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CAMILOCASTELOBRANCO

AmordePERDIÇÃO

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Sumário

Carta

Introdução

CapítuloI

CapítuloII

CapítuloIII

CapítuloIV

CapítuloV

CapítuloVI

CapítuloVII

CapítuloVIII

CapítuloIX

CapítuloX

CapítuloXI

CapítuloXII

CapítuloXIII

CapítuloXIV

CapítuloXV

CapítuloXVI

CapítuloXVII

CapítuloXVIII

CapítuloXIX

CapítuloXX

Conclusão

Momentohistórico

Momentoliterário

Créditos

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AoIlustríssimoeExcelentíssimoSr.AntônioMariadeFontesPereiradeMeloDedicaoautorIlustríssimoeExcelentíssimoSr.Há de pensarmuita gente que vossa excelência não dá valor algum a este livro que aminha

gratidãolhededica.PorquemuitagenteestápersuadidaqueministrosdoEstadonãoleemnovelas.ÉumcolegadeVossaExcelênciaadiscorrernoparlamentoacercadecaminhosdeferro–comtantoengenhoofazia,detantasfloresmatizaraaquelamatéria,quemedeleitououvi-lo.Nanoitedessedia, encontrei o colega de vossa excelência a ler “Fanny”, aquela “Fanny” que sabia tanto decaminhosdeferrocomoeu.Quevossaexcelênciatemromancesnasuabibliotecaéconvicçãominha.Quelátemalgunsque

nãoleu,porqueotempolhefalece,eoutrosporquenãomerecemtempo,tambémocreio.Dêvossaexcelência,no lotedos segundos,um lugaraeste livro, e teráassimvossaexcelência significadoqueorecebeeaprecia,por levaremsionomedomaisagradecidoerespeitadorcriadodevossaexcelência.NacadeiadaRelaçãodoPorto,aos24desetembrode1861.CamiloCasteloBranco.

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Introdução

FolheandooslivrosdeantigosassentamentosnocartóriodascadeiasdaRelaçãodoPorto,li,nodasentradasdospresosdesde1803a1805,afolhas232,oseguinte:SimãoAntônioBotelho,queassimdissechamar-se,sersolteiro,eestudantenaUniversidadede

Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade deViseu,idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa CaldeirãoCastelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestidocomjaquetadebaetãoazul,coletedefustãopintadoecalçadepanopedrês.Efizesteassento,queassinei—FilipeMoreiraDias.

Àmargemesquerdadesteassentoestáescrito:FoiparaaÍndiaem17demarçode1807.Nãoseriafiardemasiadamentenasensibilidadedoleitor,secuidoqueodegredodeummoçode

dezoitoanoslhehádefazerdó.Dezoitoanos!Oarreboldouradoeescarlatedamanhãdavida!Aslouçaniasdocoraçãoqueainda

nãosonhaem frutos,e todoseembalsamanoperfumedas flores!Dezoitoanos!Oamordaquela

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idade!Apassagemdoseiodafamília,dosbraçosdamãe,dosbeijosdasirmãsparaascaríciasmaisdoces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor damesma sazão e dosmesmos aromas, e àmesmahoradavida!Dezoitoanos!...Edegredadodapátria,doamoredafamília!Nuncamaisocéude Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem umamigo!...Étriste!Oleitordecertosecompungiria;ealeitora,selhedissessememmenosdeumalinhaahistória

daquelesdezoitoanos,choraria!Amou,perdeu-se,emorreuamando.É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem-

formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divinamisericórdia?!Essa,aminha leitora,a carinhosaamigade todosos infelizes,nãochoraria se lhedissessemqueopobremoçoperderahonra,reabilitação,pátria,liberdade,irmãs,mãe,vida,tudo,poramordaprimeiramulherqueodespertoudoseudormirdeinocentesdesejos?!Chorava,chorava!Assimeulhesoubessedizerodolorososobressaltoquemecausaramaquelas

linhas,depropósitoprocuradas,e lidascomamarguraerespeitoe,aomesmotempo,ódio.Ódio,sim.Atempoverãoseéperdoáveloódio,ouseantesmenãoforamelhorabrirmãodesdejádeumahistóriaquemepodeacarearenojosdosfrios julgadoresdocoração,edassentençasqueeuaquilavrarcontraafalsavirtudedehomens,feitosbárbaros,emnomedasuahonra.

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CapítuloI

Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fidalgo de linhagem e um dos maisantigossolarengosdeVilaRealdeTrás-os-Montes,era,em1779, juizdeforadeCascais,enessemesmoanocasaracomumadamadopaço,D.RitaTeresaMargaridaPreciosadaVeigaCaldeirãoCasteloBranco,filhadeumcapitãodecavalos,netadeoutro,AntôniodeAzevedoCasteloBrancoPereiradaSilva,tãonotávelporsuajerarquia,comoporum,naqueletempo,preciosolivroacercadaArtedaGuerra.Dezanosdeenamorado,malsucedido,consumiraemLisboaobacharelprovinciano.Parafazer-se

amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes físicos: Domingos Botelho eraextremamente feio. Para se inculcar como partido conveniente a uma filha segunda, faltavam-lhebensdefortuna:oshaveresdelenãoexcediamatrintamilcruzadosempropriedadesnoDouro.Osdotes de espírito não o recomendavam também: era alcançadíssimo de inteligência, e granjearaentre os seus condiscípulos da Universidade o epíteto de “brocas”, com que ainda hoje os seusdescendentesemVilaRealsãoconhecidos.Bemoumalderivado,oepíteto“Brocas”vemde“broa”.Entenderamosacadêmicosquearudezadoseucondiscípuloprocediademuitopãodemilhoqueeledigerianasuaterra.

DomingosBotelhodeviaterumavocaçãoqualquer,etinha:eraexcelenteflautista;foiaprimeiraflautadoseutempo;eatocarflautasesustentoudoisanosemCoimbra,duranteosquaisseupai

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lhesuspendeuasmesadas,porqueosrendimentosdacasanãobastavamalivraroutrofilhodeumcrimedemorte.

Formara-seDomingosBotelho em1767, e fora a Lisboa ler noDesembargo do Paço, iniciaçãobanaldosqueaspiravamàcarreiradamagistratura.JáFernãoBotelho,paidobacharel,forabemaceite em Lisboa, e mormente ao duque de Aveiro, cuja estima lhe teve a cabeça em risco, natentativa regicida de 1758. O provinciano saiu dasmasmorras da Junqueira ilibado da infamantenódoa,eatébenquistodocondedeOeiras,porquetomarapartenaprovaqueestefizeradoprimorde sua genealogia sobre a dos Pintos Coelhos, do Bonjardim do Porto: pleito ridículo, masestrondoso,movidopelarecusaqueofidalgoportuensefizeradesuafilhaaofilhodeSebastiãoJosédeCarvalho.Asartescomqueobacharelflautistavingouinsinuar-senaestimadeD.MariaIePedroIIInãoas

seieu.Étradiçãoqueohomemfaziarirarainhacomassuasfacécias,eporventuracomostrejeitosde que tirava o melhor do seu espírito. O certo é que Domingos Botelho frequentava o paço, erecebiadobolsinhodasoberanaumafartapensãocomaqualoaspiranteajuizdeforaseesqueceudesi,dofuturoedoministrodajustiça,que,muitorogado,fiaradassuasletrasoencargodejuizdeforadeCascais.Já está dito que ele se atreveu aos amores do paço, não poetando como Luís de Camões ou

BernardimRibeiro;masnamorandonasuaprosaprovinciana,ecaptandoabenquerençadarainhaparaamolecerasdurezasdadama.Deviade ser,afinal, feliz “doutorbexiga” –queassimeranacorte conhecido – para se não desconcertar a discórdia em que andam rixados o talento e afelicidade.DomingosBotelhocasoucomD.RitaPreciosa.Ritaerauma formosura,queaindaaoscinquenta anos se podia prezar de o ser. E não tinha outro dote, se não é dote uma série deavoengos,unsbispos,outrosgenerais,eentreestesoquemorrerafrigidoemcaldeirãodenãoseique terra da mourisma, glória, na verdade, um pouco ardente, mas de tal monta que osdescendentesdogeneralfritoseassinaramCaldeirões.Adamadopaçonãofoiditosacomomarido.Molestavam-nasaudadesdacorte,daspompasdas

câmaras reais, e dos amores de sua feição e molde, que imolou ao capricho da rainha. Estedesgostosoviver,porém,nãoempeceuquesereproduzissememdoisfilhosetrêsmeninas.OmaisvelhoeraManuel,osegundoSimão;dasmeninasumaeraMaria,asegundaAnaeaúltimatinhaonomedesuamãe,ealgunstraçosdabelezadela.

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O juiz de fora deCascais, solicitando lugar demais graduado banco, demorava emLisboa, nafreguesiadaAjuda,em1784.NesteanoéquenasceuSimão,openúltimodosseusfilhos.Conseguiuele,semprebalanceadodafortuna,transferênciaparaVilaReal,suaambiçãosuprema.ÀdistânciadumaléguadeVilaRealestavaanobrezadavilaesperandooseuconterrâneo.Cada

famíliatinhaasualiteiracomobrasãodacasa.AdosCorreiasdeMesquitaeraamaisantiquadanofeitio,easlibrésdoscriadosasmaissurradasetraçadasquefiguravamnacomitiva.D.Rita,avistandoopréstitodas liteiras,ajustouaoolhodireitoasuagrande lunetadeouro,e

disse:—ÓMeneses,aquiloqueé?—Sãoosnossosamigoseparentesquevêmesperar-nos.—Emqueséculoestamosnósnestamontanha?—tornouadamadopaço.—Emqueséculo?!OséculotantoédezoitoaquicomoemLisboa.—Ah!Sim?Cuideiqueotempopararaaquinoséculodoze...Omaridoachouquedeviarir-sedochiste,queonãolisonjearagrandemente.FernãoBotelho,paidojuizdefora,saiuàfrentedopréstitoparadaramãoànora,queapeavada

liteira, e conduzi-la à de casa. D. Rita, antes de ver a cara de seu sogro, contemplou-lhe a olhoarmadoasfivelasdeaço,eabolsadorabicho.DiziaeladepoisqueosfidalgosdeVilaRealerammuitomenoslimposqueoscarvoeirosdeLisboa.Antesdeentrarnaavoengaliteiradeseumarido,perguntou,comamaisrefalsadaseriedade,senãohaveriariscoemirdentrodaquelaantiguidade.FernãoBotelhoasseverouasuanoraqueasualiteiranãotinhaaindacemanos,equeosmachosnãoexcediamatrinta.

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Omodoaltivocomoelarecebeuascortesiasdanobreza—velhanobreza,queparaalivieraemtempodeD.Diniz,fundadordavila—fezqueomaisnovodopréstito,queaindaviviahaviadozeanos,medissesseamim:“SabíamosqueelaeradamadaSenhoraD.MariaI;porém,dasoberbacomquenostratouficamospensandoqueseriaelaaprópriarainha”.Repicaramossinosdaterraquandoa comitivaassomouàSenhoradeAlmudena.D.Ritadisseaomaridoquea recepçãodossinoseraamaisestrondosaebarata.ApearamàportadavelhacasadeFernãoBotelho.Aaiadopaçorelanceouosolhospelafachada

doedifício,edissedesiparasi:“ÉumabonitavivendaparaquemfoicriadaemMafraeSintra,naBempostaeQueluz”.Decorridosalgunsdias,D.Ritadisseaomaridoquetinhamedodeserdevoradapelasratazanas;

que aquela casa era um covil de feras; que os tetos estavam a desabar; que as paredes nãoresistiriamaoinverno;queospreceitosdeuniformidadeconjugalnãoobrigavamamorrerdefrioumaesposadelicadaeafeitaàsalmofadasdopaláciodosreis.DomingosBotelhoconformou-secomaestremecidaconsorte,ecomeçouafábricadumpalacete.Escassamentelhechegavamosrecursospara os alicerces: escreveu à rainha, e obteve generoso subsídio com que ultimou a casa. Asvarandasdasjanelasforamaúltimadádivaquearealviúvafezàsuadama.Quer-nosparecerqueadádivaéumtestemunho,atéagorainédito,dademênciadaSenhoraD.MariaI.DomingosBotelhomandaraesculpiremLisboaapedradearmas;D.Rita,porém,teimaraqueno

escudoseesquartejassemtambémassuas;maseratarde,porquejáaobratinhavindodoescultor,eomagistradonãopodiacomsegundadespesa,nemqueriadesgostar seupai, orgulhosode seubrasão.ResultoudaquificaracasasemarmaseD.Ritavitoriosa.O juiz de fora tinha ali parentela ilustre. O aprumo da fidalga dobrou-se até aos grandes da

província,ouanteshouveporbemlevantá-losatéela.D.Ritatinhaumacortedeprimos,unsquesecontentavam de serem primos, outros que invejavam a sorte do marido. O mais audacioso nãoousava fitá-laderosto,quandoelaoremiravacoma luneta,em jeitodetantaaltivezezombaria,quenãoseráestranhafiguradizerquealunetadeRitaPreciosaeraamaisvigilantesentineladasuavirtude.DomingosBotelhodesconfiavadaeficáciadosmerecimentosprópriosparacabalmenteenchero

coraçãodesuamulher.Inquietava-oociúme;massufocavaossuspiros,receandoqueRitasedessepor injuriada da suspeita. E razão era que se ofendesse. A neta do general frigido no caldeirãosarracenoriadosprimos,que,poramordela,eriçavameempoavamascabeleirascomdesgraciosoesmero, e cavaleavamestrepitosamentena calçadaos seusginetes, fingindoqueospicadoresdaprovíncianãodesconheciamasgraçashípicasdomarquêsdeMarialva.Nãoocuidavaassim,porém,ojuizdefora.Ointriguistaquelhetraziaoespíritoemânsiaserao

seuespelho.Via-sesinceramente feio,econheciaRitacadavezmaisemflor,emaisenfadadanotrato íntimo. Nenhum exemplo da história antiga, exemplo de amor sem quebra entre o esposodisformeeaesposalinda,lheocorria.Umsólhemortificavaamemória,eesse,conquantofossedafábula,era-lheavesso,evinhaaserocasamentodeVênuseVulcano.Lembravam-lheasredesqueoferreiro coxo fabricava para apanhar os deuses adúlteros, e assombrava-se da paciência daquelemarido.Entresi,diziaeleque,erguidoovéudaperfídia,nemsequeixariaaJúpiter,nemarmariaratoeirasaosprimos.ApardobacamartedeLuísBotelho,quevararaemterraoalferes,estavaumafileira debacamartes emque o juiz de fora era entendido commuito superior inteligência à querevelavanacompreensãodoDigestoedasOrdenaçõesdoReino.Este viver de sobressaltos durou seis anos, ou mais seria. O juiz de fora empenhara os seus

amigosnatransferência,econseguiumaisdoqueambicionava:foinomeadoprovedorparaLamego.Rita Preciosa deixou saudades em Vila Real, e duradouramemória da sua soberba, formosura egraçadeespírito.Omarido tambémdeixouanedotasqueaindaagora se repetem.Duas contareisomenteparanãoenfadar.Aconteceraum lavradormandar-lheopresentedumavitela,emandarcomelaavaca,parasenãodesgarrarafilha.DomingosBotelhomandourecolheràlojaavitelaeavaca,dizendoquequemdavaa filhadavaamãe.Outravez,deu-seo casode lhemandaremumpresente de pastéis em rica salva de prata. O juiz de fora repartiu os pastéis pelos meninos, emandouguardarasalva,dizendoquereceberiacomoescárnioumpresentededoces,quevaliamdezpatacões,sendoquenaturalmenteospastéistinhamvindocomoornatodabandeja.Eassiméque, aindahoje, emVilaReal, quando sedáumcaso análogode ficar alguémcomo conteúdo econtinente,dizagentedaterra:“AqueleécomoodoutorBrocas”.Não tenho assunto de tradição com que possa reter-me emmiudezas da vida do provedor em

Lamego.EscassamenteseiqueD.Ritaaborreciaacomarca,eameaçavaomaridode ircomseuscinco filhos para Lisboa, se ele não saísse daquela intratável terra. Parece que a fidalguia deLamego,emtodootempoorgulhosadeumaantiguidadequeprincipianaaclamaçãodeAlmacave,desdenhou a filáucia da dama do paço, e esmerilhou certas vergônteas podres do tronco dosBotelhosCorreiasdeMesquita,desprimorando-lheassãscomofatodeeletervividodoisanosemCoimbratocandoflauta.Em1801,achamosDomingosJoséCorreiaBotelhodeMesquitacorregedoremViseu.

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Manuel,omaisvelhodeseusfilhos, temvinteedoisanos,e frequentaosegundoano jurídico.Simão,quetemquinze,estudahumanidadesemCoimbra.Asmeninassãooprazereavidatodadocoraçãodesuamãe.Ofilhomaisvelhoescreveuaseupaiqueixando-sedenãopodervivercomseuirmão,temeroso

dogêniosanguináriodele.Contaqueacadapassosevêameaçadonavida,porqueSimãoempregaempistolasodinheirodoslivros,convivecomosmaisfamososperturbadoresdaacademia,ecorredenoiteasruasinsultandooshabitanteseprovocando-osàlutacomassuadas.OcorregedoradmiraabravuradeseufilhoSimão,edizàconsternadamãequeorapazéafiguraeogêniodeseubisavôPauloBotelhoCorreia,omaisvalentefidalgoquederaTrás-os-Montes.

Manuel,cadavezmaisaterradodasarremetidasdeSimão,saideCoimbraantesdefériasevaiaViseuqueixar-seepedirquelhedêseupaioutrodestino.D.Ritaquerqueseufilhosejacadetedecavalaria.DeViseuparteparaBragançaManuelBotelho,e justifica-senobredosquatrocostadosparasercadete.Noentanto,SimãorecolheaViseucomosseusexamesfeitoseaprovados.Opaimaravilhava-se

dotalentodofilho,edesculpa-odaextravagânciaporamordotalento.Pede-lheexplicaçõesdoseumauvivercomManuel,eelerespondequeseuirmãooquerforçaravivermonasticamente.OsquinzeanosdeSimão têmaparênciasde vinte.É fortede compleição;belohomemcomas

feiçõesdesuamãe,eacorpulênciadela;masdetodoavessoemgênio.NaplebedeViseuéqueeleescolheamigosecompanheiros.SeD.Ritalhecensuraaindignaeleiçãoquefaz,Simãozombadasgenealogias, emormente do general Caldeirão quemorreu frito. Isto bastou para ele granjear amalquerençadesuamãe.Ocorregedorviaascoisaspelosolhosdesuamulher,etomoupartenodesgostodelaenaaversãoaofilho.As irmãstemiam-no, tiranteRita,amaisnova,comquemelebrincava puerilmente, e a quem obedecia, se ela lhe pedia, commeiguices de criança, que nãoandassecompessoasmecânicas.Finalizavamasférias,quandoocorregedorteveumgravedissabor.Umdosseuscriadostinhaido

levar a beber os machos, e, por descuido ou propósito, deixou quebrar algumas vasilhas queestavam à vez no parapeito do chafariz. Os donos das vasilhas conjuraram contra o criado;espancaram-no.Simãopassavanesseensejo;e,armadodeumfueiroquedescravoudeumcarro,partiumuitascabeças,erematouotrágicoespetáculopela farsadequebrartodososcântaros.Opovoléuintactofugiraespavorido,queninguémseatreviaaofilhodocorregedor;osferidos,porém,incorporaram-seeforamclamarjustiçaàportadomagistrado.Domingos Botelho bramia contra o filho, e ordenava aomeirinho-geral que o prendesse à sua

ordem.D.Rita,nãomenosirritada,masirritadacomomãe,mandou,porportastravessas,dinheiroaofilhoparaque,semdetença,fugisseparaCoimbra,eesperasseláoperdãodopai.O corregedor, quando soubeo expedientede suamulher, fingiu-se zangadoeprometeu fazê-lo

capturaremCoimbra.Como,porém,D.Ritalhechamassebrutalnassuasvingançaseestúpidojuizdeumarapaziada,omagistradodesenrugouaseveridadepostiçadatesta,econfessoutacitamentequeerabrutaleestúpidojuiz.

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CapítuloII

SimãoBotelholevoudeViseuparaCoimbraarrogantesconvicçõesdasuavalentia.Serecordavaoschibantespormenoresdaderrotaemquepuseratrintaaguadeiros,osomcavodaspancadas,aquedaatordoadadeste,olevantar-sedaquele,ensanguentado,abordoadaqueabrangiatrêsaumtempo,aqueafocinhavadois,agritariadetodos,eoestrépitodoscântarosafinal,Simãodeliciava-se nestas lembranças, como ainda não vi nalgum drama, em que o veterano de cem batalhasrelembraoslourosdecadauma,eesmorece,afinal,estafadodeespantar,quandonãoédeestafar,osouvintes.

Oacadêmico,porém,comosseusentusiasmos,eraincomparavelmentemuitomaisprejudicialeperigoso que o mata-mouros de tragédia. As recordações esporeavam-no a façanhas novas, enaquele tempoa academiadava azo a elas.Amocidade estudiosa, emgrandeparte, simpatizavacomasbalbuciantesteoriasdaliberdade,maisporpressentimento,queporestudo.OsapóstolosdaRevolução Francesa não tinham podido fazer revoar o trovão dos seus clamores neste canto domundo;masoslivrosdosenciclopedistas,asfontesondeageraçãoseguintebeberaapeçonhaquesaiunosanguedenoventaetrês,nãoeramdetodoignorados.AsdoutrinasdaregeneraçãosocialpelaguilhotinatinhamalgunstímidossectáriosemPortugal,eessesdeveréquedeviampertencerà geração nova. Além de que, o rancor à Inglaterra lavrara nas entranhas das classesmanufatureiras, eodesprender-sedo jugoaviltadordeestranhos, apertado,desdeoprincípiodoséculo anterior, comas sogasde ruinosos e pérfidos tratados, estavano ânimodemuitos e bonsportuguesesquesequeriamantesaliançadoscomaFrança.Esteseramospensadoresreflexivos;ossectáriosdaacademia,porém,exprimiammaisapaixãodanovidadequeasdoutrinasdoraciocínio.

Noanoanteriorde1800,saíraAntôniodeAraújodeAzevedo,depoiscondedaBarca,anegociarem Madri e Paris a neutralidade de Portugal. Rejeitaram-lhe as potências aliadas às propostas,tendo-lheemcontadenadaosdezesseismilhõesqueodiplomataofereciaaoprimeirocônsul.Semdelongas,foioterritórioportuguêsinfestadopelosexércitosdeEspanhaeFrança.Asnossastropas,comandadaspeloduquedeLafões,nãochegaramatravaralutadesigual,porqueaessetempoLuísPinto de Sousa, mais tarde visconde de Balsemão, negociara ignominiosa paz em Badajoz, comcedência deOlivença àEspanha, exclusão de ingleses de nossos portos, e indenização de algunsmilhõesàFrança.

EstessucessostinhamirritadocontraNapoleãoosânimosdaquelesqueodiavamoaventureiro,epara outros deram causa a congratularem-se do rompimento com Inglaterra. Entre os destaparcialidade,naconvulsivaeirrequietaacademia,eravotodegrandemontaSimãoBotelho,apesardos seus imberbes dezesseis anos. Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outrosalgozesemártiresdograndeaçougue,eramnomesdesoadamusicalaosouvidosdeSimão.Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada certa, e pistolas engatilhadas à cara dodifamador.OfilhodocorregedordeViseudefendiaquePortugaldeviaregenerar-senumbatismodesangue,paraqueahidradostiranosnãoerguessemaisumadassuasmilcabeçassobaclavadoHérculespopular.

Estesdiscursos,arremedodealgumaclandestinaobjurgatóriadeSaint-Just,afugentavamdasuacomunhão aqueles mesmos que o tinham aplaudido em mais racionais princípios de liberdade.SimãoBotelhotornou-seodiosoaoscondiscípulos,que,parasesalvarempelainfâmia,odelataramaobispo-condeeaoreitordaUniversidade.

Um dia, proclamava o demagogo acadêmico na praça de Sansão aos poucos ouvintes que lherestaram fiéis,unspormedo,outrosporanalogiadebossas.Odiscurso ianomaisacrisoladodaideiaregicida,quandoumaescoltadeverdeaislheaguouaescandescência.Quisooradorresistir,aperrandoaspistolas,masdesobrasabiamosbraçosmusculososdacortedoreitorcomquemashaviam. O jacobino, desarmado e cercado, entre a escolta dos arqueiros foi levado ao cárcereacadêmico,dondesaiuseismesesdepois,agrandesinstânciasdosamigosdeseupaiedosparentesdeD.RitaPreciosa.

Perdidooanoletivo,foiparaViseuSimão.Ocorregedorrepeliu-odasuapresençacomameaçasde o expulsar de casa. A mãe, mais levada do dever que do coração, intercedeu pelo filho econseguiusentá-loàmesacomum.

Noespaçodetrêsmesesfez-semaravilhosamudançanoscostumesdeSimão.Ascompanhiasdaralédesprezou-as.Saíadecasararasvezes,ousó,oucomairmãmaisnova,suapredileta.Ocampo,as árvores e os sítios mais sombrios e ermos eram o seu recreio. Nas doces noites de estiodemorava-se por fora até ao repontar da alva. Aqueles que assim o viam admiravam-lhe o arcismadoreorecolhimentoqueosequestravadavidavulgar.Emcasaencerrava-senoseuquarto,esaíaquandoochamavamparaamesa.

D. Rita pasmava da transfiguração, e o marido, bem convencido dela ao fim de cinco meses,consentiuqueseufilholhedirigisseapalavra.

SimãoBotelhoamava.Aíestáumapalavraúnica,explicandooquepareciaabsurdareformaaos

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dezesseteanos.AmavaSimãoumasuavizinha,meninadequinzeanos,ricaherdeira,regularmentebonitaebem-

nascida.Dajaneladoseuquartoéqueeleavirapelaprimeiravez,paraamá-lasempre.Nãoficaraelaincólumedaferidaquefizeranocoraçãodovizinho:amou-otambém,ecommaisseriedadequeausualnosseusanos.

Ospoetas cansam-nosapaciência a falaremdoamordamulher aosquinzeanos, comopaixãoperigosa,únicaeinflexível.Algunsprosadoresderomancesdizemomesmo.Enganam-seambos.Oamordosquinzeanoséumabrincadeira;éaúltimamanifestaçãodoamoràsbonecas;éatentativadaavezinhaqueensaiaovooforadoninho,semprecomosolhosfitosnaave-mãe,queaestádefrontepróximachamando:tantosabeaprimeiraoqueéamarmuito,comoasegundaoqueévoarparalonge.

TeresadeAlbuquerquedeviaser,porventura,umaexceçãonoseuamor.

O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa, por motivo de litígios, em queDomingosBotelholhedeusentençascontra.Aforaisso,aindanoanoanteriordoiscriadosdeTadeudeAlbuquerquetinhamsidoferidosnacelebradapancadariadafonte.É,pois,evidentequeoamordeTeresa,declinandodesiodeverdeobtemperaresacrificar-seaojustoazedumedeseupai,eraverdadeiroeforte.

Eesteamorerasingularmentediscretoecauteloso.Viram-seefalaram-setrêsmeses,semdaremrebateàvizinhançaenemsequersuspeitasàsduasfamílias.Odestinoqueambosseprometiamerao mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela

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esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grandepatrimônio.EspantadiscriçãotamanhanaíndoledeSimãoBotelho,enapresumívelignorânciadeTeresaemcoisasmateriaisdavida,comosãoumpatrimônio!

NavésperadasuaidaparaCoimbra,estavaSimãoBotelhodespedindo-sedasuspirosamenina,quandosubitamenteelafoiarrancadadajanela.Oalucinadomoçoouviugemidosdaquelavozque,ummomentoantes, soluçavacomovidapor lágrimasde saudade.Ferveu-lheo sanguenacabeça;contorceu-senoseuquartocomootigrecontraasgradesinflexíveisdajaula.Tevetentaçõesdesematar,naimpotênciadesocorrê-la.Asrestanteshorasdaquelanoitepassou-asemraivaseprojetosdevingança.Comoamanheceresfriou-lheosangue,erenasceuaesperançacomoscálculos.

QuandoochamaramparapartirparaCoimbra, lançou-sedo leitodetalmododesfigurado,quesua mãe, avisada do rosto amargurado dele, foi ao quarto interrogá-lo e despersuadi-lo de irenquanto assim estivesse febril. Simão, porém, entre mil projetos, achara melhor o de ir paraCoimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamentediscorreraele;queasuademoraagravariaasituaçãodeTeresa.

Desceraoacadêmicoaopátio,depoisdeabraçaramãeeas irmãs,ebeijaramãodopai,quepara esta hora reservara uma admoestação severa, a ponto de lhe asseverar que de todo oabandonariaseelecaísseemnovasextravagâncias.Quandometiaopénoestribo,viuaseu ladoumavelhamendiga,estendendo-lheamãoabertacomoquempedeesmola,e,napalmadamão,umpequenopapel.Sobressaltou-seomoço;e,apoucospassosdistantedesuacasa,leuestaslinhas:

Meupaidizquemevaiencerrarnumconventoportuacausa.Sofrereitudoporamordeti.Não

meesqueçastu,eachar-me-ásnoconvento,ounocéu,sempretuadocoração,esempreleal.ParteparaCoimbra.Láirãodarasminhascartas;enaprimeiratedireiemquenomehásderesponderàtuapobreTeresa.

Amudançadoestudantemaravilhouaacademia.Seonãoviamnasaulas,empartenenhumao

viam.Dasantigasrelaçõesrestavam-lheapenasasdoscondiscípulossensatosqueoaconselhavamparabem,eovisitaramnocárceredeseismeses,dando-lhealentoserecursos,queseupailhenãodava,esuamãeescassamentesupria.Estudavacomfervor,comoquemjádaliformavaasbasesdofuturorenomeedaposiçãoporelemerecida,bastanteasustentardignamenteaesposa.Aninguémconfiava o seu segredo, senão às cartas que enviava a Teresa, longas cartas em que folgava oespíritodatarefadaciência.Aapaixonadameninaescrevia-lheamiúdo,ejádiziaqueaameaçadoconventoforameroterrordequejánãotinhamedo,porqueseupainãopodiaviversemela.

Istoafervorou-lheparamaisoamoraoestudo.Simão,chamadoempontosdifíceisdasmatériasdoprimeiroano, tal contadeudesi,queos lenteseoscondiscípulosohouveramcomoprimeiropremiado.

A este tempo, Manuel Botelho, cadete em Bragança, destacado no Porto, licenciou-se paraestudar naUniversidade asmatemáticas. Animou-o a notícia do reviramento que se dera em seuirmão. Foi viver com ele; achou-o quieto, mas alheado numa ideia que o tornava misantropo eintratável noutro gênero. Pouco tempo conviveram, sendo a causa da separação um desgraçadoamordeManuelBotelhoaumaaçorianacasadacomumacadêmico.Aesposaapaixonadaperdeu-senasilusõesdocegoamante.DeixouomaridoefugiucomeleparaLisboa,edaíparaEspanha.Emoutrorelançodestanarrativadareicontadorematedesteepisódio.

Nomêsdefevereirode1803recebeuSimãoBotelhoumacartadeTeresa.NoseguintecapítulosedizminuciosamenteaperipéciaqueforçaraafilhadeTadeudeAlbuquerqueaescreveraquelacartadepungentíssimasurpresaparaoacadêmico,convertidoaosdeveres,àhonra,àsociedadeeaDeuspeloamor.

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CapítuloIII

OpaideTeresanãoembicarianaimpurezadosanguedocorregedor,seoajustarem-seosdoisfilhos em casamento se compadecesse com o ódio de um e o desprezo do outro. O magistradomofavadorancordoseuvizinho,eovizinhomalsinavadevenalidadeareputaçãodomagistrado.Estesabiadainjuriosavingançaemqueooutroseiadespicando;fingia-seinvulnerávelàdetração;masdediaparadiaselheazedavaabílis;eédecrerque,seonãocontivessemconsideraçõesdafamília, sofreriamenos, desabafandopela bocadumbacamarte, armadapredileçãodosBotelhosCorreiasdeMesquita.Seriaimpossíveloreconciliarem-se.Rita,afilhamaisnova,estavaumdianajaneladoquartodeSimão,eviuavizinharentecomos

vidros e a testa apoiada nasmãos. Sabia Teresa que era aquelamenina amais querida irmã deSimão, e a que mais semelhança de parecer tinha com ele. Saiu da sua artificial indiferença, erespondeu ao reparo deRita, fazendo-lhe comamãoumgesto e sorrindo.A filha do corregedorsorriutambém,masfugiulogodajanela,porquesuamãetinhaproibidoàsfilhasdetrocaremvistascompessoadaquelacasa.

No dia seguinte, àmesma hora, levada da simpatia que lhe causara aquele gesto de amizade,tornou Rita à janela, e lá viu Teresa com os olhos fitos na sua, como se a estivesse esperando.Sorriram-secomresguardo,afastando-seaumpoucodopeitorildasjanelas;eassim,ambasdepé,nointeriordosquartos,seestavamcontemplando.Comoaruaeraestreita,podiamouvir-se,falando

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baixo.Teresa,maispelomovimentodoslábiosqueporpalavras,perguntouaRitaseerasuaamiga.A menina respondeu com um gesto afirmativo, e fugiu, acenando-lhe um adeus. Estes rápidosinstantes de se verem repetiram-se sucessivos dias, até que, perdido o maior medo de ambas,ousaramdemorar-seempalestrasameiavoz.Teresa falavadeSimão, contavaàmeninadeonzeanos o segredo do seu amor, e dizia-lhe que ela havia de ser ainda sua irmã, recomendando-lhemuitoquenãodissessenadaàsuafamília.Numadessasconversações,Ritadescuidara-se,elevantoudemodoavozquefoiouvidadeuma

irmã,queafoilogoacusaraopai.OcorregedorchamouRita,eforçou-apeloterroracontartudoque ouvira à vizinha. Tanta foi sua cólera, que, sem atender às razões da esposa, que vieraespavoridadosgritos,correuaoquartodeSimão,eviuaindaTeresaàjanela.—Olé!—disseeleàpálidamenina.—Nãotenhaaconfiançadepôrolhosempessoademinha

casa.Sequercasar,casecomumsapateiro,queéumdignogenrodeseupai.Teresa não ouviu o remate da brutal apóstrofe: tinha fugido aturdida e envergonhada. Porém,

comoodesabridoministroficassebramindonoquarto,eTadeudeAlbuquerquesaísseaumajanela,acóleradodoutor redobrou,ea torrentedas injúrias, longo tempo represada,bateuno rostodovizinho,quenãoousoureplicar-lhe.Tadeu interrogousua filha,eacreditouque foicausaàsanhadeDomingosBotelhoestaremas

duasmeninaspraticandoinocentemente,portrejeitos,emcoisasdesuaidade.DesculpouovelhoacriancicedeTeresa,admoestando-aquenãovoltasseàquelajanela.

Estamansidãodofidalgo,cujonaturalerabravio, temasuaexplicaçãonoprojetodecasarembreveafilhacomseuprimoBaltasarCoutinho,deCastroDaire,senhordecasa,eigualmentenobreda mesma prosápia. Cuidava o velho, presunçoso conhecedor do coração das mulheres, que abranduraseriaomaisseguroexpedienteparalevarafilhaaoesquecimentodaquelepuerilamoraSimão.Eramáximasuaqueoamor,aosquinzeanos,carecedeconsistênciaparasobreviveraumaausênciadeseismeses.Nãopensavaerradoofidalgo,masoerroexistia.Asexceçõestêmsidooludíbriodosmaisassisadospensadores,tantonoespeculativocomonoexperimental.NãoeramuitoqueTadeudeAlbuquerquefosseenganadoemcoisasdeamorecoraçãodemulher,cujasvariantessãotantasetãocaprichosas,queeunãoseisealgumamáximapodeser-nosguia,anãoseresta:“Em cada mulher, quatro mulheres incompreensíveis, pensando alternadamente como se hão dedesmentirumasàsoutras”.Istoéomaisseguro;masnãoéinfalível.AíestáTeresaquepareceserúnicaemsi.Dir-se-áqueastrêsdaconta,quedizasentença,nãopodemcoexistircomaquartaaosquinze anos? Também o penso assim, posto que a fixidez, a constância daquele amor, funda emcausa independentedocoração:éporqueTeresanãovaià sociedade,não temumaltaremcadanoitenasala,nãoprovouoincensodoutrosgalãs,nemteveaindaumahoradecompararaimagem

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amada, desluzidapela ausência, coma imagemamante, amornos olhosque a fitam, e amornaspalavrasqueaconvencemdequeháumcoraçãoparacadahomem,eumasómocidadeparacadamulher.QuemmedizamimqueTeresateriaemsiasquatromulheresdamáxima,seovapordequatroincensórioslheestonteasseoespírito?Nãoéfácil,nemprecisodecidir.Evamosaoconto.AcercadeSimãoBotelho,nuncadiantedesuafilhaTadeudeAlbuquerqueproferiupalavra,nem

antesnemdepoisdodisparatedocorregedor.OqueelefezlogofoichamaraViseuosobrinhodeCastro Daire, e preveni-lo do seu desígnio, para que ele, em face de Teresa, procedesse comoconvinha a um enamorado de feição, e mutuamente se apaixonassem e prometessem auspiciosofuturoaocasamento.PorpartedeBaltasarCoutinhoapaixãoinflamou-setãodepressa,quantoocoraçãodeTeresase

congeloudeterrorerepugnância.OmorgadodeCastroDaire,atribuindoafriezadesuaprimaamodéstia,inocênciaeacanhamento,lisonjeou-sedovirginalmelindredaquelaalma,esaboreoudeantemãooprazerdeumalenta,masseguraconquista.VerdadeéqueBaltasarnuncaseexplicarademodo que Teresa lhe desse resposta decisiva. Um dia, porém, instigado por seu tio, afoitou-se oditosonoivoafalarassimàmelancólicamenina:—Étempodelheabriromeucoração,prima.Estábem-dispostaaouvir-me?—Euestousemprebem-dispostaaouvi-lo,primoBaltasar.Odesdémaborrecidodestarespostaabaloualgumtantoasconvicçõesdofidalgo,comrespeitoà

inocência,modéstiaeacanhamentodesuaprima.Aindaassim,quiselenomomentopersuadir-sequeaboavontadenãopoderiaexprimir-sedoutromodo,econtinuou:—Osnossoscoraçõespensoeuqueestãounidos;agoraéprecisoqueasnossascasasseunam.Teresaempalideceu,ebaixouosolhos.— Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! — prosseguiu Baltasar, rebatido pela

desfiguraçãodeTeresa.—Disse-meoqueéimpossívelfazer-se—respondeuelasemturvação.—Oprimoengana-se:os

nossoscoraçõesnãoestãounidos.Soumuitosuaamiga,masnuncapenseiemsersuaesposa,nemmelembrouqueoprimopensasseemtal.—Querdizerquemeaborrece,primaTeresa?—atalhou,corrido,omorgado.—Não, senhor: já lhedissequeoestimavamuito,epor issomesmonãodevoseresposadum

amigoaquemnãopossoamar.Ainfelicidadenãoseriasóminha...—Muitobem...Possoeusaber—tornoucomrefalsadosorrisooprimo—queméquemedisputa

ocoraçãodeminhaprima?

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—Quelucraemosaber?—Lucrosaber,pelomenos,queaminhaprimaamaoutrohomem...Éexato?—É.—Ecomtamanhapaixãoquedesobedeceaseupai?—Nãodesobedeço:ocoraçãoémaisfortequeasubmissavontadedumafilha.Desobedeceria,se

casasse contra a vontade demeu pai;mas eu não disse ao primo Baltasar que casava; disse-lheunicamentequeamava.— Sabe a prima que eu estou espantado do seumodo de falar!... Quem pensaria que os seus

dezesseisanosestavamtãoabundantesdepalavras!...— Não são só palavras, primo — retorquiu Teresa com gravidade —, são sentimentos que

merecemasuaestima,porseremverdadeiros.Seeu lhementisse, ficariamaisbem-vistademeuprimo?—Não,primaTeresa; fezbememdizeraverdade,edeadizeremtudo.Oraolhe:nãoduvida

declararqueméoditosomortaldasuapreferência?—Quelhefazsaberisso?—Muito,prima:todostemosanossavaidade,eeufolgariamuitodemevervencidoporquem

tivessemerecimentosqueeunãotenhoaosseusolhos.Temabondadedemedizeroseusegredo,comoodiriaaseuprimoBaltasar,seotivesseemcontadeseuamigoíntimo?—Nessacontaéqueeuonãopossojáter...—respondeuTeresa,sorrindoepausando,comoele,

assílabasdaspalavras.—Poisnemparaamigomequer?!

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—Oprimonãomeperdoaasinceridadequeeutive,eserádehojeemdiantemeuinimigo.— Pelo contrário... — tornou ele com mal rebuçada ironia — muito pelo contrário... Eu lhe

provareiquesouseuamigo,sealgumavezavircasadacomalgummiserávelindignodesi.—Casada!...—interrompeuela.MasBaltasarcortou-lhelogoaréplicadestemodo:—Casadacomalgumfamosoébriooujogadordepau,valentãodeaguadeiros,distintocavalheiro,

quepassaosanosletivosencarceradosnascadeiasdeCoimbra...Claro está que Baltasar Coutinho conhecia o segredo de Teresa. Seu tio, naturalmente, lhe

comunicaraacriancicedaprima,talvezantesdedestinar-lheaesposa.OuviraTeresaotomsarcásticodaquelaspalavras,eerguera-serespondendocomaltivez:—Nãotemmaisquemediga,primoBaltasar?—Tenho, prima; queira sentar-se algum tempomais.Não cuide agora que está falando como

namoradoinfeliz:convença-sedequefalacomoseumaispróximoparente,maissinceroamigo,emais decidido guarda da sua dignidade e fortuna. Eu sabia queminha prima, contra a expressavontadedeseupai,umaououtravezconversavadajanelacomofilhodocorregedor.Nãodeivaloraosucesso,etomei-ocomobrincadeiraprópriadasuaidade.ComoeufrequentasseomeuúltimoanoemCoimbra,hádoisanos,conhecidesobraSimãoBotelho.Quandovoltei,emecontaramasuaafeição ao acadêmico, pasmei da boa-fé da priminha; depois entendi que a suamesma inocênciadeviaseroseuanjodaguarda.Agora,comoseuamigo,compunjo-medeaveraindafascinadapelaperversidade do seu vizinho. Não se recorda de ter visto Simão Botelho suciando com a ínfimavilanagem desta terra?!Não viu os seus criados com as cabeças quebradas pelo tal varredor defeiras?Nãolheconstouqueele,emCoimbra,abarrotadodevinho,andavapelasruasarmadocomoumsalteadordeestradas,proclamandoà canalhaaguerraaosnobreseaos reis, e à religiãodenossospais?Aprimaignorariaistoporventura?—Ignoravapartedissoenãomeafligeosabê-lo.DesdequeconheciSimão,nãomeconstaque

eletenhadadoomenordesgostoàsuafamília,nemouçofalarmaldele.—EestáporissopersuadidadequeSimãodeveaoseuamorareformadecostume?—Nãosei,nempensonisso—replicoucomenfadoTeresa.—Não se zangue, prima. Vou-lhe dizer asminhas últimas palavras: eu hei de, enquanto viver,

trabalharporsalvá-ladasgarrasdeSimãoBotelho.Seseupai lhe faltar, ficoeu.Seas leisanãodefenderemdosataquesdoseudemônio,eufareiveraovalentãoqueavitóriasobreosaguadeirosnão o poupa ao desgosto de ser levado a pontapés para fora da casa de meu tio Tadeu deAlbuquerque.—Entãooprimoquermegovernar!?—atalhouelacomdesabridairritação.—Quero-adirigirenquantoasuarazãoprecisardeauxílio.Tenhajuízoeeusereiindiferenteao

seudestino.Nãoaenfadomais,primaTeresa.BaltasarCoutinhofoidaliprocurarseutio,econtou-lheoessencialdodiálogo.Tadeu,atônitoda

coragem da filha e ferido no coração e nos direitos paternais, correu ao quarto dela, disposto aespancá-la. Reteve-o Baltasar, reflexionando-lhe que a violência prejudicariamuito a crise, sendocoisa de esperar que Teresa fugisse de casa. Refreou o pai a sua ira, e meditou. Horas depois,chamousuafilha,mandou-asentaraopédesi,emtermosserenosegestobem-composto,lhedissequeerasuavontadecasá-lacomoprimo;porém,queelejásabiaqueavontadedesuafilhanãoeraessa. Ajuntou que a não violentaria; mas também não consentiria que ela, sovando aos pés opundonordeseupai, sedessedecoraçãoao filhodoseumaior inimigo.Dissemaisqueestavaaresvalar na sepultura, e mais depressa desceria a ela, perdendo o amor da filha, que ele jáconsiderava morta. Terminou perguntando a Teresa se ela duvidava entrar num convento, e aesperarqueseupaimorresse,paradepoisserdesgraçadaàsuavontade.Teresarespondeu,chorando,queentrarianumconvento,seessaeraavontadedeseupai;porém,

quesenãoprivasseeledeateremsuacompanhianemaprivasseaeladosseusafetos,pormedodequesuafilhapraticassealgumaaçãoindigna,oulhedesobedecessenoqueeravirtudeobedecer.Prometeu-lhejulgar-semortaparatodososhomens,menosparaseupai.Tadeuouviu-a,enãolhereplicou.

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CapítuloIV

OcoraçãodeTeresaestavamentindo.Vãopedirsinceridadeaocoração!Parafinosentendedores,odiálogodoanteriorcapítulodefiniuafilhadeTadeudeAlbuquerque.É

mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, desapego das vulgaresapreensões, se são apreensões a renúncia que uma filha fez do seu alvedrio às imprevidentes ecaprichosasvontadesdeseupai.Dizboagentequenão,eeuabundosemprenovotodagenteboa.Nãoseráaleiveatribuir-lheumapoucadeastúcia,ouhipocrisia,sequiserem;perspicáciaseriamaiscorretodizer.Teresaadivinhaquealealdadetropeçaacadapassonaestradarealdavida,equeosmelhoresfinsseatingemporatalhosondenãocabemafranquezaeasinceridade.EstesardissãorarosnaidadeinexpertadeTeresa;masamulherdoromancequasenuncaétrivial,eestadequerezam os meus apontamentos era distintíssima. A mim me basta crer em sua distinção, acelebridadequeelaveioaganharàcontadadesgraça.DacartaqueelaescreveuaSimãoBotelho,contandoascenasdescritas,acríticadeduzquea

meninadeViseucontemporizavacomopai,pondoamirano futuro,sempassarpelodissabordoconvento,nemrompercomovelhoemmanifestadesobediência.NanarrativaquefezaoacadêmicoomitiuelaasameaçasdoprimoBaltasar,cláusulaque,asertransmitida,arrebatariadeCoimbraomoço,emquemsobejavambriosebravuraparamantê-los.MasnãoéestaaindaacartaquesurpreendeuSimãoBotelho.

PareciabonançosoocéudeTeresa.Seupainãofalavaemclaustronememcasamento.BaltasarCoutinhovoltaraaoseusolardeCastroDaire.Atranquilameninadavasemanalmenteestasboasnovas a Simão, que, aliando às venturas do coração as riquezas do espírito, estudavaincessantemente,edesvelavaasnoitesarquitetandooseuedifíciodefuturaglória.Ao romper d’alva dum domingo de junho de 1803, foi Teresa chamada para ir com seu pai à

primeira missa da igreja paroquial. Vestiu-se a menina, assustada, e encontrou o velho naantecâmaraarecebê-lacommuitoagrado,perguntando-lheseelaseerguiadebonshumoresparadaraoautordeseusdiasumrestodevelhicefeliz.OsilênciodeTeresaerainterrogador.— Vais hoje dar a mão de esposa a teu primo Baltasar, minha filha. É preciso que te deixes

cegamente levar pela mão de teu pai. Logo que deres este passo difícil, conhecerás que a tua

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felicidadeédaquelasqueprecisam ser impostaspela violência.Mas repara,minhaquerida filha,queaviolênciadumpaiésempreamor.Amortemsidoaminhacondescendênciaebranduraparacontigo.Outroteriasubjugadoatuadesobediênciacommaustratos,comosrigoresdoconvento,etalvezcomodesfalquedoteugrandepatrimônio.Eu,não.Espereiqueotempoteaclarasseojuízo,e felicito-me de te julgar desassombrada do diabólico prestígio do maldito que acordou o teuinocentecoração.Nãoteconsulteioutravezsobreestecasamento,portemerqueareflexãofizessemalaozelodeboafilhacomquetuvaisabraçarteupai,eagradecer-lheaprudênciacomqueelerespeitouoteugênio,velandosempreahonradeteencontrardignadoseuamor.Teresa não desfitou os olhos do pai;mas tão abstraída estava, que escassamente lhe ouviu as

primeiraspalavras,enadadasúltimas.—Nãomerespondes,Teresa?!—tornouTadeu,tomando-lhecariciosamenteasmãos.—Queheideeuresponder-lhe,meupai?—balbuciouela.—Dá-meoquetepeço?Enchesdecontentamentoospoucosdiasquemerestam?—Eseráopaifelizcomomeusacrifício?—Não digas sacrifício, Teresa... Amanhã a estas horas verás que transfiguração se fez na tua

alma.Teuprimoéumcompostodetodasasvirtudes;nemaqualidadedeserumgentilmoçolhefalta,comoseariqueza,aciênciaeasvirtudesnãobastassemaformarummaridoexcelente.—Eelequer-medepoisdeeumeternegado?—disseelacomamargurairônica.—Seeleestáapaixonado,filha!...etembastanteconfiançaemsiparacrerquetuhásdeamá-lo

muito!...—Enãoserámaiscertoodiá-loeusempre?!Euagoramesmooabominocomonuncapenseique

sepudesseabominar!Meupai...—continuouela,chorando,comasmãoserguidas—mate-me;masnãomeforceacasarcommeuprimo!Éescusadaaviolência,porqueeunãocaso!Tadeumudoudeaspecto,edisseirado:—Hásdecasar!Queroquecases!Quero!...Quandonão,amaldiçoadaserásparasempre,Teresa!

Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum infame há de aqui pôr pé nasalcatifasdemeusavós.Seésumaalmavil,nãomepertences,nãoésminhafilha,nãopodesherdarapelidoshonrosos,que forampelaprimeiravez insultadospelopaidessemiserávelque tuamas!Malditasejas!Entranessequarto,eesperaquedaí tearranquemparaoutro,ondenãoverásumraiodeSol.Teresaergueu-sesemlágrimas,eentrouserenamentenoseuquarto.TadeudeAlbuquerquefoi

encontrarseusobrinho,edisse-lhe:—Nãotepossodarminhafilha,porque jánãotenhofilha.Amiserável,aquemdeiestenome,

perdeu-separanóseparaela.Baltasar, que, a juízo de seu tio, era um composto de excelência, tinha apenas uma quebra; a

absolutacarênciadebrios.Malogradaatentativadoseuamordeemboscada,tornouparaaterraoprimodeTeresa,dizendoaovelhoqueeleo livrariadoassédioemqueSimãoBotelholhetinhaocoraçãoda filha.Nãoaprovouareclusãonoconvento,discorrendosobreashipóteses infamantesqueaopiniãopúblicainventaria.Aconselhouqueadeixasseestaremcasa,eesperassequeofilhodocorregedorviessedeCoimbra.Ponderaram no ânimo do velho as razões de Baltasar. Teresa maravilhou-se da quietação

inesperada de seu pai e desconfiou da incoerência. Escreveu a Simão. Nada lhe escondeu dosucedido;nemasameaçasdeBaltasarpordelicadezasuprimiu.Rematavacomunicando-lheassuassuspeitasdealgumplanodeviolência.Oacadêmico,chegandoaoperíododasameaças,jánãotinhaclaraluznosolhosparadecifraro

restante da carta. Tremia sezões, e as artérias frontais arfavam-lhe intumescidas. Não erasobressalto do coração apaixonado: era a índole arrogante que lhe escaldava o sangue. Ir dali aCastroDaireeapunhalaroprimodeTeresanasuaprópriacasa, foioprimeiroconselhoque lhesegredouafúriadoódio.Nestepropósitosaiu,alugoucavalo,erecolheuavestir-sedejornada.Jápreparado,acadaminutodeesperaassomava-seemfrenesis.Ocavalodemorou-semeiahora,eoseubomanjo,nesteespaço,vestidocomasgalascomqueelevestianaimaginaçãoTeresa,deu-lherebates de saudade daqueles tempos e ainda das horas daquele mesmo dia em que cismava nafelicidade que o amor lhe prometia, se ele a procurasse no caminho do trabalho e da honra.Contemplouosseuslivroscomtantoafeto,comoseemcadaumestivesseumapáginadahistóriadoseucoração.Nenhumadaquelaspáginastinhaelelido,semqueaimagemdeTeresalheaparecessea fortalecê-loparavenceros tédiosdacontinuadaaplicação,eos ímpetosdumnatural inquietoeansiosodecomoçõesdesusadas.“Ehádetudoacabarassim?—pensavaele,comafaceentreasmãos,encostadoàsuabancadeestudo.—Aindahápoucoeueratãofeliz!...—Feliz!—repetiuele,erguendo-sedegolpe.—Quempodeserfelizcomadesonradumaameaçaimpune?Maseuperco-a!Nuncamaisheidevê-la!...Fugireicomoumassassino,emeupaiseráomeuprimeiroinimigo,eelamesmo há de horrorizar-se da minha vingança... A ameaça só ela a ouviu; e, se eu tivesse sidoaviltadonoconceitodeTeresapelosinsultosdomiserável,talvezqueelaosnãorepetisse.”

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SimãoBotelhoreleuacartaduasvezes,eàterceiraleituraachoumenosafrontosasasbravatasdofidalgocioso.Aslinhasfinaisdesmentiamformalmenteasuspeitadoaviltamento,comqueoseuorgulho o atormentava: eram expressões ternas, súplicas ao seu amor como recompensa dospassados e futuros desgostos, visões encantadoras do futuro, novos juramentos de constância, esentidasfrasesdesaudade.Quandooarreeirobateuàporta,SimãoBotelho jánãopensavaemmatarohomemdeCastro

Daire;masresolverairaViseu,entrardenoite,esconder-seeverTeresa.Faltava-lhe,porém,casade confiança onde se ocultasse. Nas estalagens, seria logo descoberto. Perguntou ao arreeiro seconheciaalgumacasaemViseuondeelepudesseestarescondidoumanoiteouduas,semreceiodeserdenunciado.Oarreeirorespondeuquetinha,aumquartodeléguadeViseu,umprimoferrador;enãoconheciaemViseusenãoosestalajadeiros.Simãoachouaproveitáveloparentescodohomem,elogodaíopresenteoucomumajaquetadepeleseumafaixadesedaescarlate,àcontademaioresvaloresprometidos,seeleobemservissenumaempresaamorosa.Nodiaseguinte,chegouoacadêmicoàcasadoferrador.Oarreeirodeucontaaoseuparentedo

quevinhatratadocomoestudante.FoiSimãoBotelhocautelosamentehospedado,eoarreeiroabalounomesmopontoparaViseu,

com uma carta destinada a uma mendiga, que morava no mais impraticável beco da terra. Amendiga informou-se miudamente da pessoa que enviava a carta, e saiu, mandando esperar ocaminheiro.Poucodepois,voltouelacomaresposta,eoarreeiropartiuagalope.Eraarespostaumgritodealegria.Teresanãorefletiu,respondendoaSimãoquenaquelanoitese

festejavamosseusanos,esereuniamemcasaosparentes.Disse-lhequeàsonzehorasempontoelairiaaoquintalelheabririaaporta.Nãoesperavatantooacadêmico.Oqueelepediaerafalar-lhedaruaparaajaneladoseuquarto,

ereceavaimpossívelesteprazer,queeleavaliavaomáximo.Apertar-lheamão,sentir-lheohálito,abraçá-la talvez, cometer a ousadia de um beijo, estas esperanças, tão além de suasmodestas ehonestas ambições, igualmente o enlevavam e assustavam. Enlevo e susto em corações que seestreiamnacomédiahumanasãosentimentoscongeniais.À hora da partida, Simão tremia, e a si mesmo pedia contas da timidez, sem saber que os

encantosdavida,osmaisangélicosmomentosdaalma,sãoesseslancesdemisteriosoalvoroçoqueaosmaisserôdiosdecoraçãosucedememtodasasrazõesdavida,eatodososhomens,umavezaomenos.ÀsonzehorasempontoestavaSimãoencostadoàportadoquintal,eadistânciaconvencionadao

arreeirocomocavaloàrédea.Atoadadamúsica,quevinhadassalasremotas,alvoroçava-o,porqueafestaemcasadeTadeudeAlbuquerqueosurpreendera.Nolongotermodetrêsanosnuncaeleouvira música naquela casa. Se ele soubesse o dia natalício de Teresa, espantara-se menos daestranha alegria daquelas salas, sempre fechadas como em dias de mortório. Simão imaginoudesvairadamente as quimeras que voejam, ora negras, ora translúcidas, em redor da fantasia

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apaixonada.Nãohábalizaracionalparaasbelas,nemparaashorrorosasilusões,quandooamorasinventa. Simão Botelho, com o ouvido colado à fechadura, ouvia apenas o som das flautas, e aspancadasdocoraçãosobressaltado.

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CapítuloV

Baltasar Coutinho estava na sala, simulando vingativa indiferença por sua prima. As irmãs dofidalgoeademaisparenteladacasanãodeixavamrespirarTeresa.Moçasevelhas,todasàuma,serepetiam,aconselhando-aareconciliar-secomseuprimo,edaraseupaiaalegriaqueopobrevelhotantorogavaaDeus,antesde fecharosolhos.ReplicavaTeresaquenãoqueriamalaseuprimo,nemsequerestavasentidadele;queerasuaamiga,esê-lo-iasempreenquantoelelhedeixasselivreocoração.Ovelhoesperavamuitodaquelanoitadadefesta.Algunsparentes,presumidosdecircunspectos,

lhetinhamditoqueseriaproveitosoregalarafilhacomosprazerescongruentesàsuaidade,dando-lheensejoaqueelarepartisseoespírito,concentradonumsóponto,pordiversõesemqueanaturalvaidade se preocupa, e a força do amor contrariado se vai a pouco e pouco quebrantando.Aconselharam-lheasreuniõesamiúdas, jáemsuacasa, jánadosseusparentes,paradestemodoTeresasemostraramuitos,sercortejadadetodos,eteremopiniãodemenosvaliaoúnicohomemcomquemfalava,eaquemjulgavasuperioratodos.Ofidalgoacedeu,mascomdificuldade:équetinhaláumsistemaseudeajuizardasmulheres,viveratrintaanosdevidalibertinaedispendiosa,eseestavaagorasaboreandonaeconomiaenaquietação.OsanosdeTeresaerampelaprimeiravezfestejados com estrondo. A morgada viu então o que era o minueto da corte e certos jogos deprendascomqueos intervalosnaqueles tempossealigeiravamemdelícias, sem fadigadocorpo,nemdesagradodamoral.Mas,deagitadaqueestava,Teresanãocompartiadogozodosseushóspedes.Desdequesoaram

asdezhorasdaquelanoite,arainhadafestapareciatãoalienadadasfinezascomquesenhorasehomens à competência a lisonjeavam, que Baltasar Coutinho deu tento do desassossego de suaprima, e teve amodéstia de imaginar que ela se ofendera da indiferença dele. Generoso até aoperdão,omorgadodeCastroDaire,compondoorostocomgestograveemelancólico,dirigiu-seaTeresa,epediu-lhedesculpadafriezaqueeledissesercomoadasmontanhas,quetêmvulcõespordentroeneveporfora.Teresateveasinceridadederesponderquenãotinhareparadonafriezadeseu primo, e chamou para junto dela umamenina, para evitar que a montanha se fendesse emvulcões.Poucodepoisergueu-seesaiudasala.Eramdezhorasetrêsquartos.Teresacorreraao fundodoquintal,abriraaporta,e,comonão

vissealguém, tornoudecorridaparaasala.Nomomento,porém,desubiraescadaque ligavaojardim à casa, Baltasar Coutinho, que a espiava desde que ela saiu da sala, chegou a uma dasjanelassobreojardim,bemlongedeimaginarqueavia.Retirou-se,eentroucomTeresanasala,aomesmo tempo, por diversa porta. Decorridos algunsminutos, amenina saiu outra vez e o primotambém.Teresaouviu,àdistância,oestrépitodumcavalo,quandopassouaopatamardaescada.Baltasartambémoouviu,enotouquesuaprima,receosadeservistaeconhecidapelaalvuradovestido,levavaumacapaouxalequeaenvolviatoda.OdeCastroDairefezpéatrásparanãoservisto.Teresa,porém,numrelancedeolhartemeroso,aindaviraumvultoretirar-se.Tevemedo,eretrocedeualargaracapa,eentrounasala,ofegantedecansaçoepálidademedo.

—Quetens,minhafilha?—disse-lheopai.—Jáduasvezessaístedasala,evenstãoalvoraçada!

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Tensalgumincômodo,Teresa?—Tenhoumador:precisodeirrespirardevezemquando...Nadaé,meupai.Tadeu acreditou, e disse a toda a gente que a sua filha tinha uma dor; só o não disse a seu

sobrinho,porqueonãoencontrou,esoubequeeletinhasaído.TambémTeresaderapelaausênciadoprimo,efingiuqueoiaprocurar,resoluçãodequeovelho

gostoumuito.Desceuelaao jardim,correuàportaondeaesperavaSimão,abriu-a,e,comavozcortadapelaansiedade,apenasdisse:—Vai-teembora;vemamanhãàsmesmashoras...Vai,vai!Simão, quando isto ouvia, tinha os olhos fitos num vulto que se aproximava dele, rente com o

murodoquintal.Oarreeiro,queprimeiroovira,deraumsinal,eentalaraasrédeasdocavaloentreumaspedras,paraficardesembaraçado,seoestudantesenãopudessehavercomoinimigo.SimãoBotelhonãosemoveudolocal,eBaltasarCoutinhoparounadistânciadeseispassos.O

arreeiro tinha lentamenteavançadoameio caminhodopatrão,quandoeste lhedissequenão seaproximasse.E,caminhandoparaovulto,aperrouduaspistolas,edisse-lhe:—Istoaquinãoécaminho.Quequer?Ofidalgonãorespondeu.—Parece-mequelheabroabocacomumabala—tornouSimão.—Que lhe importao senhorquemestá?!—disseBaltasar.—Seeu tiverumsegredo, comoo

senhorparecequetemoseunestessítios,souobrigadoaconfessar-lho!?Simãorefletiu,ereplicou.—Estemuropertenceaumacasaondemoraumasófamília,eumasómulher.—Estãonessacasamaisdequarentamulheresestanoite—redarguiuoprimodeTeresa.—Seo

cavalheiroesperauma,eupossoesperaroutra.—Queméosenhor?—tornoucomarrogânciaofilhodocorregedor.—Nãoconheçoapessoaquemeinterroga,nemqueroconhecer.Fiquemoscadaumcomonosso

incógnito.Boasnoites.BaltasarCoutinhoretrocedeu,dizendoentresi:—“Quepartidotemumaespadacontradoishomenseduaspistolas?”SimãoBotelhocavalgou,epartiuparacasadohospitaleiroferrador.O sobrinho de Tadeu de Albuquerque entrou na sala sem denunciar levemente alteração de

ânimo.ViuqueTeresaoobservavaderevés,esoubedissimular-sedemodoqueasossegou.Apobremenina,ansiosaporseversozinha,viucomprazererguer-separasairaprimeirafamília,quedeurebateàsoutras,menosaodeCastroDaireesuasirmãs,queficaramhospedadosemcasadeseutio,comtençãodesedemoraremoitodiasemViseu.Velou Teresa o restante da noite, escrevendo a Simão a longa história dos seus terrores, e

pedindo-lheperdãodeoelanãoteradvertidodobaile,porficardoidadealegriacomasuavinda.No tocante ao plano de se encontrarem na seguinte noite não havia alteração na carta. Istoespantouoacadêmico.Aseuver,ovultoeraBaltasarCoutinho,eopaideTeresadeviaseravisadonaquelamesmanoite.Respondeu ele contando a história do incidente com o encapotado; receando, porém, assustar

Teresaeprivar-sedaentrevista,escreveunovacartaemquenãotransluziamedodeseratacado,nemsequerreceiodemarear-lheafama.QuispareceraSimãoBotelhoqueesteeraodignoportedeumamantecorajoso.Passou o estudante aquele dia contando as longas horas, e meditando instantes nos funestos

resultadosquepodiaterasuatemeráriaida,seBaltasarCoutinhoeraaquelehomemquereservaraparamelhorrelanceavingançadaprovocaçãoinsolente.Masdesiparasitinhaelequepensaremquetaleramaiscovardiaqueprudência.Oferradortinhaumafilha,moçadevinteequatroanos,formasbonitas,umrostobeloetriste.

NotouSimãoosreparosemqueelasedemoravaacontemplá-lo,eperguntou-lheacausadaqueleolharmelancólicocomqueelaofitava.Marianacorou,abriuumsorrisotriste,erespondeu:—Nãoseioquemeadivinhaocoraçãoarespeitodevossasenhoria.Algumadesgraçaestápara

lhesuceder...

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—Ameninanãodiziaisso—replicouSimão—semsaberalgumacoisadaminhavida.—Algumacoisasei...—tornouela.—Ouviucontaraoarreeiro?—Não,senhor.Équemeupaiconheceopaizinhodevossasenhoria,etambémconheceosenhor.

Ehábocadinhoqueeuouviestarmeupaiadizerameutio,queéoarreeiroqueveiocomvossasenhoria,quetinhasuasrazõesparasaberquealgumadesgraçalheestavaparaacontecer...—Porquê?—PoramordumafidalgadeViseu,quetemumprimoemCastroDaire.Simão espantou-se da publicidade do seu segredo, e ia colher pormenores do que ele julgava

mistério entre duas famílias, quando omestre ferrador João da Cruz entrou no sobrado, onde oprecedentediálogosepassara.Amoça,comoouvisseospassosdopai,saíralentamenteporoutraporta.—Comsualicença—dissemestreJoão.Dizendo,fechoupordentroambasasportas,esentou-sesobreumaarca.—Ora,meufidalgo—continuouele,descendoasmangasarregaçadasdacamisa,eapertando-as

comdificuldadenosgrossospulsos,comoquemsabeasetiquetasdasmangas—,hádedesculparqueeuviesseassimemmangasdecamisa;masnãodeicomajaqueta...

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—Estámuitobem,senhorJoão—atalhouoacadêmico.—Pois,senhor,eudevoumfavoraseupai,eumfavordaquelacasta.Umavezarmou-seaquià

minhaportaumadesordem,atrocodeumcoicequeummachodumalmocrevedeunumaégua,queeuestavaferrando,e,emtãoboahorafoi,quelhepartiurenteojarreteporaqui,salvotallugar.JoãodaCruzmostrounasuapernaopontoporondeforafraturadaadaégua,econtinuou:—Eutinhaaliàmãoomartelo,enãometivequenãopregassecomelenacabeçadomacho,que

foi logopraterra.OrecoveirodeCarção,queerachibante,deitouasunhasaumbacamarte,quetraziaentreumacarga,edesfechoucomigo,semmaistir-tenemguar-te.“Óalmadanada!—disse-lheeu—poistuvêsqueoteumachomealeijouestaégua,quecustouvintepeçasaseudono,equeeutenhodepagar,edás-meumtiroporeuteatordoaromacho!?”—Eotiroacertou-lhe?—atalhouSimão.—Acertou;massaberávossasenhoriaquemenãomatou;deu-meaquiporestebraçoesquerdo

com dois quartos. E vai eu, entro em casa, vou à cabeceira da cama, e trago uma clavina, edesfecho-lha na tábua do peito. O almocreve caiu como um tordo, e não tugiu nem mugiu.Prenderam-me,efuiparaViseuejáláestavahátrêsanos,noanoqueopaizinhodevossasenhoriaveiocorregedor.Andavamuitagenteatrabalharcontramim,etodosmediziamqueeuiapernearna forca.Estava lánaenxoviacomigoumpresoacumprirsentença,edisse-meelequeosenhorcorregedortinhamuitadevoçãocomassetedoresdeNossaSenhora.Umavezqueeleiapassandocom a família para amissa, disse-lhe eu: “Senhor corregedor, peço a vossa senhoria, pelas setedoresdeMariaSantíssima,quememandeiràsuapresençaparaeuexplicaraminhaculpaavossasenhoria”.Opaizinhodevossasenhoriachamouomeirinho-geral,emandoutomaromeunome.Ao

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outrodiafuichamadoaosenhorcorregedor,econtei-lhetudo,mostrando-lheaindaascicatrizesdobraço. Seu pai ouviu-me, e disse-me: “Vai-te embora, que eu farei o que puder”. O caso é, meufidalgo,queeusaíabsolvido,quandomuitagentediziaqueeuhaviadeserenforcadoàminhaporta.Fazfavordemedizerseeunãodevoandarcomacaraondeoseupaizinhopõeospés?!—TemosenhorJoãomotivoparalhesergrato,nãohádúvidanenhuma.— Agora faz favor de ouvir omais. Eu, antes de ser ferrador, fui criado de farda em casa do

fidalgodeCastroDaire,queéosenhorBaltasar.Conhece-ovossasenhoria?Ora,seconhece...—Conheçodenome.— Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas paguei-lhas, Deus

louvado.HádehaverseismesesqueelememandouchamaraViseu,emedissequetinhatrintapeçasparamedar,seeu lhe fizesseumserviço.“Oquevossasenhoriaquiser, fidalgo.”Evaieledisse-mequequeriaqueeutirasseavidaaumhomem.Istobuliucápordentrocomigo,porque,afalar a verdade, umhomemquemata outronumapertonão ématadorde ofício, acho eu, não éassim?—Decerto...—respondeuSimão,adivinhandoorematedahistória.—Quemeraohomemque

elequeriamorto?— Era vossa senhoria... O homem!— disse o ferrador com espanto. — O senhor nem sequer

mudoudecor!—Eunãomudonuncadecor,senhorJoão—disseoacadêmico.—Estoupasmado!—Evosmecênãoaceitouaincumbência,peloquevejo—tornouSimão.—Não,senhor;e,então,logoqueelemedissequemera,aminhavontadeerapregar-lhecoma

cabeçanumaesquina.—Eeledisse-lhearazãoporquememandavamatar?—Não,meufidalgo;eulheconto:nasemanaadiante,quandosoubequeosenhorBaltasar(raios

o partam!) tinha saído de Viseu, fui falar com o senhor corregedor, e contei-lhe tudo como sepassara.O senhor corregedorestevea cismarumpouquinho, edisse-me, e vossa senhoriahádeperdoarporeulhedizeroqueseupaimedisse,talequal.—Diga.—Seupaicomeçouaesfregaronariz,edisse-me:“Euseioqueéisso.Seaquelebrejeirodemeu

filhoSimãotivessehonra,nãoolhariaparaaprimadesseassassino.CuidaopatifequeeuconsentiaquemeufilhoseligasseaumafilhadeTadeudeAlbuquerque”.Aindadissemaiscoisasquemenãolembram;maseu fiquei sabendo tudo.Oraaqui temoquehouve.Agoraapareceu-meaqui vossasenhoria, eanoitepassada foiaViseu.Perdoaráaminhaconfiança:masvossa senhoria foi falarcomatalmenina;eeuestivevainãovaiasegui-lo;mas,comoiameucunhado,queéhomemparatrês,fiqueidescansado.Elecontou-meumencontroquevossasenhoriateveàportadoquintaldamenina.Selátorna,senhorSimão,vápreparadoparaalgumacoisademaior.Eubemseiquevossasenhorianãoémedroso;masdumatraiçãoninguémselivra.Sequerqueeuvátambém,estouàssuasordens; e a clavinaquedeupolícia aoalmocreveaindaali está, edá fogodebaixodeágua,comodizooutro.Mas,sevossasenhoriadálicençaqueeulhedigaaminhaopinião,omelhorénãoandarnessasencamisadas.Sequercasarcomela,vápediraseupailicença,edeixeorestocáporminhaconta;pontoéqueelaqueriaqueeu,numabrirefechardeolhos,atirocomelaparacimadumaéguadechupetaquealitenho,eopaiemaisoprimoficamavernavios.—Obrigado,meu amigo – disseSimão. –Aproveitarei os seus bons serviços quandome forem

necessários. Esta noite hei de ir, como fui a noite passada, a Viseu. Se houver novidade, entãoveremosoquesehádefazer.Contocomvosmecê,ecreiaquetememmimumamigo.MestreJoãodaCruznãoreplicou.Dalifoiexaminarmudamenteafechariadaclavina,eentender-

secomocunhadosobrecautelasnecessárias,enquantodescarregavaaarma,eacarregavadenovocomunszagalotesespeciais,queeledenominava“amêndoasdepimpões”.Neste intervalo,Mariana,a filhadoferrador,entrounosobrado,edissecommeiguiceaSimão

Botelho:—Entãosempreécertoir?—Vou;porquenãoheideir?!—PoisNossaSenhoravánasuacompanhia—tornouela,saindologoparaesconderaslágrimas.

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CapítuloVI

Àsdezhorasemeiadanoitedaqueledia,trêsvultosconvergiramparaolocal,rarofrequentado,em que se abria a porta do quintal de Tadeu de Albuquerque. Ali se detiveram alguns minutosdiscutindoegesticulando.Dostrêsvultoshaviaum,cujaspalavraseramouvidasemsilêncioesemréplicapelosoutros.Diziaeleaumdosdois:

—Nãoconvémqueestejaspertodestaporta.Seohomemaparecesseaquimorto,assuspeitascaiamlogosobremimoumeutio.Afastem-sevocêsumdooutro,tenhamoouvidoaplicadoaotropeldo cavalo.Depois apressemopasso até o encontrarem, demodoque os tiros sejamdados longedaqui.

—Mas...—atalhouum—quemnosdizqueeleveioontemacavalo,ehojevemapé?—Éverdade!—acrescentouooutro.—Seelevierapé,eu lhesdareiavisoparaoseguiremdepoisatéo terema jeitode tiro,mas

longedaqui,percebemvocês?—disseBaltasarCoutinho.—Sim,senhor:masseelesaidecasadopai,eentrasemnosdartempo?— Tenho a certeza de que não está em casa do pai, já lho disse. Basta de palavreado. Vão

esconder-seatrásdaigreja,enãoadormeçam.

Debandouogrupo,eBaltasarficoualgunsmomentosencostadoaomuro.Soaramostrêsquartosdepoisdasdez.OdeCastroDairecolocouoouvidoàporta,eretirou-seaceleradamente,ouvindoorumordafolhagemsecaqueTeresavinhapisando.

Apenas Baltasar, cosido com o muro, desaparecera, um vulto assomou do outro lado a passorápido.Nãoparou:foidireitoatodosospontosondeumasombrapodiafigurarumhomem.Rodeoua igreja,queestavaaduzentospassosdedistância.Viuosdoisvultosdireitoscomorecantoqueformavaajunçãodacapela-mor,esobreoqualcaíramassombrasdatorre.Fitou-osdepassagem,esuspeitou;nãoosconheceu,maselesdisseramentresi,depoisqueeledesaparecera:

—ÉoJoãodaCruz,ferrador,ouodiaboporele!...—Quefaráaestahoraporaqui?!—Eusei!—Nãodesconfiasqueeleentrenisto?—Agora!Seentrasse,erapornós.Nãosabesqueelefoimochiladonossoamo?—Poisentãoquemedotens?—Nãohámedo;mastambémseiquefoiocorregedorqueolivroudaforca...—Issoquetem!Ocorregedornãoseimportacomisso,nemsabequeofilhocáestá...—Assimserá;masnãoestoumuitocontente...Eleéhomemdosdiabos...—Deixá-loser...Tantoentramasbalasnelecomonoutro...A discussão continuou sobre várias conjeturas. De tudo o que eles disseram uma coisa era

certíssima:serovultooJoãodaCruz,ferrador.Teria este dado trezentos passos, quando os criados de Baltasar ouviram o remoto tropel da

cavalgadura.

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Ao tempo que eles saíam do seu esconderijo, saía João da Cruz à frente do cavaleiro. Simãoaperrouaspistolas,eoarreeiroumaclavina.

—Nãohánovidade—disseoferrador—massaibavossasenhoriaquejápodiaestarembaixodocavalocomquatrozagalotesnopeito.

Oarreeiroreconheceuocunhado,edisse:—Éstu,João?—Soueu.Vimprimeiroquetu.Simãoestendeuamãoaoferrador,edisse,comovido.—Dêcáasuamão;querosentirnaminhaamãodumhomemhonrado.—Nasocasiõeséqueseconhecemoshomens—redarguiuo ferrador.—Oravamos...nãohá

tempoparafalatórios.Osenhordoutortemumaespera.—Tenho?–disseSimão.—Atrásdaigrejaestãodoishomensqueeunãopudeconhecer;masnãosemedavadejurarque

sãocriadosdoSr.Baltasar.Salteabaixodocavalo,quehádehavermostarda.Eudisse-lhequenãoviesse;masvossasenhoriaveio,eagoraéandarcomacaraparafrente.

—Olhequeeunãotremo,mestreJoão!—disseofilhodocorregedor.—Bemseiquenão;mas,àvistadoinimigo,veremos.Simão tinhaapeado.O ferrador tomouas rédeasdocavalo, recuoualgunspassosna rua,e foi

prendê-loàargoladaparededumaestalagem.Voltou,edisseaSimãoqueoseguisseaeleeaocunhadonadistânciadevintepassos;eque,se

osvissepararpertodoquintaldeAlbuquerque,nãopassassedopontodondeosvisse.Quisoacadêmicoprotestarcontraumplanoqueohumilhavacomoprotegidopeladefesadosdois

homens;oferrador,porém,nãoadmitiuaréplica:—Façaoqueeulhedigo,fidalgo—disseelecomenergia.JoãodaCruzeocunhado,espiandotodasasesquinas,chegaramdefrontedoquintaldeTeresa,e

viramumvultoasumir-senoângulodaparede.— Vamos sobre eles — disse o ferrador — que lá passaram para o adro da igreja; neste

entrementes,odoutorchegaàportadoquintaleentra;depoisvoltaremosparalheguardarasaída.Nestepropósito,moveram-seapressados,eSimãoBotelhocaminhoucomaspistolasaperradas

nadireçãodaporta.

EmfrentedomurodojardimdeTeresahaviaumacascalheiraescarpadaqueseesplainavadepoisnumaalamedasombria.

OsdoiscriadosdeBaltasar,quandootropeldocavaloparou,recordaramasordensdoamo,nocasodevirapéSimão.Buscaramsítioazadoparaoespreitaremnasaída,eentraramnaalamedaquandooacadêmicochegaraàportadoquintal.

—Agoraestáseguro—disseum.—Selánãoficardentro...—respondeuooutro,vendo-oentrar,efechar-seaporta.— Mas além vêm dois homens... — disse o mais assustado, olhando para a outra entrada da

alameda.—Evêmdireitosanós...Aperraláaclavina...—Omelhoréretirarmos.Nósestamosàesperadooutro,enãodestes.Vamosemboradaqui...Estenãoesperouconvencero companheiro:desceua ribanceiradocascalho.Omais intrépido

tevetambémaprudênciadetodososassassinosassalariados:seguiuoassustadiço,edeu-lherazão,quando ouviu após de si os passos velozes dos perseguidores. Saiu-lhes o amo de frente quandodobravamaesquinadoquintal,edisse-lhes:

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—Vocêsaquefogem,seuspoltrões?Oshomenspararamdeenvergonhados,aperrandoosbacamartes.JoãodaCruzeoarreeiroapareceram,eBaltasarcaminhouparaeles,bradando:—Altoaí!Oferradordisseaocunhado:—Fala-lhetu,queeunãoqueroqueelemeconheça.—Quemmandafazeralto?—disseoarreeiro.—Sãotrêsclavinas—respondeuBaltasar.—Olhaseosdemorasadartempoqueodoutorsaia—disseJoãodaCruzaoouvidodoarreeiro.—Poisnóscáestamosparados—replicouocriadodeSimão.—Quenosqueremvocês?—Querosaberoquetêmquefazernestesítio.—Evocêsoquefazemporcá?—Nãoadmitoperguntas—disseodeCastroDaire,aventurandoalgunspassosvacilantesparaa

frente.—Querosaberquemsão.MestreJoãodisseaoouvidodocunhado:—Diz-lheque,sedámaisumpasso,queoarrebentas.Oarreeirorepetiuacláusula,eBaltasarparou.Umdoscriadosdestechamou-oaoladoparalhedizerqueaqueledosdoisquenãofalavaparecia

seroJoãodaCruz.Omorgadoduvidou,equisesclarecer-se;masoferradorouviraaspalavrasdocriado,edisseaocunhado:

—Vemcomigo,queelesconhecem-me.Dizendo,voltouascostasaogrupo,ecaminhouaolongodoquintaldeTadeudeAlbuquerque.Os

criadosdeBaltasar,gloriososdaretirada,comodeumaderrotacerta,apressaramopasso,nacoladossupostosfugitivos.Omorgadoaindalhesdissequeosnãoseguissem;maseles,momentosantescovardes, queriam desforrar-se agora, correndo após o inimigo tanto quanto lhe tinham fugidoantes.

SimãoBotelhoouvirapassosligeiros,e,compelidopelosustodeTeresa,abriraaportadoquintal,sem saber ainda de quem fossem os passos. João da Cruz, com ar galhofeiro, já quando osperseguidoresseviam,disseaofilhodocorregedorseestavaajustadoocasamento,quenãohaviapanoparamangas.

Simão entendeu o perigo, apertou convulsamente a mão de Teresa, e retirou-se. Queria elereconhecer os dois vultos parados a distância, mas João da Cruz, com o tom imperioso de quemobrigaàsubmissão,disseaofilhodocorregedor:

—Váporondeveio,enãoolheparatrás.Simão foi indo até encontrar o cavalo. Montou, e esperou os dois inalteráveis guardas que o

seguiam a passo vagaroso. Maravilhara-os o súbito desaparecimento dos criados de Baltasar, erecearam-sedealgumaesperaforadacidade.Oferradorconheciaoatalhoquepodialevarosdaemboscadaaocaminho,erevelouoseureceioaSimão,dizendo-lhequepicasseatodaabrida,queeleeocunhadoláiriamter.Oacadêmicorecebeucomenfadoaadvertência,admoestando-osaqueo não tivessem em tal vil preço. E acintemente sofreou as rédeas para não forçar os homens aaligeiraropasso.

—Vácomoquiser—dissemestreJoão—quenósvamosporforadocaminho.E subiram a uma rampa de olivais, para tornarem a descer encobertos por moitas de giesta,

cosendo-seaostorcicolosdumaparedeparalelacomaestrada.—Oatalhovaiacoláondeaserrafazaquelecotovelo—disseoferradoraocunhado—,hãodeali

passar,oujápassaram.Aestradavaimesmonaquebradadaqueleouteirinho.Oshomensédaliquevãoatirar,encobertospelossobreiros.Vamosdepressa...

Eumpoucodescobertos,eoutrocurvadosàsombradasdevesas,chegaramaumvaladodondeouviramospassosdosdoishomensqueatravessavamopontilhãodeumcórrego.

— Já não vamos a tempo—disse aflito o João daCruz,— os homens vão atirar-lhe, porque ocavalotrotacámuitoatrás.

Ecorriamjásemtemordeseremvistos,porqueosoutrostinhamdobradooouteiro,emcujovalecorriaaestrada.

—Oshomensvãoatirar-lhe...—disseoferrador.—Gritemosdaquiaodoutorquenãováparadiante.—Jánãoétempo...Ouomatemounãomatem,quandovoltaremsãonossos.Tinhamjápassadoopontilhão,esubiamaladeiraquandoouviramdoistiros.—Arriba!—exclamouJoãodaCruz—Quenãovãometer-seàestrada,semataramofidalgo.Tinhamvencidoachã,esbofadoseansiados,comasclavinasaperradas.OscriadosdeBaltasar,

aoinvésdaconjeturadoferrador,retrocediampelomesmoatalho,supondoqueoscompanheirosdeSimãoiamadiantebatendoospontosazadosàemboscada,ousetinhamretardado.

—Elesaívêm!—disseoarreeiro.— Nós cá estamos — respondeu o ferrador, sentando-se a coberto de um cômoro. — Senta-te

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também,queeunãoestouparacorreratrásdeles.Osassassinos,adezpassos, viramde frenteerguerem-seosdois vultos, e ladearamcadaqual

paraseulado,umgalgandoossocalcosdumavinhaeoutroatirando-seaunssilveirais.—Atiraaodaesquerda!—disseJoãodaCruz.Foram simultâneas as explosões. A pontaria do ferrador fez logo um cadáver. Os balotes do

arreeironãoestremaramooutroentreocarrascalondeseembrenhara.AestetempoassomavaSimãonotesodondelhetinhamatirado,ecorriaaopontoondeouvirao

segundotiro.—Évossasenhoria,fidalgo?—bradouoferrador.—Sou.—Nãoomataram?—Creioquenão—respondeuSimão.—Estedesalmadodeixoufugiromelro—tornouJoãodaCruz—masomeuláestáapernearna

vinha.Semprelhequeroverastrombas...Oferradordesceuostrêssocalcosdavinha,ecurvou-sesobreocadáver,dizendo:—Almadecântaro,seeutivesseduasclavinas,nãoiassozinhoparaoinferno.—Andadaí!—disseoarreeiro—deixaláessediabo,queosenhordoutorestáferidonumombro.

Vamosdepressa,queestáosangueaescorrer-lhe.—Euviduascabeçasaespreitarem-medecimadaribanceira,ecuideiqueeramvocês—disse

Simão, enquanto o ferrador, comadestrezadehábil cirurgião, lhe enfaixava com lenços obraçoferido.—Pareiocavalo,edisse:“Olé!Hánovidade?”Logoquemenãoresponderam,salteiparaterra;masaindaeutinhaumpénoestriboquandomefizeramfogo.Quissaltaràribanceira,masnãopuderomperomato.Deiumavoltagrandeparaacharsubida,efoientãoquedeifédeestarferido.

—Istoéumaarranhadura—disseJoãodaCruz—olhequeeuseidisto,fidalgo!Estouafeitoacurarmuitasferidas.

—Nosburros,mestreJoão?—disseoferido,sorrindo.— E nos cristãos também, senhor doutor. Olhe que houve em Portugal um rei que não queria

outromédicosenãoumalveitar.Heidemostrar-lheomeucorpo,queestáumarededefacadas,enuncafuiaocirurgião.Comcerotoevinagresoucapazdeirressuscitaraquelaalmadodiaboquealiestáaescutaracavalaria.

Nistoouviu-seumleverumordefolhagemnomatagalparaondetinhasaltadoocompanheirodomorto.

JoãodaCruz,comogalgodefinoolfato,fitouaorelhaeresmungou:—Queremvocêsverqueelassearmam!Dar-se-ácasoqueooutroaindaestejaporaliatremer

maleitas?Orumorcontinuou,elogoumbandodepássarosrompeudentreafolhagem,chilreando.

—Ohomemestáali!—tornouoferrador.—Passe-mecáumapistola,senhorSimão!CorreumestreJoão,eaomesmotempoumagranderestolhadasefezentreasmoitasdecodessos

eurzes.—Eleestrinçalenhacomoumporco-do-monte!—exclamouoferrador.—Ócunhado,bateeste

matocomalgunspenedos;queroversairojavalidamoita!Paraooutroladodabouçaestavaumplainocultivado.Simão,rodeandoasebe,conseguirasaltar

aocampoporsobreapedradumagueiro.—Tenhalámão,mestre;nãovávocêatirar-me!—bradouSimãoaoferrador.—Poiso fidalgo jáaíanda!?Entãoestáfechadoocerco.Eucávoufazerdefurão.Seestenos

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escapa,nãohánadaseguronestemundo!Não se enganaram. O criado de Baltasar Coutinho, quando se atirara desamparado à brenha,

deslocaraumjoelho,ecaíraatordoado.Oarreeironãoexaminouoefeitodotiro,porqueatiraraàventura,eachavanaturalqueofugitivosenãomolestasse.Quandovolveuasidoaturdimentodaqueda,ohomemarrastou-seatéencontrarumcerradodeárvoressilvestres,emquepernoitavaapassarinhada.Comoosmelros cacarejassem,esvoaçando, o criadodeBaltasar retrocedeuparaomato,cuidandoqueaíescaparia;masoarreeiro jogavaenormescalhausem todasasdireções,ealgunsacertavammaisqueasbalasdoseubacamarte.JoãodaCruztiroudobolsodajaquetaumpodão,ecomeçouacortaraselvadecarvalhasnovasegiestasqueseemaranhavamemredordoesconderijo.Jácansado,porém,evendoopoucofrutodotrabalho,disseaoarreeiro:

—Petisca lume,vaialidentrobuscarumpoucoderestolhoseco,evamospegar fogoaomato,queesteladrãohádemorrerassado.

Operseguido,quandotalouviu,tiroudomaiorperigocoragemparafugir,rompendoaespessuraesaltandoaparededatapadaparaocampodorestolhoemqueoarreeiroandavaapanhandopalhaeSimãoesperavaodesfechodamontaria.Correramaumtempooarreeiroeoacadêmicosobreele.Ofugitivo,sentindo-sealcançado,lançou-sedejoelhosemãoserguidas,pedindoperdão,edizendoqueoamooobrigaraàqueladesgraça.Jáacoronhadobacamartedoarreeirolheiadireitaaopeito,quandoSimãolhereteveobraço.

—Nãosebatenumhomemajoelhado!—disseomoço.—Levanta-te,rapaz!—Eunãoposso,senhor.Tenhoumapernaquebradaeestoualeijadoparaaminhavida!Nestecomenoschegouoferrador,eexclamou:—Poisessetratanteaindaestávivo!?Ecorreusobreelecomopodão.—Nãomateohomem,senhorJoão!—disseofilhodocorregedor.—Queonãomate!Essaédecabodeesquadra!Comqueentãoofidalgoquerpagar-mecoma

forcaofavordeoacompanhar...hein?—Comaforca?!—atalhouSimão.— Pudera não! Quer que este homem fique para ir contar a história? Acha bonito? Lá vossa

senhoria, como é filho de ministro, não terá perigo; mas eu, que sou ferrador, posso contar quedestaveztenhoobaraçonopescoço.Nãomefazjeitoonegócio.Deixe-mecácomohomem...

—Nãoomate,senhorJoão;peço-lheeuqueodeixeir.Umatestemunhanãonospodefazermal.—Oquê!—redarguiuoferrador.—Vossasenhoriaédoutor,saberámuito,masde justiçanão

sabenada,ehádeperdoaromeuatrevimento.Bastaumasó testemunhaparaguiara justiçanadevassa.Àsduasportrês,umatestemunhadevista,equatrodeouvirdizer,comofidalgodeCastroDaireamexerospauzinhos,éforcacerta,comodoisedoisseremquatro.

— Eu não digo nada; não me matem, que eu nem torno a ir para Castro Daire – exclamou ohomem.

—Deixe-oficar,JoãodaCruz...Vamosembora...—Isso!—acudiuoferrador.—Chame-meJoãodaCruz...Paraestemarotoficarbemcertodeque

souoJoãodaCruz!...Comefeito,nãoseioquemeparecevossasenhoriaquererdeixarcomvidaumaalmadodiaboquelhedeuumtiroparaomatar.

—Poissim,temvocêrazão;maseunãoseicastigarmiseráveisquenãoresistem.—E,seeleotivessematado,castigava-o?Respondaaisto,senhordoutor.—Vamosembora—tornouSimão—deixemosparaaíessemiserável.MestreJoãocismoualgunsmomentos,coçandoacabeça,eresmungoucomdescontentamento:—Vamoslá.Quemoseuinimigopoupa,nasmãoslhemorre.Tinhamjásaídodoplanoesaltadoatapada,eiamdescendoparaaestrada,quandooferrador

exclamou:—Lámeficouaminhaclavinaencostadaàsebe...Vãoindoqueeuvenhojá.Oarreeiroconduziaocavalo,quepacificamenteestiveratosandoarelvadasparedesmarginais

daestrada,quandoSimãoouviugritos.Conjeturoucomcertezaoqueera.—OJoãoláestáafazerjustiça!—disseoarreeiro.—Deixá-lolá,meuamo,queeleéhomemque

sabeoquefaz.JoãodaCruzapareceudaíapouco,limpandocomfentosopodãoensanguentado.

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—Vocêécruel,sr.João—disseoacadêmico.—Não soucruel—disseo ferrador—o fidalgoestáenganadocomigo; éque,diz láoditado,

morrerpormorrer,morrameupai,queémaisvelho.Tantofazmatarumcomodois.Quandoseestácomamãonamassa,tantofazamassarumalqueirecomotrês.Asobrasdevemseracabadas,ouentãoomelhorénãosemeteragentenelas.Agoralevoaminhaconsciênciasossegada.Ajustiçaqueprove,sequiser;masnãohádeserporquelhodigamaquelesdoisqueeumandeidepresenteaodiabo.

Simão teve um instante de horror do homicida, e de arrependimento de se ter ligado com talhomem.

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CapítuloVII

OferimentodeSimãoBotelhoeramelindrosodemaisparaobedecerprontamenteaocurativodoferrador,enfronhadoemaforismosdealveitaria.Abalapassara-lhederevésaporçãomusculardobraçoesquerdo;masalgumvasoimportanterompera,quenãobastavamcompressasavedar-lheosangue.Horasdepoisdeferido,oacadêmicodeitou-sefebril,deixando-semedicarpeloferrador.Oarreeiro partiu para Coimbra, encarregado de espalhar a notícia de ter ficado no Porto SimãoBotelho.Maisqueasdoreseoreceiodaamputação,omortificavaaânsiadesabernovasdeTeresa.João

daCruzestavasempredesobrerrolda,precavidocontraalgumprocedimentojudicialporsuspeitasdele.Aspessoasquevinhamdefeirarnacidadecontavamtodasquedoishomenstinhamaparecidomortos,econstavaseremcriadosdumfidalgodeCastroDaire.Ninguém,porém,ouviraimputaroassassínioadeterminadaspessoas.NatardedessediarecebeuSimãoaseguintecartadeTeresa:Deuspermitaquetenhaschegadosemperigoàcasadessaboagente.Eunãoseioquesepassa,

mashácoisamisteriosaqueeunãopossoadivinhar.Meupaitemestadotodaamanhãfechadocomoprimo,eamimnãomedeixasairdoquarto.Mandou-metirarotinteiro;maseufelizmenteestavaprevenidacomoutro.NossaSenhoraquisqueapobreviessepediresmoladebaixodajaneladomeuquarto;senão,eunemtinhamododelhedarsinalparaelaesperarestacarta.Nãoseioqueelamedisse.Falou-meemcriadosmortos;maseunãopudeentender...TuamanaRitaestá-meacenandoportrásdosvidrosdoteuquarto...

Disse-meagoratuamanaqueosmoçosdemeuprimotinhamaparecidomortospertodaestrada.Agorajáseitudo.Estiveparalhedizerquetuaíestás,masnãomederamtempo.Meupaidehoraahoradápasseiosnocorredor,esoltaunsaismuitoaltos.

ÓmeuqueridoSimão,queseráfeitodeti?...Estásferido?Sereieuacausadatuamorte?Dize-me o que souberes. Eu já não peço a Deus senão a tua vida. Foge desses sítios: vai para

Coimbra,eesperaqueotempomelhoreanossasituação.Temconfiançanestadesgraçada,queédignada tuadedicação...Chegaapobre:nãoquerodemorá-lamais...Perguntei-lhe sediziade tialgumacoisa,eelarespondeuquenão.Deusoqueira.Respondeu Simão a querer tranquilizar o ânimo de Teresa. Do seu sofrimento falava tão de

passagem,quedavaasuporquenemocurativoeranecessário.PrometiapartirparaCoimbralogoqueopudessefazersemreceiodeTeresasofrernasuaausência.Animava-aachamá-loassimqueasameaçasdoconventopassassemaserrealizadas.Entretanto, Baltasar Coutinho, chamado às autoridades judiciárias para esclarecer a devassa

instaurada, respondeuqueefetivamenteoshomensmortoseramseuscriados,dequemeleesuafamíliaseacompanharadeCastroDaire.AcrescentouquenãosabiaqueelestivesseminimigosemViseu,nemtinhacontraalguémasmaislevespresunções.Osmaispróximosvizinhosdalocalidadeondeoscadáverestinhamaparecidoapenasdepunham

que, alta noite, tinham ouvido dois tiros ao mesmo tempo, e outro pouco depois. Um apenasadiantavacoisaquenãopodiaalumiarajustiça,evinhaaserqueomato,nasvizinhançasdolocal,forachapotado.Nestaescuridadeajustiçanãopodiadarpassoalgum.Tadeu de Albuquerque era conivente no atentado contra a vida de Simão Botelho. Fora seu o

alvitre, quando o sobrinho denunciou a causa das saídas frequentes de Teresa na noite do baile.Tantoaovelhocomoaomorgadoconvinhaapagaralgumindícioquepudesseenvolvê-losnomistériodaquelasduasmortes.Oscriadosnãomereciamaspenasdumdesforçoqueimplicasseodesdourodeseusamos.ProvascontraSimãoBotelhonãopodiamaduzi-las.ÀquelahoraosupunhamelesacaminhodeCoimbra,ourefugiadoemcasadeseupai.Restava-lhesaindaaesperançadequeeletivessesidoferido,efosseacabarlongedolocalemqueotinhamassaltado.Enquanto a Teresa, resolveu Albuquerque encerrá-la num convento do Porto, e escolheu

Monchique, onde era prioresa uma sua próxima parenta. Escreveu à prelada para lhe prepararaposentos, e ao procurador para negociar as licenças eclesiásticas para a entrada. Todavia,receandoovelhoalgumincidentenoespaçodetempoquemediavaatéseconseguiremaslicenças,resolveunãoterconsigoTeresa,esolicitouaretençãotemporáriadelanumconventodeViseu.AcabaraTeresadelereescondernoseioarespostadeSimãoBotelhoqueamendigalhepassara

aoescurecer,pendentedeumalinha,quandoopaientrounoseuquarto,eamandouvestir-se.Ameninaobedeceu,tomandoumacapaeumlenço.—Vista-se comoquemé: lembre-se que ainda temosmeus apelidos – disse com severidade o

velho.—Cuideiquenãoeraprecisovestir-memelhorparasairànoite...—disseTeresa.—Easenhorasabeparaondevai?

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—Nãosei...meupai.—Entãovista-se,enãomedêleis.—Mas,meupai,atenda-meummomento.—Diga.—Seasuaideiaéobrigar-meacasarcommeuprimo...—Edaí?—Decertonãocaso;morro,emorrocontente,masnãocaso.—Nemele aquer.A senhoraé indignadeBaltasarCoutinho.Umhomemdomeu sanguenão

aceitaparaesposaumamulherquefaladenoiteaosamantesnosquintais.Vista-sedepressa,quevaiparaumconvento.—Prontamente,meupai.Essedestinolhopedieumuitasvezes.— Não quero reflexões. Daqui a pouco apareça-me vestida. Suas primas esperam-na para a

acompanharem.Quando se viu sozinha,Teresadebulhou-se em lágrimas, equis escrever aSimão.Àquelahora

quemlhelevariaacarta?ApelouparaoretábulodaVirgem,queelafizeraconfidentedoseuamor.Pediu-lhedejoelhosqueaprotegesse,edesseforçasaSimãopararesistiraogolpe,eguardar-lheconstânciaatravésdostrabalhosquesucedessem.Depoisvestiu-se,comprimindocontraoseioumembrulho em que levava o tinteiro, o papel e omacete de cartas de Simão. Saiu do seu quarto,relanceandoosolhos lacrimososparaopaineldaVirgem,e, encontrandoopai,pediu-lhe licençaparalevarconsigoaqueladevotaimagem.—Láiráter—respondeuele.—Setivessetantavergonhacomodevoção,seriamaisfelizdoque

hádeser.Umadasprimas,irmãsdeBaltasar,chamou-adeparte,esegredou-lhe:—Ómenina,estavaaindanatuamãodaresremédioàdesordemdestacasa...—Qualremédio?!—perguntouTeresacomartificialseriedade.—DizateupaiquenãoduvidascasarcomomanoBaltasar...—PrimoBaltasarnãomequer—replicouela,sorrindo.—Quemtedisseisso,Teresinha?—Disse-momeupai.—Deixafalarteupai,estádesatinadocomoamorquetetem.Querestuqueeulhefale?—Paraquê?—Paraseremediardestemodoadesgraçadetodosnós.—Estás abrincar, prima!— redarguiuTeresa.—Euhei de ser tua cunhadaquandonão tiver

coração. Teu mano tem a certeza de que eu amo outro homem. Queria viver para ele; mas, sequiserem que eu morra por ele, abençoarei todos os meus algozes. Podes dizer isto ao primoBaltasaredize-lhoantesqueteesqueça.—Então,vamos?!—disseovelho.—Estoupronta,meupai.Abriu-seaportariadomosteiro.Teresaentrousemumalágrima.Beijouamãodeseupai,queele

nãoousourecusar-lhenapresençadasfreiras.Abraçousuasprimas,comsemblantederegozijo;e,aofechar-seaporta,exclamou,comgrandeespantodasmonjas:—Estoumaislivrequenunca.Aliberdadedocoraçãoétudo.As freiras olharam-se entre si, como se ouvissem na palavra “coração” uma heresia, uma

blasfêmiaproferidanacasadoSenhor.—Quedizamenina?!—perguntouaprioresa, fitando-apor cimadosóculos, eapanhandono

lençodeAlcobaçaadestilaçãodoesturrinho.—Disseeuquemesentiaaquimuitobem,minhasenhora.—Nãodigaminhasenhora—atalhouaescrivã.—Comoheidedizer?—Diga:“nossamadreprioresa”.—Poissim,nossamadreprioresa,disseeuquemesentiaaquimuitobem.—MasquemvemparaestascasasdeDeusnãovemparasesentirbem—tornouanossamadre

prioresa.—Não?!—disseTeresacomsinceraadmiração.—Quemparaaquivem,menina,hádemortificaroespírito,edeixarláforaaspaixõesmundanas.

Orapois!Aquiestáanossamadremestradenoviças,aquemcompeteencaminhá-laedirigi-la.

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Teresanãoredarguiu: fezumgestoderespeitoàmestradenoviças,eseguiuocaminhoqueapreladalheiaindicando.A nossamadre entrou nos seus aposentos, e disse a Teresa que era sua hóspede enquanto ali

estivesse;eajuntouquenãosabiaseseupaiescolheriaaqueleconventoououtro.—Queimportaquesejaumououtro?—disseTeresa.— É conforme. Seu pai pode querer que a menina professe em ordem rica das bentas ou

bernardas.—Professe!—exclamouTeresa.—Eunãoqueroserfreiraaqui,nemnoutraparte.—Asenhorahádeseroqueseupaiquiserqueseja.—Freira?!Aissonãopodeninguémobrigar-me!—recalcitrouTeresa.—Issoassimé—retorquiuaprioresa—mas,comoameninatemdenoviciadoumano,sobra-lhe

tempoparasehabituaraestavida,everáquenãohávidamaisdescansadaparaocorpo,nemmaissaudávelparaaalma.—Masanossamadre—tornouTeresa,sorrindo,comoseaironialhefossehabitual—jádisse

queaestascasasninguémvemparasesentirbem...—Éummododefalar,menina.Todostemosasnossasmortificaçõeseobrigaçõesdecoroede

serviçosparaquenemsempreoespíritoestábem-disposto.Oravêaí.Mas,emcomparaçãodoquelávaipelomundo,oconventoéumparaíso.Aquinãohápaixões,nemcuidadosquetiremosono,nemavontadedecomer,benditosejaoSenhor!VivemosumascomasoutrascomoDeuscomosanjos.Oqueumaquerqueremtodas.Máslínguasécoisaqueameninanãohádeacharaqui,nemintriguistas,nemmurmuraçõesdesoalheiro.Enfim,Deusfaráoqueforservido.Euvouàcozinhabuscaraceiadamenina,ejávolto.Aquiadeixocomasenhoramadreorganista,queéumapomba,e comanossamestradenoviças, que sabedizermelhorque eu oque é a virtudenestas santascasas.Apenasaprioresavoltouascostas,disseaorganistaàmestradenoviças:—Queimpostora!—Equeestúpida!—acudiuaoutra.—Ameninanãosefienestatrapalhona,evejaseseupailhe

dáoutracompanhiaenquantocáestiver,queaprioresaéamaior intriguistadoconvento.Depoisque fez sessenta anos, fala das paixões domundo comoquemas conhece por dentro e por fora.Enquanto foi nova, era a freira que mais escândalos dava na casa; depois de velha era a mais

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ridícula, porque ainda queria amar e ser amada; agora, que está decrépita, anda sempre estemostrengoafazermissõeseacurarindigestões.Teresa,apesardasuador,nãopôdereprimirumarisada,lembrando-sedavidadeDeuscomos

anjosqueasesposasdoSenhoraliviviam,nodizerdamadreprioresa.Poucodepois,entrouapreladacomaceia,esaíramasduasfreiras.—Quelhepareceramasduasreligiosasqueficaramcomamenina?—disseelaaTeresa.—Pareceram-memuitobem.Avelhadistendeuosbeiçosmatizadosdemeandrosdeesturrinholíquido,eregougou:—Hum!... Está feito, está feito!... Ainda não são das piores;mas, se fossemmelhores, não se

perdianada...Oravamosaisto,menina;aquitemduaspernasdegalinhaeumcaldoqueopodemcomerosanjos.—Eunãocomonada,minhasenhora—disseTeresa.—Oraessa!Nãocomenada?!Hádecomer;semcomerninguémresiste.Paixões...queasleveo

porco-sujo!...Asmulhereséqueficamlogradas,eelesnãotêmqueperder!...Queeu,cádemim,atéaopresente,Deuslouvado,nãoseioquesejampaixões;masquemtemcinquentaecincoanosdeconventotemmuitaexperiênciadoquevêpenaràsoutrasdoidivanas.E,paranãoirmaislonge,estasduasquedaquisaíramtêmpagadobemoseutributoàasneira,Deusmeperdoe,sepeco.Aorganista tem já os seus quarenta bons, e ainda vai ao locutório derreter-se em finezas; a outra,apesardesermestradenoviças,àfaltadoutraquequisessesê-lo,seeulhenãoandassecomoolhoemcima,estragava-measraparigas.Esteedificantediscursodecaridadefoiinterrompidopelamadreescrivã,quevinha,palitandoos

dentes,pediràpreladaumcopinhodecertovinhoestomacalcomquetodasasnoiteserabrindada.—Estavaeuadizeraestameninaaspeçasquesãoaorganistaeamestra—disseaprioresa.—Oh!Sãoparaoqueeulheprestar!Láforamambasparaaceladaporteira.Aestahoraestáa

meninaasercortadaporaquelaslínguas,quenãoperdoamaninguém.—Vaistuverseouvesalgumacoisa,minhaflor?—disseaprelada.Aescrivã,contentedamissão,foiimperceptivelmenteaolongodosdormitóriosatépararauma

porta,quenãovedavaoruídoestridentedasrisadas.Noentanto,diziaapreladaaTeresa:—Estaescrivãnãoémárapariga.Sótemodefeitodesetomardapingoleta;depois,nãoháquem

aature.Temumaboatença,masgastatudoemvinho,etemocasiõesdeentrarnocoroafazerssque émesmo uma desgraça.Não tem outro defeito; é uma alma lavada, e amiga da sua amiga.Verdade,que,àsvezes...(aquiapreladaergueu-seaescutarnosdormitórios,efechoupordentroaporta);éverdadeque,àsvezes,quandoandaazoratada,dáporpauseporpedras,edescobreosdefeitosdassuasamigas.Amimjáelameassacouumaleive,dizendoqueeu,quandosaíaaares,nãoiasóaares,eandavaporláafazeroquefazemasoutras.Fortepoucavergonha!Láqueoutrafalasse,vá;masela,quetemsempreunsnamoradospandilhasquebebemcomelanagrade,issolámecusta;mas,enfim,nãoháninguémperfeito!...Boaraparigaéela...senãofosseaquelemalditovício...

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Como tocasse ao coro nesta ocasião, a veneranda prioresa bebeu o segundo cálice do vinhoestomacal, e disse a Teresa que a esperasse um quarto de hora, que ela ia ao coro, e pouco sedemoraria.Tinhaelasaído,quandoaescrivãentrouatempoqueTeresa,comasmãosabertassobreaface,diziaemsi:“Umconvento,meuDeus!Istoéqueéumconvento?”—Estásozinha?—disseaescrivã.—Estou,minhasenhora.—Poisaquelagrosseiravai-seembora,edeixaumahóspedesozinha?!Bemsevêqueéfilhade

funileiro!...Poistinhatempodeterpráticadomundo,quetemandadoporláquefarte...Euhaviadeiraocoro...Masnãovou,paralhefazercompanhia,menina.—Vá, váminha senhora, que eu fico bem sozinha— disse Teresa, com a esperança de poder

desafogaremlágrimasasuaaflição.—Nãovou,não!...Ameninaaquiestarreciademedo;masapreladanãotardaaí.Ela,sepode

escapar-sedocoro,nãoparalámuitotempo.Iaapostarqueelalheesteveafalarmaldemim?—Não,minhasenhora,pelocontrário...—Ora,digaaverdade,menina!Euseiqueestacegonhanãofalabemdeninguém.Paraelatudo

sãolibertinasebêbadas.—Nada,não,minhasenhora;nadamedissearespeitodealgumafreira.—E, se disse, deixá-la dizer. Ela o vinho não o bebe, suga-o; é uma esponja viva. Enquanto à

libertinagem, tomara eu tantosmil cruzados comode amantes ela tem tido!Faz lá umapequenaideia,menina!...Aescrivãbebeuumcálicedovinhodasuaprelada,econtinuou:—Fazláumapequenaideia!ElaévelhíssimacomoaSé.Quandoeuprofessei, jáelaeravelha

comoagora,compoucadiferença.Oraeusoufreirahávinteeseisanos.Calculeameninaquantasarrobasdeesturrinhoelatematulhadonaquelesnarizes!Poisolhe,quermecreia,quernão,tenho-lhe conhecidomais de uma dúzia de chichisbéus, não falando do padre capelão, que esse aindaagora lhe forneceagarrafeira, ànossacusta, entende-se.Éumadissipadorados rendimentosdacasa. Eu, que sou escrivã, é que sei o que ela rouba. Eu tenho imensa pena de ver a meninahospedadaemcasadestahipócrita.Nãosedeixelevardasimposturicesdela,meuanjinho.Euseique seupai lhemandou falar, eaencarregoudeanãodeixarescrever,nemrecebercartas;masolhe,minhafilha,sequiserescrever,eudou-lhetinteiro,papel,obreiaseomeuquarto,separaláquiserirescrever.Setemalguémquelheescreva,diga-lhequemandeascartasemmeunome;eu

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chamo-meDionísiadaImaculadaConceição.—Muito agradecida,minha senhora— disse Teresa, animada pelo oferecimento.—Quemme

derapodermandarumrecadoaumapobrequemoranobecodo...—Oquequiser,menina.Eumandolálogoquefordia.Estejadescansada.Nãosefiedealguém,

senãodemim.Olhequeamestradenoviçaseaorganistasãoduasfalsas.Nãolhesdêtrela,que,seasadmiteàsuaconfiança,estáperdida.Aívemalesma...Falemosnoutracoisa...Apreladavinhaentrando,eaescrivãprosseguiuassim:—Nãohá,nãohánadamaisagradávelqueavidadoconventoquandosetemafortunadeter

umapreladacomoanossa...Aí!Erastu,menina?Olhaseestivéssemosafalarmaldeti!—Euseiquetununcafalasmaldemim—disseaprelada,piscandooolhoaTeresa.—Aíestá

essameninaquedigaoqueeulheestiveadizerdastuasboasqualidades...—Poisoqueeudissedeti—respondeusórorDionísiadaImaculadaConceição—nãoprecisas

de perguntar, porque felizmente ouviste o que eu estava dizendo. Oxalá que se pudesse dizer omesmodasoutrasquedesonramacasa,etrazemaquitudointrigadonumameada,queémesmocoisadepecado!—Entãonãovaisaocoro,Nini?—tornouaprioresa.—Jáagoraétarde...Tuabsolves-medafalta,sim?—Absolvo,absolvo;masdou-tecomopenitênciabeberesumcopinho...—Doestomacal?—Pudera!Dionísiacumpriuapenitência,esaiupara,diziaela,deixarapreladanasuahoradeoração.Não delongaremos esta amostra do evangélico e exemplar viver do convento onde Tadeu de

Albuquerquemandarasuafilhaarespiraropuríssimoardosanjos,enquantoselhepreparavacrisolmaisdepuradordossedimentosdovícionoconventodeMonchique.Encheu-se o coração de Teresa de amargura e nojo naquelas duas horas de vida conventual.

Ignoravaelaqueomundotinhadaquilo.Ouvirafalardosmosteiroscomodeumrefúgiodavirtude,dainocênciaedasesperançasimorredoiras.Algumascartasleradesuatia,preladaemMonchique,eporelas formaraconceitodoquedeviaserumasanta.Daquelasmesmasdominicanas,emcujacasaestava,ouviradizeràsvelhasedevotasfidalgasdeViseuvirtudes,maravilhasdecaridade,eatémilagres.Quedesilusãotãotristee,aomesmotempo,queânsiadefugirdali!AcamadeTeresaestavanamesmaceladaprioresa,emalcovaseparada,comcortinasdecassa.Quando a prelada lhe disse que podia deitar-se, querendo, perguntou-lhe amenina se poderia

escreveraseupai.Afreirarespondeuquenodiaseguinteofaria,postoqueosenhorAlbuquerqueordenassequesuafilhanãoescrevesse;assimmesmo,ajuntouela,quelhonãoproibiria,setivessetinteiroepapelnacela.Teresa deitou-se, e a prelada ajoelhou diante dum oratório, rezando a coroa ameia-voz. Se o

murmúrio da oração enfadasse a hóspede, não teria elamuita razão de queixa, porque a devotamonja,aosegundoPadre-nosso,cabeceavademodoque jánãoatinoucomaprimeiraAve-Maria.Levantou-se,cambaleandoumamesuraàsimagensdosantuário,foideitar-se,epegouaressonar.Teresaafastousutilmenteascortinasdoquarto,etiroudeentreoseufatootinteirodetarraxae

opapel.A lâmpada do oratório lançava um frouxo raio sobre a cadeira em que Teresa pusera os seus

vestidos. Desceu da cama, ajoelhou ao pé da cadeira, e escreveu a Simão, relatando-lheminuciosamenteossucessosdaqueledia.Acartarematavaassim:Nãoreceiesnadapormim,Simão.Todosestes trabalhosmeparecemleves,seoscomparoaos

quetenspadecidoporamordemim.Adesgraçanãoabalaaminhafirmeza,nemdeveintimidarosteusprojetos.Sãoalgunsdiasdetempestade,emaisnada.Qualquernovaresoluçãoquemeupaitomedir-ta-eilogo,podendo,ouquandopuder.Afaltadasminhasnotíciasdevesatribuí-lasempreao impossível.Ama-meassimdesgraçada,porquemeparecequeosdesgraçadossãoosquemaisprecisamdeamoredeconforto.Vouversepossoesquecer-me,dormindo.Comoistoétriste,meuqueridoamigo!...Adeus.

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CapítuloVIII

Mariana,afilhadeJoãodaCruz,quandoviuseupaipensarachagadobraçodeSimão,perdeuossentidos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e o acadêmico achou estranhasensibilidadeemmulherafeitaacurarasferidascomqueseupaivinhalaureadodetodasasfeiraseromarias.

—Nãoháaindaumanoqueme fizeram trêsburacosnacabeça,quandoeu fuiàSenhoradosRemédios,aLamego,efoielaquemetosquiouerapouocascoànavalha—disseoferrador.—Peloquevejo,osanguedofidalgodeuvoltaaoestômagodarapariga!...Estamosentãobem-aviados!Eutenhocáaminhavida,equeriaqueelafosseaenfermeiradomeudoente...És,ounãoés,rapariga?–disseeleàfilhaquandoelaabriuosolhos,comsemblantedeenvergonhadadasuafraqueza.

—Sereicommuitogosto,seopaiquiser.—Pois,então,moça,sehásdeircosturarparaavaranda,vemaquiparaabeiradosenhorSimão.

Dá-lhe caldos amiúdo, e trata-lhe da ferida; vinagre emais vinagre, quando ela estiver assim amododeroxa.Conversacomele,nãoodeixesestaramalucar,nemescrevermuito,quenãoébomquandoseestá fracodomiolo.Evossa senhorianão tenhaaquelasdecerimônia,nemmedigaàMariana—ameninaisto,ameninaaquilo.É—rapariga,dácáumcaldo;rapariga,lava-meobraço,dácáascompressas—enadadepolíticas.Elaestáaquicomosuacriada,porqueeu já lhedisseque,senãofosseopaidevossasenhoria,jáelahámuitotempoqueandavaporaíàsesmolas,oupiorainda.Éverdadequeeupodiadeixar-lheunsbenzinhosganhosaliasuarnabigornahádezanos,aforaunsquatrocentosmilréisqueherdeideminhamãe,queDeushaja;masvossasenhoriabemsabeque,seeufosseàforcaoupelabarrafora,vinhaajustiça,etomavacontadetudoparaascustas.

—Vosmecêtemumacasinhasofrível—atalhouSimão—pode,querendo,casarasuafilhanumaboacasadelavoura.

—Assimelaquisesse.Maridosnãolhefaltam;atéoalferesdacasadaIgrejaaqueria,seeulhefizessedoaçãodetudo,quepoucoé,masaindaquatromilcruzadosbons;ocasoéqueamoçanãotemqueridocasar,eeu,afalaraverdade,sousóemaisela,etambémnãotenhograndevontadedeficar sem esta companhia, para quem trabalho como mouro. Se não fosse ela, fidalgo, muitasasneirastinhaeufeito!Quandovouàsfeirasouromarias,sealevocomigo,nãobato,nemapanho;indo sozinho, é desordem certa. A rapariga já conhece quando a pingame sobe ao capacete doalambique;puxa-mepelajaqueta,eporbonsmodospõe-meforadoarraial.Sealguémchamaparabebermaisumquartilho,elanãomedeixair,eeuachograçaàobediênciacomquemedeixoguiarpelamoça,quemepedequenãováporalmadamãe.Eucá,emelamepedindoporalmadaminhasantamulher,jánãoseidequefreguesiasou.

Marianaouviaopai,escondendomeiorostonoseualvíssimoaventalde linho.Simãoestava-segozandonasimplezadaquelequadrorústico,massublimedenaturalidade.

JoãodaCruzfoichamadoparaferrarumcavalo,edespediu-senestestermos:—Tenhodito,rapariga;aquiteentregoonossodoente:trata-ocomoqueméecomosefosseteu

irmãooumarido.OrostodeMarianaacerejou-sequandoaquelaúltimapalavrasaiu,naturalcomotodas,daboca

deseupai.AmoçaficouencostadaaobatentedaalcovadeSimão.—Nãofoinadaboaestapragaquelhecaiuemcasa,Mariana!—disseoacadêmico.—Fazerem-

naenfermeiradumdoente,eprivarem-natalvezdeircosturarnasuavaranda,econversarcomaspessoasquepassam...

—Quesemedáamimdisso?—respondeuela,sacudindooavental,ebaixandoocósaolugardacinturacominfantilgraça.

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—Sente-se,Mariana;seupaidisse-lhequesesentasse...Vábuscarasuacostura,edê-medaliumafolhadepapeleumlápisqueestánacarteira.

—Masopaitambémmedissequeonãodeixasseescrever...—replicouela,sorrindo.—Pouco,nãofazmal.Euescrevoapenasalgumaslinhas.—Vejaláoquefaz...—tornouela,dando-lheopapeleolápis.—Olhesealgumacartaseperde,

esedescobretudo...—Tudooquê,Mariana?Poissabealgumacoisa.?—Eraprecisoqueeu fosse tola...Eunão lhedisse jáquesabiadasuaamizadeaumamenina

fidalgadacidade?—Disse.Masquetemisso?—Aconteceuoqueeureceava.Vossasenhoriaestáaíferido,etodaagentefalanunshomensque

aparecerammortos.—Quetenhoeucomoshomensqueaparecerammortos?—Paraqueestáafingir-sedenovas?!Poiseunãoseiqueesseshomenseramcriadosdoprimoda

talsenhora?Parecequevossasenhoriadesconfiademim,eestáaquererguardarumsegredoqueeutomaraqueninguémsoubesse,paraquemeupaieosenhorSimãonãotenhamalgunstrabalhosmaiores...

—Temrazão,Mariana;eunãodeviaesconderdesiomauencontroquetivemos.— E Deus queira que seja o último!... Tanto tenho pedido ao Senhor dos Passos que lhe dê

remédioaessapaixão!...Opiorfuturoéoqueaindaestáporpassar...—Não,menina,istoacabaassim:euvouparaCoimbralogoqueestejabom,eameninadacidade

ficaemsuacasa.—Seassimfor,jáprometidoisarráteisdeceraaoSenhordosPassos;masnãomedizocoração

quevossasenhoriafaçaoquediz...—Muitoagradecidolheestoupelobemquemedeseja—disseSimão,comovido.—Nãoseioque

lhefizparalhemerecerasuaamizade.—Bastaveroqueoseupaizinhofezpelomeu—disseela,limpandoaslágrimas.—Oqueseria

demim,seelemefaltasse,esefosseàforcacomotodaagentedizia!...Eueraaindamuitonovaquando ele estava na enxovia. Teria treze anos;mas estava resolvida a atirar-me ao poço, se elefossecondenadoàmorte.Seodegredassem,entãoiacomele;iamorrerondeelefossemorrer.NãohádianenhumqueeunãopeçaaDeusquedêaseupaitantosprazerescomoestrelastemocéu.Fuidepropósitoàcidadeparabeijarospésàsuamãezinha,evisuasmanas,euma,queeraamais

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nova,deu-meumasaiadelapim,queeuaindaalitenhoguardadacomoumarelíquia.Depois,cadavezqueiaàfeira,davaumagrandevoltaparaverseacertavadeencontrarasenhoraD.Ritinhaàjanela;emuitasvezesviosenhorSimão.Etalveznãosaibaqueeuestavaabebernafontequandovossasenhoria,hádoisparatrêsanosdeumuitapancadanoscriados,queeramesmoumrebuliçoquepareciaofimdomundo.Euvimcontaraopai,eelecaiuaochãoadarrisadascomoumdoido...DepoisnuncamaisovisenãoquandovossasenhoriaentroucomotiodeCoimbra;masjásabiaquevinha para esta desgraça, porque tinha tido um sonho, em que viamuito sangue, e eu estava achorarporqueviaumapessoamuitominhaamigaacairnumacovamuitofunda...

—Issosãosonhos,Mariana!...—Sãosonhos,são;maseununcasonheinadaquenãoacontecesse.Quandoomeupaimatouo

almocreve, tinhaeusonhadoqueoviaadarumtironoutrohomem;antesdeminhamãemorrer,acordeieuachorarporela,emaisaindaviveudoismeses...Agentedacidaderi-sedossonhos,masDeussabeoqueistoé...Aívemmeupai...SenhordosPassos!Nãováseralgumamánova!...

JoãodaCruzentroucomumacartaque receberadapobredocostume.EnquantoSimão leuacartaescritadoconvento,Mariana fitouos seusgrandesolhosazuisno rostodoacadêmico, e, acada contração da fronte dele, angustiava-se-lhe a ela o coração. Não tevemão da sua ânsia, eperguntou:

—Énotíciamá?—Tuésmuitoatrevida,rapariga!—disseJoãodaCruz.—Nãoé,não—atalhouoestudante.—Nãoémánotícia,Mariana.SenhorJoão,deixe-meterna

suafilhaumaamiga,queosdesgraçadoséquesabemavaliarosamigos.—Issoéverdade;maseunãomeatreviaaperguntaroqueacartadiz.—Nemeuperguntei,meupai;foiporquemepareceuqueosenhorSimãoestavaaflitoquando

lia.—Enãoseenganou—tornouodoente,voltando-separaoferrador.—OpaiarrastouTeresaao

convento.— Sempre é patife duma vez! — disse o ferrador, fazendo com os braços instintivamente um

movimentodequemapertaàsmãosumpescoço.Neste lance, um observador perspicaz veria luzir nos olhos deMariana um clarão de inocente

alegria.Simão sentou-se, e escreveu sobre uma cadeira, que Mariana espontaneamente lhe chegou,

dizendo:—Enquantoescreve,vouolharpelocaldinho,queestáaferver.Enecessárioarrancar-tedaí—diziaacartadeSimão.—Esseconventohádeterumaevasiva.

Procura-a,edize-meanoiteeahoraemquedevoesperar-te.Senãopuderesfugir,essasportashãodeabrir-sediantedaminhacólera.Sedaítemandaremparaoutroconventomaislonge,avisa-me,que eu irei, sozinho ou acompanhado, roubar-te ao caminho. É indispensável que te refaças deânimopara tenãoassustaremosarrojosdaminhapaixão.Ésminha!Nãoseidequemeserveavida,seanãosacrificarasalvar-te.Creioemti,Teresa,creio.Ser-me-ásfielnavidaenamorte.Nãosofrascompaciência;lutacomheroísmo.Asubmissãoéumaignomíniaquandoopoderpaternaléuma afronta. Escreve-me a toda a hora que possas. Eu estou quase bom. Dize-me uma palavra,chama-me,eeusentireiqueaperdadosanguenãodiminuiasforçasdocoração.

Simãopediuasuacarteira,tiroudinheiroemprata,deu-oaoferrador,erecomendou-lhequeo

entregasseàpobrecomacarta.DepoisficourelendoadeTeresa,erecordando-sedarespostaquedera.MestreJoãofoiàcozinha,edisseaMariana:—Desconfiodeumacoisa,rapariga.—Oqueé,meupai?—Onossodoenteestásemdinheiro.—Porquê?Opaicomosabeisso?—Équeelepediu-meacarteiraparatirardinheiro,eelapesavatantocomoumabexigadeporco

cheiadevento.Istobole-mecápordentro!Queriaoferecer-lhedinheiroenãoseicomohádeser...

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—Eupensareinisso,meupai—disseMarianarefletindo.—Poissim;cogitalátu,quetensmelhoresideiasqueeu.—E,seopainãoquiserbulirnosseusquatrocentos,eutenhoaqueledinheirodosmeusbezerros:

sãoonzemoedasdeouromenosumquarto.—Poisfalaremos:pensatunomododeeleaceitarsemremorsos.Remorsos, na linguagem pouco castigada de mestre João, era sinônimo de escrúpulos, ou

repugnância.FoiMarianalevarocaldoaSimão,quelhorejeitoucomodistraídoemprofundocismar.—Poisnãotomaocaldinho?—disseelacomtristeza.—Nãoposso,nãotenhovontade,menina;serálogo.Deixe-mesozinhoalgumtempo;vá,vá;não

passeoseutempoaopédumdoenteaborrecido.—Nãomequeraqui?Irei,evoltareiquandovossasenhoriachamar.DisseraistoMarianacomosolhosaverteremlágrimas.Simãonotouaslágrimas,epensouummomentonadedicaçãodamoça;masnãolhedissepalavra

alguma.E ficou pensando na sua espinhosa situação. Deviam de ocorrer-lhe ideias aflitivas que os

romancistasrarasvezesatribuemaosseusheróis.Nosromancestodasascrisesseexplicam,menosacriseignóbildafaltadedinheiro.Entendemosnovelistasqueamatériaébaixaeplebeia.Oestilovaidemávontadeparacoisasrasas.Balzac falamuitoemdinheiro;masdinheiroamilhões.Nãoconheço,noscinquenta livrosque tenhodele,umgalãnumentreatodasua tragédiaacismarnomododearranjarumaquantiacomqueumusuráriolhelança,desdeacasadojuizdepazatodasasesquinas, donde o assaltam o capital e o juro de oitenta por cento. Disto é que os mestres emromancesseescapamsempre.Bemsabemelesqueointeressedoleitorsegelaapassoigualqueoheróiseencolhenasproporçõesdestesheroizinhosdebotequim,dequemoleitordinheirosofogeporinstinto,eooutrofogetambém,porquenãotemquefazercomele.Acoisaévilmenteprosaica,detodoomeucoraçãooconfesso.Nãoébonitodeixaragentevulgarizar-seoseuheróiapontodepensar na falta de dinheiro, ummomento depois que escreveu àmulher estremecida uma cartacomo aquela de Simão Botelho. Quem a lesse, diria que o rapaz tinha postadas, em diferentesestaçõesdasestradasdopaís,carroçasefolgadasparelhasdemulasparatransportaremaParis,aVeneza,ouaoJapãoabelafugitiva!Asestradas,naqueletempo,deviamserboasparaisso,masnãotenhoacertezadequehouvesseestradasparaoJapão.Agoracreioquehá,porquemedizemquehátudo.

Poiseujálhesfizsaber, leitores,pelabocademestreJoão,queofilhodocorregedornãotinhadinheiro.Agoralhesdigoqueeraemdinheiroqueelecismava,quandoMarianalhetrouxeocaldorejeitado.

Ameuver,deviamatribulá-loestespensamentos:

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ComopagariaahospitalidadedeJoãodaCruz?ComqueagradeceriaosdesvelosdeMariana?SeTeresafugisse,comquerecursoproveriaàsubsistênciadeambos?Ora, Simão Botelho saíra de Coimbra com a sua mesada, que não era grande, e quase lha

absorvera o aluguel da cavalgadura, e a gorjeta generosa que dera ao arreeiro, a quem devia oconhecimentodoprestanteferrador.

Asrelíquiasdessedinheirodera-aseleàportadoradacartanaqueledia.Másituação!Lembrou-sedeescreveràmãe.Quelhediriaele?Comoexplicariaasuaresidêncianaquelacasa?

DestemodonãoiriaeledarindíciosdamortemisteriosadosdoiscriadosdeBaltasarCoutinho?Alémdeque,sobejamentesabiaelequesuamãeonãoamava;e,amandar-lhealgumdinheiroem

segredo,seriaoescassamentenecessárioparaajornadaatéCoimbra.Péssimasituação!Cansadodepensar,favoreceu-oaprovidênciadosinfelizescomumsonoprofundo.EMarianaentrarapéantepénasala,e,ouvindo-lhearespiraçãoalta,aventurou-seaentrarna

alcova.Lançou-lheumlençodecassasobreorosto,emrodadoqualzumbiaumenxamedemoscas.Viuacarteirasobreumabanquetaqueadornavaoquarto,pegounela,esaiupéantepé.Abriuacarteira,viupapéis,quenãosoubeler,enumdosrepartimentosduasmoedasdeseisvinténs.Foirestituiracarteiraaoseulugar,etomoudeumcabideascalças,coleteejaquetaàespanhola,dohóspede.Examinouosbolsosenãoencontrouumceitil.

Retirou-se para um canto escuro do sobrado, e meditou. Esteve meia hora assim, e meditavaangustiadaanobrerapariga.Depoisergueu-sedegolpe,conversoulongotempocomopai.JoãodaCruzescutou-a,contrariou-a,masiadevencidasemprepelasréplicasdafilha,atéque,afinal,disse:

—Fareioquedizes,Mariana.Dá-mecáoteudinheiro,quenãovouagora levantarapedradalareiraparabulirnocaixotedosquatrocentosmilréis.Tantofazumcomooutro:teuéeletodo.

Marianadeu-sepressa em ir à arca, donde tirouumabolsade linho comdinheiro emprata, ealgunscordões,anéisearrecadas.Guardouoseuouronumaboceta,edeuabolsaaopai.

JoãodaCruzaparelhouaéguaesaiu.Marianafoiparaasaladodoente.AcordouSimão.—Nãosabe!?—exclamouelacomsemblanteentrealegreeassustado,perfeitamentecontrafeito.—Queé,Mariana?—Suamãezinhasabequevossasenhoriaaquiestá.—Sabe?!Issoéimpossível!Quemlhodisse?—Nãosei;oqueseiéqueelamandouchamarmeupai.—Issoespanta-me!...Enãomeescreveu?—Não,senhor!...Agoramelembroquetalvezelasoubessequeosenhoraquiesteve,ecuideque

jánãoestá,eporissolhenãoescreveu...Poderáser?—Poderá...Masquemlhodiria!?Seistosesabe,entãopodemsuspeitardamortedoshomens.—Podeserquenão;eaindaquedesconfiem,nãohátestemunhas.Opaidissequenãotinhamedo

nenhum.Oqueforsoará.Nãoestejaacismarnisso...Vou-lhebuscarocaldinho,sim?—Vá,sequer,Mariana.Océudeparou-meemsiaamizadedumairmã.Nãoachouamoçanasuaalegrealmapalavrasemrespostaàdoçuraqueo rostodomancebo

exprimia.Veiocomo“caldinho”—diminutivoquearetóricadumalinguagemmeigasanciona;mascontrao

qualprotestavaalargaefundamalgabranca,aoladodatravessacommeiagalinhaloura,degorda.

—Tantacoisa!—exclamou,sorrindo,Simão.—Comaoquepuder—disseelacorando.—Eubemseiqueossenhoresdacidadenãocomem

emmalgastamanhas,maseunãotinhaoutramaispequena;ecomasemnojo,queestamalganuncaserviu,queafuieucompraràloja,porpensarquevossasenhorianãoquiseraontemcomerporseatrigardaoutra.

—Não,Mariana,nãosejainjusta,eunãotinha,nemtenhovontade.—Mascomaporeulhepedir...Perdoeomeuatrevimento...Façadecontaqueéumasuairmã

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quelhepede.Aindaagoramedisse...—Queocéumedavaemsiaamizadedumairmã...—Poisaíestá...Simãoachoutãonecessárioàsuaconservaçãoosacrifício,comoaocontentamentodacarinhosa

Mariana.Passou-lhenamente,semsombradevaidade,aconjeturadequeeraamadodaqueladocecriatura.Entresidiziaqueseriaumacruezamostrar-seconhecedordetalafeiçãoquandonãotinhaalmaparalhapremiar,nemparalhementir.Assimmesmo,bemlongedeseafligir,lisonjeavam-noosdesvelosdagentilmoça.Ninguémsenteemsiopesodoamorqueseinspiraenãocomparte.Nasmáximasaflições,nasderradeirashorasdocoraçãoedavida,égratoaindasentir-seamadoquemjánãopodeacharnoamordiversãodaspenas,nemsoldaroúltimofioqueseestápartindo.Orgulhoou insaciabilidadedocoraçãohumano,sejaoque for,noamorquenosdãonósgraduamosoquevalemosemnossaconsciência.

Nãodesprazia,portanto,oamordeMarianaaoamanteapaixonadodeTeresa.Istoseráculpanoseverotribunaldasminhasleitoras;mas,semedeixamteropinião,aculpadeSimãoBotelhoestánafracanatureza,queétodagalasnocéu,nomarenaterra,etodaincoerências,absurdasevíciosno homem, que se aclamou a si próprio rei da criação, e nesta boa fé dinástica vai vivendo emorrendo.

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CapítuloIX

DuashorassedetiveraJoãodaCruzforadecasa.Chegouquandoacuriosidadedoestudanteerajásofrimento.

—Estaráseupaipreso?!—disseeleaMariana.—Nãomodizocoração,eomeucoraçãonuncameengana—responderaela.ESimãoreplicara:—Equelhedizocoraçãoameurespeito,Mariana?Osmeustrabalhosficarãoaqui?—Vou-lhedizeraverdade,senhorSimão...Masnãodigo...—Digaquelhopeço,porquetenhofénobomanjoquefalaemsuaalma.Diga...—Poissim...Omeucoraçãodiz-mequeosseustrabalhosaindaestãonocomeço...Simãoouviu-aatentamenteenãorespondeu.Assombrou-lheoânimoestaideiaturva,eafrontosa

àsingelarapariga:—“PensaráelaemmedesviardeTeresa,parasefazeramar?”Pensavaassimquandochegouoferrador.—Aquiestoudevolta—disseelecomsemblantefestivo.—Suamãemandou-mechamar...—Jásei...Ecomosoubeelaqueeuestavaaqui?—Elasabiaqueofidalgoestiveracá:mascuidavaquevossasenhoriajátinhaidoparaCoimbra.

Quemlhodissenãosei,nemperguntei;porqueaumapessoaderespeitonãosefazemperguntas.Diziaelaquesabiaofimaqueosenhorvieraesconder-seaqui.Ralhoualgumacoisa;maseu,cácomo pude, acomodei-a e não há novidade. Perguntou-me o que estava o menino fazendo aquidepoisquea fidalguinha foraparao convento.Disse-lhequevossa senhoriaestavaadoentadodeumaquedaquederadocavaloabaixo.Tornouelaaperguntar-meseosenhortinhadinheiro;eeudisse que não sabia. E, vai ela, foi dentro, e voltou daí a pouco com este embrulho, para eu lheentregar.Aíotemtalequal;nãoseiquantoé.

—Enãomeescreveu?—Dissequenãopodiairàescrivaninha,porqueestavaláosenhorcorregedor–respondeucom

firmezamestreJoão—etambémmerecomendouquenãolheescrevessevossasenhoriasenãodeCoimbra,porque,seseupaisoubessequeomeninocáestava,iatudorasoláemcasa.Oraaíestá.

—EnãolhefalounoscriadosdeBaltasar?—Nemumpio!...Lánacidadeninguémjáfalavanissohoje.—EquelhedissedasenhoraD.Teresa?— Nada, senão que ela fora para o convento. Agora deixe-me ir amantar a égua, que está a

escorreremfio.Órapariga,traze-mecáamanta.Enquanto Simão contava onze moedas menos um quartinho, maravilhado da estranha

liberalidade,Mariana,abraçandoopainorepartimentovizinhodacasa,exclamava:—Arranjoumuitobemamentira!—Ó rapariga, quemmentiu foste tu!Aquilo lá o arranjaste tu comessa tua cabecinha!Mas a

coisasaiuaopintar,hein?Elecomeu-aquenemconfeitos!Andalá,queficastesemosbezerros,maslávirátempoemqueeletedêboisatrocodebezerros.

—Eunãofizistoporinteresse,meupai...—atalhouela,ressentida.—Olhaomilagre!Issoseieu,mas,comodizláoditado;quemsemeia,colhe.Marianaquedoupensativa,edizendoentresi:—Aindabemqueelenãopodepensardemimo

quemeupaipensa.Deussabequenãotenhoesperançasnenhumasinteresseirasnoquefiz.Simãochamouoferrador,edisse-lhe:—MeucaroJoão,seeunãotivessedinheiro,aceitavasemrepugnânciaosseusfavores,ecreio

quevossemecêmosfariasemesperançadeganharcomeles;mas,comorecebiestaquantia,há-deconsentirquelhedêpartedelaparaosmeusalimentos.Motivosdegratidãoadividasquesenãopagamaindameficammuitosparanuncameesquecerdesiedasuaboafilha.Tomeestedinheiro.

—Ascontas fazem-seno fim—respondeuo ferrador, retirandoamão—eninguémnoshádeouvir,seDeusquiser.Precisandoeudedinheiro,cávenho.Porora,aindaestáacapoeiracheiadegalinhas,eopãocoze-setodasassemanas.

—Masaceite—instouSimão—edê-lheaaplicaçãoquequiser.—Emminhacasaninguémdáleissenãoeu—replicoumestreJoão,comsimuladoenfadamento.

—Guardeláoseudinheiro,fidalgo,enãofalemosmaisnisso,sequerqueonegóciovádireitoatéaofim.Evicto-sério!

NoscincosubsequentesdiasrecebeuSimãoregularmentecartasdeTeresa,umasresignadaseconfortadoras,outrasescritasnaviolênciaexasperadadasaudade.Emumadizia:

Meupaidevesaberqueestásaí,e,enquantoaíestiveres,decertomenãotiradoconvento.Seria

bomquefossesparaCoimbra,edeixássemosesquecerameupaiosúltimosacontecimentos.Senão,meuqueridoesposo,nemelemedáliberdade,nemeuseicomoheidefugirdesteinferno.Nãofazesideiadoqueéumconvento!SeeupudessefazerdomeucoraçãosacrifícioaDeus,teriadeprocurar

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uma atmosferamenos viciosa que esta. Creio que em toda a parte sepode orar e ser virtuosa,menosnesteconvento.

Noutracartaexprimia-seassim:Nãomedesampares,Simão;nãovásparaCoimbra.Eureceioquemeupaimequeiramudardeste

conventoparaoutromaisrigoroso.Umafreiramedissequeeunãoficavaaqui;outrapositivamentemeafirmouqueopaidiligenciaaminhaidaparaummosteirodoPorto.Sobretudo,oquemeaterra,mas nãome dobra, é saber eu que o intento do pai é fazer-me professar. Pormais que imagineviolênciasetiranias,nenhumavejocapazdemearrancarosvotos.Eunãopossoprofessarsemsernoviçaumano,eiraperguntartrêsvezes;heiderespondersemprequenão.Seeupudessefugirdaqui!...Ontemfuiàcerca,eviláumaportadecarroquedáparaocaminho.Soubequealgumasvezesaquelaportaseabreparaentraremcarrosdelenha;masinfelizmentenãosetornaaabriratéaoprincípiodoinverno.Senãopuderantes,meuSimão,fugireinessetempo.

Tiveram,entretanto,bomeprontoêxitoasdiligênciasdeTadeudeAlbuquerque.Apreladade

Monchique,religiosadesumasvirtudes,cuidandoqueafilhadeseuprimomuitodesuadevoçãoeamor aDeus se recolhia aomosteiro, preparou-lhe casa, e congratulou-se coma sobrinhade tãopiedosa resolução.A carta congratulatórianãoa recebeuTeresa, porque vieraàmãode seupai.Continha ela reflexões tendentes a desvanecê-la do propósito, se algum desgosto passageiro aimpediaàimprudênciadeprocurarumrefúgioondeaspaixõesseexacerbavammais.

Tomadas todas as precauções, Tadeu de Albuquerque fez avisar sua filha de que sua tia deMonchiqueaqueriateremsuacompanhiaalgumtempo,equeajornadasefarianamadrugadadodiaseguinte.

Teresa,quandorecebeuasurpreendentenova,játinhaenviadoacartadaquelediaaSimão.Emsuaaflitivaperplexidade,resolveufazer-sedoente,etãofebrilestavadascomoções,quedispensavaoartifício.Ovelhonãoqueria transigircomadoença;masomédicodomosteiroreagiucontraadesumanidade do pai e da prioresa, interessada na violência. Quis Teresa nessa noite escrever aSimão;masacriadadaprelada,obedecendoàssuspeitasdaama,nãodesamparouacabeceiradoleitodaenferma.Eracausaaestaespionagemterditoaescrivã,numahorademádigestãodaquelecertovinhoestomacal,queTeresapassavaasnoitesemoraçãomental,etinhacorrespondênciacomumanjodocéuporintervençãodumamendiga.AlgumasreligiosastinhamvistoamendiganopátiodoconventoesperandoaesmoladeTeresa;mascuidaramqueeraaquelapobreumadevoçãodamenina.Aspalavrasirônicasdaescrivãforamcomentadas,eamendigarecebeuordemdesairdaportaria.Teresa,numímpetodeangústia,quandotalsoube,correuaumajanela,echamouapobre,que se retirava assustada, e lançou-lhe ao pátio um bilhete com estas palavras: “É impossível anossa correspondência. Vou ser tirada daqui para outro convento. Espera em Coimbra notíciasminhas”.Istofoirapidamenteaoconhecimentodaprioresa,e,logo,àsordensdela,partiuohortelãonoencalçodapobre.Ohortelãoseguiu-aatéforadaporta,espancou-a,tirou-lheobilhete,efoidoconvento apresentá-lo a Tadeu de Albuquerque. A mendiga não retrocedeu; caminhou à casa doferrador,econtouaSimãooacontecido.

Simão lançou-se fora do leito e chamou João da Cruz. Naquele aperto queria ouvir uma voz,queria poder chamar amigo a um homem que lhe estendesse mão capaz de apertar o cabo dumpunhal.Oferradorouviuahistóriaedeuoseuvoto:“esperaratéver”.Simãorepeliuaprudencialfriezadoconfidente,edissequepartiaparaViseuimediatamente.

Marianaestavaali;ouviraaconfidência,eacharaacertadaaopiniãodeseupai.Vedando,porém,aimpaciênciadohóspede,pediulicençaparafalarondenãoerachamada,edisse:

—SeosenhorSimãoquer,euvouàcidadeeprocuronoconventoaBrito,queéumaraparigaminhaconhecida,moçadumafreira,edou-lheumacartasuaparaentregaràfidalga.

—Issoépossível,Mariana?—exclamouSimão,apontodeabraçaramoça.—Poisentão!—disseoferrador.—Oquepodefazer-se,faz-se.Vai-tevestir,rapariga,queeuvou

botaroalbardãoàégua.Simãosentou-seaescrever.Tãoembaralhadaslheacudiamasideias,quenãoatinavaaformaro

desígnio mais proveitoso à situação de ambos. Ao cabo de longa vacilação, disse a Teresa quefugisse,àhoradodia,quandoaportaestivesseabertaouviolentasseaporteiraaabrir-lha.Dizia-lhequemarcasseelaahoradodiaseguinteemqueeleadeviaesperarcomcavalgadurasparaafuga.Emrecursoextremo,prometiaassaltarcomhomensarmadosomosteiro,ouincendiá-loparaseabriremasportas.Esteprogramaeraomaisparecidocomoespíritodoacadêmico.Emvivofogoardiaaquelapobrecabeça!Fechadaacarta,começouapassearemtorcicolos,comoseobedecesseadesencontrados impulsos.Encravaraasunhasnacabeça,earrancavaoscabelos. Investiacomocego contra as paredes, e sentava-se um momento para erguer-se de mais furioso ímpeto.Maquinalmenteaferravadaspistolas,esacudiaosbraçosvertiginosos.Abriaacartapararelê-la,eestavaapontoderasgá-la,cuidandoqueiriatarde,ounãolhechegariaàsmãos.Nesteconflitode

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contrários projetos, entrou Mariana, e muito alucinado devia de estar Simão para lhe não ver aslágrimas.

O que tu sofrias, nobre coração de mulher pura! Se o que fazes por esse moço é gratidão aohomemquesalvouavidadeteupai,queraravirtudeatua!Seoamas,seporlhedaralívioàsdorestumesmalhedesempecesocaminhoporondeteelehádefugirparasempre,quenomedareiaoteuheroísmo!Queanjotefadouocoraçãoparaasantidadedesseobscuromartírio?!

—Estoupronta—disseMariana.—Aquitemacarta,minhaboaamiga.Façamuitopornãovirsemresposta—disseSimão,dando-

lhecomacartaumembrulhodedinheiro.—Eodinheirotambéméparaasenhora?—disseela.—Não,éparasi,Mariana:compreumanel.Marianatomouacarta,evoltourapidamenteascostasparaqueSimãonãolhevisseogestode

despeitosenãodesprezo.Oacadêmiconãoousouinsistir,vendo-aapressar-senadescidaparaoquinteiro,ondeoferrador

enfreavaaégua.— Não lhe chegues muito com a vara — disse João da Cruz a Mariana, que, de um pulo, se

assentouno albardão, cobertodeumacolcha escarlate.—Tu vais amarela comocidra,moça!—exclamouelereparandonapalidezdafilha—Tu,quetens?

—Nada;queheideeuter?!Dê-mecáavara,meupai.Aéguapartiuagalope,eoferrador,nomeiodaestrada,arever-senafilhaenaégua,diziaem

solilóquio,queSimãoouvira:—Valestumais,rapariga,quequantasfidalgastemViseu!Pelamaispintadanãodavaeuaminha

égua;e,secáviesseomiramolimdeMarrocospedir-meafilha,osdiabosmelevemseeulhadava!Istoéquesãomulheres,eomaiséumahistória!

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CapítuloX

ApeouMarianadefrontedomosteiro,efoiàportariachamarasuaamigaBrito.—Queboamoça!—disseopadrecapelão,queestavanorarolateraldaporta,praticandocoma

prioresa,acercadasalvaçãodasalmas,edeumasancoretasdevinhodoPinhãoqueelereceberanaqueledia,edoqualjátinhaengarrafadoumalmudeparatonizaroestômagodaprelada.

—Queboamoça!—tornouele,comumolhonelaeoutronoraro,ondeaciumosaprioresaseestavaremordendo.

—Deixeláamoça,edigaquandohádeiraserventebuscarovinho.— Quando quiser, senhora prioresa. Mas repare bem nos olhos, no feitio, naquele todo da

rapariga!...—PoisrepareosenhorpadreJoão—replicouafreira—queeutenhomaisquefazer.Eretirou-secomocoraçãomalferido,eoqueixosuperiorescorrendolágrimas...desimonte.—Dondeévossemecê?—dissebrandamenteopadrecapelão.—Soudaaldeia—respondeuMariana.—Issovejoeu...Masdequealdeiaé?—Nãomeconfessoagora.—Masnãofariamalseseconfessasseamim,menina,quesoupadre...—Bemvejo.—Quemalgêniotem!...—Éistoquevê.—Quemprocuracánoconvento?—Jádisseláparadentroquemprocuro.—Mariana,éstu?!Andacá!Amoçafezumacortesiadecabeçaaopadrecapelão,efoiaolocutóriodondevinhaaquelavoz.—Euqueriafalarcontigoemparticular,Joaquina—disseMariana.—Euvouversearranjoumagrade:esperaaí.Opadretinhasaídodopátio,eMariana,enquantoesperava,examinou,umaauma,asjanelasdo

mosteiro.Numadasjanelas,atravésdasreixasdeferro,viuelaumasenhorasemhábito.—Seráaquela?—perguntouMarianaaoseucoração,quepalpitava.—Seeufosseamadacomo

ela!...—Sobe aquelas escadinhas,Mariana, e entra na primeira porta do corredor, que eu lá vou—

disseJoaquina.Mariana deu alguns passos, olhou novamente para a janela onde vira a senhora semhábito, e

repetiuainda:—Seeufosseamadacomoela!...Malentrounagrade,disseàsuaamiga:—Olha lá, Joaquina, quem é umameninamuito branca, alva como leite, que estava ali agora

numajanela?—Seriaalgumanoviça,queháduascámuitolindas.—Maselanãotinhavestimentanenhumadefreira.—Ah!jásei;éaD.TeresinhadeAlbuquerque.—Entãonãomeenganei—disseMariana,pensativa.—Poistuconhece-la?—Não;masporamordelaéqueeucávimfalarcontigo.—Entãoqueé?!Quetenstucomafidalga?—Eucá,pormimnada;mascomumapessoaquelhequermuito.—Ofilhodocorregedor?—Essemesmo.—MasesseestáemCoimbra,—Nãoseiseestá,nemsenão.Faz-metuumfavor?—Seeupuder...—Podes...Euqueriafalarcomela.—Ódianho!Issonãoseisepoderáser,porqueatrazemasfreirasdebaixodeolho,eelavai-se

emboraamanhã.—Paraondevai?—Vaiparaoutroconvento,nãoseisedeLisboa,sedoPorto.Osbaúsjáestãopreparados,eela

estámortaporsair.Etuquelhequeres?—Nãotopossodizer,porquenãosei...Queriadar-lheumpapel...Fazecomqueelavenhacá,que

eudou-techitaparaumvestido.— Como tu estás rica, Mariana!... — atalhou, rindo, Joaquina. — Eu não quero a tua chita,

rapariga.Seeupuderdizer-lhequevenha,semquealguémmeouça,digo-lho.Eagoraéboamaré,

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porquetocouaocoro...Deixa-meláir...Joaquinasaiu-sebemdadifícilcomissão.Teresaestavasozinha,absorvidaacismar,comosolhos

fitosnopontoondeviraMariana.—Ameninafazfavordevircomigodepressinha?—disse-lheacriada.Seguiu-aTeresa,eentrounagrade,queJoaquinafechou,dizendo:—Omaisbrevequepossabatapordentroparaeulheabriraporta.Seperguntaremporvossa

excelência,digo-lhequeameninaestánomirante.AvozdeMarianatremia,quandoD.Teresalheperguntouquemera.—Souumaportadoradestacartaparavossaexcelência.—ÉdeSimão!—exclamouTeresa.—Sim,minhasenhora.Areclusaleuconvulsivaacartaduasvezes,edisse:—Eunãopossoescrever-lhe,quemeroubaramomeutinteiro,eninguémmeemprestaum.Diga-

lhequevoudemadrugadaparaoconventodeMonchique,doPorto.Quesenãoaflija,porqueeusousempreamesma.Quenãovenhacá,porqueissoseriainútil,emuitoperigoso.Queváver-meaoPorto,queheidearranjarmododelhefalar.Diga-lheisto,sim?

—Sim,minhasenhora.—Nãoseesqueça,não?Vircá,pormodonenhum.Éimpossívelfugir,evoumuitoacompanhada.

VaioprimoBaltasareasminhasprimas,emeupaienãoseiquantoscriadosdebagagemedasliteiras.Tirar-menocaminhoéumaloucuracomresultadosfunestos.Diga-lhetudo,sim?

Joaquinadisseforadaporta:—Menina,olhequeaprioresaandalápordentroaprocurá-la.—Adeus,adeus—disseTeresa,sobressaltada.—Tomeláestalembrançacomoprovademinha

gratidão.Etiroudodedoumaneldeouro,queofereceuaMariana.

—Nãoaceito,minhasenhora.—Porquenãoaceita?—Porquenãofizalgumfavoravossaexcelência.Areceberalgumapagahádeserdequemcá

memandou.FiquecomDeus,minhasenhora,eoxaláquesejafeliz.SaiuTeresa,eJoaquinaentrounagrade.—Játevaisembora,Mariana?—Vou,queépressa;umdiavireiconversarcontigomuito.Adeus,Joaquina.—Poisnãomecontasoqueistoé?Oamordafidalgaestápertodaqui?Conta,queeunãodigo

nada,rapariga!...—Outravez,outravez;obrigada,Joaquininha.Mariana, durante a veloz caminhada, foi repetindo o recado da fidalga; e, se alguma vez se

distraíadesteexercíciodememória,eraparapensarnasfeiçõesdaamadadoseuhóspede,edizer,comoemsegredo,aoseucoração:“Nãolhebastavaserfidalgaerica:é,alémdetudo,lindacomonunca vi outra!” E o coração da pobre moça, avergando ao que a consciência lhe ia dizendo,

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chorava.Simão,deumafrestadopostigodoseuquarto,espreitavaao longodocaminho,ouescutavaa

estropeadadacavalgadura.Ao descobrirMariana, desceu ao quinteiro, desprezando cautelas e esquecido já do ferimento,

cujacrisedeperigopioraranaqueledia,queeraooitavodepoisdotiro.Afilhadoferradordeuorecado,esemalteraçãodepalavra.Simãoescutara-aplacidamenteaté

aopontoemquelheeladissequeoprimoBaltasaraacompanhavaaoPorto.—OprimoBaltasar!...—murmurouelecomumsorrisosinistro.—SempreesteprimoBaltasar

cavandoasuasepulturaeaminha!...—Asua,fidalgo!—exclamouJoãodaCruz.—Morraele,queolevemtrintamilhõesdediabos!

MasvossasenhoriahádeviverenquantoeuforJoão.Deixe-airparaoPorto,quenãotemperigonoconvento. De hora a hora Deus melhora. O senhor doutor vai para Coimbra, está por lá algumtempo,eàsduasportrês,quandoovelhomalseprecatar,a fidalguinhaengrampa-o,eésuatãocertocomoestaluzquenosalumia.

—Euheidevê-laantesdepartirparaCoimbra—disseSimão.—Olhequeelarecomendou-memuitoquenãofosselá—acudiuMariana.—Porcausadoprimo?—tornouoacadêmicoironicamente.—Achoquesim,eportalveznãoservirdenadaláirvossasenhoria—respondeutimidamentea

moça.—Lásequer,—bradoumestreJoão—amulhervai-se-lhetiraraocaminho.Nãotemmaisque

dizer.—Meupai!Nãometaestesenhoremmaiorestrabalhos!—disseMariana.—Nãotemdúvida,menina—atalhouSimão—euéquenãoquerometerninguémemtrabalhos.

Comaminhadesgraça,pormaiorqueelaseja,heideeulutarsozinho.JoãodaCruz,assumindoumagravidadedequeasuafigurararasvezesseenobrecia,disse:— Senhor Simão, vossa senhoria não sabe nada do mundo. Não meta sozinho a cabeça aos

trabalhos,queeles,comoooutroquediz,quandopegamdeensarilharumhomem,nãolhedeixamtomarfôlego.Eusouumrústico;mas,abemdizer,estounaqueladaquelequediziaqueomaldosseusburrinhosofizeraalveitar.Paixões...queasleveodiabo,emaisquemcomelasengorda.Porcausa de uma mulher, ainda que ela seja filha do rei, não se há de um homem botar a perder.Mulhereshá tantas comoapraga, e são comoas rãsdo charco, quemergulhauma, e aparecemquatroàtonadaágua.Umhomemricoefidalgocomovossasenhoria,ondequertopaumacomumpalmodecaracomosequereumdotedeencheroolho.Deixe-aircomDeusoucomabreca,queela,setiverdesersua,nãolhehádevirdar,tantoandarparatráscomoparadiante:éditadodosantigos.Olhequeistonãoémedo, fidalgo.Tomesentido,queJoãodaCruzsabeoqueépôrdoishomens duma feita a olhar o Sete-Estrelo,mas não sabe o que émedo. Se o senhor quer sair àestradaetiraratalpessoaaopai,aoprimo,eaumregimento,sefornecessário,euvoumontarnaégua,edaquiatrêshorasestoudevoltacomquatrohomens,quesãoquatrodragões.

Simãofitaraosolhoschamejantesnosdoferrador,eMarianaexclamara,ajuntandoasmãossobreoseio:

—Meupai,nãolhedêessesconselhos!...—Cala-teaí,rapariga!—dissemestreJoão.—Vaitiraroalbardãoàégua,amanta-a,ebota-lhe

seco.Nãoésaquichamada.—Nãováaflita,senhora—disseSimãoàmoça,queseretirava,amargurada.—Eunãoaproveito

algunsdosconselhosdeseupai.Ouço-ocomboavontade,porqueseiquequeromeubem;masheidefazeroqueahonraeocoraçãomeaconselharem.

Aoanoitecer,Simão, comoestivesse sozinho, escreveuuma longa carta, daqual extratamososseguintesperíodos:

Considero-teperdida, Teresa.O sol de amanhãpode ser que eu onão veja. Tudo, emvoltade

mim,temumacordemorte.Parecequeofriodaminhasepulturameestápassandoosangueeosossos.Nãopossoseroquetuqueriasqueeufosse.Aminhapaixãonãoseconformacomadesgraça.

Erasaminhavida:tinhaacertezadequeascontrariedadesmenãoprivavamdeti.Sóoreceiodeperder-tememata.Oquemerestadopassadoéacoragemdeirbuscarumamortedignademimedeti.Setensforçaparaumaagonialenta,eunãopossocomela.Poderiavivercomapaixão infeliz;masesterancorsemvingançaéuminferno.Nãoheidedar

barataavida,não.Ficarássemmim,Teresa;masnãohaveráaíuminfamequetepersigadepoisdaminhamorte.Tenhociúmesdetodasastuashoras.Hásdepensarcommuitasaudadenoteuesposodocéu, enunca tirarásdemimosolhosda tuaalmaparaveresaopéde ti omiserávelquenosmatouarealidadedetantasesperançasformosas.Tu verás esta carta quando eu já estiver num outro mundo, esperando as orações das tuas

lágrimas.Asorações!Admiro-medestafaíscadeféquemealumianasminhastrevas.!...Tuderas-

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mecomoamora religião,Teresa.Aindacreio;nãoseapagaa luz,queé tua;masaprovidênciadivinadesamparou-me.Lembra-tedemim.Vive,paraexplicaresaomundo,comatualealdadeaumasombra,arazãopor

quemeatraísteaumabismo.Escutaráscomglóriaavozdomundo,dizendoqueerasdignademim.Ahoraemqueleresestacarta...Nãoodeixaramcontinuaraslágrimas,nemdepoisapresençadeMariana.Vinhaelapôramesa

paraaceia,e,quandodesdobravaatoalha,disseemvozabafada,comoseasimesmasomenteodissesse:

—ÉaúltimavezqueponhoamesaaosenhorSimãoemminhacasa!—Porquedizisso,Mariana?—Porquemodizocoração.Desta vez, o acadêmicoponderou supersticiosamenteosditamesdo coraçãodamoça, e como

silênciomeditativodeu-lheaelaaevidênciaantecipadadovaticínio.Quandovoltoucomatravessadagalinha,vinhachorandoafilhadeJoãodaCruz.—Choracompenademim,Mariana?—disseSimão,enternecido.—Choro,porquemeparecequeonãotornareiaver;ou,seovir,serádemodoqueoxaláqueeu

morresseantesdeover.—Nãoserá,talvez,assim,minhaamiga...—Vossasenhorianãomefazumacoisaqueeulhepeço?—Veremosoquepede,menina.—Nãosaiaestanoite,nemamanhã.—Pedeoimpossível,Mariana.Heidesair,porquemematariasenãosaísse.—Entãoperdoeaminhaousadia.Deusotenhadasuamão.Araparigafoicontaraopaias intençõesdoacadêmico.Acudiu logomestreJoãocombatendoa

ideiadasaída,comencarecerosperigosdo ferimento.Depois,comonãoconseguissedissuadi-lo,resolveuacompanhá-lo.Simãoagradeceuacompanhia,masrejeitou-acomdecisão.Oferradornãocediadopropósito,eestavajápreparandoaclavina,earraçoandocommedidadobradaaégua—paraoquedesseeviesse—diziaele,quandooestudantelhedisseque,melhoravisado,resolveranãoiraViseu,eseguirTeresaaoPorto,passadososdiasdeconvalescença.FacilmenteoacreditouJoão da Cruz; masMariana, submissa sempre ao que o seu coração lhe bacorejava, duvidou damudança,edisseaopaiquevigiasseofidalgo.

Àsonzehorasdanoite,ergueu-seoacadêmico,eescutouomovimentointeriordacasa:nãoouviuomaisligeiroruído,anãoserorangidodaéguanamanjedoura.Escorvoudepólvoranovaasduaspistolas. Escreveu um bilhete sobrescritado a João da Cruz, e ajuntou-o à carta que escrevera aTeresa.Abriuasportasdajaneladoseuquarto,epassoudaliparaavarandadepau,daqualosaltoà estrada era sem risco. Saltou, e tinha dado alguns passos, quando a fresta, lateral à porta davaranda,seabriu,eavozdeMarianalhedisse:

—Entãoadeus,senhorSimão.EuficopedindoaNossaSenhoraquevánasuacompanhia.O acadêmico parou, e ouviu a voz íntima que lhe dizia: “O teu anjo da guarda fala pela boca

daquelamulher,quenãotemmaisinteligênciaqueadocoraçãoalumiadopeloseuamor”.—Dêumabraçoemseupai,Mariana—disse-lheSimão—,eadeus...atélogo,ou...—Atéaojuízofinal...—atalhouela.—Odestinohádecumprir-se...Sejaoqueocéuquiser.Tinha Simão desaparecido nas trevas, quando Mariana acendeu a lâmpada do santuário, e

ajoelhouorandocomofervordaslágrimas.Eraumahora, e estavaSimãodefrontedo convento, contemplandoumaaumaas janelas.Em

nenhumaviraclarãodeluz;sóadolampadáriodoSacramentosecoavabaçaepálidanavidraçadumafrestadotemplo.Sentou-senasescaleirasdaigreja,eouviuali,imóvel,asquatrohoras.Dasmil visões que lhe relancearam no atribulado espírito, a que mais a miúdo se repetia era a deMariana suplicante, com as mãos postas; mas, ao mesmo tempo, cria ele ouvir os gemidos deTeresa,torturadapelasaudade,pedindoaocéuqueasalvassedasmãosdeseusalgozes.OvultodeTadeudeAlbuquerque, arrastandoa filhaaumconvento,não lheafogueavaa sededavingança;mas cada vez que lhe acudia àmente a imagemodiosa deBaltasarCoutinho, instintivamente asmãosdoacadêmicoseasseguravamdapossedaspistolas.

Àsquatrohoraseumquarto,acordouanaturezatodaemhinoseaclamaçõesaoraiardaalva.Ospassarinhos trinavam na cerca do mosteiro melodias interrompidas pelo toque solene das Ave-Mariasnatorre.Ohorizontepassaradeescarlateaalvacento.Apúrpuradaaurora,comolabaredaenorme,desfizera-seempartículasdeluz,queondeavamnodeclivedasmontanhas,esedistendiamnasplaníciesenasvárzeas,comoseoanjodoSenhor,àvozdeDeus,viessedesenrolandoaosolhosdacriaturaasmaravilhasdorepontardumdiaestivo.

Enenhumadestasgalasdocéuedaterraenlevaraosolhosdomoçopoeta!Às quatro horas emeia, ouviu Simão o tinido de liteiras, dirigindo-se àquele ponto.Mudou de

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local,tomandoporumaruaestreita,fronteiraaoconvento.Pararamasliteirasvaziasnaportaria,elogodepoischegaramtrêssenhorasvestidasdejornada,

que deviam ser as irmãs de Baltasar, acompanhadas de doismochilas com asmulas à rédea. Asdamasforamsentar-senosbancosdepedra,lateraisàportaria.Emseguidaabriu-seagrossaporta,rangendonosgonzos,eastrêssenhorasentraram.

Momentos depois, viu Simão chegar à portaria Tadeu de Albuquerque, encostado ao braço deBaltasarCoutinho.Ovelhodenotavaquebrantoedesfalecimentoaespaços.OdeCastroDaire,bemcompostodefiguraecaprichosamentevestidoàcastelhana,gesticulavacomoaprumodequemdáassuasirrefutáveisrazões,econsolatomandoarisoadoralheia.

—Nadadelamúrias,meutio!—diziaele.—Desgraçaseriavê-lacasada!Euprometo-lheantesdeumanorestituir-lhecurada.Umanodeconventoéumótimovomitóriodocoração.Nãohánadacomo issopara limparosarrodovícioemcoraçõesdemeninascriadasàdiscrição.Semeu tioaobrigasse, desde menina, a uma obediência cega, tê-la-ia agora submissa, e ela não se julgariaautorizadaaescolhermarido.

—Eraumafilhaúnica,Baltasar!—diziaovelhosoluçando.—Pois por issomesmo— replicou o sobrinho.—Se tivesse outra, ser-lhe-iamenos sensível a

perda,emenosfunestaadesobediência.Fariaasuacasanafilhamaisquerida,emborativessedeimpetrarumalicençarégiaparadeserdaraprimogênita.Assim,agora,nãolhevejooutroremédiosenãoempregarocautérioàchaga;comemplastroséquesenãofaznada.

Abriu-senovamenteaportariaesaíramastrêssenhoras,eapóselasTeresa.Tadeu enxugou as lágrimas, e deu alguns passos a saudar a filha, que não ergueu do chão os

olhos.—Teresa...—disseovelho.—Aquiestou,senhor—respondeuafilha,semoencarar.—Aindaétempo—tornouAlbuquerque.—Tempodequê?—Tempodeseresboafilha.—Nãomeacusaaconsciênciadeonãoser.—Aindamais?!...Queresirparatuacasa,eesqueceromalditoquenosfazatodosdesgraçados?—Não,meupai.Omeudestinoéoconvento.Esquecê-lonempormorte.Sereifilhadesobediente,

masmentirosaéquenunca.Teresa,circunvagandoosolhos,viuBaltasar,eestremeceu,exclamando:—Nemaqui!—Falacomigo,primaTeresa?—disseBaltasar,risonho.—Consigofalo!Nemaquimedeixaasuaodiosapresença?—Souumdoscriadosqueminhaprimalevaemsuacompanhia.Doistinhaeuhádias,dignosde

acompanharemaminhaprima,masesseshouveaíumassassinoquemosmatou.Afaltadeles,soueuquemeofereço.

—Dispenso-odadelicadeza—atalhouTeresa,comveemência.—Euéquemenãodispensodeaservir,àfaltadosmeusdoisfiéiscriados,queumceleradome

matou.—Assimdeviaser—tornouelatambémirônica—porqueoscovardesescondem-senascostas

doscriados,quesedeixammatar.—Aindasenãofizeramascontasfinais...minhaqueridaprima—redarguiuomorgado.Estediálogocorreurapidamente,enquantoTadeudeAlbuquerquecortejavaaprioresaeoutras

religiosas.Asquatrosenhoras,seguidasdeBaltasar,tinhamsaídodoátriodoconvento,ederamderostoemSimãoBotelho,encostadoàesquinadaruafronteira.

Teresaviu-o...adivinhou-o,primeiradetodas,eexclamou:—Simão!Ofilhodocorregedornãosemoveu.Baltasar,espavoridodoencontro,fitandoosolhosnele,duvidavaainda.—Éincrívelqueesteinfameaquiviesse!—exclamouodeCastroDaire.Simãodeualgunspassos,edisseplacidamente:—Infame...eu!Eporquê?—Infame,einfameassassino!—replicouBaltasar.—Jáforadaminhapresença!— É parvo este homem! — disse o acadêmico. — Eu não discuto com sua senhoria... Minha

senhora—disseeleaTeresa,comavozcomovidaeosemblantealteradounicamentepelosafetosdocoração.—Sofracomresignação,daqualeulheestoudandoumexemplo.Leveasuacruz,semamaldiçoaraviolência,ebempodeserqueameiocaminhodoseucalvárioamisericórdiadivinalheredobreasforças.

—Quedizestepatife?!—exclamouTadeu.—Vemaquiinsultá-lo,meutio!—respondeuBaltasar.—Temapetulânciadeseapresentarasua

filhaaconfortá-lanasuamalvadez!Istoédemais!Olhequeeuesmago-oaqui,seuvilão.

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—Vilãoéodesgraçadoquemeameaça,semousaravançarparamimumpasso—redarguiuofilhodocorregedor.

— Eu não o tenho feito— exclamou enfurecidamente Baltasar— por entender queme avilto,castigando-onapresençadecriadosdemeutio,quetupodessupormeusdefensores,canalha!

—Seassimé—tornouSimão,sorrindo—,esperonuncameencontrarderostocomsuasenhoria.Reputo-otãocovarde,tãosemdignidade,queoheidemandarazorragarpeloprimeiromarioladasesquinas.

BaltasarCoutinholançou-sedeímpetoaSimão.Chegouaapertar-lheagargantanasmãos;masdepressaperdeuovigordosdedos.Quandoasdamaschegaramainterpor-seentreosdois,Baltasartinhaoaltodocrânioabertoporumabala,quelheentraranafronte.Vacilouumsegundo,ecaiudesamparadoaospésdeTeresa.

Tadeu de Albuquerque gritava a altos brados. Os liteireiros e criados rodearam Simão, queconservavaodedonogatilhodaoutrapistola.Animadosunspelosoutrosepelosbradosdovelho,iamlançar-seaohomicida,comriscodevida,quandoumhomem,comumlençopelacara,correudaruafronteira,esecolocou,debacamarteaperrado,àbeiradeSimão.Estacaramoshomens.

—Fuja,queaéguaestáaocabodarua—disseoferradoraoseuhóspede.—Nãofujo...Salve-se,edepressa—respondeuSimão.—Fuja,queseajuntaopovoenãotardamaísoldados.—Jálhedissequenãofujo—replicouoamantedeTeresa,comosolhospostosnela,quecaíra

desfalecidasobreasescadasdaigreja.—Estáperdido!—tornouJoãodaCruz.—Jáoestava.Vá-seembora,meuamigo,porsuafilhalhorogo.Olhequepodeser-meútil;fuja...Abriram-setodasasportasejanelas,quandooferradorselançounafugaatécavalgaraégua.Umdosvizinhosdomosteiro,que,emrazãodoseuofício,primeirosaiuàrua,eraomeirinho-

geral.—Prendam-no,prendam-no,queéummatador!—exclamavaTadeudeAlbuquerque.—Qual?—perguntouomeirinho-geral.—Soueu—respondeuofilhodocorregedor.—Vossasenhoria!—disseomeirinho,espantado;e,aproximando-se,acrescentouameiavoz:—

Venha,queeudeixo-ofugir.—Eunãofujo—tornouSimão.—Estoupreso.Aquitemaminhasarmas.Eentregouasarmas.TadeudeAlbuquerque,quandoserecobroudoespasmo,feztransportarafilhaaumadasliteiras,

eordenouquedoiscriadosaacompanhassemaoPorto.AsirmãsdeBaltasarseguiramocadáverdeseuirmãoparacasadotio.

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CapítuloXI

O corregedor acorda com o grande rebuliço que ia na casa, e perguntou à esposa, que elesupunha também desperta na câmara imediata, que bulha era aquela. Como ninguém lherespondesse, sacudiu freneticamente a campainha, e berrou ao mesmo tempo, aterrado pelahipótesedeincêndionacasa.QuandoD.Ritaacudiu,jáeleestavaenfiandooscalçõesàsavessas.—Queestrondoéeste?Queméquegrita?—exclamouDomingosBotelho.—Quemgritamaiséosenhor—respondeuD.Rita.—Soueu?!Masqueméquechora?—Sãosuasfilhas.—Eporquê?Diganumapalavra.—Poissim,direi:oSimãomatouumhomem.—EmCoimbra?...Efazemtantabulhaporisso!—NãofoiemCoimbra,foiemViseu—tornouD.Rita.—Asenhoramangacomigo?!PoisorapazestáemCoimbra,emataemViseu!Aíestáumcaso

paraqueasOrdenaçõesdoReinonãoprovidenciaram.— Parece que brinca, Menezes! Seu filho matou na madrugada de hoje Baltasar Coutinho,

sobrinhodeTadeudeAlbuquerque.DomingosBotelhomudouinteiramentedeaspecto.—Foipreso?—perguntouocorregedor.—Estáemcasadojuizdefora.—Manda-me chamar o meirinho-geral. Sabe como foi e por que foi essa morte?... Mande-me

chamaromeirinho,semdemora.—Porquesenãovesteosenhor,evaiàcasadojuiz?—Quevoueufazeràcasadojuiz?—Saberdeseufilhocomoistofoi.—Senãosoupai;soucorregedor.Nãomeincumbeamiminterrogá-lo.SenhoraD.Rita,eunão

queroouvirchoradeiras;digaàsmeninasquesecalem,ouquevãochorarnoquintal.Omeirinho,chamado,relatoumiudamenteoquesabiaedisseter-severificadoqueoamoràfilha

doAlbuquerqueforacausadaqueledesastre.DomingosBotelho,ouvidaahistória,disseaomeirinho:—Ojuizdeforaquecumpraasleis;seelenãoforrigoroso,euoobrigareiasê-lo.Ausenteomeirinho,disseD.RitaPreciosaaomarido:—Quesignificaessemododefalardeseufilho?—Significaquesoucorregedordestacomarca,equenãoprotejoassassinosporciúmes,eciúmes

dafilhadumhomem,queeudetesto.EuantesqueriavermilvezesmortoSimãoqueligadoaessafamília.Escrevi-lhemuitasvezesdizendo-lhequeoexpulsavademinhacasa,sealguémmedesseacertezadequeele tinhacorrespondênciacom talmulher.Nãohádequerera senhoraqueeuvásacrificaraminhaintegridadeaumfilhorebelde,edemaisamaishomicida.D.Rita,algumtantoporafetomaternalebastanteporespíritodecontradição,contendeulargo

espaço;masdesistiu,obrigadapelainsólitapertináciaecóleradomarido.Tãoiracundoeásperoempalavras nunca ela o vira. Quando lhe ele disse: — “Senhora, em coisas de pouca monta o seudomínioeratolerável;emquestõesdehonra,oseudomínioacabou:deixe-me!”—D.Rita,quandotalouviu,ereparounafisionomiadeDomingosBotelho,sentiu-semulher,eretirou-se.Apontofoiistodeentrarojuizdeforanasaladeespera.Ocorregedorfoirecebê-lo,nãocomo

semblante afetuoso de quem vai agradecer a delicadeza e implorar indulgência, senão que, decarrancudoque ia,maisparecera irelerepresentaro juiz,porvirnaquelavisitadaracrerqueabalançadajustiçanasuamãotremiaalgumasvezes.—Começopordaravossasenhoriaospêsamesdadesgraçadeseufilho—disseojuizdefora.—Obrigadoavossasenhoria.Seitudo.Estáinstauradooprocesso?—Nãopodiadeixareudeaceitaraquerela.—Seanãoaceitasse,obrigá-lo-iaeuaocumprimentodosseusdeveres.— A situação do senhor Simão Botelho é péssima. Confessa tudo. Diz que matou o algoz da

mulherqueeleamava...—Fezmuitobem—interrompeuocorregedor,soltandoumacasquinadasecaerouca.—Perguntei-lhesefoiemdefesa,efiz-lhesinalquerespondesseafirmativamente.Respondeuque

não;que,adefender-se,ofariacomapontadabota,enãocomumtiro.Busqueitodososmodoshonestosdeolevaradaralgumasrespostasquedenotassemalucinaçãooudemência;ele,porém,responde e replica com tanta igualdade e presença de espírito, que é impossível supor que oassassínionãofoiperpetradomuitointencionalmenteedeclarojuízo.Aquitemvossasenhoriaumaespecialíssimaetristeposição.Queriavaler-lhe,enãoposso.—Eeunãopossonemquero,senhordoutorjuizdefora.Estánacadeia?

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— Ainda não: está em minha casa. Venho saber se vossa senhoria determina que lhe sejapreparadacomdecênciaaprisão.—Eunãodeterminonada.FaçadecontaqueopresoSimãonãotemaquiparentealgum.—Mas, senhor doutor corregedor— disse o juiz de fora com tristeza e compunção—, vossa

senhoriaépai.—Souummagistrado.—Édemasiadaaseveridade;perdoe-meareflexão,queéamiga.Láestáaleiparaocastigar;não

ocastiguevossasenhoriacomoseuódio.Adesgraçaquebrantaorancordeestranhos,quantomaisoafetuosoressentimentodeumpai!— Eu não odeio, senhor doutor; desconheço esse homem em que me fala. Cumpra os seus

deveres,quelhoordenaocorregedor,eoamigomaistardelheagradeceráadelicadeza.Saiuojuizdefora,efoiencontrarSimãonamesmaserenidadeemqueodeixara.—Venhodefalarcomseupai—disseojuiz;—encontrei-omaisiradodoqueeranaturalcalcular.

Pensoqueporenquantonadapodeesperardainfluênciaoupatrocíniodele.—Istoqueimporta?—respondeusossegadamenteSimão.—Importamuito,senhorBotelho.Seseupaiquisesse,haveriameiosdemaistardelheadoçara

sentença.—Quemeimportaamimasentença?—replicouofilhodocorregedor.—Peloquevejo,nãolheimportaaosenhoriraumaforca?—Não,senhor.—Quediz,senhorSimão!—redarguiuespantadoointerrogador.—Digoqueomeucoraçãoéindiferenteaodestinodaminhacabeça.— E sabe que seu pai não lhe dámesmo proteção, a proteção das primeiras necessidades na

cadeia?—Nãosabia;quetemisso?Queimportamorrerdefome,oumorrernopatíbulo?—Porquenãoescreveasuamãe?Peça-lheque...—Queheideeupediraminhamãe?—atalhouSimão.—Peça-lhequeamacieacóleradeseupai,senãoosenhorBotelhonãotemquemoalimente.—Vossasenhoriaestá-mejulgandoummiserável,aquemdácuidadosaberondehádealmoçar

hoje.Pensoquenãoincumbemaosenhorjuizdeforaessasmiudezasdeestômago.—Decertonão—redarguiu,irritado,ojuiz—façaoquequiser.E, chamando o meirinho-geral, entregou-lhe o réu, dispensando o aguazil de pedir força para

acompanhá-lo.Ocarcereirorecebeurespeitosamenteopreso,ealojou-onumdosquartosmelhoresdocárcere;

masnuedesprovidodomínimoconforto.Umoutropresoemprestou-lheumacadeiradepau.Simãosentou-se,cruzouosbraçosemeditou.Poucodepois,umcriadodeseupaiconduziu-lheoalmoço,dizendo-lhequesuamãelhomandava

aocultas,eentregando-lheumacartadela,cujoconteúdoimportasaber.Simão,antesdetocarnoalmoço,cujocabazestavanopavimento,leuoseguinte:Desgraçado,queestásperdido!Eu não te posso valer, porque teu pai está inexorável. Às escondidas dele é que te mando o

almoço,enãoseisepodereimandar-teojantar!Quedestinooteu!Oxaláquetivessesmorridoaonascer!Mortomedisseramquetinhasnascido;masoteufataldestinonãoquislargaravítima.ParaquesaístedeCoimbra?Aquevieste,infeliz?AgoraseiquetensvividoforadeCoimbrahá

quinzedias,enuncativesteumapalavraquedissessesatuamãe!Simãosuspendeualeitura,edisseentresi:—Comoseentendeisto?!PoisminhamãenãomandouchamaroJoãodaCruz!Enãofoielaquem

memandouodinheiro?—Olhequeoalmoçoarrefece,menino!—disseocriado.Simãocontinuoualer,semouvirocriado:Devesestarsemdinheiro,eeudesgraçadamentenãopossohojeenviar-teumpinto.Teu irmão

Manuel,desdeque fugiuparaEspanha,absorve-me todasaseconomias.Veremos,passadoalgumtempo,oquepossofazer;masreceiobemqueteupaisaiadeViseu,enosleveparaVilaReal,paraabandonardetodooteujulgamentoàseveridadedasleis.MeupobreSimão!Ondeestariastuescondidoquinzedias?!Hojemesmoéqueteupaitevecarta

dumlente,participando-lheatuafaltanasaulas,esaídaparaoPorto,segundodiziaoarreeiroqueteacompanhou.Nãopossomais.TeupaijáespancouaRitinha,porelaquereriràcadeia.Contacomopoucovalordatuapobremãeeaopédumhomemenfurecidocomoestáteupai.

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SimãoBotelhorefletiualgunsminutos,econvenceu-sedequeodinheirorecebidoeradeJoãoda

Cruz.Quandosaiucomoespíritodestameditação,tinhaosolhosmarejadosdelágrimas.—Nãochore,menino—disseocriado.—Ostrabalhossãoparaoshomens,eDeushádefazer

tudopelomelhor.Almoce,senhorSimão.—Levaoalmoço—disseele.—Poisnãoqueralmoçar?!—Não.Nemvoltesaqui.Eunãotenhofamília.Nãoqueroabsolutamentenadadacasademeus

pais.Dizaminhamãequeeuestousossegado,bemalojado,efeliz,eorgulhosodaminhasorte.Vai-teemborajá.Ocriadosaiu,edisseaocarcereiroqueoseuinfelizamoestavadoido.D.Ritaachouprovávela

suspeitadoservo,eviuaevidênciadaloucuranaspalavrasdofilho.Quando o carcereiro voltou ao quarto de Simão, entrou acompanhado de uma rapariga

camponesa:eraMariana.AfilhadeJoãodaCruz,queatéàquelemomentonãoapertavasequeramãodohóspede,correuaelecomosbraçosabertoseorostobanhadodelágrimas.Ocarcereiroretirou-se,dizendoconsigo:—“Estaébemmaisbonitaqueafidalga!”—Nãoqueroverlágrimas,Mariana—disseSimão.—Aqui,sealguémdevechorar,soueu;mas

lágrimasdignasdemim, lágrimasdegratidãoaos favoresque tenho recebidodesi ede seupai.Acabodesaberqueminhamãenuncamemandoudinheiroalgum.Eradeseupaiaqueledinheiroquerecebi.Marianaescondeuorostonoaventalcomqueenxugavaopranto.—Seupaitevealgumperigo?—tornouSimãoemvozperceptíveldela.—Não,senhor.—Estáemcasa?—Está,eparecefurioso.Queriaviraqui,maseunãoodeixei.—Perseguiu-oalguém?—Não,senhor.—Diga-lhequenãoseassuste,evádepressasossegá-lo.—Eunãopossoirsemfazeroqueelemedisse.Euvousair,evoltodaquiapouco.—Mande-mecomprarumabanca,umacadeira,eumtinteiroepapel—disseSimão,dando-lhe

dinheiro.—Hádevirlogotudo;jácápodiaestar;masopaidisse-mequenãocomprassenadasemsaber

sesuafamílialhemandavaonecessário.—Eunãotenhofamília,Mariana.Tomeodinheiro.—Nãorecebodinheiro,semlicençademeupai.Paraessascomprastrouxeeudemais.Easua

feridacomoestará?—Aindaagoramelembroquetenhoumaferida!—disseSimão,sorrindo.—Deveestarboa,que

nãomedói...SoubealgumacoisadeD.Teresa?—SoubequefoiparaoPorto.Estavamaliacontarqueopaiamandarametersemsentidosna

liteira,eestámuitopovoàportadofidalgo.—Estábom,Mariana...Nãohádesgraçadosemamparo.Vá,pensenoseuhóspede, sejao seu

anjodemisericórdia.Saltaramdenovoaslágrimasdosolhosdamoça;e,porentresoluços,estaspalavras:—Tenhapaciência.Nãohádemorreraodesamparo.Façadecontaquelheapareceuhojeuma

irmã.E, dizendo, tirou das amplas algibeiras um embrulho de biscoitos e uma garrafa de licor de

canela,quedepôssobreacadeira.—Mau almoço é;mas não achei outra coisa pronta— disse ela, e saiu apressada, como para

pouparaoinfelizpalavrasdegratidão.

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CapítuloXII

Ocorregedor,nessemesmodia,ordenouquesepreparassemmulherefilhasparanodiaimediatosaíremdeViseucomtudoquepudessesertransportadoemcavalgaduras.

Voudescreverasingelaedoridareminiscênciadumasenhoradaquelafamília,comoatenhoemcartarecebidahámeses:

Já lávãocinquentaeseteanos,eaindamelembro,comosefossemontempassados,ostristes

acontecimentosdaminhamocidade.Nãoseicomoéquetenhohojemaisclaraamemóriadascoisasda infância. Parece-me que há trinta anos me não lembravam com tantas circunstâncias epormenores.

Quando a mãe disse a mim e as minhas irmãs que preparássemos os nossos baús, rompemostodasnumchoroque irritoua iradopai.Asmanas,comomaisvelhasoumaisafeitasaocastigo,calaram-selogo.Eu,porém,quesóumavez,eunicamenteporcausadeSimão,tinhasidocastigada,continueiachorar,etiveoinocentevalordepediraopaiquemedeixasseirveromanoàcadeiaantesdesairmosdeViseu.

Entãofuicastigadapelasegundavez,easperamente.O criado que levou o jantar à cadeia voltou com ele, e contou-nos que Simão já tinha alguns

móveis no seu quarto, e estava jantando com exterior sossegado. Àquela hora todos os sinos deViseuestavamdobrandoafinadosporalmadeBaltasar.

Ao pé dele disse o criado que estava uma formosa rapariga de aldeia e coberta de lágrimas.Apontando-aaocriadoqueaobservava,disseSimão:—Aminhafamíliaéesta.

Nodia seguinte, ao romper damanhã, partimos paraVilaReal. Amãe chorava sempre; o pai,encolerizadoporisso,saiudaliteiraemquevinhacomela,fezqueeupassasseparaoseulugar,efeztodaajornadanaminhacavalgadura.

LogoquechegamosaVilaReal,eramtãofrequentesasdesordensemcasa,àcontadoSimão,quemeu pai abandonou a família, e foi sozinho para a quinta de Montezelos. A mãe quis tambémabandonar-noseirparaosprimosdeLisboa,afimdesolicitarolivramentodomano.Masopai,quefizera uma espantosa mudança de gênio, quando tal soube, ameaçou minha mãe de a obrigarjudicialmenteanãosairdacasadeseumaridoefilhas.

Escrevia a mãe a Simão, e não recebia resposta. Pensava ela que o filho não respondia: anosdepois,vimosentreospapéisdemeupaitodasascartasqueelaescrevera.Jásevêqueopaiasfaziatirarnocorreio.

Uma senhora de Viseu escreveu à mãe, louvando-a pelo muito amor e caridade com que elaacudiaàsnecessidadesdeseu infeliz filho.Estacarta foi-lheentregueporumalmocreve;quandonão,teriaodestinodasoutras.Espantou-seminhamãedoconceitoemqueatinhaasuaamiga,econfessou-lhequenãootinhasocorrido,porqueofilhorejeitaraopoucoqueelaquiserafazeremseubem.AistorespondeuasenhoradeViseuqueumarapariga,filhadumferrador,estavavivendonasvizinhançasdacadeia, e cuidavadopresocomabundânciae limpeza, e a todosdiziaquealiestavaporordemeàcustadasenhoraD.RitaPreciosa.Acrescentavaaamigademinhamãequealgumasvezesmandarachamarabelamoça,e lhequiseradaralgunscozinhadosmaisesquisitosparaSimão,osquaiselarejeitava,dizendoqueosenhorSimãonãoaceitavanada.

De tempos a tempos recebíamos estas novas, sempre tristes, porque, na ausência demeu pai,conspiraram, como era de esperar, quase todas as pessoas distintas de Viseu contra o meudesgraçadoirmão.

Amãeescreviaaosseusparentesdacapitalimplorandoagraçarégiaparaofilho;masaquelascartasnãosaíamdocorreio,eiamdartodasàmãodemeupai.

Equefaziaeste,entretanto,naquinta,semfamília,semglória,nemrecompensaalgumaatantasfaltas?Rodeadodejornaleiros,cultivavaaquelegrandemontadoondeaindahoje,porentreostojoseurzes,quevoltaramcomoabandono,sepodemverrelíquiasdecepasplantadasporele.Amãeescrevia-lhelastimandoofilho;meupaiapenasrespondiaqueajustiçanãoeraumabrincadeira,equenaAntiguidadeosprópriospaiscondenavamosfilhoscriminosos.

Teveminhamãe a afoiteza de se lhe apresentar umdia, pedindo licença para ir a Viseu.Meuinexorávelpainegou-lha,einvectivou-afuriosamente.

Passadossetemeses,soubemosqueSimãotinhasidocondenadoamorrernaforca,levantadanolocalondefizeraamorte.Fecharam-seasjanelasporoitodias;vestimosdeluto,eminhamãecaiudoente.

QuandoistosesoubeemVilaReal,todasaspessoasilustresdaterraforamaMontezelos,afimdeobrigarembrandamenteopaiaempregaroseuvalimentonasalvaçãodo filhocondenado.DeLisboavieramalgunsparentesprotestarcontraainfâmia,quetamanhaignomíniafariarecairsobreafamília.Meupaiatodosrespondiacomestaspalavras:—Aforcanãofoiinventadasomenteparaos que não sabem o nome do seu avô. A ignomínia das famílias são as más ações. A justiça não

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infamasenãoaquelequecastiga.Tínhamosnósumtio-avô,muitovelhoevenerando,chamadoAntôniodaVeiga.Foiestequemfez

omilagre, e foi assim:Apresentou-se ameu pai, e disse-lhe:—Guardou-meDeus a vida até aosoitentaetrêsanos.Podereivivermaisdoisoutrês?Istonemjáévida;masfoi-o,ehonrada,esemmancha até agora, e já agora há de assim acabar; meus olhos não hão de ver a desonra de suafamília. Domingos Botelho, ou tu me prometes aqui de salvar teu filho da forca, ou eu na tuapresençamemato.—E,dizendoisto,apontavaaopescoçoumanavalhadebarba.Meupaiteve-lhemãodobraço,edissequeSimãonãoseriaenforcado.

Nodia seguinte, foimeupai para o Porto, onde tinhamuitos amigos naRelação, e de lá paraLisboa.

Emprincípiodemarçode1805,soubeminhamãe,comgrandeprazer,queSimãoforaremovidoparaascadeiasdaRelaçãodoPorto,vencendoosgrandesobstáculosqueopuseramaessamudançaosqueixosos,queeramTadeudeAlbuquerqueeasirmãsdomorto.

Depois...Suspendemos aqui o extrato da carta para não anteciparmos a narrativa de sucessos, que

importa,emrespeitoàarte,atarnofiocortado.SimãoBotelhoviraimperturbávelchegarodiadojulgamento.Sentou-senobancodoshomicidas

sem patrono nem testemunhas de defesa. Às perguntas respondeu com o mesmo ânimo friodaquelasrespostasaointerrogatóriodojuízo.Obrigadoaexplicaracausadocrime,deu-acomtodaa lealdade, sem articular o nome de Teresa Clementina de Albuquerque. Quando o advogado daacusaçãoproferiuaquelenome,SimãoBotelhoergueu-sedegolpe,eexclamou:

—Quevemaquifazeronomedeumasenhoraaesteantrodeinfâmiaesangue?Quemiserávelacusador está aí, que não sabe com a confissão do réu provar a necessidade do carrasco semenlamearareputaçãodumamulher?Aminhaacusaçãoestáfeita:euafiz.Agoraa leiquefale,ecale-seovilãoquenãosabeacusarseminfamar.

Ojuizimpôs-lhesilêncio.Simãosentou-se,murmurando:—Miseráveistodos!Ouviuoréuasentençademortenaturalparasemprenaforca,arvoradanolocaldodelito.Eao

mesmotemposaíramdentreamultidãounsgritosdilacerantes.Simãovoltouafaceparaasturbas,edisse:

—Idesterumbeloespetáculo,senhores!Aforcaéaúnicafestadopovo!Levaidaíessapobremulherquechora:essaéacriaturaúnicaparaquemomeusuplícionãoseráumpassatempo.

Marianafoitransportadaembraçosàsuacasinha,navizinhançadacadeia.Osrobustosbraçosquealevarameramosdeseupai.

SimãoBotelho,quando,emtodaaagilidadeeforçadosdezoitoanos, iadotribunalaocárcere,ouviualgumasvozesquesealternavamdestemodo:

—Quandovaieleapadecer?—Ébemfeito!Vaipagarpelosinocentesqueopaimandouenforcar.—Queriaapanharamorgadaàforçadebalas!—Nãoqueestesfidalgoscuidamquenãoémaissenãomatar!...—Matasseeleumpobre,etuveriascomoeleestavaemcasa!—Tambéméverdade!—Ecomoelevaidecaranoar!—Deixair,quenãotardaquemlhafaçacairaochão!...—Dizemqueocarrascojávempelocaminho.—Jáchegoudenoite,etraziadoiscutelosnumacoifa.—Tuviste-o?—Não;masdisseaminhacomadrequelhodisseraavizinhadocunhadodairmã,queocarrasco

estáescondidonumaenxovia.—Tuhásdelevarospequenosaveropadecente?—Puderanão!Estesexemplosnãosedevemperder.—Eucádemimjávienforcartrês,quemelembre,todospormatadores.—Porissotu,hádoisanos,nãoatirastecomavidadoAmaroLampreiaacasadodiabo!...—Assimfoi;mas,seeuonãomatasse,matava-meele.—Entãodequevogaoexemplo?!—Euseicádequevoga?OFreiAnselmodos franciscanoséquepregaaospaisque levemos

filhosaveremosenforcados.—Issohádeserparaonãoesfolaremaele,quandoelenosesfolacomospeditórios.Tãodesassombrado iao espíritodeSimão,quealgumasvezesesvoaçounos lábiosumsorriso,

desafiadopelafilosofiadopovo,acercadaforca.Recolhido ao seu quarto, foi intimado para apelar, dentro do prazo legal. Respondeu que não

apelava,queestavacontentedasuasorte,edeboasavançascomajustiça.

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PerguntouporMariana,eocarcereiro lhedissequeamandavachamar.VeioJoãodaCruz,eachorar se lastimou de perder a filha, porque a via delirante a falar em forca e a pedir que amatassem primeiro. Agudíssima foi então a dor do acadêmico ao compreender, como seinstantaneamente lhe fulgurasse a verdade, queMariana o amava até o extremo demorrer. Pormomentos se lhe esvaiu do coração a imagem de Teresa, se é possível assim pensá-lo. Vê-la-iaporventuracomoumanjoredimidoemserenacontemplaçãodoseucriador;everiaMarianacomoosímbolodatortura,morrerapedaços,seminstantesdeamorremuneradoquelhedessemaglóriadomartírio.Uma,morrendoamada;outra,agonizando,semterouvidoapalavra“amor”doslábiosqueescassamentebalbuciavamfriaspalavrasdegratidão.

E chorou então aquele homem de ferro. Chorou lágrimas que valiam bem as amarguras deMariana.

—Cuidedesuafilha,senhorCruz!—disseSimãocomferventesúplicaaoferrador.—Deixe-meamim,queestouvigorosoebom.Váconsolaressacriatura,quenasceudebaixodaminhamáestrela.Tire-a deViseu; leve-a para sua casa. Salve-a, para que nestemundo fiquemduas irmãs quemechorem.Osfavoresquemetemfeito,jáagoradispensa-osabrevidadedaminhavida.Daquiadiasmandam-merecolheraooratório;bomseráquesuafilhaignore.

Devolta,JoãodaCruzachouafilhaprostradanopavimento,feridanorosto,chorandoerindo,dementeemsuma.Levou-aamarradaparasuacasa,edeixouacargodeoutrapessoaasustentaçãodocondenado.

Terribilíssimas foramentãoashorassolitáriasdo infeliz.Atéàqueledia,Mariana,benquistadocarcereiroeprotegidapelaamigadeD.RitaPreciosa,tinhafrancaentradanocárcereatodaahorado dia, e raras horas deixava sozinho o preso. Costurava enquanto ele escrevia, ou cuidava doamanho e limpeza do quarto. Se Simão estava no leito doente ou prostrado,Mariana, que tiveraalgunsprincípiosdeescrita,sentava-seàbanca,eescreviacemvezesonomedeSimão,quemuitasvezesaslágrimasdeliam.Eistoassim,durantesetemeses,semnuncaouvirnemproferirapalavraamor.Istoassim,depoisdasvigíliasnoturnas,oraempreces,oraemtrabalho,oranocaminhodesuacasa,ondeiavisitaropaiadesoras.

Nuncamaisopreso,naperspectivadaforca,viuentraraqueladocecriaturaolimiardaferradaporta,quelhegraduavaoar,medidoecalculadoparaqueasinteirashorasdaasfixiaasgozasseocordeldopatíbulo.Nuncamais!

E,quandoeleevocavaaimagemdeTeresa,umcaprichodosolhosquebrantadoslheafiguravaavisãodeMarianaaopardaoutra.Elacrimosasviaasduas.Saltavaentãodoleito,fincavaosdedosnosespessosferrosdajanela,epensavaempartirocrâniocontraasgrades.

Não o sustinha a esperança na terra, nem no céu. Raio de luz divina jamais penetrou no seuergástulo.Oanjodapiedadeencarnaranaquelacriaturacelestialqueenlouquecera,ouvoltaraparaocéucomoespíritodela.Oqueosalvaradosuicídionãoera,pois,esperançasemDeus,nemnoshomens;eraestepensamento:“Afinal,covarde!Quebravuraémorrerquandonãoháesperançadavida?!Aforcaéumtriunfoquandoseencontraaocabodocaminhodahonra.

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CapítuloXIII

—ETeresa?Perguntamatempo,minhassenhoras,enãomeheidequeixarsemearguíremdeateresquecido

esacrificadoaincidentesdemenosporte.Esquecido,não.Muitoháquemereluzevoeja,aladacomoo idealquerubimdossantos,nesta

minhaquaseescuridade,aquelaavedocéu,comoapedir-mequelhecubradefloresorastilhodesanguequeeladeixounaterra.Maislágrimasquesanguedeixaste,ófilhadaamargura!Floressãotuas lágrimas,edocéumedizseosperfumesdelasnãovalemmaisaospésdo teuDeusqueasprecesdemuitadevotaquemorresantificadapelomundo,ecujocheirodesantidadenãopassadoolfatohipócritaouestúpidodosmortais.

TeresaClementinabemaviamtransportadadaescadariado temploondecaíra,à liteiraqueaconduziuaoPorto.Recobrandooalento,viudefrontedesiumacriada,quelhediziabanaisefriasexpressõesdealívio.Sealgumacriadadeseupai lheeraamiga,decertonãoaquela,acintementeescolhida pelo velho. Nem ao menos a confiança para tal expansão em gritos restava à afligidamenina!Masumraiodepiedadeferiraopeitodamulheratéàquelahoradesafetaasuaama.

Perguntava-seasimesmaTeresaseaquelahorrorosasituaçãoseriaumsonho!Sentia-sedenovofalecerdeforças,evoltavaàvida,sacudidapelaconsciênciadasuadesgraça.Condoeu-seacriada,eincitou-aarespirar,chorandocomela,edizendo-lhe:

—Podefalar,menina,queninguémnossegue.—Ninguém?!—Assuasprimasficaram:apenasvêmosdoislacaios.—Emeupainão?—Não,fidalga...Podechorarefalaràsuavontade.—EeuvouparaoPorto?—Vamos,sim,minhasenhora.—Etuvistetudocomofoi,Constança?—Desgraçadamentevi...—Comofoi?Conta-metudo.—Ameninabemsabequeseuprimomorreu.—Morreu?!Vi-ocairquaseaosmeuspés;mas...—Morreulogo,edepoisquiseramoscriados,àvozdeseupai,prenderosenhorSimão;masele

comoutrapistola...—Efugiu?—atalhouTeresa,comveementealegria.—Afinalfoielequesedeuàprisão.—Estápreso?!E, sufocada pelos soluços, com o rosto no lenço, não ouvia as palavras confortadoras de

Constança.Serenadoalgumtantooviolentoacessodegemidosechoro,Teresasugeriuàcriadaoloucoplano

deadeixar fugirdaprimeiraestalagemondepousassemparaela iraViseudaroúltimoadeusaSimão.

A criada a custo a despersuadiu do intento, pintando-lhe os novos perigos que ia acumular àdesgraça do seu amante, e animando-a com a esperança de livrar-se Simão do crime, com ainfluênciadopai,apesardaperseguiçãodofidalgo.

CalaramlentamenteestasrazõesnoespíritodeTeresa.Chorosa, ansiada e a reveses desfalecida, foi Teresa vencendo a distância que a separava de

Monchique,ondechegouaoquintodiadejornada.

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Apreladajáestavasabedoradossucessos,poremissáriosqueseadiantaramaomorosocaminhardaliteira.

Foi Teresa recebida com brandura por sua tia, posto que as recomendações de Tadeu deAlbuquerque eram clausura rigorosa e absoluta privação demeios de escrever a quemquer quefosse.

Ouviuapreladadabocadesuasobrinhaafielhistóriadosacontecimentos,eviuumaaumaascartasdeSimãoBotelho.Choraramabraçadas;masaprelada,enxugadasaslágrimasdemulheraofogodaausteridadereligiosa,faloueaconselhoucomofreira,efreiraqueciliciavaocorpocomasrosetas,eocoraçãocomasprivaçõestormentosasdequarentaanos.

Teresa carecia de forças para a rebelião. Deixou a sua tia a santa vaidade de exorcismar odemônio das paixões, e deu um sorriso ao anjo da morte, que, de permeio ao seu amor e àesperança, lhe interpunha a asa negra que tão de luz refulgente rebrilha às vezes em coraçõesinfelizes.

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QuisTeresaescrever.—Aquem,minhafilha?—perguntouaprelada.Teresanãorespondeu.— Escrever-lhe para quê? — tornou a religiosa. — Cuidas tu, menina, que as tuas cartas lhe

chegamàmão?Quevaistufazersenãoredobrarairadeteupaicontratiecontraoinfelizpreso?!Se o amas, como creio, apesar de tudo, cuida em salvá-lo. Se não ouves aminha razão, finge-teesquecida.Sepodesviolentaratuador,dissimula,fazemuitoporqueateupaichegueanotíciadequelheserásdócilemtudo,seeletiverpiedadedoteupobreamigo.

NãorecalcitrouTeresa.Deuoutrosorrisoaoanjodamorte,epediu-lhequeaenvolvesseaela,eaoseuamor,eàsuaesperança,detodo,nanegruradesuasasas.

DemêsamêsrecebiaaabadessadeMonchiqueumacartadeseuprimo.Eramestascartasumrespiradouro de vingança. Em todas dizia o velho que o assassino iria ao patíbuloirremediavelmente.Asobrinhanãoviaascartas;masreparavanaslágrimasdacompassivafreira.

A débil compleição de Teresa deperecia aceleradamente. A ciência condenou-a àmorte breve.DistofoiinformadoTadeudeAlbuquerque,querespondeu:—“Queanãodesejavamorta;mas,seDeusa levasse,morreriamaistranquilo,ecomasuahonrasemmancha”.EraassimimaculadaahonradofidalgodeViseu!...AHONRA,quedizemprocederemlinharetadavirtudedeSócrates,davirtudedeJesusCristo,davirtudedemilhõesdemártires,quesederamàsgarrasdasferas,quandopredicavamacaridadeeoperdãoaoshomens!

Quantascaríciasinventouasimpatiaeapiedade,todas,porministériodasreligiosasexemplaresdeMonchique,aporfiaramemrefrigeraroardorqueconsumiarapidamenteareclusa.Inútiltudo.Teresareconheciacomlágrimasacompaixão,e,aomesmotempo,alegrava-setirandodascaríciasacertezadequeosmédicosajulgavamincurável.

Alguma freira inadvertida lhe disse um dia que uma sua amiga do convento dos Remédios deLamegolhedisseraqueSimãotinhasidocondenadoàmorte.

—Eeuvivoainda!Depoisorou,echorou;masoscostumesdasuavidaemparoxismoscontinuaraminalteráveis.PerguntouàsenhoraquelhederaanotíciaseasuaamigadoconventodosRemédioslhefariaa

esmola de fazer chegar àsmãos de Simão uma carta. Prontificou-se a freira, depois que ouviu oparecerdaprelada.Entendeuestareligiosaqueoderradeirocolóquioentredoismoribundosnãopodiadanificá-losnavidatemporal,nemnavidaeterna.

EstaéacartaqueleuSimão,quinzediasdepoisdoseujulgamento:Simão,meuesposo.Seitudo...Estáconoscoamorte.Olhaqueteescrevosemlágrimas.Aminha

agoniacomeçouhásetemeses.Deusébom,quemepoupouaocrime.Ouvianotíciadatuapróximamorte,eentãocompreendiporqueestoumorrendohoraahora.Aquiestáonosso fim,Simão!...Olha as nossas esperanças! Quando tu me dizias os teus sonhos de felicidade, e eu te dizia osmeus!...QuemalfariamaDeusosnossosinocentesdesejos?!...Porquenãomerecemosnósoquetanta gente tem?... Assim acabaria tudo, Simão? Não posso crê-lo! A eternidade apresenta-se-metenebrosa,porqueaesperançaeraaluzquemeguiavadetiparaafé.Masnãopodefindarassimonossodestino.Vêsepodesseguraroúltimofiodatuavidaaumaesperançaqualquer.Ver-nos-emosnumoutromundo,Simão?TereieumerecidoaDeuscontemplar-te?Eurezo,suplico,masdesfaleçonaféquandomelembramasúltimasagoniasdoteumartírio.Asminhassãosuaves;quasequeasnãosinto.Nãodevecustaramorteaquemtiverocoraçãotranquilo.Opioréasaudade,saudadedaquelasesperançasquetuachavasnomeucoração,adivinhandoastuas.Nãoimporta,senadaháalémdestavida.Aomenos,morrer.Setupudessesviveragora,dequeteserviria?Eutambémestoucondenada,esemremédio.Segue-me,Simão!Nãotenhassaudadesdavida,nãotenhas,aindaquearazão tedigaquepodiasser feliz, semenão tivessesencontradonocaminhoporonde te leveiàmorte...Equemorte,meuDeus!...Aceita-a!Nãotearrependas.Sehouvercrime,ajustiçadeDeusteperdoarápelasangústiasquetensdesofrernocárcere...enosúltimosdias,enapresençada...

Teresaiaescreverumapalavra,quandoapenalhecaiudamão,eumaconvulsãolhevibroutodo

ocorpopor largoespaço.Nãoescreveuapalavra!Masa ideiada forcaparou-lheavida.Afreiraentrounacelaapedir-lheacarta,porqueocorreioiaapartir.Teresa,indicando-lha,disse:

—Leia,sequiser,efeche-a,porcaridade,queeunãoposso.NostrêsdiasseguintesTeresanãosaiudoleito.Acadahoraasreligiosasassistentesesperavam

queelafechasseosolhos.—Custamuitomorrer!—diziaalgumasvezesaenferma.Nãofaltavampiedososdiscursosadivertirem-lheoespíritodomundo.Teresaouvia-os,ediziacomânsia:—Masaesperançadocéu,semele!...Queéocéu,meuDeus?Eoapostólicocapelãodomosteironãosabiadizerseosbensdocéutinhamdecomumcomosdo

mundoasdelíciasquefalsamentenaterrasechamamassim.Aquelassutilezasespirituaisquevêm

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com algumas espécies de física, assim àmaneira dos últimos lampejos da vital flama, tinha-as aenferma, quando acontecia falarem-lhe as religiosasnabem-aventurança.Às vezes, se o capelão,convidado pela lucidez de Teresa, entrava os domínios da filosofia, tratando como tema aimortalidadedaalma, a inculta senhoraargumentavaembreves termos, com razões tão claras afavordauniãoeternadasalmas, jádestemundoesposas,queopadreficavaemdúvidasseseriaheréticocontestarumacláusulanãoinscritaemalgumdosquatroevangelhos.

Maravilhava-se jáamedicinadapertináciadaquelavida.Tinhaaabadessaescritoa seuprimoTadeu,apressando-oairveroanjoaodespedir-sedaterra.Ovelho,tocadodepiedadeeporventurade amor paternal, deliberou tirar do convento a filha, na esperança de salvá-la ainda.Uma forterazãoacresciaàquela:eraamudançadocondenadoparaoscárceresdoPorto.Deu-sepressa,pois,ofidalgo,echegouaoPortoatempoqueareligiosa,amigadaoutradeLamego,entregavaàdoenteestacartadeSimão:

Nãomefujasainda,Teresa.Jánãovejoaforca,nemamorte.Meupaiprotege-me,easalvaçãoé

possível.Prendeaocoraçãoosúltimosfiosdatuavida.Prolongaatuaagonia,enquantoteeudisserqueespero.AmanhãvouparaascadeiasdoPorto,eheidealiesperaraabsolviçãooucomutaçãodasentença.Avidaé tudo.Possoamar-tenodegredo.Em todaapartehácéu, e flores, eDeus.Seviveres,umdiaseráslivre;apedradosepulcroéquenuncaselevanta.Vive,Teresa,vive!Hádias,lembrava-mequeastuaslágrimaslavariamdaminhafaceasnódoasdosanguedoenforcado.Essepesadeloatrozpassou.Agoraneste infernorespira-se;oespartodocarrascojámenãoapertaemsonhos agarganta. Já fito os olhosno céu, e reconheço aprovidênciados infelizes.Ontem, vi asnossasestrelas,aquelasdosnossossegredosnasnoitesdaausência.Volviàvida,etenhoocoraçãocheiodeesperanças.Nãomorras,filhadaminhaalma!

Iaaltaanoite,quandoTeresa,sentadanoseuleito,leuestacarta.Chamouacriada,paraajudá-la

avestir.Mandouabrira janeladoseuquarto,eencostouas facesàs reixasde ferro.Esta janelaolhavaparaomar,eomareranessanoiteumaimensaflamadeprata;eaLua,esplendidíssima,eclipsavaofulgordumasestrelasqueTeresaprocuravanocéu.

—Sãoaquelas!—exclamouela.—Aquelasquê,minhasenhora?—disseConstança.— As minhas estrelas!... Pálidas como eu... A vida! Ai! A vida! — clamou ela, erguendo-se, e

passandopelafronteasmãoscadavéricas.—Queroviver!Deixai-meviver,óSenhor!—Hádeviver,menina!Hádeviver,queDeusépiedoso!—disseacriada.—Masnãotomeoar

danoite.Estenevoeirodoriofaz-lhegrandemal.— Deixa-me, deixa-me, que tudo isto é viver... Não vejo o céu há tanto tempo! Sinto-me

ressuscitar aqui,Constança! Por que não tenho eu respirado todas as noites este ar?Eu poderiaviver alguns anos? Poderei, minha Constança? Pede tu, pede muito à minha Virgem Santíssima!Vamosorarambas!Vamos,queoSimãonãomorre...OmeuSimãovive,equerqueeuviva.EstánoPortoamanhã,etalvezjáesteja...

—Quem,minhasenhora?!—Simão;oSimãovemparaoPorto.Acriadajulgouqueasuaamadelirava,masnãoacontrariou.—Tevecartadeleafidalga?—tornouela,cuidandoqueassimlhealimentavaaqueleinstantede

febrilcontentamento.—Tive...Queresouvir?...Euleio...Eleuacarta,comgrandepasmodeConstança,queseconvenceu.—Agoravamosrezar,sim?...Tunãoésinimigadele,não?Olha,Constança,seeucasarcomele,

tuvaisparaanossacompanhia.Veráscomoésfeliz.Queresir,nãoqueres?—Sim,minhasenhora,vou.Maseleconseguirálivrar-sedamorte?—Livra;tuverásquelivra;opaidelehádelivrá-lo...eaVirgemSantíssimaéquenoshádeunir.

Mas,seeumorro...seeumorro,meuDeus!Ecomasmãosconvulsivamenteenlaçadassobreoseio,Teresaarquejavaempranto.—Seeunãotenhojáforças!...Todosdizemqueeumorro,eomédicojánemmereceita!...Então

melhormeforateracabadoantesdestahora!Morrercomesperanças,óMãedeDeus!EajoelhouanteoretábulodevotoquetrouxeradoseuquartodeViseu,aoqualsuamãeeavójá

tinhamorado,eemcujorostocompassivoosolhosdasduassenhorasmoribundastinhamapagadoosseusúltimosraiosdeluz.

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CapítuloXIV

Anunciara-se Tadeu de Albuquerque na portaria deMonchique, ao dia seguinte dos anterioressucessos.Suaprima,primeirasenhoraquelhesaiuaolocutório,vinhaenxugandoaslágrimasdealegria.—Nãocuidequeeuchorodeaflita,meuprimo—disseela.—Onossoanjo,seDeusquiser,pode

salvar-se.Logodemanhãavipassearporseupénosdormitórios.Quediferençadesemblanteelatemhoje!Isto,meuprimo,émilagrededuassantasquetemosinteirasnaclausura,ecomasquaisalgumasperfeitas criaturasdesta casa seapegaram.Seasmelhoras continuaremassim, temosaTeresa;océuconsentequeestejaentrenósaqueleanjomaisalgunsanos...—Muitofolgocomoquemediz,minhaboaprima—atalhouofidalgo.—Aminharesoluçãoé

levá-lajáparaViseu,eláserestabelecerácomosarespátrios,quesãomuitomaissadiosqueosdoPorto.—Éaindacedoparatãolongaecustosajornada,meuprimo.Nãováosenhorcuidarqueelaestá

capazdesemeteraocaminho.Lembre-sequeaindaontempensamosemencontrá-lahojemorta.Deixe-aestarmaisalgunsmeses;edepoisnãodigoquenãoleve;mas,porenquanto,nãoconsintosemelhanteimprudência.—Maiorimprudência—replicouovelho—éconservá-lanoPorto,onde,aestashoras,deveestar

o malvado matador de meu sobrinho. Talvez não saiba a prima?... Pois é verdade: o patife docorregedor saiu a campo em defesa dele, e conseguiu que o tribunal da Relação lhe aceitasse aapelação da sentença, passado o prazo da lei; e, não contente com isto, fez que o filho fosseremovidoparaascadeiasdoPorto.Euagoratrabalhoparaqueasentençasejaconfirmada,eesperoconsegui-lo;mas,enquantooassassinoaquiestiver,nãoqueroqueminhafilhaestejanoPorto.—Oprimoépai,eeusouapenasumaparenta—disseaabadessa.—Cumpra-seasuavontade.

Querveramenina,nãoéassim?—Quero,seépossível.—Poisbem,enquantoeuvouchamá-la,queiraentrarnaprimeiragradeàsuamãodireita,que

Teresalávaiter.AvisadaTeresadequeseupaiaesperava,instantaneamenteacorsadiaquealegravaassenhoras

religiosassedemudouna lividezcostumada.Quisa tia, vendo-aassim,queelanãosaíssedoseuquarto,eencarregava-sedeespaçaravisitadopai.—Temdeser—disseTeresa.—Euvou,minhatia.O pai, ao vê-la, estremeceu e enfiou.Esperavamudança,mas não tamanha. Pensou que a não

conheceriasemopreveniremdequeiaversuafilha.—Comoeuteencontro,Teresa!—exclamouele,comovido.—Porquemenãodissestehámais

tempooteuestado?Teresasorriu-se,edisse:—Eunãoestoutãomalcomoasminhasamigasimaginam.—TerástuforçasparaircomigoparaViseu?—Não,meu pai; não tenhomesmo forças para lhe dizer empoucas palavras que não torno a

Viseu.—Porquenão,seatuasaúdedependerdisso?!...—Aminhasaúdedependedocontrário.Aquivivereioumorrerei.—Nãoétantoassim,Teresa—replicouTadeucomdissimuladabrandura.—Seeuentenderque

estesaressãonocivosàtuasaúde,hásdeir,porqueéobrigaçãominhaconduzirecorrigiratuamásina.—Estácorrigida,meupai.Amorteemendatodososerrosdavida.—Bemsei;maseuquero-teviva,e,portanto,recobra forçasparaocaminho.Logoquetiveres

meiodiadejornada,veráscomoasaúdevoltacomopormilagre.—Nãovou,meupai.—Nãovais?!—exclamou,irritado,ovelho,lançandoàsgradesasmãostrementesdeira.—Separam-nosessesferrosaquemeupaiseencosta,eparasemprenosseparam.—Easleis?Cuidastuqueeunãotenhodireitoslegítimosparateobrigarasairdoconvento?Não

sabesquetensapenasdezoitoanos?—Seiquetenhodezoitoanos;asleisnãoseiquaissão,nemmeincomodaaminhaignorância.Se

podeserquemãoviolentavenhaarrancar-medaqui,convença-se,meupai,dequeessamãohádeencontrarumcadáver.Depois...oquequiseremdemim.Enquanto,porém,eupuderdizerquenãovou,juro-lhequenãovou,meupai.—Seioqueé!—bramiuovelho.—JásabesqueoassassinoestánoPorto?—Sei,sim,senhor.—Aindaodizessemvergonha,nemhorrordetimesma!Ainda...—Meupai—interrompeuTeresa—,nãopossocontinuaraouvi-lo,porquemesintomal.Dê-me

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licença...evingue-secomopuder.Aminhaglórianestelongomartírioseriaumaforcalevantadaaoladodadoassassino.Teresasaiudagrade,deualgunspassosnadireçãodasuacela,eencostou-seesvaídaàparede.

Correramaampará-lasuatiaeacriada,masela,afastando-assuavementedesi,murmurou:—Nãoépreciso...Estouboa...Essesgolpesdãovida,minhatia.Ecaminhousozinhaapassosvacilantes.Tadeubatiaàportadomosteiro com irrisórioenfurecimentopancadas,umasapósoutras, com

grandemedodaporteiraeoutrasmadres,espantadasdoinsólitodespropósito.—Queéisso,primo?—disseaprelada,comseveridade.—QuerocáforaTeresa.—Comofora?Quemhádelançá-lafora?!—Asenhora,quenãopodeaquireterumafilhacontraavontadedeseupai.—Issoassimé;mastenhaprudência,primo.—Nãoháprudêncianemmeiaprudência.Querominhafilhacáfora.—Poiselanãoquerir?—Não,senhora.— Então espere que por bonsmodos a convençamos a sair, porque não havemos trazer-lha a

rastos.—Euvoubuscá-la,sendopreciso—redarguiuemcrescentefúria.—Abram-meestasportas,que

euatrarei!—Estasportasnãoseabremassim,meuprimo,semlicençasuperior.Aregradomosteironão

pode ser quebrantada para servir uma paixão desordenada. Tranquilize-se, senhor! Vá descansardessefrenesi,evenhanoutrahoracombinarcomigooquefordignodetodosnós.—Tenhoentendido!—exclamouovelho,gesticulandocontraoralodo locutório.—Conspiram

todas contra mim! Ora descansem, que eu lhes darei uma boa lição. Fique a senhora abadessasabendoqueeunãoqueroqueminhafilharecebamaiscartasdomatador,percebeu?—EucreioqueTeresanuncarecebeucartasdematadores,nemsuponhoqueasrecebadeora

emdiante.—Nãoseisesabe,nemsenão.Euvigiareioconvento.Acriada,queestácomela,ponham-na

fora,percebeu?—Porquê?—redarguiuapreladacomenfado.—Porqueaencarregueidemeavisardetudo,eelanadametemcontado.—Senãotinhaquelhedizer,senhor!—Nãomecontehistórias,prima!Acriadaquerovê-lasairdoconvento,ejá!—Eunãolhepossofazeravontade,porquenãofaçoinjustiças.Sevossasenhoriaquiserquea

suafilhatenhaoutracriada,mande-lha:masaqueelatem, logoquedeixedeaservir,hámuitassenhorasnestacasaqueadesejam,eelamesmadesejaaquificar.—Tenhoentendido—bradouele.—Queremmematar!Poisnãomatam;primeirohádeodiabo

darumestouro!TadeudeAlbuquerquesaiuemcorcovosdoátriodomosteiro.Erahediondaaquelaraivaquelhe

contraíaasfacesencorreadas,revendosuoresangueaosolhosacovados.Apresentou-se ao intendente da polícia, pedindo providências para que se lhe entregasse sua

filha.Ointendenterespondeuqueelenãosolicitavacompetentementetaisprovidências.Instouparaqueo carcereirodacadeianãodeixasse sair algumacartadeumassassinovindodacomarcadeViseu, por nome Simão Botelho. O intendente disse que não podia, semmotivos concernentes adevassas,obstaraqueopresoescrevesseaquemquerquefosse.Reduplicada a fúria, foi dali ao corregedor do Porto, com os mesmos requerimentos, em tom

arrogante.Ocorregedor,particularamigodeDomingosBotelho,despediucomenfadooimportuno,dizendo-lhequeavelhicesemjuízoeracoisatãoderisocomodelástima.Esteveentãoapiquedeperder-seacabeçadeTadeudeAlbuquerque.AndavaedesandavaasruasdoPorto,sematinarcomuma saída digna da sua prosápia e vingança. No dia seguinte, bateu à porta de algunsdesembargadores, e achava-os mais inclinados à demência que à justiça a respeito de SimãoBotelho. Um deles, amigo de infância de D. Rita Preciosa, e implorado por ela, falou assim aosanhudofidalgo:—Empoucoestáoserhomicida,senhorAlbuquerque.Quantasmortesteriavossasenhoriahoje

feito se alguns adversários se opusessem à sua cólera? Esse infelizmoço, contra quem o senhorsolicitadesvairadasviolências,conservaahonranaalturadasuaimensadesgraça.Abandonou-oopai, deixando-o condenar à forca; e ele da sua extrema degradação nunca fez sair um gritosuplicantedemisericórdia.Umestranholheesmolouasubsistênciadeoitomesesdecárcere,eeleaceitouaesmola,queerahonraparasieparaquemlhadava.Hoje,fuieuveressedesgraçadofilhodeumasenhoraqueeuconhecinopaço,sentadaaoladodosreis.Achei-ovestidodebaetãoepanopedrês.Perguntei-lheseassimestavadesprovidodefato.Respondeu-mequesevestiraàproporçãodosseusmeios,equedeviaàcaridadedumferradoraquelascalçasejaqueta.Repliquei-lheeuque

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escrevesseaseupaiparaovestirdecentemente.Disse-mequenãopedianadaaquemconsentiuqueosdelitosdoseucoraçãoedasuadignidadeedopundonordoseunomefossemexpiadosnumpatíbulo.Hágrandezanestehomemdedezoitoanos,senhorAlbuquerque.SevossasenhoriativesseconsentidoquesuafilhaamasseSimãoBotelhoCasteloBranco,teriapoupadoavidaaohomemsemhonraqueselheatravessoucominsultoseofensascorporaisdetalafronta,quedesonradoficariaSimãoseasnãorepelissecomohomemdealmaebrios.Sevossasenhoriasenãotivesseopostoàshonestíssimaseinocentesafeiçõesdesuafilha,ajustiçanãoteriamandadoarvorarumaforca,nemavidadeseusobrinhoteriasidoimoladaaosseuscaprichosdemaupai.E,sesuafilhacasassecomofilhodocorregedordeViseu,pensaacasovossasenhoriaqueosseusbrasõessofriamdesdouro?NãoseidequeséculodataanobrezadosenhorTadeudeAlbuquerque,masdobrasãodeD.RitaTeresaMargarida PreciosaCaldeirãoCastelo Branco posso dar-lhe informações sobre as páginasdas mais verídicas e ilustres genealogias do reino. Por parte de seu pai, Simão Botelho tem domelhor sangue de Trás-os-Montes, e não se temerá de entrar em competências com o dosAlbuquerques de Viseu, que não é de certo o dos Albuquerques terríveis de que reza Luís deCamões...Ofendidoatéaoâmagopeladerradeira ironia,Tadeuergueu-sede ímpeto, tomouochapéuea

enormebengaladecastãodeouroefezacortesiadedespedida.— São amargas as verdades, não é assim? — disse-lhe, sorrindo, o desembargador Mourão

Mosqueira.—Vossaexcelêncialásabeoquediz,eeucáseinoqueheideficar—respondeucomtomirônico

ofidalgo,alanceadonasuahonraenadosseusquinzeavós.Odesembargadorretorquiu:—Fiquenoquequiser;masvánacerteza,seissolheservedealgumacoisa,queSimãoBotelho

nãovaiàforca.—Veremos...—resmoneouovelho.

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CapítuloXV

Sãotrezediasdecorridosdomêsdemarçode1805.Está Simão numquarto demalta das cadeias daRelação.Um catre de tábuas, um colchão de

embarque, uma banca e cadeira de pinho e um pequeno pacote de roupa, colocado no lugar dotravesseiro,sãoasuamobília.Sobreamesatemumcaixotedepaupreto,quecontémascartasdeTeresa, ramalhetes secos, os seus manuscritos do cárcere de Viseu e um avental deMariana, oúltimo com que ela, no dia do julgamento, enxugara as lágrimas e arrancara de si no primeiroinstantededemência.SimãorelêascartasdeTeresa,abreosenvoltóriosdepapelqueencerramasfloresressequidas,

contemplaoaventaldelinho,procurandoesvaídosvestígiosdaslágrimas.Depois,encostaafaceeopeitoaosferrosdasuajanela,eavistaoshorizontesboleadospelaserrasdeValongoeGralheira,ecortadospelasribaspitorescasdeGaia,doCandal,deOliveiraedomosteirodaSerradoPilar.Umdia lindo.Refletem-sedo azul do céu osmilmatizes daprimavera. Temaromas o ar, e a viraçãofugitivadosjardinsderramanoéterasurnasqueroubouaoscanteiros.Aquelaindefinidaalegria,queparecereluzirnas legiõesdeespíritoquesegeramaosoldemarço,rejubilaanaturezaque,todapompadeluzeflores,seestánamorandodocalorqueavaifecundando.DiadeamoredeesperançaseraaquelequeoSenhormandavaàchoçaencravadanagarganta

da serra, ao palácio esplendoroso que reverberava ao sol os seus espiráculos, ao opulento quepasseava as suas moles equipagens, bafejado pelo respiro acre das sarças, e ao mendigo quedesentorpeciaosmembrosencostadoàscolunasdostemplos.ESimãoBotelho,fugindoaclaridadedaluz,eovoejardasaves,meditando,choravaeescrevia

assimassuasmeditações:Opãodotrabalhodecadadiaeoteuseiopararepousarumahoraaface,purademanchas:não

pedimaisaocéu.Achei-mehomemaosdezesseisanos.Viavirtudeàluzdoteuamor.Cuideiqueerasantaapaixão

queabsorviatodasasoutras,ouasdepuravacomoseufogosagrado.Nuncaosmeuspensamentos foramdenegridosporumdesejoqueeunãopossaconfessaralto

diantede todoomundo.Diz tu, Teresa, se osmeus lábiosprofanaramapurezade teus ouvidos.PerguntaaDeusquandoquiseufazerdomeuamoroteuopróbrio.Nunca,Teresa!Nunca,ómundoquemecondenas!Se teu pai quisesse que eume arrastasse a seus pés para temerecer, beijar-lhos-ia. Se tume

mandassesmorrerparatenãoprivardeserfelizcomoutrohomem,morreria,Teresa!Mas tu eras sozinhae infeliz, e eu cuidei queo teualgoznãodevia sobreviver-te.Eis-meaqui

homicida,esemremorsos.Ainsâniadocrimeaturdeaconsciência;nãoaminha,quesenãotemiadas escadas da forca, nos dias em que o meu despertar era sempre o estrebuchamento dasufocação.Euesperavaacadahoraochamamentoparaooratório,ediziacomigo:falareiaJesusCristo.Sempavor,premeditavanassetentahorasdessaagoniamoral,eanteviaconsolaçõesqueocrime

nãoousaesperarseminjúriadajustiçadeDeus.Maschoravaporti,Teresa!Otravordomeucálixtinhasobreaamarguraasmilamargurasdas

tuaslágrimas.Gemias aos meus ouvidos, mártir! Ver-me-ias sacudindo nas convulsões da morte, em teus

delírios.Amesmamortetemhorrordasupremadesgraça.Tardemorrerias.Aminha imagem,emvez de te acenar com a palma de martírios, te seria um fantasma levantado das tábuas dumcadafalso.Quemorteatua,óminhasantaamiga!Eprosseguiuatéaomomentoemque JoãodaCruz,comordemdo intendente-geraldapolícia,

entrounoquarto.—Aqui!—exclamouSimão,abraçando-o.—EMariana?Deixou-asozinha?!Morta,talvez!—Nemsozinha,nemmorta,fidalgo!Odiabonemsempreestáatrásdaporta...Marianavoltouao

seujuízo.—Falaverdade,senhorJoão?—Puderamentir!...Aquilofoicoisadebruxaria,enquantoamim...Sangrias,sedenhos,águafria

nacabeça,eexorcismosdomissionário,nãolhedigonada,araparigaestáescorreita,e,assimquetiverumtodo-nadadeforças,bota-seaocaminho.—BenditosejaDeus!—exclamouSimão.—Amém—acrescentouoferrador.—Entãoquearranjoéestedecasa?Quebrecadetarimbaé

esta?!Quer-seaquiumacamadegente,ealgumacoisaemqueumcristãosepossasentar.—Istoassimestáexcelente.

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—Bemvejo...Edebarriga?Comovamosnósdetrincadeira?—Aindatenhodinheiro,meuamigo.—Hádetermuito,nãotemdúvida;maseutenhomais,evossasenhoriatemordemfranca.Veja

láessepapel.SimãoleuumacartadeD.RitaPreciosa,escritaaoferrador,emqueoautorizavaasocorrerseu

filho com as necessárias despesas, prontificando-se a pagar todas as ordens que lhe fossemapresentadascomasuaassinatura.—Éjusto—disseSimão,restituindoacarta—porqueeudevoterumalegítima.—Entãojávêquenãotemmaisdoquepedirporboca.Euvoucomprar-lhearranjos...—Abra-meoseunobrecoraçãoparaoutroserviçomaisvalioso—atalhouopreso.—Digalá,fidalgo.Simãopediu-lheaentregadeumacartaemMonchiqueaTeresadeAlbuquerque.—Oberzabumparece-mequeasarma!—disseoferrador.—Venhadeláacarta.Opaidelaestá

cá.Jásabia?—Não.—Poisestá;e,seodiabootrazàminhabeira,nãoseiselhedareicomacabeçanumaesquina.Já

me lembroudeoesperarnocaminhoependurá-lopelogasnetenogalhodumsobreiro...Acartatemresposta?—Selhaderem,meubomamigo.Chegou o ferrador aMonchique, a tempo que um oficial da justiça, dois médicos e Tadeu de

Albuquerqueentravamnopátiodoconvento.Falou o aguazil à prelada, exigindo em nome do juiz de fora que dois médicos entrassem no

conventoaexaminaradoenteD.TeresaClementinadeAlbuquerque,arequerimentodeseupai.Perguntouapreladaaosmédicosseelestinhamanecessárialicençaeclesiásticaparaentrarem

emMonchique.Àrespostanegativaredarguiuaabadessaqueasportasdoconventonãoseabriam.DisseramosmédicosdeTadeudeAlbuquerquequeeraaqueleoestilodosmosteiros,enãohouvequeredarguiràrigorosaprelada.Saíram,eoferradorsóentãorefletiunomododeentregaracarta.Aprimeiraideiapareceu-lhea

melhor.Chegouaoralo,edisse:—Ósenhorafreira!—Quequervossemecê?—disseaprelada.—A senhora faz favor de dizer à senhoraD. Teresinha de Viseu, que está aqui o pai daquela

raparigadaaldeiaqueelasabe?—Equemévossemecê?—Souopaidatalraparigaqueelasabe.—Jásei!—exclamoudedentroavozdeTeresa,correndoaolocutório.Apreladaretirou-seaumlado,edisse:—Vêláoquefazes,minhafilha...—Asuafilhaescreveu-me?—disseTeresaaoJoãodaCruz.—Sim,senhora,aquiestáacarta.Edepositounarodaacartaemqueaabadessareparou,edisse,sorrindo:—Muitoengenhosoéoamor,Teresinha...PermitaDeusqueasnotíciasdaraparigadaaldeiate

alegremocoração;masolha,filhinha,nãocuidesqueatuavelhatiaémenosespertaqueopaidaraparigadaaldeia.Teresa respondeu com beijos às jovialidades carinhosas da santa senhora, e sumiu-se a ler a

carta,earesponder-lhe.Entregandoaresposta,disseelaaoferrador:—Nãovêaísentadanaquelaescadinhaumapobre?—Vejo,sim,senhora,econheço-a.Comodiaboveioparaaquiestamulher?Cuidequedepoisda

esfregaquelhedeuohortelão,apobrezinhanãotinhapernasqueacátrouxessem!Amulherpelosmodostemfibrasdaquelacasta!—Falebaixo—tornouTeresa.—Poisolhe...quandotrouxerascartas,entregue-lhasaela,sim?

Eujáamandeiàcadeia;masnãoadeixaramláentrar.—Bemestá,eoarranjonãoémauassim.FiquecomDeus,menina.Estaboa-novaalegrouSimão.Aprovidênciadivinaapiedara-sedelenaqueledia.Orestaurar-seo

juízodeMarianaeapossibilidadedecorresponder-secomTeresaeramasmáximasalegriasquepodiambaixardocéuaoseucerradoinfortúnio.Exaltara-seSimãoemgraçasaDeus,napresençadeJoãodaCruz,quearrumava,noquarto,uns

móveisquecompraraemsegundamão,quandoeste,suspendendootrabalho,exclamou:—Entãovou-lhedizeroutracoisa,quenãotinhatençãodelhedizer,paraoapanhardesúpeto.—Queé?—AminhaMarianaveiocomigo,eficounaestalagem,porquenãosepodiabulircomdores;mas

amanhãelacáestáparalhefazeracozinhaevarreracasa.Simão, reconcentrando o indefinível sentimento que esta notícia lhe causara, disse com

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melancólicapausa:—É,pois,certoqueaminhamáestreiaarrastaasuadesgraçadafilhaatodososmeusabismos!

Pobreanjodecaridade,quedignatuésdocéu!— Que está o senhor aí a pregar? — interrompeu o ferrador. — Parece que ficou a modo de

tristonhocomanotícia!...—SenhorJoão—tornousolenementeopreso—,nãodeixeaquiasuaqueridafilha.Deixe-maver,

traga-aconsigoumavezaestacasa;masnãoadeixecá,porqueeunãopossotolherodestinodeMariana. Como há de ela viver no Porto, sozinha, sem conhecer ninguém, bela como ela é, eperseguidacomotemdeser?!—Perseguida!Tócarocha!Nãoqueelaémesmodeselhedarqueapersigam!...Quevãoparalá,

masquedeixemasventasemcasa.Meuamigo,asmulheressãocomoasperasverdes:umhomemapalpa-as,e,seodedoachaduro,deixa-as,enãoascome.Écomoé.Araparigasaiàmãe.Minhamulher,queDeushaja,quandoeulheandavarentando,dei-lheumdiaumbeliscãonumaperna.Evai ela põe-se direita comigo, e deu-me dois cascudos nas trombas, que ainda agora os sinto. AMariana!... Aquilo é da pele de Satanás! Pergunte o senhor, se algum dia falar com aquelefidalguinhoMendes,deViseu,atroçadaqueele levoucomasrédeasdaégua,sóporlhebulirnachinelaquandoelaestavaemcimadaburra!Simãosorriuaorasgadopanegíricodabravuradamoça,eorgulhou-sesecretamentedosbrandos

afagoscomqueelaodesvelaraemoitomesesdequasecontinuadaconvivência.—Evossemecêhádeprivar-sedacompanhiadesuafilha?—insistiuopreso.—Eulámearranjareicomopuder.Tenhoumacunhadavelha,elevo-aparamimparamearranjar

ocaldo.Evossasenhoriapoucotempoaquiestará...Osenhorcorregedorláandaatratardeopôrnarua,equeosenhorsai,cáparamimsãofavascontadas.Eassimcom’assim,viudizer-lhetudodumafeita:arapariga,seeuanãodeixassevirparaoPorto,davaumestourocomoumacastanha.Olhequeeunãosou tolo, fidalgo.Queela tempaixãod’almaporvossasenhoria, istoé tãocertocomoeuserJoão.Éasuasina;queheideeufazer-lhe?Deixá-la,quepelosenhorSimãonãolhehádevirmal,ouentãojánãoháhonranestemundo.Simãolançou-seaosbraçosdoferrador,exclamando:—Pudesseeuseromaridodesuafilha,meunobreamigo!—Qualmarido!...—disseoferradorcomosolhosvidradosdasprimeiraslágrimasqueSimãolhe

vira.—Eununcamelembreidisso,nemela!...Euseiquesouumferrador,eelasabequepodesersuacriada,emaisnada,senhorSimão;mas...sabequemais?Eudesejoqueosmeusamigossejamdesgraçadoscomohaviadeserosenhorsecasassecomapobrerapariga!Nãofalemosnisto,queeupormilagrechoro;mas,quandopegoachorar,souumchafariz...Vamosaoarranjo:amesadeveaquificar;acômodaali;duascadeirasdestelado,eduasdaquele.Abarraacolá.Obaúdebaixodacama.Abaciaeabilhadaáguasobreestacoisa,quenãoseicomosechama.Oslençóiseomaisbragaltem-nosláarapariga.Amanhãéqueoquartohádeficarquenemumacapela.OlhequeaMariana jáme disse que comprasse duas aquelas... Como se chamam aquelas envasilhas de pôrramos?—Jarras.—Écomodiz,duas jarraspara flores;maseunãoseiondesevende isso.Agoravoubuscaro

jantar,queamoçahádecuidarquemenãodeixamsairdacadeia.Aindalhenãodissequenãomedeixaramcáentrarontemàtarde;maseu,comotrouxeumacartinhadesuamãeparaumsenhordesembargador, fui onde a ele, e hoje de manhã já lá tinha na estalagem a ordem do senhorintendente-geraldapolícia.Atélogo.

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CapítuloXVI

Um incidente agora me ocorre, não muito concertado com o seguimento da história, mas apropósitovindoparademonstrarumafacedaíndoledoex-corregedordeViseu,jáentãoexoneradodocargo.Sabido é queManuel Botelho, o primogênito, voltando a frequentarmatemáticas emCoimbra,

fugira dali para Espanha com uma dama desleal a seu marido, estudante açoriano que cursavamedicina.UmanodemoraranaCorunhaManuelBotelhocomafugitiva,alimentando-sedosrecursosque

suamãe, extremosapor ele, lhe remetia, vendendoapouco epouco as suas joias, e privandoasfilhasdosadornosprópriosdosanosedaqualidade.Secaram-se estas fontes, e não restavam outras. D. Rita disse afinal ao filho que deixara de

socorrerSimãopornãotermeios;eagoradasescassaseconomiasquefazianadapodiaenviar-lheporqueestavaemobrigaçãodepagarosalimentosdeSimãoàpessoaqueporcompaixãolhosderaemViseu,elhosestavadandonoPorto.Ajuntavaela,paraconsolaçãodofilho,queviesseeleparaVilaReal,e trouxesseconsigoa infelizsenhora;que fosseeleparacasa,eadeixasseaelanumaestalagem até se lhe arranjar habitação; que o ensejo era oportuno por estar na quinta deMontezelosopai,quasedivorciadodafamília.VoltoupeloMinhoManuelBotelho,echegoucomadamaaoPorto,quinzediasdepoisqueSimão

entraranocárcere.Já noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram, nem estimaram; mas o

infortúniodeSimãoremiaasculpasdogêniofatalqueoorfanaradepaiemãe,esódairmãRitalhedeixaraumalembrançasaudosa.FoiManuelàcadeia,e,abrindoosbraçosaoirmão,teveumglacialacolhimento.Perguntou-lheManuelahistóriadoseudesastre.—Constadoprocesso—respondeuSimão.—Etemesperançasdeliberdade?—replicouManuel.—Nãopensonisso.— Eu pouco posso oferecer-lhe, porque vou para casa forçado pela falta de recursos;mas, se

precisaderoupa,repartireiconsigodaminha.—Nãoprecisonada.Esmolassóasrecebodaquelamulher.JáManueltinhareparadoemMariana,edabelezadamoçainferiraconclusõesparaformarfalsos

juízos.—Equeméestamenina?—tornouManuel.—Éumanjo...Nãolheseidizermaisnada.Marianasorriu-se,edisse:—SouumacriadadosenhorSimãoedevossasenhoria.—ÉcádoPorto?—Não,meusenhor,soudosarrabaldesdeViseu.—Etemfeitosemprecompanhiaameumano?SimãoatalhouassimàrespostabalbuciantedeMariana:—Asuacuriosidadeincomoda-me,manoManuel.—Cuideiquenãoeraofensiva—replicouooutro,tomandoochapéu.—Queralgumacoisapara

amãe?—Nada.EstandoManuel Botelho, na tarde desse dia, fechando asmalas para seguir jornada para Vila

Real,foivisitadopelodesembargadorMourãoMosqueiraepelocorregedordocrime.—Devemosàespionagemdapolícia—disseocorregedor—anovidadedeestarnestaestalagem

umfilhodomeuantigoamigo,condiscípuloecolegaDomingosCorreiaBotelho.Aquivimosdar-lheum abraço e oferecer o nosso préstimo. Esta senhora é sua esposa?— continuou omagistrado,reparandonaaçoriana.—Nãoéminhaesposa...—balbuciouManuel—é...minhairmã.—Sua irmã...—disseMosqueira—qualdastrês?HácincoanosqueasviemViseu,egrande

mudançafezestasenhora,quenãomerecordodassuasfeiçõesabsolutamentecoisanenhuma.ÉasenhoraD.AnaAmália?—Justamente—disseManuel.—Belalheafirmoeuqueestá,minhasenhora;masfez-seumrostomuitooutrodoqueera!...—VieramveroinfelizSimão?—atalhouocorregedor.—Sim,senhor...viemosvermeupobreirmão.—Foiumraioquecaiuna famíliaaquele rapaz!...—ajuntouMosqueira.—Maspodeestarna

certezaqueasentençanãoseexecuta;digaasuamãequemoouviudaminhaboca.OmeutribunalestápreparandoparalheminorarapenaemdezanosdedegredoparaaÍndia,eseupai,segundo

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medissenapassagemparaVilaReal,jápreparouascoisasnasuplicaçãoenodesembargodopaço,não obstante o morto ter lá parentes poderosos nas duas instâncias. Quiséramos absolvê-lo erestituí-loàsuafamília;mastantoéimpossível.Simãomatou,econfessasoberbamentequematou.Não consentemesmoque sedigaqueemdefesao fez.Éumdoidodesgraçado comsentimentosnobilíssimos!ChovemcartasdeempenhoafavordoAlbuquerque.Pedemacabeçadopobrerapazcomumasem-cerimôniaqueindignaoânimo.—Eessameninaquefoiacausadadesgraça?—perguntouManuel.— Issoéumaheroína!— respondeuocorregedordocrime.—Davam-na jápormortaquando

Simãochegouaqui.Desdequesoubedasprobabilidadesdacomutaçãodapena,deuumpontapénamorte,eestásalva,segundomedisseomédico.— Conhece-amuito bem,minha senhora?— disse o desembargador à dama, suposta irmã de

Manuel.—Muitobem—respondeuela,relanceandoosolhosaoamante.—Dizemqueéformosíssima!—Decerto—acudiuManuel—éformosíssima!—Muitobem—disse o corregedor, erguendo-se.—Leve este abraço aopai, e diga-lhequeo

condiscípulocáestálealededicadocomosempre.Eutenhodelheescreverbrevemente.—Eoutroabraçoasuavirtuosamãe—acrescentouodesembargador.—Voudesconfiado!—disseoMosqueiraaocolega.—ManuelBotelhotinha,hácoisadeumano,

fugidoparaEspanhacomumasenhoracasada.Aquelamulherquevimosnãoéirmãdele.—Pois,senosmentiu,épatife,pornosobrigaracortejarumaconcubina!...Eumeinformarei...

—disseocorregedor,ofendidonoseuausteropundonor.Enopróximocorreio, escrevendoaDomingosBotelho,dizianoperíodo final: “Tiveogostode

conhecerteufilhoManueleumadetuasfilhas;poreletemandeiumabraço,eporelatemandariaoutro,sefossemodaensinaremvelhosameninasbonitascomosedãoosabraçosnospais”.EstavajáManuelemcasa,ecuidavaemtrajarumamodestacasaparaaaçoriana,auxiliadopor

suabondosaeindulgentemãe.DomingosBotelhoforainformadodavinda,edisseraquenãoqueriaverofilho,avisando-odequeeraconsideradodesertordecavalariaseisdesdequeabandonaraosestudos,ondeestavacomlicença.Recebeudepoisacartadocorregedordocrime,emandouimediataesecretamentedevassarse

emVilaRealestavaasenhoraqueindicavaacarta.Aespionagemdeu-acomocertanaestalagem,enquantoManuelBotelhocuidavanosadornosdeumacasa.Escreveuomagistradoaojuizdefora,e este mandou chamar à sua presença a mulher suspeita, e ouviu dela a sua história sincera elacrimosamente contada.Condoeu-se o juiz, e revelou ao colega as suas averiguações.DomingosBotelho foi a Vila Real, e hospedou-se em casa do juiz de fora, onde a senhora foi novamentechamada,sendoqueaomesmotempoogeneraldaprovíncialavravaordemdeprisãoparaocadetedesertordecavalariadeBragança.A açoriana, em vez do juiz, encontrou um feio homem, de carrancuda sombra, e aparência de

intençõessinistras.—EusoupaideManuel—disseDomingosBotelho.—Seiahistóriadasenhora.Oinfameéele.

Vossa senhoria é a vítima. O castigo da senhora principiou desde o momento em que a suaconsciêncialhedissequepraticouumaaçãoindigna.Seaconsciêncialhonãodisseainda,elalhodirá.Dondeé?—DailhadoFaial—respondeutrêmulaadama.—Temfamília?—Tenhomãeeirmãs.—Suamãeaceitá-la-ia,seasenhoralhepedisseabrigo?—Creioquesim.—SabequeManueléumdesertor,queaestashorasestápresooufugitivo?—Nãosabia...—Queristodizerqueasenhoranãotemproteçãodealguém...Apobremulhersoluçava,abafadaporânsias,edebulhadaemlágrimas.—Porquenãovaiparasuamãe?—Nãotenhorecursosalguns—respondeuela.—Querpartirhojemesmo?Àportadaestalagem,daquiapouco,encontraráumaliteiraeuma

criada para acompanhá-la até ao Porto. Lá entregará uma carta. A pessoa a quem escrevo lhecuidarádapassagemparaLisboa.EmLisboaoutrapessoaalevaráabordodaprimeiraembarcaçãoquesairparaosAçores.Estamoscombinados?Aceita?— E beijo as mãos de vossa senhoria... Uma desgraçada como eu não podia esperar tanta

caridade.Poucashorasdepois,aesposadomédico...—Quetinhamorridodepaixãoevergonhatalvez!—exclamaumaleitorasensível.—Não,minhasenhora;oestudantecontinuavanesseanoafrequentaraUniversidade;e,como

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tinhajávastainstruçãoempatologia,poupou-seàmortedavergonha,queéumamorteinventadapeloviscondedeA.GarrettnoFreiLuizdeSousa,eàmortedapaixão,queéoutramorteinventadapelosnamoradosnascartasdespeitosas,equenãopeganosmaridosaquemoséculodotoudeunslonges de filosofia, filosofia grega e romana, porque bem sabem que os filósofos da Antiguidadedavampormimoasmulheresaosseusamigos,quandoosseusamigosporfavorlhasnãotiravam.Eestafilosofiahojeentão...Poisomédiconãomorreu,nemsequerdesmedrou,ou levouR significativodepreocupaçãodo

ânimo,insensívelàsamenidadesdaterapêutica.Aesposa,inquestionavelmentemuitomaisalquebradaevaletudináriaqueseuesposo,lavadaem

pranto,mortadesaudades,semfuturo,semesperanças,semvozhumanaqueaconsolasse,entrounaliteira,echegouaoPorto,ondeprocurouocorregedordocrimeparaentregar-lheumacartadodoutorDomingosBotelho.Umperíododestacartadiziaassim:Deste-meanotíciadumafilhaqueeunãoconhecia,nemconheço.Amãedestasenhoraestáno

Faial,paraondeelavai.Cuidatu,oumandacuidarnoseutransporteparaLisboa,eencarregaalialguémdecorrercomapassagemdelaparaosAçoresnoprimeironavio.Amimmedaráscontadasdespesas. Meu filho Manuel teve ao menos a virtude de não matar ninguém para se constituiramante. Domodo como correm os tempos, muito virtuoso é o rapaz que nãomata omarido damulherqueama.Vêseconseguesdogeneral,queestáaí,perdãoparaorapaz,queédesertordacavalariaseis,emeconstaqueestáescondidoemcasadumparente.EnquantoaSimão,creioquenãoépossívelsalvá-lododegredotemporário...ÉumalançaemÁfricalivrá-lodaforca.EmLisboamovem-se grandes potências contra o desgraçado, e eu estou malvisto do intendente-geral porabandonarolugar...etc.PartiuparaLisboaaaçoriana,edaliparaasuaterra,eparaoabrigodesuamãe,queajulgara

morta,elhedeuanosdevida,senãoditosa,sossegadaedesiludidadequimeras.Manuel Botelho, obtido o perdão pela preponderância do corregedor do crime, mudou de

regimentoparaLisboa,eaípermaneceuatéque,falecidoseupai,pediuabaixaevoltouàprovíncia.

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CapítuloXVII

JoãodaCruz,nodia4deagostode1805,sentou-seàmesacomtristeaspectoenenhumapetitedoalmoço.—Nãocomes,João?—disse-lheacunhada.—Nãopassadaquiobocado—respondeuele,pondoodedonosgorgomilos.—Quetenstu?—Tenhosaudadesdarapariga...Davaagora tudoquanto tenhoparaaveraquiaopédemim,

comaquelesolhosquepareciamirdireitoaosdesgostosqueumhomemtemnoseu interior.Malhajam as desgraças da minha vida, que ma fizeram perder. Deus sabe se para pouco, se parasempre!...Seeunãotivessedadootironoalmocreve,nãovinhaaficaremobrigaçãoaocorregedor,enãosemedavaqueofilhovivesseoumorresse...—Massetenssaudades—atalhouasenhoraJosefa—mandabuscararapariga,tem-nacáalgum

tempo,etornadepoisparaondeaosenhorSimão.—Issonãoédehomemquepõenavalhanacara,Josefa.Orapaz,seelalhefalta,morredepasmo

dentrodaquelesferros.Istoévenetaquemedeuhoje...Sabesquemais?Leveabrecaodinheiro!AmanhãvouaoPorto.—Poisissoéoquedevesfazer.— Está dito. Quem cá ficar que o ganhe. Vão-se os anéis e fiquem os dedos. Por ora, tem-se

resistidoatudocomomeubraço.Arapariga,seficarcommenos,láseavenha.Assimoquer,assimotenha.Reanimou-se a fisionomia do mestre ferrador, e como que os empeços da garganta se iam

removendoàmedidaqueplanizavaasuaidaaoPorto.Acabaradealmoçar,eficaracismático,encostadoàmesadoescano.—Aindaestásmalucando?!—tornouJosefa.—Parececoisadodemônio,mulher!...Araparigaestarádoenteoumorta?—AnjobentodaSantíssimaTrindade!—exclamouacunhada,erguendoasmãos—Quedizestu,

João?—Estoucápordentronegrocomoaquelasertã!—Issoéflato,homem!Vaitomarar;trabalhaumpoucochinhoparaespaireceres.João da Cruz passou ao coberto onde tinha o armário da ferragem e a bigorna, e começou a

atarracarcravos.Algunsconhecidos tinhampassado,palavreandocomeleconsoantecostumavam,eachavam-no

taciturnoenadaparagraças.—Quetenstu,João?—diziaum.—Nãotenhonada.Vaiàtuavidaedeixa-me,quenãoestouparalérias.Outroparavaedizia:—Guarde-oDeus,senhorJoão.—Eavossemecêtambém.Quenovidadehá?—Nãoseinada.—PoisentãovácomNossaSenhora,queeuestoucádecandeiasàsavessas.O ferrador largavaomartelo;sentava-seaospoucosno tronco,ecoçavaacabeçacomfrenesi.

Depoisrecomeçavanovamente,etãoalheadoofazia,queestragavaocravo,oumartelavaosdedos.

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—Istoécoisadodiabo!—exclamouele;efoiàcozinhaprocurarapichorra,queemborcoucomoqualquerelegantedepaixõesetéreasseaturdecomabsinto.—Heideafogar-te,coisamá,quemeestásapertandoaalma!—continuouoferrador,sacudindoosbraços,ebatendoopénosoalho.Voltouaocobertoatempoqueumviandanteiapassandosobreasuapossantemula.Envolvia-se

ocavaleironumamplocapoteàmodaespanhola,semembargodacalmaquefazia.Viam-se-lheasbotasdecourocru,comesporasamarelasafiveladas,eochapéuderrubadosobreosolhos.—Oraviva!—disseopassageiro.—Viva!— respondeumestre João, relanceando os olhos pelas quatro patas damula, a ver se

tinhaobraemqueentreteroespírito.—Amulaéderópiaechibança!—Nãoémá.VossemecêéqueéosenhorJoãodaCruz?—Paraoservir.—Venhoaquipagar-lheumadívida.—Amim?Osenhornãomedevenada,queeusaiba.—Nãosoueuquedevo;émeupai,eelequemeencarregoudelhepagar.—Equeméseupai?—MeupaieraumrecoveirodeCarção,chamadoBentoMachado.Proferida metade destas palavras, o cavalheiro afastou rapidamente as bandas do capote e

desfechouumbacamartenopeitodoferrador.Oferidorecuou,exclamando:—Mataram-me!...Mariana,nãotevejomais!...Oassassinoteriadadocinquentapassosatodoogalopedaespantadamula,quandoJoãodaCruz,

debruçadosobreobanco,arrancavaoúltimosuspirocomacarapostanochão,dondeapontaraaopeitodoalmocrevedezanosantes.

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Os caminheiros, que perpassaram pelo cavaleiro inadvertidamente, ajuntaram-se em redor docadáver.Josefaacudiuaoestrondodotiro,ejánãoouviuasúltimaspalavrasdeseucunhado.Quistransportá-loparadentroecorrerachamarcirurgião;masumcirurgiãoestavanoajuntamentoedeclaroumortoohomem.—Quemomatou?—exclamavamtrintavozesaumtempo.NessemesmodiavieramjustiçasdeViseulavrarautoedevassar:nenhumindíciolhesdeuofio

do misterioso assassínio. O escrivão dos órfãos inventariou os objetos encontrados, e fechou asportasquandoossinoscorriamoderradeirodobreaocairdalousasobreJoãodaCruz.Deus terá descontado nos instintos sanguinários do teu temperamento a nobreza de tua alma!

Pensandonasincoerênciasdatuaíndole,homemquemeexplicasaprovidência,assombram-meascaprichosasantítesesqueamãodeDeusinfundeemalentosnacriatura.Dormeoteusonoinfinito,senenhumoutrotribunaltecitaaresponderpelasvidasquetiraste,epelousoquefizestedatua.Mas,seháestânciadecastigoedemisericórdia,aslágrimasdetuafilhaterãosido,napresença

doJuizSupremo,osteusmerecimentos.Fez Josefa escrever aMariana, noticiando-lhe amorte de seu pai, mas sobrescritou a carta a

SimãoBotelho,paramaiorsegurança.EstavaMariananoquartodopreso,quandoacarta lhe foientregue.—Nãoconheçoaletra,Mariana...Eaobreiaépreta...Marianaexaminouosobrescrito,eempalideceu.—Euconheçoaletra—disseela—édoJoaquimdaloja.Abra,depressa,senhorSimão...Meupai

morreria?—Quelembrança!Poisnãotevehátrêsdiascartadele?...Enãodissequeestavabom?—Issoquetem?...Vejaquemassina.Simãobuscouaassinatura,edisse:—JosefaMaria!...Éatuatiaquelheescreve.—Leia...leia...Quedizela?Deixe-meleramim...Opresoliamentalmente,eMarianainstou:—Leiaalto,porquemé,senhorSimão,queestouatremer...evossasenhoriadescora...Queé,

meuDeus?Simãodeixoucairacarta,esentou-seprostradodeânimo.Marianacorreualevantaracarta,e

ele,tomando-lheamão,murmurou:—Pobreamigo!...Choremo-loambos...choremo-lo,Mariana,queoamávamoscomofilhos...—Poismorreu?—bradouela.—Morreu...mataram-no!...Amoçaexpediuumgritoestrídulo,efoicomorostocontraosferrosdasgrades.Simãoinclinou-a

paraoseio,edisse-lhecommuitaternuraeveemência:—Mariana, lembre-se que é omeu amparo. Lembre-se de que as últimas palavras de seu pai

deviam ser recomendar-lhe o desgraçado que recebe das tuas mãos benfeitoras o pão da vida.Mariana,minhaqueridairmã,vençaador,quepodematá-la,evença-aporamordemim.Ouve-me,amigadaminhaalma?Marianaexclamou:—Deixe-mechorar,porcaridade!...Ai!MeuDeus,seeutornoaendoidecer!—Queseriademim!—atalhouSimão.—AquemdeixariaMarianaoseunobrecoraçãoparame

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suavizarestemartírio?QuemmelevariaaodesterroumapalavraamigaquemeanimasseacreremDeus?Nãohádeenlouquecer,Mariana,porqueeuseiquemeestima,quemeama,equeafrontarácomcoragemamaiordesgraçaqueaindapodesugerir-meoinferno!Chore,minhairmã,chore;masveja-meatravésdassuaslágrimas!

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CapítuloXVIII

Mariana,decorridosdias,foiaViseurecolheraherançapaterna.Emproporçãocomoseunascimento,bem-dotadaadeixaraolaboriosoferrador.Aforaoscampos,

cujo rendimentobastariaparaa sustentaçãodela,Mariana levantoua lajeconhecidada lareiraeachou os quatrocentosmil réis com que João daCruz contava para alimentar as regalias de suadecrepitudeinerte.VendeuMarianaasterras,edeixouacasaasuatia,quenasceranela,eondeseupaicasara.

Liquidadaaherança,tornouparaoPorto,edepositouoseucabedalnasmãosdeSimãoBotelho,dizendoquereceavaserroubadanacasinhaemquevivia,fronteiraàRelação,naRuadeS.Bento.

—Porquevendeuassuasterras,Mariana?—perguntouopreso.—Vendi-as,porquenãofaçotençãodelávoltar.—Nãofaz?...Paraondehádeir,Mariana,indoeudegredado?FicanoPorto?—Não, senhor,não fico—balbuciouela comoadmiradadestapergunta, àqual o seu coração

julgavaterrespondidodemuito.—Poisnão?!—Vouparaodegredo,sevossasenhoriamequisernasuacompanhia.Fingindo-sesurpreendido,Simãoseriaridículoaosseusprópriosolhos.—Esperavaessaresposta,Mariana,esabiaquenãomedavaoutra.Massabeoqueéodegredo,

minhaamiga?—Tenhoouvidodizermuitasvezesoqueé,senhorSimão...Éumaterramaisquentequeanossa;

mastambémhálápão,evive-se...—Emorre-se abrasado ao sol doentio daquele céu,morre-se de saudades da pátria,morre-se

muitasvezesdosmaustratosdosgovernadoresdasgalés,quetêmumcondenadonacontadefera.— Não há de ser tanto assim. Eu tenho perguntadomuito por isso à mulher dum preso, que

cumpriudezanosdesentençanaÍndia,eviveumuitobememumaterrachamadaSolor,ondeteveumatenda;e,senãofossemassaudades,dizelaquenãovinha,porquelhecorriamelhorporláavidaqueporcá.Eu,seforporvontadedosenhorSimão,voupôrumalojinhatambém.Verácomoeuamanhoavida.Afeitaaocalorestoueu;vossasenhorianãoestá;masnãoháde terprecisão, seDeusquiser,deandaraotempo.

—Esuponha,Mariana,queeumorroapenaschegaraodegredo?—Nãofalemosnisso,senhorSimão...— Falemos, minha amiga, porque eu hei de sentir à hora da morte, a pesar-me na alma, a

responsabilidadedoseudestino...Seeumorrer?—Seosenhormorrer,eusabereimorrertambém.—Ninguémmorrequandoquer,Mariana...—Oh!semorre!...Evivetambémquandoquer...NãomodissejáasenhoraD.Teresa?—Quelhedisseela?—Queestava apassarquando vossa senhoria chegouaoPorto, e que a sua chegada lhedera

vida.Poishámuitagenteassim,senhorSimão...Emaisafidalgaéfraquinha,eeusoumulherdocampo,vezadaatodosostrabalhos;e,sefosseprecisometerumalancetanobraçoedeixarcorrerosangueatémorrer,fazia-ocomoquemodiz.

—Ouça-me,Mariana:queesperademim?—Queheideeuesperar!...PorquemedizissoosenhorSimão?—OssacrifíciosqueMariana temfeitoequer fazerpormimsópodiamterumapaga,embora

mosnãofaçaesperandorecompensa.Abre-meoseucoração,Mariana?—Quequerqueeulhediga?—Conheceaminhavidatãobemcomoeu,nãoéverdade?—Conheço.Equetemisso?—Sabequeeuestouligadopelavidaepelamorteàqueladesgraçadasenhora?—Edaí?Quemlhedizmenosdisso?!—Ossentimentosdocoraçãosóospossoagradecercomamizade.—Eujálhepedimaisalgumacoisa,senhorSimão?!—Nadamepediu,Mariana;masobriga-metanto,quemefazmaisinfelizopesodaobrigação.Mariananãorespondeu;chorou.—Eporquechora?—tornouSimãocarinhosamente.—Issoéingratidão...eeunãomereçoquemedigaqueofaçoinfeliz.—Nãomecompreendeu...Souinfelizpornãopoderfazê-laminhamulher.EuqueriaqueMariana

pudessedizer:—“Sacrifiquei-mepormeumarido;nodiaemqueovi feridoemcasademeupai,veleiasnoitesaseulado;quandoadesgraçaoencerrouentreferros,dei-lheopãoquenemseusricospaislhedavam;quandoovisentenciadoàforca,endoideci;quandoaluzdaminharazãometornounumraiodecompaixãodivina,corriaosegundocárcere,alimentei-o,vesti-o,eadornei-lheas

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paredes nuas do seu antro; quando o desterraram, acompanhei-o, fiz-me a pátria daquele pobrecoração, trabalhei à luz do sol homicida para ele se resguardar do clima, do trabalho, e dodesamparo,queomatariam...”

OespíritodeMariananãopodiaaltear-seàexpressãodopreso;masocoraçãoadivinhava-lheasideias.Eapobremoçasorriaechoravaaumtempo.Simãocontinuou:

—Temvinteeseisanos,Mariana.Viva,queestasuaexistêncianãopodesersenãoumsuplíciooculto. Viva, que não deve dar tudo a quem lhe não pode restituir senão as lágrimas que eu lhetenhocustado.Otempodomeudesterronãopodeestarlonge;esperaroutromelhordestinoseriaumaloucura.Seeuficassenapátria,livreoupreso,pediriaaminhairmãquecompletasseaobragenerosadasuacompaixão,esperandoqueeulhedesseaúltimapalavradaminhavida.MasnãovácomigoàÁfricaouàÍndia,queseiquevoltarásozinhaàpátriadepoisqueeufecharosolhos.Seomeudegredofortemporário,eamortemeguardarparamaioresnaufrágios,voltareiàpátriaumdia.ÉprecisoqueMarianaaqui estejaparaeupoderdizerque venhoparaaminha família, quetenho aqui uma alma extremosa que me espera. Se a encontrar com marido e filhos, a suaextremosafamíliaseráaminha.Seavir livreesó, ireiparaacompanhiademinhairmã.Quemeresponde,Mariana?

AfilhadeJoãodaCruz,erguendoosolhosdopavimento.disse:—EuvereioqueheidefazerquandoosenhorSimãopartirparaodegredo...—Pensedesdejá,Mariana.—Nãotenhoquepensar...Aminhatençãoestáfeita...—Fale,minhaamiga;digaqualéasuatenção.Marianahesitoualgunssegundos,erespondeuserenamente:—Quandoeuvirquenãolhesouprecisa,acabocomavida.Cuidaqueeuponhomuitoemme

matar?Nãotenhopai,nãotenhoninguém,aminhavidanãofazfaltaapessoanenhuma.OsenhorSimãopodeviversemmim?Paciência!...Euéquenãoposso...

Susteveocomplementodaideiacomoquemsepejadumaousadia.Opresoapertou-anosbraçosestremecidamente,edisse:

—Irá,irácomigo,minhairmã.Pensemuitonoinfortúniodenósambosd’oraemdiante,queeleécomum;éumvenenoquehavemosdetragarunidos,eláteremosumasepulturadeterratãopesadacomoadapátria.

Desdeestedia,umsecretojúbiloendoideciaocoraçãodeMariana.Nãoinventemosmaravilhasdeabnegação.ErademulherocoraçãodeMariana.Amavacomoafantasiasecomprazdeidearoamordunsanjosquebatemasasasdebaileembaile,eapenasquedamo tempoprecisoparasefazerem ver e adorar a um reflexo de poesia apaixonada. Amava, e tinha ciúmes de Teresa, nãociúmesqueserefrigeramnaexpansãoounodespeito,mas infernossurdos,quenãorompiamemlabaredaaoslábios,porqueosolhosseabriamprontosemlágrimasparaapagá-la.Sonhavacomasdelíciasdodesterro,porquevozhumanaalgumanãoirialágemeràcabeceiradodesgraçado.Seaforçassem a resignar a sua inglória missão de irmã daquele homem, resigná-la-ia, dizendo: —“Ninguémoamarácomoeu;ninguémlheadoçaráaspenastãodesinteresseiramentecomooeufiz”.

E,contudo,nuncavacilouemaceitardamãodeTeresaoudamendigaascartasparaSimão.Acada vinco de dor que a leitura daquelas cartas sulcava na fronte do preso, Mariana, que oespreitavadisfarçada,tremiaemtodasasfibrasdoseucoração,ediziaentresi:—“Paraquehádeaquelasenhoraamargurar-lheavida?”

Eamarguravaacerbamenteadesditosamenina!Ressurgiramnaquelaalmaesperanças,quenãodeviamduraralémdotemponecessárioparaque

adesilusãolheacrisolasseoinfortúnio.Imaginaraelaaliberdade,operdão,ocasamento,aventura,a coroa do seu martírio. As suas amigas matizavam-lhe a tela da fantasia, umas porque nãoconheciamaatrozrealidadedascoisas,outrasporquefiavamemdemasianasoraçõesdasvirtuosasdo mosteiro. Se os vaticínios das profetisas se realizassem, Simão sairia da cadeia, Tadeu deAlbuquerquemorreria de velhice e de raiva, o casamento seria um ato indisputável, e o céu dosdesgraçadosprincipiarianestemundo.

PorémSimãoBotelho,aocabodecincomesesdecárcere, jásabiaoseudestino,eacharaútilprevenirTeresa,paranãosucumbiraoinevitávelgolpedaseparação.Bemqueriaelealumiarcomesperanças a perspectiva negra do desterro;mas frouxos e frios eramos alívios emquenão eraparteaconvicçãonemosentimento.Teresanãopodiasequer iludir-se,porque tinhanopeitoumdespertador que a estava acordando sempre para a hora final, embora o semblante enganasse acondolênciadosestranhos.

E,então,eraoexpandir-seemlástimasnascartasqueescreviaaoseuamigo;invocaçõesaDeus,esacrílegasapóstrofesaodestino;brandurasdepaciênciaeímpetosdecóleracontraopai;oaferroàvidaquelhefoge,esúplicasàmorte,quenãoalivradastorturasdaalmaedocorpo.

Notermodesetemesesotribunaldesegundainstânciacomutouapenaúltimaemdezanosdedegredo para a Índia. Tadeu deAlbuquerque acompanhou a Lisboa a apelação, e ofereceu a suacasaaquemmantivessedepéaforcadeSimãoBotelho.Opaidocondenado,segundoassustador

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avisoqueseufilhoManuellhedera,foiparaLisboalutarcomodinheiroeaspoderosasinfluênciasque Tadeu de Albuquerque granjeara na Casa da Suplicação e no Desembargo do Paço. VenceuDomingosBotelho,e, instigadomaisdoseucaprichoquedoamorpaternal, alcançoudoPríncipeRegenteagraçadecumprirocondenadoasuasentençanaprisãodeVilaReal.

QuandointimaramaSimãoBotelhoadecisãodorecursoeagraçadoRegente,opresorespondeuquenãoaceitavaagraça;quequeriaa liberdadedodegredo;queprotestariaperanteospoderesjudiciárioscontraumfavorquenãoimploravaequereputavamaisatrozdoqueamorte.

DomingosBotelho,avisadodarejeiçãodofilho,respondeuquefizesseeleasuavontade;masquea sua vitória dele sobre os protetores e os corrompidos pelo ouro do fidalgo de Viseu estavaplenamenteobtida.

Foiavisoaointendente-geraldapolícia,eonomedeSimãoBotelhofoiinscritonocatálogodosdegredadosparaaÍndia.

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CapítuloXIX

Averdadeéalgumasvezesoescolhodeumromance.Navidareal,recebemo-lacomoelasaidosencontradoscasos,oudalógicaimplacáveldascoisas;

mas,nanovela,custa-nosasofrerqueoautor,seinventa,nãoinventemelhor;e,secopia,nãomintaporamordaarte.

Umromancequeestribanaverdadeoseumerecimento,éfrio,éimpertinente,éumacoisaquenãosacodeosnervos,nemagente,sequerumatemporada,enquantoelenoslembra,destejogodenora,cujosalcatruzessomos,unsasubir,outrosadescer,movidospelamaniveladoegoísmo.

Averdade!Seelaéfeia,paraqueoferecê-laempainéisaopúblico!?Averdadedocoraçãohumano!Seocoraçãohumanotemfilamentosdeferroqueoprendemao

barrodeondesaiu,oupesamneleeosubmergemnocharcodaculpaprimitiva,paraqueéemergi-lo,retratá-loepô-loàvenda!?

Os reparos são de quem tem o juízo no seu lugar;mas, pois que eu perdi omeu a estudar averdade,jáagoraadesforraquetenhoépintá-lacomoelaé,feiaerepugnante.

Adesgraçaafervoraouquebrantaoamor?Issoéqueeu submetoàdecisãodo leitor inteligente.Fatosenão teseséoqueeu tragopara

aqui.Opintorretrataunsolhos,enãoexplicaasfunçõesópticasdoaparelhovisual.Aocabodedezenovemesesdecárcere,SimãoBotelhoalmejavaumraiodesol,umalufadadoar

nãocoadapelosferros,opavimentodocéu,queodaabóbadadoseucubículopesava-lheopeito.Ânsiadevivereraasua;nãoerajáânsiadeamar.Seismesesdesobressaltosdiantedaforcadeviamdistender-lheasfibrasdocoração;eocoração,

paraoamor,quer-se forteetenso,deumacertarijeza,queseganhacomobomsangue,comosanseiosdasesperanças,ecomasalegriasqueoenchemereforçamparaosreveses.

CaiuaforcapavorosaaosolhosdeSimão;masospulsosficaramemferros,opulmãoaoarmortaldascadeias,oespíritoentanguidonaglacialestupidezdumasparedessalitrosas,edumpavimentoque ressoa os derradeiros passos do último padecente, e dum teto que filtra amorte a gotas deágua.

Oqueéocoração,ocoraçãodosdezoitoanos,ocoraçãosemremorsos,oespíritoanelantedeglórias,aocabodedezoitomesesdeestagnaçãodavida?

Ocoraçãoéavíscera,feridadeparalisia,aprimeiraquefalecesufocadapelasrebeliõesdaalmaque se identifica à natureza, e a quer, e se devora na ânsia dela, e se estorce nas agonias daamputação,paraosquaisasaudadedaventuraextintaéumcautérioembrasa;eoamor,quelevaaoabismopelocaminhodasonhadafelicidade,nãoésequerumrefrigério.

Aodeslaçardagargantaacordadajustiça,SimãoBotelhoteveumahoradedesafogo,comoquesentiaopatíbulolascarentreosseusbraços,eentãoconvidouocoraçãodamulherqueoperderaaassistiràssegundasnúpciasdasuavidacomaesperança.

Depois,apassoigual,aesperançafugia-lheparaasareiasdaÁsia,eocoraçãointumescia-sedefel,oamorafogava-senele,morteinevitável,quandonãoháaberturaporondeaesperançaentrealuzirnaescuridãoíntima.

EsperançaparaSimãoBotelho,qual?AÍndia,ahumilhação,amiséria,aindigência.

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E os anelos daquela alma tinhammirado as ambições de umnome. Para a felicidade do amorenvidavaasforçasdotalento;mas,alémdoamor,estavamaglória,orenomeeavãimortalidade,que só não é demência nas grandes almas e nos gênios que se sentem previver nas geraçõesvindouras.

Masgrinaldasdeamoraescorreremsanguedosespinhos, essas infiltramvenenocorrosivonopensamento,apagamnoseioafaíscadasnobresafoitezas,apoucamaideiaqueabrangeramundos,eparalisamdemortalespasmoosestosdocoração.

Assim te sentias tu, infeliz, quandodezoitomesesde cárcere, comopatíbulo ouodegredonalinhadoteuporvir,tehaviammatadoomelhordaalma.

A ti mesmo perguntavas pelo teu passado, e o coração, se ousava responder, retraía-se,recriminadopelosditamesdarazão.

De além, daquele convento onde outra existência agonizava, gementes queixas te vinhamespremer fel na chaga; e tu, que não sabias nem podias consolar, pedias palavras ao anjo dacompaixãoparaela,easdodemôniododesesperoparati.

Os dez anos de ferros em que lhe quiseram minorar a pena eram-lhe mais horrorosos que opatíbulo.Eaceitá-los-ia,porventura,seamasseocéu,ondeTeresabebiaoar,quenospulmõesselheformavaempeçonha?Creio:antesamasmorra,ondepodeouvir-seosomabafadodeumavozamiga;antesosparoxismosdedezanossobreaslajesúmidasdeumaenxovia,se,nahoraextrema,aúltimafaíscadapaixão,aobruxulearparamorrer,nosalumiaocaminhodocéuporondeoanjodoamordesditososelevantouadarcontadesiaDeus,eapediraalmadoqueficou.

TeresapediraaSimãoBotelhoqueaceitassedezanosdecadeia,eesperasseaíasuaredençãoporela.

Dezanos!—dizia-lheaenclausuradadeMonchique.Emdezanosterámorridomeupaieeuserei

tua esposa, e irei pedir ao rei que te perdoe, se não tiveres cumprido a sentença. Se vais aodegredo,parasempreteperdi,Simão,porquemorrerás,ounãoacharásmemóriademim,quandovoltares.

Como a pobre se iludia nas horas em que as débeis forças de vida se lhe concentravam no

coração!

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Asânsias,a lividez,odeperecimentotinhamvoltado.Osangue,quecriaranovo, já lhesaíaemgolfadascomatosse.

Seporamoroupiedadeocondenadoaceitasseosferrolhostrêsmilseiscentasecinquentavezescorridossobreassuaslongasnoitessolitárias,nemassimTeresasusteriaapedrasepulcralqueavergavadehoraahora.

Nãoesperesnada,mártir—escrevia-lheele.—Alutacomadesgraçaéinútil,eeunãopossojá

lutar. Foi um atroz engano o nosso encontro. Não temos nada neste mundo. Caminhemos aoencontrodamorte...Háumsegredoquesónosepulcrosesabe.Ver-nos-emos?Vou.Abominoapátria,abominoaminhafamília;todoestesoloestáaosmeusolhoscobertode

forcas, e quantos homens falam a minha língua, creio que os ouço vociferar as imprecações docarrasco.EmPortugal,nemaliberdadecomaopulência;nemjáagoraarealizaçãodasesperançasquemedavaoteuamor,Teresa!Esquece-tedemim,eadormecenoseiodonada.Euqueromorrer,masnãoaqui.Apague-sealuz

dosmeusolhos;masaluzdocéu,quero-a!Queroverocéunomeuúltimoolhar!Nãomepeçasqueaceitedezanosdeprisão.Tunãosabesoqueéaliberdadecativadezanos!

Não compreendes a tortura dosmeus vintemeses. A voz única que tenho ouvido é a damulherpiedosaquemeesmolaopãodecadadia,eadoaguazilqueveiodar-measarcásticaboa-novadeumagraçareal,quemecomutaomorrerinstantâneodaforcapelasagoniasdedezanosdecárcere.Salva-te,sepodes,Teresa.Renunciaaoprestígiodumgrandedesgraçado.Seteupaitechama,

vai.Setemderenascerparatiumaauroradepaz,viveparaafelicidadedessedia.E,senão,morre,Teresa, que a felicidade é a morte, é o desfazerem-se em pó as fibras laceradas pela dor, é oesquecimentoquesalvadasinjúriasamemóriadospadecentes.

AspalavrasúnicasdeTeresa,emrespostaàquelacarta,significativadaturbaçãodoinfeliz,foram

estas:Morrerei,Simão,morrerei.Perdoatuaomeudestino...Perdi-te...Bemsabesquesorteeuqueria

dar-te...emorro,porquenãoposso,nempodereijamaisresgatar-te.Sepodes,viva;nãotepeçoquemorras,Simão;queroquevivasparamechorares.Consolar-te-áomeuespírito...Estoutranquila.Vejoaauroradapaz...Adeus,atéaocéu,Simão.

Seguiram-seaestacartamuitosdiasde terrível taciturnidade.SimãoBotelhonãorespondiaàs

perguntasdeMariana.Di-lo-íeisarroubadonasvoluptuosasangústiasdoseupróprioaniquilamento.AcriaturapostaporDeusaoladodaquelesdezoitoanostãoatribuladoschorava;masaslágrimas,seSimãoasvia,tiravam-nodamudezsossegadaparaímpetosdeaflição,queafinaloextenuavam.

Decorreramseismesesainda.E Teresa vivia, dizendo às suas consternadas companheiras que sabia ao certo o dia do seu

trespasse.DuasprimaverasviaSimãoBotelhopelasgradesdoseucárcere.Aterceirajáenfloravaashortas,

eesverdeavaasflorestasdoCandal.Eraemmarçode1807.No dia 10 desse mês, recebeu o condenado intimação para sair na primeira embarcação que

levavaâncoradoDouroparaaÍndia.Nessetempovinhamaquiosnaviosbuscarosdegredados,erecebiamemLisboaosquetinhamigualdestino.

Nenhum estorvo impedia o embarque deMariana, que se apresentou ao corregedor do crimecomocriadadodegredado,compassagempagaporseuamo.

—Eapassagemvale-abem!—disseogalhofeiromagistrado.Simãoassistiuaoencaixotardasuabagagem,numaquietaçãoterrível,comoseignorasseoseu

destino.Quis muitas vezes escrever a derradeira carta à moribunda Teresa, e nem sinais de lágrimas

podiajáenviar-lhenopapel.— Que trevas, meu Deus! — exclamava ele, e arrancava a mãos-cheias os cabelos. — Dai-me

lágrimas,Senhor!Deixai-mechorar,oumatai-me,queestesofrimentoéinsuportável!Marianacontemplavaestarrecidaesteseoutroslancesdeloucura,ouosnãomenosmedonhosda

letargia.—ETeresa!—bradavaele,surgindosubitamentedoseuespasmo.—Eaquelainfelizmeninaque

eumatei!Nãoheidevê-lamais,nuncamais!Ninguémmelevaráaodegredoanotíciadesuamorte!E,quandoaeuchamarparaquemevejamorrerdignodela,quemtediráqueeumorri,ómártir?!

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CapítuloXX

A17demarçode1807,saiudoscárceresdaRelaçãoSimãoAntônioBotelho,eembarcounocaisda Ribeira, com setenta e cinco companheiros. O filho do ex-corregedor de Viseu, a pedido dodesembargadorMourãoMosqueira,eporordemdoregedordajustiça,nãoiaamarradocomcordasaobraçodealgumcompanheiro.Desceudacadeiaaoembarque,aoladodeummeirinho,eseguidodeMariana,quevigiavaoscaixõesdabagagem.Omagistrado,fielamigodeD.RitaPreciosa,foiabordodanau,erecomendouaocomandantequedistinguisseocondenadoSimão,consentindo-onatolda, e sentando-o à suamesa. Chamou Simão de parte, e deu-lhe um cartucho de dinheiro emouro, que sua mãe lhe enviava. Simão Botelho aceitou o dinheiro, e, na presença de MourãoMosqueira, pediu ao comandante que fizesse distribuir pelos seus companheiros de degredo odinheiroquelhedava.—ÉdementeosenhorSimão?!—disseodesembargador.—Tenhoademênciadadignidade:poramordaminhadignidademeperdi;queroagoraveraque

extremodeinfortúnioelapodelevarosseusamantes.Acaridadesómenãohumilhaquandopartedocoraçãoenãododever.Nãoconheçoapessoaquemeremeteuessedinheiro.—Ésuamãe—tornouMosqueira.—Nãotenhomãe.Quervossaexcelênciaremeter-lheestaesmolarejeitada?—Não,senhor.—Então,senhorcomandante,cumpraoquelhepeço,oueuatirocomistoaorio.Ocomandanteaceitouodinheiro,eodesembargadorsaiudebordocomoespantadodasinistra

condiçãodomoço.—OndeéMonchique?—perguntouSimãoaMariana.—Éacolá,senhorSimão—respondeu,indicando-lheomosteiro,quesedebruçasobreamargem

doDouro,emMiragaia.CruzouosbraçosSimão,eviuatravésdogradeamentodomiranteumvulto.EraTeresa.NavésperareceberaelaoadeusdeSimão,eresponderaenviando-lheatrançadosseuscabelos.

Aoanoitecerdaqueledia,pediuTeresaossacramentos,ecomungouàgradedocoro,ondesefoiamparadaàsuacriada.Partedashorasdanoitepassou-assentadaaopédosantuáriodesuatia,quetodaanoiteorou.Algumasvezespediuquealevassemàjanelaqueseabriaparaomar,enãosentiaaliafrialdadedaviração.Conversavaserenamentecomasfreiras,edespedira-sedetodas,umaauma,indopôrseupéàscelasdassenhorasentrevadasparalhesdarobeijodadespedida.Todascuidavamemreanimá-la,eTeresasorria,semresponderaospiedososartifícioscomqueas

boasalmasasimesmasqueriamsimularesperanças.Aoabrirdamanhã,TeresaleuumaaumaascartasdeSimãoBotelho.Asque tinhamsidoescritasnasmargensdoMondegoenterneciam-naacopiosaslágrimas.Eramhinosàfelicidadeprevista:eramtudoquemaisformosopodedarocoraçãohumanoquandoapoesiadapaixãodácoraopensamento,eumaformosaeinspirativanaturezalheempresta os seus esmaltes. Então lhe acudiam vivas reminiscências daqueles dias: a sua alegriadoida, as suas doces tristezas, esperanças a desvaneceram saudades, osmudos colóquios com airmãqueridadeSimão,océuaromáticoqueselhealargavaàinspiraçãosôfregadevagosdesejos,tudo,enfim,quelembraadesgraçados.Emaçou depois as cartas, e cintou-as com fitas de seda desenlaçadas de raminhos de flores

murchas,queSimão,doisanosantes,lheatiraradasuajanelaaoquartodela.

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As pétalas das flores soltas quase todas se desfizeram, e Teresa, contemplando-as, disse: —“Comoaminhavida...”—echorou,beijandooscálicesdesfolhadosdasprimeirasquerecebera.Deu as cartas aConstança, e encarregou-a de umaordem, a respeito delas, que logo veremos

cumprida.Depois foi orar, e esteve ajoelhada meia hora, com meio corpo reclinado sobre uma cadeira.

Erguendo-se,quasetiradapelaviolência,aceitouumaxícaradecaldo,emurmuroucomumsorriso:—“Paraaviagem...”ÀsnovehorasdamanhãpediuaConstançaqueaacompanhasseaomirante,e,sentando-seem

ânsiasmortais,nuncamaisdesfitouosolhosdanau,quejáestavavergaalta,esperandoalevadosdegredados.Quandoviu,adoisadois,entrarem,amarrados,notombadilho,oscondenados,Teresateveum

breveacidente,emqueajáfrouxaclaridadedosolhosselheapagou,easmãosconvulsaspareciamquereraferraraluzfugitiva.FoientãoqueSimãoBotelhoaviu.EaomesmotempoatracouànauumboteemquevinhaapobredeViseu,chamandoSimão.Foi

eleaoportaló,e,estendendoobraçoàmendiga,recebeuopacotinhodassuascartas.Reconheceuelequeaprimeiranãoerasua,pelalisuradopapel,masnãoaabriu.Ouviu-seavozde levarâncorae largaramarras.Simãoencostou-seàamuradadanau,comos

olhosfitosnomirante.

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Viuagitar-seumlenço,eelerespondeucomoseuàqueleaceno.Desceuanauaomar,epassoufronteiraaoconvento.DistintamenteSimãoviuumrostoeunsbraçossuspensosdasreixasdeferro;masnãoeradeTeresaaquelerosto:seriaantesumcadáverquesubiudaclaustraaomirante,comosossosdacarainçadosaindadasherpesdasepultura.—ÉTeresa?—perguntouSimãoaMariana.—É,senhor,éela—dissenumafogadogemidoagenerosacriatura,ouvindooseucoraçãodizer-

lhequeaalmadocondenadoiriabrevenoseguimentodaquelaporquemseperdera.De repente aquietou o lenço que se agitava no mirante, e entreviu Simão um movimento

impetuoso de alguns braços e o desaparecimento de Teresa e do vulto de Constança, que eledivisaramaistarde.AnauparoudefrontedeSobreiras.Umanuvemnohorizontedabarra,eosúbitoencapelamento

dasondas,causaraasuspensãodaviagemanunciadapelocomandante.Emseguida,velejoudaFozumacatraia comopiloto-mor,quemandava lançar ferroaténovasordens.Mais tardeadiou-seasaídaparaodiaseguinte.E, no entanto, Simão Botelho, como o cadáver embalsamado, cujos olhos artificiais rebrilham

cravados e imotos num ponto, lá tinha os seus imersos na interior escuridade do miradouro.Nenhumsinaldevida.Eashoraspassaramatéqueoderradeiroraiodesolseapagounasgradesdomosteiro.Aoescurecer,voltoudeterraocomandante,econtemplou,comosolhosembaciadosdelágrimas,

odesterrado,quecontemplavaasprimeirasestrelas,iminentesaomirante.—Procura-anocéu?—disseonauta.—Seaprocuronocéu...—repetiumaquinalmenteSimão.—Sim!...Nocéudeveelaestar.—Quem,senhor?—Teresa.—Teresa...!Morreu?!—Morreu,além,nomirante,dondeelaestavaacenando.Simão curvou-se sobre a amurada, e fitou os olhos na torrente. O comandante lançou-lhe os

braços,edisse:—Coragem,grandedesgraçado,coragem!OshomensdomarcreememDeus!Esperequeocéu

seabraparasipelassúplicasdaqueleanjo!MarianaestavaumpassoatrásdeSimão,etinhaasmãoserguidas.—Acabou-setudo!...—murmurouSimão.—Eis-melivre...paraamorte...Senhorcomandante—

continuoueleenergicamente—eunãomesuicido.Podedeixar-me.—Peço-lhequeserecolhaàcâmara.Oseubelicheestáaopédomeu.—Éobrigatóriorecolher-me?—Paravossasenhorianãoháobrigações;hárogos:peço-lhe,nãomando.—Vou,eagradeçoacompaixão.Marianaseguiu-ocomaqueleolharquebradoemaviosodo Jau,quandoopoetadesembarcava,

segundoaideiaapaixonadadocantordeCamões.EncarounelaSimão,edisseaocomandante:—Eestainfeliz?—Queosiga...—respondeuocompassivohomemdomar,quecriaemDeus.Simão recolheu-se ao beliche, e o comandante sentou-se em frente dele, e Mariana ficou no

escurodacâmaraachorar.—Fale,senhorSimão!—disseocomandante.—Desafogueechore.—Chorei,senhor!— Eu não tinha imaginado uma angústia igual à sua. A invenção humana não criou ainda um

quadrotãoatroz.Arrepiam-se-meoscabelos,etenhovistoespetáculoshorríveisnaterraenomar.Acintemente,ocomandanteestavaprovocandoSimãoaodesabafo.Nãorespondiaocondenado.

Ouviaos soluçosdeMariana, e tinhaosolhospostosnomaçodas cartas,quepusera sobreumabanqueta.Ocapitãoprosseguiu:—QuandoemMiragaiamecontaramamortedaquelasenhora,pediaumapessoarelacionadano

conventoqueme levasseaouvirdealgumafreiraatristehistória.Umareligiosamacontou;maserammaisosgemidosqueaspalavras.Soubequeela,quandodescíamosnaalturadoOiro,proferiaemaltavoz:—“Simão,adeusatéàeternidade!”—Ecaiunosbraçosdumacriada.Acriadagritou,eoutras foram ao mirante, e a trouxeram meio morta para baixo, ou morta, melhor direi, quenenhuma palavramais lhe ouviram.Depois, contaram-me o que ela penara em dois anos e novemesesnaquelemosteiro;oamorqueelalhetinha,easmilmortesquealipadeceu,decadavezqueaesperançalhemorria.Quedesgraçadamenina,equedesgraçadomoçoosenhoré!—Porpouco tempo...—disseSimão,comoseodissesseasipróprio,ouaprópria imaginação

estivessedialogandoconsigo.

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—Creio,creio,porpoucotempo—prosseguiuocapitão—,mas,seosamigospudessemsalvá-lo,senhor, eu dar-lhos-ia na Índiamais fiéis que em Portugal. Prometo-lhe, sob aminha palavra dehonra,alcançardovizo-reiasuaresidênciaemGoa.Prometosegurar-lheumdecenteprincípiodevidaeascomodidadesque fazemaexistência tão saudável comoelaénaÁsia.Nãoo intimideaideiadodegredo,senhorSimão.Viva,façaporvencer-se,eseráfeliz!—Oseusilêncio,porpiedade,senhor...—atalhouodegredado.— Bem sei que é cedo ainda para planizar futuros. Desculpe à simpatia que me inspira a

indiscrição,masaceiteumamigonestahoraatribulada.—Aceito,eprecisodele...Mariana!—chamouSimão.—Venhaaqui,seestecavalheiroopermite.Marianaentrounoquarto.—Estamulhertemsidoaminhaprovidência—disseSimão.—Porqueelamevaleu,nãosentia

fomeemdoisanosenovemesesdecárcere.Tudoquetinhavendeuparamesustentarevestir.Aquivai comigo esta criatura. Seja respeitável aos seus olhos, senhor, porque ela é tão pura como averdadeodevesernoslábiosdummoribundo.Seeumorrer,senhorcomandante,aceiteolegadodeaampararcomasuacaridadecomoseelafosseminhairmã.Seelaquiservoltaràsuapátria,sejaoseuprotetornapassagem.—E,estendendo-lheamão,dissecomtransporte:—Promete-me isto,senhor?—Juro-lho.Ocomandante,obrigadoasubiraotombadilho,deixouSimãocomMariana.—Estoutranquilopeloseufuturo,minhaamiga.—Eujáoestava,senhorSimão—respondeuela.Nãosetrocarampalavrasporlargoespaço.Simãoapoiouafacesobreamesa,eapertoucomas

mãosasfontesarquejantes.Mariana,depé,aoladodele,fitavaosolhosnaluzmortiçadalâmpadaoscilante,ecismava,comoele,namorte.Eonordestesibilava,comoumgemido,nasgáveasdanau.

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Conclusão

Às onze horas da noite, o comandante recolhera-se num beliche de passageiro, e Mariana,sentadanopavimento,comorostosobreosjoelhos,pareciasucumbiraoquebrantodastrabalhosaseaflitivashorasdaqueledia.

SimãoBotelhovelavaprostradonocamarote,comosbraçoscruzadossobreopeito,eosolhosfitosnaluzquebalançava,pendentedeumarame.Oouvidotê-lo-ia,talvez,atentoaumassobiodaventania:deviadesoar-lhecomoumaiplangenteaquelesilvoagudo,vozúnicanosilênciodeterraecéu.

À meia-noite, estendeu Simão o braço trêmulo ao maço das cartas que Teresa lhe enviara, econtemplou um pouco a que estava ao de cima, que era dela. Rompeu a obreia, e dispôs-se nocamaroteparaalcançarobaçoclarãodalâmpada.

Diziaassimacarta:Éjáomeuespíritoquetefala,Simão.Atuaamigamorreu.AtuapobreTeresa,àhoraemque

leresestacarta,seDeusnãomeengana,estáemdescanso.Eudeviapoupar-teaestaúltimatortura;nãodeviaescrever-te;masperdoaàtuaesposadocéua

culpa, pela consolação que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da noite daminhavida.Quemtediriaqueeumorri,senãofosseeumesma,Simão?Daquiapouco,perderásdevistaeste

mosteiro;correrásmilharesdeléguas,enãoacharás,empartealgumadomundo,vozhumanaquetediga:—“Ainfelizespera-tenoutromundo,epedeaoSenhorqueteresgate”.—Setepudessesiludir,meuamigo,quereriasantespensarqueeuficavacomavidaecomesperançadever-tenavoltadodegredo?Assimpodeser,mas,aindaagora,nestesolenemomento,medominaavontadedefazer-tesentirqueeunãopodiaviver.Parecequeamesmainfelicidadetemàsvezesvaidadedemostrarqueoé,aténãopodê-losermais!Queroquedigas:—“Estámorta,emorreuquandoeulhetireiaúltimaesperança”.—Istonãoéqueixar-me,Simão;nãoé.Talvez,queeupudesseresistiralgunsdiasàmorte,setu

ficasses;mas,deummodooudeoutro,erainevitávelfecharosolhosquandoserompesseoúltimofio,esteúltimoqueseestápartindo,eeumesmaoouçopartir.Nãovãoestaspalavrasacrescentaratuapena.Deusmelivredeajuntarumremorsoinjustoàtua

saudade.Seeupudesseaindaver-tefeliznestemundo;seDeuspermitisseàminhaalmaestavisão!...Feliz,

tu,meupobrecondenado!...Semoquerer,omeuamoragoratefaziainjúria,julgando-tecapazdefelicidade!Tumorrerásdesaudade,seoclimadodesterrotenãomataraindaantesdesucumbiresàdordoespírito.Avidaerabela,era,Simão,seativéssemoscomotumapintavasnastuascartas,quelihápouco!

EstouvendoacasinhaquetudescreviasdefrontedeCoimbra,cercadadeárvores,floreseaves.A

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tuaimaginaçãopasseavacomigoàsmargensdoMondego,àhorapensativadoescurecer.Estrelava-se o céu, e aLua abrilhantava a água.Eu respondia comamudezdo coração ao teu silêncio, e,animadaporteusorriso,inclinavaafaceaoteuseio,comosefosseaodeminhamãe.Tudoistolinastuascartas;eparecequecessaodespedaçardaagoniaenquantoaalmaseestárecordando.Noutracarta,mefalavasemtriunfoseglóriaseimortalidadedoteunome.Tambémeuiaapósdatuaaspiração,ouadiantedela,porqueomaiorquinhãodosteusprazeresdeespíritoqueriaeuquefossemeu.Eracriançahátrêsanos,Simão,ejáentendiaosteusanelosdeglória,eimaginava-osrealizadoscomoobraminha,setumedizias,comodissestemuitasvezes,quenãoseriasnadasemoestímulodomeuamor.Oh,Simão,dequecéutãolindocaímos!Àhoraqueteescrevo,tuestásparaentrarnanaudos

degredados,eeunasepultura.Que importamorrer,senãopodemos jamais ternestavidaanossaesperançadehá trêsanos?

Poderiastucomadesesperançaecomavida,Simão?Eunãopodia.Osinstantesdodormireramosescassos benefícios que Deus me concedia; a morte é mais que uma necessidade, é umamisericórdiadivina,umabem-aventurançaparamim.Equefariastudavidasematuacompanheirademartírio?Ondetuirásaviventarocoraçãoque

adesgraçateesmagou,semoesquecimentodaimagemdestadócilmulher,queseguiucegamenteaestreladatuamalfadadasorte?!Tu nunca hás de amar, não, meu esposo? Terias pejo de ti mesmo, se uma vez visses passar

rapidamente aminha sombra por diante dos teus olhos enxutos? Sofre, sofre ao coração da tuaamigaestasderradeirasperguntas,aqueturesponderás,noalto-mar,quandoestacartaleres.Rompeamanhã.Vouveraminhaúltimaaurora...aúltimadosmeusdezoitoanos!Abençoado sejas, Simão! Deus te proteja, e te livre de uma agonia longa. Todas as minhas

angústias lhe ofereço emdesconto das tuas culpas. Se algumas impaciências a justiça divinamecondena,oferecetuaDeus,meuamigo,osteuspadecimentos,paraqueeusejaperdoada.Adeus!Àluzdaeternidadeparece-mequejátevejo,Simão!Ergueu-se o degredado, olhou em redor de si e fitou com espasmoMariana, que levantava a

cabeçaaomenormovimentodele.—Quetem,senhorSimão?—disseela,erguendo-se.—Estavaaqui,Mariana?...Nãosevaideitar?!—Nãovou;ocomandantedeu-melicençadeficaraqui.—Mashádeassimpassaranoite?!Rogo-lhequevá,porquenãoénecessáriooseusacrifício.—Seonãoincomodo,deixe-meaquiestar,senhorSimão.—Esteja,minhaamiga,esteja...Podereisubiraoconvés?—Queriraoconvés,senhorBotelho?—disseocomandante,lançando-sedobeliche.—Queria,senhorcomandante.—Iremosjuntos.SimãoajuntouacartadeTeresaaomaçodassuas,esaiucambaleando.Noconvéssentou-senum

monte de cordame, e contemplou omirante doMonchique, que avultava negro ao sopé da serrapenhascosaemqueatualmentevaiaRuadaRestauração.

Ocapitãopasseavadaproaàré,mascomoouvidofitoaosmovimentosdodegredado.Recearaele o propósito do suicídio, porqueMariana lhe incutira semelhante suspeita. Queria omarítimofalar-lhepalavrasconsoladoras,maspensavaconsigo:—“Oquehádedizer-seaumhomemquesofre assim?” — E parava junto dele algumas vezes, como para desviar-lhe o espírito daquelemirante.

—Eunãomesuicido!—exclamouabruptamenteSimãoBotelho.—Seasuagenerosidade,senhorcapitão,seinteressaemqueeuviva,podedormirdescansadoasuanoite,queeunãomesuicido.

—Masmereço-lheeuacondescendênciadedescercomigoàcâmara?—Irei;maseu,lá,sofromais,senhor.Nãoreplicouocomandante,econtinuouapassearnoconvésapesardasrajadasdevento.Marianaestavaagachadaentreospacotesdacarga,apoucadistânciadeSimão.Ocomandante

viu-a,falou-lhe,eretirou-se.Àstrêshorasdamanhã,SimãoBotelhosegurouentreasmãosatesta,queselheabriaabrasada

pelafebre.Nãopôdeter-sesentado,edeixoucairmeiocorpo.Acabeça,aodeclinar,pousounoseiodeMariana.

—Oanjodacompaixãosemprecomigo!—murmurouele.—Teresafoimuitodesgraçada...—Querdesceraocamarote?—disseela.—Nãopoderei...Ampare-me,minhairmã.Deualgunspassosparaaescadinha,eolhouaindasobreomirante.Desceua íngremeescada,

apegando-se às cordas. Lançou-se sobre o colchão, e pediu água, que bebeu insaciavelmente.Seguiu-seafebre,oestorcimento,easânsias,comintervalosdedelírio.

Demanhãveioabordoum facultativo,porconvitedocapitão.Examinandoocondenado,disse

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queerafebremalignaadoença,ebempodiaserqueeleachasseasepulturanocaminhodaÍndia.Marianaouviuoprognóstico,enãochorou.Àsonzehorassaiubarra foraanau.Àsânsiasdadoençaacresceramasdoenjoo.Apedidodo

comandante,Simãobebiaremédios,quebolsavalogo,revoltospelascontraçõesdovômito.Aosegundodiadeviagem,MarianadisseaSimão:—Seomeuirmãomorrer,queheideeufazeràquelascartasquevãonacaixa?Pasmosaserenidadeadestapergunta!—Seeumorrernomar—disseele—,Mariana,atireaomartodososmeuspapéis,todos;eestas

cartasqueestãodebaixodomeutravesseirotambém.

Passadaumaânsia,quelheembargavaavoz,Simãocontinuou:—Seeumorrer,quetencionafazer,Mariana?—Morrerei,senhorSimão.—Morrerás?!...Tantagentedesgraçadaqueeufiz!...A febreaumentava.Os sintomasdamorteeramvisíveisaosolhosdocapitão,que tinha sobeja

experiênciadevermorreremcentenaresdecondenados,feridosdafebrenomar,edesprovidosdealgummedicamento.

Aoquartodia,quandoanausemoviaronceiradefrontedeCascais,sobreveiotormentasúbita.Onaviofez-seaolargomuitasmilhas,e,perdidoorumodeLisboa,navegoudesnorteado.Aosextodiade navegação incerta, por entre espessas brumas, partiu-se o leme defronte de Gibraltar. E, emseguidaaodesastre,aplacaramasrefregas,desencapelaram-seasondas,enasceu,comaauroradodiaseguinte,umformosodiadeprimavera.Eraodiadeprimavera.Eraodia27demarço,ononodaenfermidadedeSimãoBotelho.

Marianatinhaenvelhecido.Ocomandante,encarandonela,exclamou:—ParecequevoltadaÍndiacomosdezanosdetrabalhosjápassados!...—Jáacabados...decerto...—disseela.Aoanoitecerdessediaocondenadodeliroupelaúltimavez,ediziaassimnoseudelírio:“Acasinha,defrontedeCoimbra,cercadadeárvores,floreseaves.Passeavascomigoàmargem

doMondego, à horapensativado escurecer.Estrelava-se o céu, e aLua abrilhantava a água.Eurespondiacomamudezdocoraçãoaoteusilêncio,e,animadaporteusorriso,inclinadaafaceaoteuseio,comosefosseodeminhamãe...Dequecéutãolindocaímos!...Atuaamigamorreu...AtuapobreTeresa...

Equefariastudavida,sematuacompanheirademartírio?...Ondeirástuaviventarocoraçãoque a desgraça te esmagou?!... Rompe amanhã... Vou ver aminha última aurora... a última dosmeusdezoitoanos.OfereceaDeusosteuspadecimentos,paraqueeusejaperdoado...Mariana...”.

Marianacolocouosouvidosaoslábiosroxosdomoribundo,quandocuidououviroseunome.“Tuvirásterconosco;ser-te-emosirmãosnocéu...Omaispuroanjoserástu...seésdestemundo,

irmã;seésdestemundo,Mariana...”.Atransiçãododelírioparaaletargiacompletaeraoanúncioinfalíveldotrespasse.Ao romper da manhã apagara-se a lâmpada. Mariana saíra a pedir luz, e ouvira um gemido

estertoroso. Voltando às escuras, com os braços estendidos para tatear a face do agonizante,encontrouamãoconvulsa,quelheapertouumadassuas,erelaxoudesúbitoapressãodosdedos.

Entrou o comandante com uma lâmpada, e aproximou-lha da respiração, que não embacioulevementeovidro.

—Estámorto!—disseele.Marianacurvou-sesobreocadáver,ebeijou-lheaface.Eraoprimeirobeijo.Ajoelhoudepoisao

pédobelichecomasmãoserguidas,enãooravanemchorava.Algumashorasvolvidas,ocomandantedisseaMariana:—Agoraétempodedarsepulturaaonossoventurosoamigo...Éventuramorrerquandosevema

estemundocomtalestrela.PasseasenhoraMarianaaliparaacâmaraquevaiserlevadodaquiodefunto.

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Mariana tirouomaçodascartasdebaixodo travesseiro,e foiaumacaixabuscarospapéisdeSimão. Atou o rolo no avental, que ele tinha daquelas lágrimas dela, choradas no dia da suademência,ecingiuoembrulhoàcintura.

Foiocadáverenvoltonumlençol,etransportadoaoconvés.Marianaseguiu-o.Doporãodanau foi trazidaumapedra,queummarujo lheatouàspernas comumpedaçode

cabo.Ocomandantecontemplavaacenatristecomosolhosúmidos,eossoldadosqueguarneciamanau,tãofuneralrespeitoosimpressionara,queinsensivelmentesedescobriram.

Marianaestava,noentanto,encostadaaoflancodanau,epareciaestupidamenteencararaquelesempuxõesqueomarujodavaaocadáver,parasegurarapedranacintura.

Dois homens ergueram o morto ao alto sobre a amurada. Deram-lhe o balanço para oarremessarem longe. E, antes que o baque do cadáver se fizesse ouvir na água, todos viram, eninguémjápôdesegurarMariana,queseatiraraaomar.

Àvozdocomandantedesamarraramrapidamenteobote,esaltaramhomensparasalvarMariana.Salvá-la!...Viram-na,ummomento,bracejar,nãopararesistiràmorte,masparaabraçar-seaocadáverde

Simão,queumaondalheatirouaosbraços.OcomandanteolhouparaosítiodeondeMarianaseatirara,eviu,enleadonocordame,oavental,eàflordaágua,umrolodepapéis,queosmarujosrecolheramnalancha.Eram,comosabem,acorrespondênciadeTeresaeSimão.

DafamíliadeSimãoBotelhoviveainda,emVilaRealdeTrás-os-Montes,asenhoraD.RitaEmília

daVeigaCasteloBranco,a irmãprediletadele.Aúltimapessoa falecida,hávinteeseisanos, foiManoelBotelho,paidoautordestelivro.

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BAGAGEMDEINFORMAÇÕESmomentohistórico

Os séculos XVIII e XIX foram permeados por revoluções constituídas com base no ideário

iluminista,formadoporumamentalidadelibertáriaqueiadeencontroaoabsolutismomonárquicoeaoantigosistemacolonial.Assim,em1862,quandoAmordeperdição,deCamiloCasteloBranco(1825-1890),foipublicado,

Portugal saía de um longo período de crises políticas e econômicas decorrentes dos efeitos daRevolução Francesa e da Revolução Industrial, que haviam marcado o fim do século XVIII e aascensãodaburguesianaEuropa.DuranteaprimeirametadedoséculoXIX,opaíssofreracomainvasãonapoleônica,afugadafamíliarealeaindependênciadesuaprincipalcolônia,oBrasil.Na segunda metade do mesmo século, porém, a nação portuguesa entrava na Restauração,

período no qual houve o incentivo à modernização e ao desenvolvimento da economia, o queproporcionou certa tranquilidade interna emaior segurança para o florescimento das artes e daliteraturanacionais.ÉnessecenárioqueoRomantismoportuguêsmostraseumaiorvigoreriqueza,compublicações

comoViagensnaminhaterra,deAlmeidaGarrett(1799-1854),eEurico,opresbítero,deAlexandreHerculano(1810-1877).

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1850

AaprovaçãodaLeiEusébiodeQueirósporpressãodaInglaterrapõefimaotráficonegreironoBrasil.Compuniçõesseveras,anormainviabilizouaescravidão,quese

tornoumaisdifícilecara.

1860

Comoconsequênciadatentativaexpansionistaparaguaianosterritóriosuruguaio,argentinoebrasileiro,começaaGuerradoParaguai,violentoconflitoarmadoocorridona

regiãodabaciadoPrata.

1870

ComofimdaRestauraçãoapósaRevoltadaJaneirinha–queabalouPortugalpolíticaeeconomicamente–,oPartidoRegeneradorvoltaaopoder.FontesPereiradeMeloassume

ogovernoedánovoimpulsoàeconomia.

1880

Depoisdeumgolpemilitar,omarechalDeodorodaFonsecaproclamaofimdoImpérioesetornaoprimeiropresidentedoBrasil,substituindooregimemonárquicopelo

republicano.

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BAGAGEMDEINFORMAÇÕESmomentoliterário

Aopassarporprofundastransformaçõesdeordempolítica,econômicaemoral,aEuropaassistiu

aosurgimentodeumdosmaisrevolucionáriosmovimentosdaartecontemporânea:oRomantismo.ComorigensnaAlemanhaenaInglaterraecomaFrançacomograndedifusora,eleaparececomoumacontraposiçãoaoracionalismoiluministadoséculoXVIII.Subjetivaeindividualistaaoextremo,avisãodemundoromânticaécentradanoeu,quesevolta

contra a realidade vigente, fruto da Revolução Francesa, da Revolução Industrial e da eranapoleônica.Nessecontexto,surgemastemáticasdoescapismoedamelancolia,asidealizações,ogostopelosobrenaturaleavalorizaçãodosentimento,danaturezaedaalma.Na literatura, o Romantismo é geralmente dividido em fases, mas seus textos mantêm o

ancoramentonaliberdadeformaledecriação,essencialparaaexpressãoartísticaromântica.Ao escrever Amor de perdição, quando estava preso sob a acusação de adultério, o escritor

portuguêsCamiloCasteloBrancousaomoteshakespearianodoamorproibidopeloódioentreduasfamílias para contar um pouco de sua própria história e ainda ilustrar outras características daprosaromântica,comoatragicidadeeapassionalidadeintensaqueanulamarazão.

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TROVADORISMOHUMANISMOCLASSICISMOBARROCOARCADISMOROMANTISMOREALISMONATURALISMOPARNASIANISMOSIMBOLISMOPRÉ-MODERNISMO

MODERNISMO

Combasenasidealizaçõesdoamor,damulheredoherói,oRomantismodávazãoàimaginaçãoeépalcoparaoescapismo,ouseja,afugadeumarealidadeindesejada.Oescritorromânticotrazàtonaumsubjetivismoexacerbado,pormeiodoqualmanifestasuaindividualidade,delineadaprincipalmentepelasemoçõesepelossentimentos.Aexaltaçãodanatureza,oaspectoconfessional,omisticismo,amorbidez,opessimismoeamelancoliatambémfazempartedaestéticaliteráriaromântica.ORomantismobrasileiro,especificamente,épermeadoporumforteapelonacionalista,pelavalorizaçãodoexotismoedofolcloreeporumatemáticasocialbaseadanoinconformismo.

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ObraconformeoAcordoOrtográficodaLínguaPortuguesaProduçãoeditorial:carochinhaeditorialProjetográfico:NaiaraRaggiottiBagagemdeinformações:SimoneOliveiraeRicardoPaschoalatoIlustrações:KrisBarzDiagramação:RicardoPaschoalatoPreparaçãodetexto:JulianaAmatoRevisão:LeandroMoritaeLucianaSoaresCapa:carochinhaeditorialConversãoemepub:{kolekto}Direitosdepublicação:©2013EditoraMelhoramentosLtda.1.ªediçãodigital,dezembrode2015ISBN:978-85-06-07604-0(digital)ISBN:978-85-06-01138-6(impresso)Atendimentoaoconsumidor:CaixaPostal11541–CEP05049-970SãoPaulo–SP–BrasilTel.:(11)[email protected]

Resenha:AmordePerdiçãoDuasfamíliasrivaiseumamorproibido:nessamisturaexplosiva,sentimentoscomopaixão,ódio,desesperoelealdadedesfilamaocontarumadashistóriasmaisderramadasecomoventesdaliteraturaportuguesa.AmbientadanoséculoXIX,atramasedesenroladeformafrenéticaedramática,bemaogostodasegundafasedoRomantismo,comdireitoatriânguloamoroso,assassinato,suicídioecartas-muitascartasdeamor.