá. Não tenho o direito de ser diferente

e exigir diferente dele. Por que isso me corrói?

O JOVEM – O que você queria me falar?

O IRMÃO – Eu conversei com um amigo em Damasco que pode lhe

conseguir um carro seguro até a fronteira. Você pode sair daqui.

O JOVEM – Do que você está falando, irmão?

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O IRMÃO – Você pode sair daqui. Você pode ir até a fronteira com a

Turquia e ficar em Suruç.

O JOVEM – Você quer que eu fuja? Quer que eu seja um covarde? Eu

preciso ficar aqui e lutar ao seu lado.

O IRMÃO – Eu não quero que você lute.

O JOVEM – Não sou diferente de ninguém. Todos precisam lutar.

O IRMÃO – Você não precisa. Eu não quero.

O JOVEM – Você me ofende quando diz isso. Como acha que posso

continuar olhando para você depois de fugir?

O IRMÃO – Eu não quero que você morra.

O JOVEM – Não morrerei. Nós vamos vencer.

O IRMÃO – Você poderia sair daqui.

O JOVEM – Ficarei aqui.

O IRMÃO – Certo.

O JOVEM – Ficarei ao seu lado.

O IRMÃO – Nosso avô teria orgulho de você.

O JOVEM – E a resposta, já sabe?

O IRMÃO – Não, eu não sei.

--

O IRMÃO – Eu sou a resposta.

6.

O IRMÃO – Cada um nasce para uma coisa. Sei que ele jamais fará o que

eu faço. Nunca direi a ele que é preciso ser como eu. Mas sempre direi

que ele deverá lutar e morrer. À maneira que ele escolher. Mas morrer

e lutar.

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UM FOTÓGRAFO – “Quantos no mundo podem fotografar como quem

consola e não como quem agrava o sofrimento?”

O IRMÃO – Talvez o que ele venha a ser, o que mostrará ser ao mundo,

seja uma ideia, uma visão. Não uma ação. A sua visão de nós talvez nos

mostre o caminho possível e a possibilidade de expiação de todos os

pecados.

UM FOTÓGRAFO – Quando enfim vejo o que estava diante de mim,

sinto que reproduzo o sofrimento. Que o multiplico por dois, três ou

mil, para que se perpetue e seja mais sofrimento. São as mesmas visões

desconsoladas.

O IRMÃO – O que vejo, dia após dia, é a memória indo embora. Nessa

casa destruída, já não é preciso se anunciar à porta. Passa-se pelo

rombo na parede e o que ainda restou da sala de estar. As fotografias

estão no chão. Em outros tempos, penduradas de maneira alinhada e

sagrada na parede maior, à vista dos netos e bisnetos e à vista de uma

Síria futura. Hoje, veem o mundo de baixo sob a poeira e a chuva que

passa pelo telhado já caído.

UM FOTÓGRAFO – Aquela mulher me pediu para fotografá-la. Eu

estava apressado, tinha que pegar o último comboio seguro para

Damasco antes que anoitecesse. Eu morreria se ficasse aqui. Ela

apontou a câmera e me olhou e assim, em silêncio, pediu que eu a

fotografasse. Não queria, era só uma mulher. Mas fotografei e depois

senti vergonha. Porque o fiz por piedade e condescendência, da

maneira mais baixa possível. Porque velha, sem os dentes e os netos,

claramente sem ter o que comer, a poucos quilômetros do combate, eu

sabia o seu futuro. Estaria morta em dias ou semanas, então seu

presente seria essa foto. Vou embora depois de cinco cliques e não sei a

quem poderei mostrar esse retrato velho.

O IRMÃO – Na porta do quarto vazio, uma mesa, a cadeira quebrada, o

vaso de flores rachado, podemos olhar infinitamente aqueles quadros

desemparelhados, tapetes de miséria e de luz, sobre os quais não nos

atreveríamos a andar.

UM FOTÓGRAFO – Hoje, depois de seis dias deitado em tendas

improvisadas e insone sob as bombas, me dei conta de que não vejo um

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espelho há muito tempo. Não vejo a minha imagem, também não tenho

uma fotografia minha. Tenho tudo, menos o meu próprio retrato.

O IRMÃO – E a memória se esvai. Os gestos ancestrais, tão repetidos,

geração após geração, perdem sua capacidade de imitação. Os valores,

tão de longe, se reduzem ao elementar: dar vida, amar, sofrer, morrer.

Quando se anda pelas ruas destruídas e pelos bairros que já não

existem mais, deve-se questionar apenas: “o que é partir, sentir medo,

amar, viver como uma sombra, perder uma perna, engordar, rezar,

consolar, chorar, esperar, brincar, se recolher, levar flores para os

mortos, proteger os filhos, sorrir, ser preso, tocar violino...?”

UM FOTÓGRAFO – “Ele atravessa as paragens, aborda homens, e todas

as suas fotografias estão à altura do homem”. Rezei antes de dormir.

O IRMÃO – Sem nos conhecermos, percorremos a terra sem

compreender grande coisa. E, para aqueles que ficam, só resta uma

missão: não esquecer.

II. Perto, mais perto

1.

UMA TESTEMUNHA – Eu encontrei o seu caderno. Estava dentro de

uma sacola no canto do quarto. Parecia que estava ali esquecida. O

caderno está sujo e rasgado. Deve ter visto de perto a guerra.

O JOVEM – É claro que eu o carrego sempre comigo. Um caderno e uma

caneta.

UMA TESTEMUNHA – Estão faltando algumas páginas, mas dá para ver

uns rabiscos, esses desenhos. E essas anotações. Os desenhos são

qualquer coisa, traços disformes e algumas tentativas de paisagens.

Uns rascunhos para uns retratos, talvez.

O JOVEM – Eu anoto as minhas ideias. O que eu ouço, o que eu leio. E eu

leio muita coisa. Pode ser também que eu tenha anotado a lista do

mercado para depois.

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UMA TESTEMUNHA – Tem um telefone aqui.

O JOVEM – Não me lembro de quem é.

UMA TESTEMUNHA – São as suas referências.

O JOVEM – Assim eu vejo.

UMA TESTEMUNHA – Vejam só:

“No final, a única herança que temos é o nosso planeta”.

“Você não fotografa com sua máquina. Você fotografa com toda sua

cultura”.

“Você fotografa com toda a sua ideologia”.

“Para aqueles que estão desesperados, minha câmera se tornou um

objeto de esperança. Ao longo desses anos, minha mais forte convicção

era de que estava envolvido nos fundamentos da vida”.

“Uma imagem pode expressar um humanismo universal ou

simplesmente revelar uma verdade delicada e pungente ao expor

aquele pedaço de vida que de outra maneira passaria despercebido”.

“Ao me sentar para almoçar hoje, eu tinha certeza de que havia algo

importante que eu deveria fazer, mas não tinha ideia do que era”.

“A luz do pôr-do-sol entrando pela minha casa sempre se revela

perfeita”.

O JOVEM – Os seus olhos, aqueles olhos. Eu queria ter tirado essa foto.

Eu queria ter tirado muitas fotos.

UM FOTÓGRAFO – Sempre me lembro disso. É por essas e outras que

preciso sair daqui. “A guerra é como uma atriz que envelhece. Vai

ficando cada vez menos fotogênica e cada vez mais perigosa”.

2.

HOMEM – Às vezes o destino nos leva para onde não planejamos.

O JOVEM – E agora, o que farei?

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HOMEM – Nunca imaginei que um dia iria embora. Mas esse é o

destino. Seremos arrastados, cedo ou tarde. É preciso caminhar. Assim,

as coisas poderão ser diferentes.

UMA TESTEMUNHA – É preciso que um jovem sem escola e emprego

em uma zona de guerra atualize o seu currículo?

O JOVEM – Eu falo árabe. Eu conheço essas estradas. Eu posso arranjar

o que esses jornalistas me pedem.

UMA TESTEMUNHA – Parece que isso é ter iniciativa.

O JOVEM – É preciso estar próximo. E ver com os próprios olhos.

UMA TESTEMUNHA – Ele não foi embora. Ele resiste.

O JOVEM – Algumas histórias precisam ser contadas. Ao redor da

fogueira, as histórias de quando não se tem mais voz.

UMA TESTEMUNHA – A primeira vez que o vi tentando fotografar, ele

só tinha uma câmera bem simples, quase de brinquedo.

O JOVEM – E um iPhone.

UMA TESTEMUNHA – Não deixava de ser engraçado. Mas o passo mais

tosco pode resultar em destinos certeiros.

O JOVEM – Eu consigo enxergar daqui de cima.

UMA TESTEMUNHA – Depois arranjaram uma câmera de verdade para

ele.

O JOVEM – Eu recebo cem dólares por dez fotos, todos os dias.

UMA TESTEMUNHA – “Quantos anos você tem?”, perguntam a ele.

O JOVEM – O dia está bonito.

UMA TESTEMUNHA – “Quantos anos você tem?”, perguntam a ele.

O JOVEM – Eu vou dar uma volta.

UMA TESTEMUNHA – Sabemos que ele tem dezessete ou dezoito anos.

Mas ele não fala. Diz ter mais de vinte. Ele sabe que pode se meter em

problemas.

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O JOVEM – Eu ganho mais cinquenta ou cem dólares se uma fotografia

minha entrar naqueles álbuns especiais.

UMA TESTEMUNHA – Na verdade, ele me pediu para nunca lhes contar

que ele só tem dezessete anos.

O JOVEM – Falam que é muito perigoso, que isso é loucura.

UMA TESTEMUNHA – Mas ele só queria uma coisa: chegar perto, mais

perto. Sempre naquela direção.

O JOVEM – Você já viu uma foto minha?

HOMEM – Alguns homens escolhem os seus caminhos e seu destino.

Rotas certeiras.

3.

O IRMÃO – Sei que me observam. Olhos voltados para mim. Mas não

me veem. Podem lhe deitar os olhos sem estarem de fato lhe

enxergando. Porque pode se passar a vida sem ser realmente visto,

compreendido, em sua totalidade. Um olho dilacera, capta os pedaços,

um detalhe, algo que lhe é útil. Mas o rosto permanece máscara,

estático e vulgar. Fechado em si mesmo.

O JOVEM – O meu irmão chega em seu cavalo, arma em punho, fuzil

para cima, e grita. Grita por liberdade e as crianças da rua correm em

sua direção. Elas olham para meu irmão como quem vê Deus diante de

si pela primeira vez. Elas correm, gritam e batem palma. Cercam o

cavalo, querem tocar nele, berram de alegria e empolgação. E meu

irmão ali, em cima do cavalo, superior a todos, lhes prometendo a

liberdade e dias melhores por vir. Ele está feliz, apesar de tudo. De tudo

o que vemos ao nosso redor, essa rua sem vida e em ruínas onde ontem

mesmo três pessoas morreram. Ele sorri e brinca dizendo que matará

cem soldados em um só dia com aquela arma. Diz que uma bala está

guardada para Assad. E os meninos em volta olham com admiração e

urram excitados. São apenas crianças, mas alguns deles já pegaram em

armas e já ajudaram a construir morteiros. E os que não conhecem

uma arma pegarão em uma cedo ou tarde. Não irá demorar até que

tenham que fazer alguma coisa com as próprias mãos.

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O IRMÃO – Eu te amo, irmão.

O JOVEM – É essa imagem que quero guardar de meu irmão. Um herói,

um libertador. O nosso salvador que vem anunciar os novos tempos e a

providência. Porque era esse herói que eu via desde criança e olhava

de longe e temia. Esse herói que me mostrou o caminho e me ajudou a

dar os primeiros passos. Ele sou eu, o que quero ser. Eu serei aquele,

um dia, a trazer um tempo de paz.

O IRMÃO – Eu te amo, irmão. Você precisa estar ao meu lado.

O JOVEM – Hoje eu estava diante de um corpo que ardia em chamas,

jogado no chão ali no final da rua. Eu e uma câmera capaz de tirar

muitas fotos em poucos segundos dessa chama e desse corpo, com uma

lente para alcançar um corpo a muitos metros. E eu só penso, quando

ouço o obturador, que depois disso a revolução é zero. A humanidade

não se move. Só me resta sorrir. Só resta rir de mim mesmo. É quando

me pergunto o que estou fazendo aqui e por que os meus iguais

morrem todos os dias.

O IRMÃO – Nossos olhos só podem constatar o óbvio: existiu. Nada

mais. Eles nos gritam para olhar, mirar, perceber, reparar. E é isso.

Nada mais pode ser dito além da constatação de uma existência.

Inegável, indiscutível. Assim criamos a História. Porque poderíamos

não acreditar. Era o que mais queriam. Todos prefeririam negar uma

realidade e um passado doloroso. Mas diante do absoluto, não há

resistência. O passado é, finalmente, crível. Podemos começar a lutar.

Está aqui, bem à frente. Esteve aqui.

4.

O IRMÃO – O dedo é a arma. O dedo dispara. O olho está fechado. O

olho está cego. Nada faz. Eis a ameaça: o dedo.

O JOVEM – Quando estou sob fogo cruzado e aponto a minha câmera,

quando o que vejo diante de mim, pelas lentes, é mais um dos nossos

sendo carregados ou um corpo inútil e um tanto de sangue, eu gosto de

pensar que em casa os meus amigos me esperam. Que ele me espera, e

que depois do trabalho eu poderei relaxar com um narguilé e tudo o

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que farei serão retratos. Vamos rir e eu vou tirar fotos. E só verei rostos

que irão sorrir para mim.

O IRMÃO – O meu cérebro se apaga quando vejo o destino e o que

precisa ser feito. Eu não penso. O medo não existe. É preciso apertar. E

disparar.

O JOVEM – Eu vejo o que já morreu e o que irá morrer. Eu olho para as

fotografias depois, quando preciso editá-las e enviá-las, e tudo que vejo

é o passado. Aqui ele me olha e já não vive mais. E quando penso em

meus amigos e em meu irmão, me lembro dos olhares que ainda são

um presente, que ainda podem estar lá quando eu voltar para casa.

UMA TESTEMUNHA – “Ó, criador do Universo... Ó, criador de nosso

mestre e dos netos de Muhammad... Ó, Deus, tenha piedade desse

jovem...”

O IRMÃO – O meu irmão tinha muitos amigos.

UMA TESTEMUNHA - Ele era seu melhor amigo. Ele deixou uma carta.

O IRMÃO – Ele era feliz.

UMA TESTEMUNHA – Diz que sente saudades. Diz que gostava muito

de você. Não crê em nada. Não quer ficar mais aqui. Também não tem

certeza do que está falando.

O IRMÃO – Foram felizes.

UMA TESTEMUNHA – Revela coisas que nunca revelou. Diz o que

nunca disse e espera os dias que nunca viu.

O IRMÃO – Há tanta mudez, tantas histórias perdidas...

UMA TESTEMUNHA – Diz que o amava.

O IRMÃO – Pouco se escuta entre as bombas e os aviões.

5.

HOMEM – Enlouquece-se pouco a pouco diante da iminência da morte.

E torna-se ela quando já não a teme, quando a encara dia a dia, quando

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já lhe reconhece o cheiro e dá-lhe bom dia e boa tarde. Você a anuncia,

doze ou treze vezes ao dia, categoricamente. “Está morto”. Ninguém lhe

contesta. Você é soberano. Abre-se e fecha-se a porta do inferno. A

loucura desaparece. Tudo é lógico. “Morto”.

UMA TESTEMUNHA – Uma carta foi encontrada. Uma carta de

despedida.

HOMEM – Os corpos empilhados nada representam quando a história

está disposta a repetir-se, dia após dia.

UMA TESTEMUNHA – Ele escreveu para seu amigo. Ele não leu a carta.

HOMEM – E não acreditava em mais nada. Em nada que não

pertencesse a essa terra arrasada. Até um fantasma assombrar a todos

nós. Um corpo sem carta. Uma carta sem corpo.

UMA TESTEMUNHA – Ele diz:

Quando tirou o meu retrato, imaginei que somente você pudesse me

enxergar. Porque podem fotografá-lo mil vezes e mesmo assim não

captar a sua real imagem. A imagem que você faz de si e quer

transmitir, pelo menos. Aquela imagem que você crê que deva ser

mostrada aos outros.

Mas você me olha e eu sorrio. E depois preciso fazer um retrato seu.

Para lembrar.

Quando mira, foca e dispara, está aceitando que as coisas morrem.

Assim deve ser, assim é inevitável. Você participa da mortalidade. Da

vulnerabilidade. Da mutabilidade.

Admite-se que vai morrer. Que pode morrer. Que vai mudar. E um

segundo presente já é passado agora e mais passado depois e nada

poderá ser o mesmo. É preciso parar o tempo.

Ele não para. Porque o seu resultado atesta o passado. Nunca o

presente, nunca o futuro. Cada vez mais distante. Carcomido pelo

vento, pela luz, pelo mofo. Poeira atômica.

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Você admitiu que eu fosse morrer, não é mesmo? Por qual outro

motivo iria guardar um retrato meu consigo? Por que tanto

conformismo? Não tem coragem de lutar contra a dissolução

implacável do tempo?

Por isso não fiz o seu retrato. Eu não admitiria.

Memento mori: lembre-se da morte.

Eu nunca havia pensado na morte. Por que você me fez lembrar, tão

claramente?

6.

UM FOTÓGRAFO – Aqui há um espelho velho e rachado, cheio de poeira

e sangue seco. Não é este. É no acampamento de pernoite, rumo ao

aeroporto, que peço ao guarda local um espelho decente, novo e

decente. Eis minha imagem.

O que vejo não reconheço. Ninguém reconheceria. Não me lembro de

ter ouvido ou dito meu nome em dois meses. Eis um homem esquecido.

Envelhecido, cético. Que nada pode fazer.

Diante do computador, quando envio as fotos ao meu editor, nada me

vem. Essas imagens nada me dizem, a não ser que existiram, que

estavam ali. Que eu estava ali. Aquela casa, aquela mulher, aquele

combatente: existiram. Aconteceram. Mas olho sem colocá-los em

posição de existência. Porque eles não me são nada. Vou embora.

Preciso ir embora. Já perdi há tempos o que carregava.

Eu vejo podridão e sangue, morte e miséria. Tão feio, tão grotesco. Mas

tão notável. Notável porque recebeu a minha nobre atenção. Assim, se

torna belo. Tão belo, tão único. Mas tão pesaroso. Envelhece. Decai. Não

existe mais.

Arte. Falam em arte ou missão. Mas sou um artista? Sou o ajudante do

açougueiro, apenas. Sou a própria autenticação. Atestado de realidade.

É isso o que faço. Ajudo a reconhecer corpos, nada mais. É essa a tal

elevação da alma?

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Eles verão a minha fotografia, irão lamentar. E depois criticar. É preciso

fazer algo, eles dizem. Isso não pode estar certo, eles suspeitam. São

muitos pesares, muitas dores. Todos enxergam a miséria e a beleza.

Menos os próprios objetos. Espectros.

Antes de dormir, tenho um momento sádico. Deliro, imagino histórias.

Um momento de auto piedade. Para, quem sabe, se lembrarem de mim

caso eu chegue em casa em um saco, não em um táxi. Minha mãe

sempre reclamou que não tem uma boa fotografia minha para o seu

álbum. Quem sabe, quem sabe! Que eu poderia ser famoso. Um nome

importante, um rosto reconhecido na rua por gritos e autógrafos, no

mundo todo. Uma pessoa querida. O que foi fazer na Síria, seu idiota? E

me deixariam morrer. Não me salvariam. Ali estaria eu, atrás do carro,

sem ser acudido, em uma emboscada, sangrando, caído, a perna direita

estraçalhada, urrando de dor, perdendo os sentidos, gritando pelo meu

amigo fotógrafo a dez metros de distância. Largue a câmera e venha me

acudir, homem! Mas eu imagino o seu sorriso. O seu sorriso de

satisfação atrás da câmera. E seu dedo impiedoso e volátil disparando

uma, duas, três vezes. Já entendeu ambas as possibilidades. O que está

esperando, desgraçado, chame o médico! Por Deus! Ele não me escuta.

Finge que não me escuta. Ele quer me ver morrer. Quer ser o primeiro

a capturar o meu corpo inerte. A foto de uma vida, dessas

oportunidades únicas. Ele quer espalhar a sua imagem nas capas dos

principais jornais e sites do dia seguinte. Desgraçado! Ele deseja

sangue e fama. Ele vai me transformar em notícia. Serei lembrado, serei

adorado. Isso, seu imbecil, capture o meu melhor ângulo, você sabe que

é o direito, esqueça a perna, termine de me matar, sim? Dispare.

Dispare. Só me prometa que vai enviar essas fotos. Serei famoso, sim,

serei lembrado. Eternizado nessa bela fotografia. Nunca mais morrerei.

Obrigado, obrigado.

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III. Câmara escura

1.

UM FOTÓGRAFO – Um raio de luz retilíneo entra por aquele pequeno

orifício, mínimo, e vai se projetar na parede oposta. Eis, então, uma

imagem real, invertida, na nossa superfície. Quanto menor o orifício,

menos luz. E mais nítida a imagem.

O JOVEM – Este menino olha para o pai, que segura a sua mão enquanto

lhe observa o rosto sujo de poeira e sangue alheio. Eles fogem? O pai

protege o filho dos corpos dilacerados espalhados pela rua, o leva para

casa com um pano na cabeça enquanto pensa sobre quando poderá

fugir? Ou andam ali sem nada temer, sabendo que em algum momento

do dia as bombas virão? E o menino, tão novo, por que olha para cima,

como se esperasse por algo? O pai está olhando para onde? Para o

outro homem? Talvez. Este que tira o corpo do filho debaixo das

pedras, do que restou de sua casa e seu bairro.

E este menino já segura um fuzil e mira por entre um pedaço quebrado

do muro. Ele segura a sua arma com as duas mãos firmes. Fecha o olho

esquerdo para mirar melhor enquanto o direito não pisca. A arma

pesada e maior que o ideal lhe pesa o ombro e o deixa ligeiramente

desengonçado. Mas o cano da arma não se move, está fixo em seu alvo,

para além do muro, rumo ao horizonte. Ele sabe o que procurar, para

onde mirar? Ele sabe ver, quando chegar a hora? Sabe o que fazer?

Conhece as suas mãos, os seus dedos, o poder que eles têm?

E nesta parede cravejada de balas a luz do dia entra por finos sulcos,

deixando menos sombrio o pequeno galpão onde se escondem cinco

deles. E cada buraco lembra o dia anterior e aquele que morreu e

aquele que agradeceu aos céus e à sorte a bala ter passado poucos

centímetros mais à direita. E um dos buracos serve para espiar o

inimigo que se esconde a poucos metros no balcão de uma casa

abandonada. Os dois olhos fixos no pequeno buraco miram o horizonte

e esperam uma deixa para atacar ou para correr, para seguir adiante

ou para esperar um pouco mais, ali mesmo.

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“De que serve a lembrança se tudo se apaga? De que serve a luz, se a

sombra é mais tenaz? O que pensam os homens, com o que sonham,

será que eles sabem de onde são, em que direção caminham?”

2.

HOMEM – Estamos tão cheios da guerra – tantas dores, tantas

despedidas e recomeços – que o fardo se torna insustentável. É preciso

se apegar a algo. Um objeto, um livro, uma lembrança. Coisas leves,

pequenas e únicas, para facilitar a corrida, a fuga, o instinto de

sobrevivência.

Escolhi carregar aquele velho de Al Houleh. Ele não era tão pequeno.

Sessenta anos e o coração tinha parado de bater. Não tínhamos

equipamentos modernos para ressuscitá-lo. Tivemos de improvisar

uma bomba manual. Por dois dias e meio, ele ficou em coma. Nós

revezávamos os turnos, dia e noite, para ajudá-lo a respirar. Uma

simples bolsa manual para apertar, apertar e soltar. Assim, ia ar para

os seus pulmões. Horas intermináveis apertando aquela bolsa de

plástico, no ritmo correto. E assim o deixamos vivo. Assim, no terceiro

dia, ele acordou. Abriu os olhos e perguntou pela esposa.

Na mala, também levo comigo mais de cem fotografias impressas e

outras milhares no notebook. Guardei isso tudo porque imaginei que

pudessem ser de interesse. Que as pessoas gostariam de vê-las. Quem

sabe isso poderia mudar alguma coisa, pensei.

Pensei em rasgá-las, depois. Deletá-las. Por que alguém haveria de

querer estas imagens? Mãos, ferramentas pessoas: tudo está

esterilizado. A norma é aspirar nunca ter experiências desagradáveis.

Não faltar nada, não sentir nada. Não conhecer o fracasso, a dor, a

doença. Não morrer – e, diante da óbvia contrariedade, enxergar a

calamidade, a crueldade imerecida. Assim, não haveria interesse.

Estamos esquecidos por certo, concluí.

Depois, quando revirei algumas delas durante o voo e enxerguei

sangue, corpos cobertos por lençóis, órfãos, concluí que estes

poderiam ser os melhores presentes, as melhores lembranças de

viagem. O que mais gostariam de ver, não é mesmo? Porque há

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curiosidade. Porque não é com elas. Não é comigo. Está distante. Elas

não estão lá. Elas estão a salvo. Daqui não sairão. É isso, deixe-me ver

esta foto, sim? Muito triste, de fato.

Deixo para trás uma sociedade cristalizada, de destinos traçados e

caminho correto. Não era para ser assim. Era para ser uma aventura.

Há os que resistem. Há os que lutam. E estes nos mostrarão o mundo

real. Estes nos soprarão os novos ventos peremptórios de nossa total

volatilidade.

“No mundo real, algo está acontecendo e ninguém sabe o que vai

acontecer. No mundo-imagem, aquilo aconteceu e sempre acontecerá

daquela maneira”.

3.

O JOVEM – Eu devo morrer. Carrego comigo esta lápide para o meu

enterro e o dia que deve ser breve.

O IRMÃO – Por que diz isso?

O JOVEM – Eu pequei. O pior dos pecados para nós.

O IRMÃO – Do que está falando?

O JOVEM – Porque eu desejei que as coisas assim ficassem. Eu quis que

as coisas não mudassem, você entende? O que eu vi... eu desejei...

O IRMÃO – Do que está falando?

O JOVEM – De como eu poderia ter salvado aquelas mulheres. De como

eu poderia ter feito diferente. Mas eu fiquei parado. Olhando, elas ali.

Apenas olhando.

O IRMÃO – Elas estavam feridas? Onde estavam?

O JOVEM – Elas estavam mortas.

O IRMÃO – E então?

O JOVEM – O quê?

O IRMÃO – Você não podia fazer nada, elas já estavam mortas.

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O JOVEM – Eu poderia ter desejado diferente. Eu poderia ter sonhado

com um futuro melhor. Por isso peço que me mate! Não mereço estar

aqui.

O IRMÃO – Não diga idiotices!

O JOVEM – É isso o que a guerra faz com todos nós. Eu me tornei um

monstro. Eu me tornei um deles. Por um segundo... por um décimo de

segundo... eu vi a perfeição.

O IRMÃO – Você está delirando, é melhor ir se deitar.

O JOVEM – A perfeição na minha frente. Eu quis a existência. Eu quis a

permanência. Todos os átomos do universo flutuando ao meu redor,

para meu propósito. E esta é a miséria suprema, irmão. Esta é a hora da

morte.

O IRMÃO – Não aconteceu nada.

O JOVEM – Perdão, irmão.

O IRMÃO – Não há o que perdoar.

O JOVEM – Só me perdoe.

O IRMÃO – Sim.

O JOVEM – Sob o véu da escuridão não há escapatória. A morte,

ardilosa, vem dos céus, e as descobre.

4.

O JOVEM – É difícil saber o que são apenas imagens. E o que realmente

vi.

UMA TESTEMUNHA – Ele não sabia o que fotografar. Se o que nos

apresentava era realmente o que tinha diante de si.

O JOVEM – Eu não sei qual imagem é real. “Ela repete mecanicamente o

que nunca mais poderá repetir-se existencialmente”.

O IRMÃO – Qual é a realidade que queremos para nós?

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O JOVEM – E de novo. E de novo. E de novo. Quando morreu? Quando

viveu? Agora está morto? Eu fotografei um cadáver a andar por aí,

espectro assombroso, ou matei o corpo vivo e quente que agora jaz de

caixão aberto aos olhos eternos?

O IRMÃO – Qual é a nossa realidade possível?

O JOVEM – Este sou eu? Um espelho?

UMA TESTEMUNHA – É uma busca por uma identidade.

O JOVEM – Este sou eu. E aquele outro é minha imagem invertida.

UMA TESTEMUNHA – De um extremo a outro. Vida e morte. Belo e

grotesco.

O JOVEM – Assim somos. Um espelho. E tudo se projeta adiante.

UMA TESTEMUNHA – São todos enantiomorfos.

O JOVEM – Repetidos. Mecanicamente.

O IRMÃO – Tudo está fora do lugar. Algo de estranho. Um mundo de

cabeça para baixo.

O JOVEM – Este é meu lugar. O que me espera. Eu pertenço a isto. Esta

câmara escura.

O IRMÃO – Pequeno foco de luz...

O JOVEM

Chama-me para a morte.

Estou aqui, à sua espera

permaneço calado

estático

perene.

Olhe fixamente para a espada

olhe em seus olhos

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não a tema

porque ela lhe venera

e pede a sua companhia.

As pernas já não existem

um braço se foi

resta-lhe o tronco

unicamente para o coração

– dilacerado –

mais o olho esquerdo que não abre

e aquele que pressente. E sabe.

E do braço inerte uma única

arma

um dedo, pronto para

o gatilho

Espere. Pacientemente

até o fim.

5.

UMA TESTEMUNHA – As bombas chovem sobre Aleppo. É o conflito

derradeiro pelo hospital. Eles tomaram conta de toda a região. Sentem

que é hora de reaver o que lhes pertence. São ruínas. Mas ruínas que

lhes pertencem. Mesmo no chão, poderá salvar vidas. As deles.

O JOVEM – Quando vidas eram salvas aqui. Outro tempo. Mas eu me

lembro. E não sabia de nada.

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UMA TESTEMUNHA – As paredes sujas de terra e areia agora estão

sujas de sangue. Eu posso contar vinte corpos. Vinte partes. Aqui. E ali.

Não há leitos ou covas.

O JOVEM – As explosões estão perto. Cada vez mais perto. Só me resta

correr.

UMA TESTEMUNHA – Fuja.

O JOVEM – Correr em direção a elas. Cada vez mais altas. Correr.

UMA TESTEMUNHA – Fuja.

O JOVEM – Vê-las com meus próprios olhos.

UMA TESTEMUNHA – Você pode sair daqui.

O JOVEM – Não há lugar para ir. Lute, meu irmão.

O IRMÃO – Venceremos.

O JOVEM – Eu te amo.

O IRMÃO – Ele irá cair.

O JOVEM – Você sempre me mostrou o caminho. Você sempre será

aquele que sabe. Eu seguro esta câmera. Você segura esta arma.

O IRMÃO – Eu te amo.

UMA TESTEMUNHA – O céu já desaba, as paredes se aproximam.

O IRMÃO – Um epitáfio: “Como grande guerreiro, ele combatia

generosamente por si próprio e pelos outros em meio a um furacão”.

O JOVEM – Em direção a elas. Em direção a elas.

6.

O JOVEM – Ter fé...

O IRMÃO – Na transformação.

O JOVEM – Porque tudo muda. E se estamos aqui hoje, estaremos

adiante amanhã.

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O IRMÃO – De onde vem? Onde nasceu? Essa fé...

O JOVEM – Eu acredito nos homens. Que aqui nascem e morrem.

Amam. Amam como a suprema manifestação da inevitável morte.

O IRMÃO – A fé...

O JOVEM – A fé na capacidade do homem de persistir e, um dia,

triunfar.

UMA TESTEMUNHA – Já é noite. O celular vibra. Uma curta mensagem.

Sem capacete, sem colete. Só sua jaqueta, seu jeans. Suas câmeras.

O JOVEM – É preciso...

UMA TESTEMUNHA – Ao lado dele...

O IRMÃO – Eu sei.

UMA TESTEMUNHA – Não me lembro quanto tempo passou até que eu

apertasse aquele botão.

O JOVEM – Estou ao lado de ti, irmão.

O IRMÃO – Estou ao lado de ti, irmão.

UMA TESTEMUNHA – Meu amigo...

O JOVEM – O que há do outro lado?

O IRMÃO – Nunca saberemos.

UMA TESTEMUNHA – Meu amigo, o aspirante a homem-bomba.

O JOVEM – Obrigado, Mustafa.

O IRMÃO – Obrigado, Molhem.

O JOVEM – “A parte triste é que vocês serão aqueles que vencerão e

aqueles que perderão”.

UMA TESTEMUNHA – Uma curta mensagem. No começo da noite. É

tudo o que me dizem: “Molhem está morto”.

_fim