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    SUMRIO

    PREFCIO

    INTRODUO

    CAPTULO 1 AS ORIGENS

    CAPTULO 2 OS ARQUTIPOS

    CAPTULO 3 OS SONHOS

    CAPTULO 4 INDIVIDUAO

    CAPTULO 5 PARA LER JUNG

    CAPTULO 6 ESPIRITUALIDADE JUNGUIANA

    CAPTULO 7 AS QUATRO FACES DE DEUS

    CAPTULO 8 GNOSE E ALQUIMIA

    CAPTULO 9 JUNG E A ARTE

    CAPTULO 10 CONFLITO DE GNIOS

    CAPTULO 11 RESIGNIFICAO

    CAPTULO 12 O CAMINHO

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    PREFCIO

    O renascimento do interesse pela obra de Jung reflete ascondies prprias do terceiro milnio, o clima da Nova Eracom sua espiritualidade difusa e seu pensamento multipolar efragmentado. Poderia ser a sada para a crise da psicologiaprofunda, nome sob o qual usual incluir a psicanlise e apsicologia analtica, alm das demais correntes que lidamcom o conceito de inconsciente. No centro de tudo est,

    claro, a psicanlise, cujas origens situam-se no ambientesombrio dos dias finais do imprio Austro-Hngaro. Com adecadncia do poder poltico, a intelectualidade burguesavienense passou a se dedicar mrbida e compulsivamenteaos temas da sexualidade e da morte. A Viena de Freud noera mais a Viena da msica alegre das valsas, mas, sim, adas sufocantes lembranas de um tempo perdido, o que serefletir, na teoria psicanaltica, em uma preocupaoobsessiva com o passado. Este clima pesado e inquietantemoldou o pensamento de Freud, sem que, talvez, elepercebesse o quanto era vulnervel ao mesmo. Entretanto,na burguesa e republicana Sua, outras correntes deinquietaes fervilhavam sob a calma superfcie de seuslagos, foras muito antigas e poderosas e que muitos

    julgavam desaparecidas. Dali surgiu uma alternativa para a

    psicologia sem alma de Freud, formulada por seu colaboradore depois rival, Carl Gustav Jung, que trabalhou com ele de1906 at 1913.

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    Freud preocupava-se com uma aceitao ampla para suaobra e temia que a psicanlise fosse vista como apenasum movimento cultural judaico. Recebeu Jung, portanto,

    com todas as honras, tratando-o como o prncipe herdeiro,pois sendo o mesmo suo e psiquiatra de reputaoestabelecida, representava para o movimento psicanalticoum nvel maior de reconhecimento internacional ediversidade. Aps trabalharem juntos por sete anos, elesse separaram e passaram a trilhar caminhos bastantediferentes, mas o que os uniu, no incio, foi a paixo por

    um lado da psique humana, denominado o inconsciente,ideia que, de modo vago, j circulava no pensamento dosculo XIX.

    Como escreveu Hugo Von Hofmannsthal1:

    No possumos nosso Eu.ele sopra de fora sobre ns,

    foge de ns por muito tempo,e nos retorna em um suspiro.

    A crise da modernidade provocou o surgimento devariados e exticos sistemas de pensar a naturezahumana, ou modos de ver o mundo, mtodos deinterpretao totalizantes que pretendiam ser capazes deexplicar a nova realidade. Os que permaneceram so

    agora defrontados com a viso crtica da psmodernidade, encontrando o seu maior e, talvez ltimo,desafio.

    1. Hugo Von Hofmannsthal (1875 1929) poeta austraco

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    INTRODUO

    O tempo quente e seco criava uma atmosfera pesada einquietante, prenncio daquelas rpidas e intensas tempestadesde vero, comuns na regio de Zurique. Alguma coisa pareciapreste a explodir e uma enorme ansiedade se apossava daspessoas na casa. Duas xcaras, sem que ningum tivesse se

    encostado nelas, tinham saltado no ar e se espatifado no cho.Jung se inquietava, apesar de ter sido avisado em sonhos.Nesse momento a sineta da porta soou duas vezes. Agovernanta abriu a porta, a tempo de ver a sineta se moversozinha, por uma terceira vez, mas no havia ningum l fora.Voltou assustada para informar ao seu patro, que apenasacenou com a cabea, em um vago sinal de apaziguamento.

    Jung compreendeu que eles tinham chegado. So os mortos,que voltaram de Jerusalm, murmurou. Deu instrues paraque no fosse mais incomodado naquela tarde e que iria ficarsozinho no seu consultrio. Reclinou-se na sua poltrona e suamo, aparentemente sem controle, traou no papel o queparecia ser um ttulo e que dizia simplesmente: Sete Sermesaos Mortos. Jung sorriu, enquanto os vultos enchiam a sala, a

    sua volta. Um mundo extraordinrio e transparente se abria maisuma vez para ele, um mundo que Freud jamais conheceria.

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    CAPTULO 1

    AS ORIGENS

    Freud iniciou a sua carreira como neurologista,dedicando-se ao estudo dos distrbios mentais. Seusprimeiros trabalhos foram sobre pacientes histricas, que olevaram seguinte noo: algo fala de dentro dessaspessoas e no algo consciente e racional. Ele definiu estaparte escura da mente como o inconsciente, embora a ideia,

    em sua essncia, j fora levantada por outros cientistas,como ele mesmo admitiu. Na sua definio, o inconscientetem as seguintes caractersticas: desconhece a palavra no, atemporal, amoral, no esquece nem perdoa e nele nadapassa, nada termina.

    O inconsciente seria a sede das pulses, no sedeixando acessar diretamente. So os atos falhos chamados

    de deslizes freudianos, os esquecimentos inexplicveis, asassociaes livres e os sonhos que permitiro o seu acesso,embora de uma maneira indireta.

    Freud representa um tipo de mentalidade prpria dofinal de sculo XIX e comeo do sculo XX. O estilo dascincias humanas, na poca, espelhava-se nas teorias dafsica e o conceito de energia parece t-lo influenciado,

    levando-o a propor um equivalente psquico, a libido, queseria algo como uma energia sexual. O perigoso fascniopela analogia, que contaminar a psicanlise, comeava a.

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    H ecos tambm do Romantismo, como apassionalidade, a exaltao do conflito de opostos, a

    rebeldia contra a autoridade, o amor impossvel ouinaceitvel o incesto, em particular, a concepo dohomem irracional e a obsesso pelo lado marginal doser humano.

    Jung, por outro lado, vinha de uma famlia religiosae desde criana tinha vises e sonhos premonitrios.Caso sua obra fosse analisada por um esprita, talvezele poderia identificar ali um mdium. Isto est muitodiscretamente colocado em suas obras, mas assensaes que ele descreve como imaginao ativa,podem ser interpretadas como o equivalente dochamado transe medinico. Jung interessava-seprofundamente por filosofia, religio, mitologia, alquimiae esoterismo em geral e foi ficando cada vez mais

    envolvido com misticismo. Freud, entretanto, achavaque a psicanlise, para se firmar como cincia, deveriamanter-se completamente afastada de qualquerconexo com o ocultismo, ou com qualquer forma dereligio.

    Em 1913 ocorreu o rompimento entre Freud e Jung.Aps speras trocas de cartas e muitas discusses,Jung intimado a se demitir como presidente daAssociao Psicanaltica Internacional (conhecida comoIPA). Jung retirou-se e, do primeiro time, s Carl Riklin eAlphonse Maeder o seguiram.

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    Como consequncia, estabeleceu-se em Zurique asede da Associao Internacional de Psicologia

    Analtica (conhecida como IAAP), que congrega osseguidores de Jung e, em Londres, permaneceu a sededa IPA, Associao Psicanaltica Internacional, em tornodos freudianos ortodoxos, embora a situao atual seja,na verdade, muito mais complicada do que isto, masfugiria ao assunto deste livro.Sabine Spielrein curiosa etrgica personagem no pode ser esquecida, pois ela

    teve um papel importante, s agora revelado, graas liberao da correspondncia trocada entre ela e Jung.Sabine comea como sua paciente. No final dotratamento, Jung convenceu-a a se tornar umapsicanalista (essas coisas eram fceis naquela poca).Ela tornou-se amante de Jung, que aps algum tempodecide encerrar a relao.

    Desesperada com o abandono, ela chegou aagredi-lo com uma faca. Posteriormente ela se aliou aFreud e teria contado ao mesmo as opinies negativasque Jung tinha sobre ele, ajudando a envenenar o jdifcil relacionamento entre os dois.

    Jung exercia reconhecidamente um grandefascnio sobre as mulheres, que formavam a maioria

    do seu crculo interno de discpulos, chamadas pormuitos de as valqurias, uma aluso irnica s deusasguerreiras dos mitos germnicos. Esta personalidadecarismtica parece explicar muito do seu sucessocomo terapeuta.

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    Podia ser de um charme extraordinrio quandoquisesse, mas muitas vezes o que aflorava era otemperamento de um rude campons suo. Muitos

    estranharam essa mistura de forte espiritualidade edisposio ao embate acalorado, marcas de umapersonalidade cheia de contradies. Difcil imaginarque Freud, sombrio, amargo e austero, pelos padresde hoje, fosse continuar amigo dele por muito tempo.

    O psiquiatra britnico Ernest Jones, o carrascode Freud, foi o encarregado da tarefa de isolar Jung,

    conseguindo para isso o apoio da maioria dosmembros da Associao Psicanaltica Internacional,atravs de pesadas manobras de bastidores.

    Uma disputa de ideias que, portanto, nunca foiresolvida por um debate aberto, algo muito estranhopara um movimento que se pretendia, pelo menos noincio, uma cincia. Aqui vale lembrar que o mesmo

    tratamento de choque foi aplicado aos demaisdissidentes da psicanlise. As duas correntesprincipais em que esta se cindiu mantiveram por muitotempo a animosidade dos mestres e apenas nas duasltimas dcadas os contatos entre ambas tornaram-semais frequentes. Aps a ruptura com Freud, Jung ficoulivre para elaborar a sua prpria variante da

    psicanlise, que ele denominou de psicologia analtica.Uma das suas mais importantes proposies nessanova fase que, alm do inconsciente individual, cadaser humano compartilharia um inconsciente coletivocom toda a humanidade.

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    O inconsciente, para Jung, no atua somente comofuno do passado pessoal, como props Freud.Tambm gera sonhos premonitrios, percebe eventos

    paralelos em lugares distantes talvez uma forma detelepatia e reflete o passado remoto da humanidade.Um super inconsciente, ao lado do qual o proposto porFreud no passaria de algo bem menor.

    Ponto para Jung? Isto depende de como olharmosa questo. O foco mais estreito de Freud poderia sermais correto cientificamente e a opo de Jung poderia

    parecer uma combinao indevida de coisas. Em seusescritos profissionais, Jung leva a entender que seriaalgo como uma funo hereditria. Em seus escritosparticulares, entretanto, ele parece crer em um acessoda mente a uma fonte espiritual coletiva.

    Conforme o caminho proposto por Jung, oinconsciente no visto apenas com temor, como

    sendo apenas um depsito de recalques, mas observado e praticado em uma postura de admirao eexpectativa.

    Ele percebido como o local primordial, pois de lemana a conscincia, surge algum, um sujeitosingular, preso a uma histria acima de tudo atravs demuitas geraes, uma histria que deve ter uma

    sequncia.O relacionamento com o inconsciente se revelauma dialtica de contnuo desenvolvimento, cujo eixo seencontra fora de ns e que nos escapa sempre, masque ainda assim nos estrutura e nos orienta.

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    Se o inconsciente nos molda e nos cria, aconscincia humana no tem uma histria separada

    dele. Somos, portanto, a histria dessa unio e porisso o centro da psique ser deslocado, por Jung, doego freudiano, essencialmente um conceitoiluminista, para um novo ponto de equilbrio que elechama de Si-Mesmo, ou Self, ncleo de integraode todos os elementos da personalidade, conscientese inconscientes.

    Do inconsciente coletivo, conforme proposto porJung, surgem os grandes mitos da humanidade,manipulados por todas as religies. Os mitos e aslendas podem ser considerados como os sonhos deum povo e devem ser preservados como heranacultural da humanidade, pois no so fantasiasarbitrrias, mas, sim, registros de um longodesenvolvimento psquico coletivo.

    Os estudos de Joseph Campbell, autor de "OPoder do Mito" e "As Mil Faces do Heri", contriburampara mostrar as semelhanas das mitologias dosdiferentes povos, outro fator importante para ahiptese do inconsciente coletivo. Ele, que comoprofessor de literatura estudou mitologia comparada,encontrou em Jung uma base cientfica para as suasobservaes. Ele assessorou o diretor de cinemaGeorge Lucas no roteiro de "Guerra nas Estrelas" que, de fato, uma releitura de mitos antigos.

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    Os padres missionrios espanhis ficaram muitoimpressionados ao encontrar na Amrica, no sculoXVI, entre os astecas, um ritual religioso em que umamassa de sementes de amaranto, mel e sangue eraconsagrada como corpo de deus e depois ingeridapelos devotos. A analogia com a comunho cristhorrorizou os espanhis, que ento proibiram o cultivode amaranto. Poderamos pensar aqui que este ritualestivesse presente, de alguma forma, no inconscientecoletivo.

    Os crticos, porm, enxergam duas outrasalternativas: a difuso cultural, na qual ocorreria alenta transmisso de um conceito de uma cultura paraoutra ao longo dos tempos. Pode ter havido tambmuma evoluo cultural independente, com osurgimento, em muitas sociedades agrrias primitivas,de um ritual em que algum produto da terra,

    simbolizando a fertilidade da natureza, fosseconsagrado e consumido, representando uma uniocom os deuses.

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    CAPTULO 2

    OS ARQUTIPOS

    Os arqutipos no so imagens, na realidade, massim as estruturas de relaes entre motivos e emoes,associadas a padres de comportamento e queaparecem sob a forma de imagens para a psique.Pertencem mesma classe das pulses e no devemser confundidas com as representaes que adquiremnos sonhos e vises. Na realidade, estas formasexteriores variam de cultura para cultura, ou de pessoapara pessoa. a estrutura interna do arqutipo quepertence ao inconsciente coletivo e no a sua

    representao por imagens.importante ressaltar que os arqutipos so

    combinaes de motivos, aes e reaes emocionais,com vrias possveis alternativas de desenvolvimentono tempo e nem sempre podem ser representadas porpessoas. Situaes como o nascimento, a morte e ocasamento, por exemplo, so tambm arqutipos. Jung

    criticava Freud por ter trabalhado apenas um arqutipo,o que ativa o complexo de dipo.

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    Jung foi muito influenciado pelo conceito depolipsiquismo da escola de psiquiatria francesa dosculo XIX, isto , a ideia de que a mente o resultado

    do funcionamento de unidades semiautnomas, que eledenominou de complexos e que, no caso de umapersonalidade bem integrada, atuariam em sintonia,criando a unidade da psique. Uma ciso temporria naintegrao da personalidade possibilita o surgimento decomplexos autnomos que adquirem domnio sobre apersonalidade, em resposta a uma forte crise.

    A esse conceito, digamos, horizontal, secontrape o conceito vertical de Freud, de que apersonalidade o resultado de uma sequnciahistrica de acontecimentos na vida do indivduo,conceito influenciado pela psiquiatria alem da pocaque via, na histria da linhagem familiar, no sucessivoenfraquecimento do sangue atravs das geraes, arazo do surgimento de doenas mentais. Freud mudaapenas o conceito de histria das geraes para o dahistria do indivduo. Em vez de sangue ruim, infnciaruim. Para Jung a dissociao da personalidade ofator principal de crise, enquanto que para Freud orecalque que ocupa esse papel.

    Para o pensamento mecanicista e reducionista de

    Freud, a complexidade da personalidade se criasimplesmente a partir de nveis ascendentes deinteraes sucessivas de princpios bsicos simples,biolgicos, no caso as pulses, com o ambiente,criando, portanto, um determinismo histrico-biolgico.

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    Para Jung esta complexidade tambm dependede outra direo, descendente, partindo de umaorientao preexistente de um nvel superior. Osfatores bsicos de motivao ficam bastanteampliados em relao teoria freudiana, o que resultaem um sistema aberto, estando o ego pressionadotanto pelas pulses, quanto por uma quantidadeindeterminada de arqutipos. preciso lembrar queso as associaes de uma sequncia de padres decomportamento e atitudes, com as respectivasemoes, que identificam o arqutipo. Podemos dizer,

    simplificadamente, que o arqutipo uma formacomplexa e elaborada de pulso.

    Entre os principais arqutipos, podemos ressaltaro do heri salvador. Esse mito surge em todas asculturas, em todos os tempos, sempre gerando muitaemoo. Seu nascimento sempre misterioso, correperigo de vida quando criana, demonstra sabedoriaprecoce, informado de seu destino, geralmente,atravs de um mentor, submetido a uma srie deprovaes, executa aes milagrosas em prol de seupovo e no final trado e morto.

    O arqutipo do heri salvador explicaria a fora demuitas religies, pois quando se associado a umarqutipo, uma tremenda energia emocional desencadeada. Sobre a pessoa que est sendoconsiderada como um heri em potencial, comea aatuar a projeo por parte dos que o admiram,reforando o processo de identificao com o arqutipo.

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    Caso ocorra essa dupla situao, teremos, atravsdo reforo mtuo, o surgimento de um personagemhistrico com uma atuao representativa do arqutipodo heri salvador. Aps a morte do assim considerado

    heri, os seus adeptos simplesmente transferiro aprojeo para a instituio que ele deixar, ou foratribuda ao mesmo. Este mecanismo, fonte de enormepoder, a base de quase todas as religies, o mitofundador, que parece ser uma condio essencial paraqualquer entidade que pretenda sobreviver atravs dossculos.

    Jung usou uma analogia com o espectro da luz,sugerindo que se o consciente fosse a luz visvel, aspulses estariam na regio do infravermelho, tendo asua base na fisiologia. No outro extremo, na regio doultravioleta, teramos os arqutipos, cuja formao viriade um nvel superior, os princpios organizadoresuniversais.

    Em um nvel prximo, individual, teramos o efeitodos arqutipos residentes de atuao permanente econtnua que so, na realidade, complexos que seformam em torno da ativao de determinadosarqutipos (a persona, a sombra, a anima e Self). Essasimplificao, embora de uso corrente, fonte deconfuso, uma vez que o arqutipo reside no

    inconsciente coletivo e no no individual.

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    Os arqutipos residentes - na realidade, complexos esuas representaes nos sonhos sero descritos a seguir,de uma forma sucinta:

    A anima (ou, para as mulheres, o animus) o ladocomplementar, de sexo oposto, que atua como acesso aoinconsciente coletivo. a parte de nossa personalidadeque lida com o transcendente e, portanto, com o espiritual.As pessoas muito pragmticas e extrovertidas podem ter

    dificuldade de perceber sua anima. A anima surge nossonhos como uma fada ou uma deusa, ou algum ser alado.

    A sombra o lado obscuro, rejeitado da personalidade,que pode surgir nos sonhos como um malfeitor ou algumde aspecto grotesco. Equivale vagamente ao Id freudiano.Nem sempre negativa, podendo representar ashabilidades e os dons no desenvolvidos de uma pessoa.

    Reconhecer e aceitar sua sombra faz parte do processo deindividuao.A persona a mscara com qual nos apresentamos ao

    mundo. a parte da nossa personalidade acessvel soutras pessoas no convvio dirio. Em grande parte consciente, embora sua formao seja determinada porprocessos inconscientes.

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    O Self - tambm chamado de Si-Mesmo em algumastradues - o arqutipo que representa equilbrio,aceitao, conciliao, integrao e totalidade. O Selfpode surgir nos sonhos como a figura de Cristo, ou umrei, ou um smbolo circular, como o sol ou uma mandalaou, s vezes, como uma rvore. O complexo central dapersonalidade, ativado por esse arqutipo, tambmchamado de Self , ao mesmo tempo, o ponto central eo todo da psique. Enquanto o Self como arqutipo fcil

    de entender, o Self como complexo da psique umconceito bastante complicado. A notar que nos escritosiniciais de Jung falava-se em Imago Dei e no em Self.

    Este complexo superior, capaz de coordenar todosos outros, inclusive o complexo do ego, seria oequivalente de uma representao interna da divindade,um smbolo do deus interior. Costuma surgir nos sonhos

    quando se inicia o processo de individuao erepresenta um processo de busca do equilbrio naatuao dos diferentes complexos e uma integrao dosfatores conscientes e inconscientes.

    Este processo se inicia por uma viagem interiorcheia de perigos na sua parte inicial (o confronto com olado obscuro da mente, nossos demnios interiores)podendo, se mal conduzido, levar a uma perda decontato com a realidade.

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    CAPTULO 3

    OS SONHOS

    Os sonhos sempre interessaram a humanidade,sendo associados religio, mensagens dos deuses oudos mortos, ou previses do futuro. No sculo XIX,entretanto, os sonhos eram vistos pelos homens dacincia como um fenmeno de descontrole, como se o

    crebro adormecido funcionasse desordenadamente,ao acaso.

    Freud vai recuperar a importncia dos sonhos,considerados por ele como a Estrada Real para oInconsciente. Esse lance de mestre por ele mesmoconsiderado como a sua maior descoberta ,revolucionaria para sempre a psicologia. Sonhar no

    custa nada, mas desprezar suas mensagens podecustar muito caro. Um antigo provrbio diz que umsonho no analisado como uma carta importante quea pessoa recebe e joga fora sem a abrir. Os livros deinterpretao de sonhos que existiram em tantasculturas constituam sistemas fixos de interpretao,mas a partir de Freud e de Jung, uma novidade

    importante surge: a interpretao depende do contextopessoal.

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    Para Freud, o sonho a realizao de um desejo,mas este desejo no aparece de uma forma clara. O

    sentido latente fica disfarado no sentido manifesto,processo denominado trabalho-do-sonho, que ocorrepara driblar o censor da conscincia. Aqui h umadiscordncia importante com Jung, que considerava nohaver tal processo, uma vez que, no momento dosonho, esta funo crtica deveria estar desativada;caso contrrio, por que existiriam os pesadelos? E se a

    conscincia est em repouso, o que este censoracordado? No pode ser parte do Inconsciente, pois oInconsciente no censura.

    Para os freudianos, o sentido manifesto do sonho,sua narrativa aparente, rapidamente abandonado eatravs do mtodo das associaes livres, procura-seatingir o contedo latente, sua mensagem oculta, ouseja, percepo dos complexos. Jung, porm,discordava frontalmente disto, achando que esteprocesso equivaleria a se afastar do sentido especficodo sonho.

    Para Jung as imagens do sonho so umalinguagem simblica prpria, no lgica, especfica doinconsciente. No conseguimos acessar facilmente asinformaes do inconsciente, no em funo dorecalque, mas porque estes dados esto em umalinguagem que no entendemos (imprecisa, emocional,sem logica, amoral, desconexa em relao ao tempo eao espao).

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    Ele achava que o contedo manifesto, a narrativa

    original, de suma importncia e por causa disso omtodo da amplificao usado, procurando-se o maiornmero possvel de referncias associadas s imagensoriginais. Os sonhos sero, portanto, interpretados dediferentes modos pelas vrias correntes da psicologiaprofunda, incluindo a a grande diferena que para Jung ossonhos podem estar se referindo ao futuro, e no apenasao passado. As terapias convencionais buscam umaadaptao, pretendem moldar o psiquismo a uma linha denormalidade preestabelecida e, portanto apresentam um

    juzo de valor, por mais disfarado que possa parecer. Aocontrario, tanto na psicanlise quanto na psicologiaanaltica proposto um mergulho nas profundezas do ser,um autoconhecimento sem um referencial tico prefixado.Os sistemas de Jung e de Freud tm em comum, alm do

    individualismo, o relativismo moral e compartilham domesmo ponto fraco, que a falta de uma viso poltica esocial. Apesar dos grandes esforos, por alguns de seusadeptos atuais para a incluso de uma agenda de atuaono campo social, esta se revela algo desajeitada, precriae ineficaz, problema que remonta origem dessessistemas, como veremos adiante.

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    Do lado da psicologia analtica, o grande defensor da

    atuao poltica Andrew Samuels. Segundo ele, a nicacoisa em que os analistas so realmente bons emconseguir que as pessoas expressem conscientemente oque j sabem inconscientemente, mas ainda noperceberam ou pensaram.

    Os analistas deveriam se aliar expressamente aosgrupos marginais ou minorias, desvendando a experincia

    psicolgica de ser um excludo. Eles poderiam ajudar asuperar os esteretipos defensivos impostos pela culturadominante, ao analisar a natureza e a existncia dadiferena em si, como se sentir diferente, como viveressa diferena.

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    Quando o Ego se defronta com o Self, isto se parecemuito com uma experincia religiosa, como a dos grandesmsticos como Meister Eckhardt, Tauler, Hildegard VonBingen, Angelus Silesius e So Joo da Cruz e seus

    encontros com o Deus interior. Jung mergulhou nesseprocesso, de 1913 a 1916 e relatou o extremo desgaste e aameaa de colapso mental que essa sua viagem interior lheprovocou. Existem registros de que, no incio da psicologiaanaltica, vrios pacientes foram levados atravs dessemesmo processo, tendo o analista como guia. O caso maisbem documentado foi o de Herman Hesse1, que escreveu

    Demian inspirado no seu processo de individuao. Essemodo de encarar o processo de individuao como umacrise aguda de grandes propores, estimulada peloanalista, que comearia por uma nekyia, ou descida aosinfernos, foi abolido na psicologia analtica a partir dos anos70, quando vrias prticas polmicas - entre elas a da SororMystica- foram abandonadas.

    CAPITULO 4

    INDIVIDUAO

    __________1. Herman Hesse (1877 - 1962) escritor alemo.

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    Andrew Samuels, a grande voz do bom sensodentro da psicologia analtica, sugere que o processode individuao seja visto como trs possibilidades

    distintas: a primeira, um processo genrico deamadurecimento ao longo de toda a vida. A segunda,como um processo tpico de crise na meia-idade, querequer um esforo deliberado de superao, mas que,a rigor, consistiria de um processo de evoluo eadaptao. No terceiro sentido, esse sim prprio dapsicologia analtica na sua fase heroica, o processo de

    individuao seria um processo mais drstico ecomplexo, envolvendo uma integrao total dapersonalidade, incluindo aspectos transcendentais,algo que seria restrito a pessoas com necessidadesespirituais mais profundas. Ao centrar o foco nasquestes sexuais e na sua ligao com a infncia maistenra, aos cinco anos o jogo j est feito, disse Freud,

    o pensamento freudiano subestima o desenvolvimentoda personalidade nas etapas posteriores da vida.A religio se reduz neurose obsessional coletiva

    da humanidade e o surgimento de temas mticos emsonhos seria apenas a revelao de insignificantesresduos fsseis do inconsciente. exatamente sobretais resduos, contudo, que Jung vai construir sua

    grande obra. Se para Freud a religio uma doena,para Jung a falta de religio, mais especificamente afalta de uma vida espiritual, que seria uma doena.

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    CAPTULO 5

    PARA LER JUNG

    Ao contrrio de Freud, que foi um brilhanteexplanador, Jung, com os seus trabalhos densos,introspectivos e tcnicos, jamais superou suas

    dificuldades de comunicao. Mesmo o livro maisconhecido sobre o pensamento junguiano, "O Homeme seus Smbolos", do qual ele apenas escreveu oprimeiro captulo, rende-se a essa dificuldade. Seusdiscpulos, a quem orientou e encarregou de escreveros demais captulos, tambm no primavam pela artede comunicao, com exceo de Jolande Jacobi.

    Uma farta gama de belas ilustraes, presentes namaioria das edies, tenta compensar visualmente oque falta no texto complexo, mas em vo procurar-se-, ali, a alma do movimento junguiano. Para termosuma melhor ideia de quem foi Jung, preciso ler,antes de tudo, o livro "Memrias, Sonhos, Reflexes",parcialmente escrito por ele e completado, com basenos seus dirios, por Anniela Jaff.

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    Que Jung difcil de ler, talvez esta seja a nicaunanimidade a respeito da sua obra. Parte dadificuldade a sua inteno de esconder ou minimizar oforte contedo espiritual presente na mesma. Umaassociao com fenmenos espiritualistas levaria a umaacusao de ocultista, que representava, para amentalidade ento dominante, uma ideia de coisadoentia, louca, decadente, que poderia destruir suacredibilidade cientfica. Da o cuidado com que evitatermos que poderiam soar estranhos ou mesmo nocientficos. Por exemplo, o que ele chama deimaginao ativa poderia ser entendido como transemedinico ou, diramos hoje, estados alterados daconscincia, mas este um assunto que ele queriaevitar a todo custo. A um leitor descuidado poderiaparecer que ele est falando sempre de sonhos, masanalisando-se bem o texto, percebe-se que este no ocaso.

    Arqutipo um termo que cobre vrias situaesdiferentes na sua obra. Em algumas situaes o termose refere s prprias imagens arcaicas, em outras apredisposies atemporais, estruturas sem contedo.Em outras, ainda, so determinantes teleolgicos,afetando o desenvolvimento da psique como atratoresestranhos. Em algumas passagens do texto, contudo,

    no h como evitar a estranha sensao de que o termoativao de arqutipos poderia ser substitudo porpossesso por espritos.

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    Mais uma vez nos deparamos com a famosaambiguidade de Jung e as suas tentativas de esconderuma conexo espiritualista. Essa ambiguidadeocasional, que afinal ele mesmo admitiu ter empregado,exige um trabalho de releitura. preciso lembrar queat o final da sua vida ele repudiava com veemncia oepteto de mstico.

    As dificuldades no param nisto. Para provar suasideias, ele normalmente no usa um simples raciocniodedutivo, mas algo que poderamos chamar deprocesso de ilustrao. Cita uma longa sequncia deanalogias e exemplos, similares ideia original e, a umdeterminado momento, d-se por satisfeito. O acmulode evidncias paralelas parece ter sido suficiente paraele. O leitor fica com a estranha sensao de ter puladoo trecho do texto onde a ideia teria sido demonstrada.Isso pode parecer pouco cientfico para ns, mas no

    para a poca, quando o modelo mais admirado decincia era a arqueologia, no no sentido atual, mas moda de Heinrich Schliemann, o descobridor de Triaque, munido de versos de Homero, ps e uma brilhanteimaginao, julgou ter descoberto a Tria da Ilada. Suamulher, Sophia, desfilava nos melhores sales daEuropa usando as joias encontradas nas escavaes,

    que Schliemann jurava, mesmo sem provasconvincentes, terem pertencido a Helena de Tria. Aatuao de uma mente ousada, aventureira eespeculativa, parecia naturalmente cientfica para oscontemporneos de Jung e Freud.

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    Os textos de Jung tambm atravessam com algumadificuldade a barreira da latinidade. Portam uma pesada e

    quase indecifrvel ironia norte-europeia, um modo peculiar,espiralado, de rodear o assunto, multiplicando as descriesparalelas, inflacionando o texto de substantivos, algo estranho nossa maneira latina, digamos, adjetivada. A Frana, porexemplo, apresentou uma significativa resistncia s ideiastanto de Freud como de Jung. Os franceses sempreconsideraram os pensadores germnicos como soturnos esombrios, depressivos e indigestos. Junte-se oantigermanismo ao antissemitismo da burguesia e teremos aperfeita barreira s ideias de Freud na Frana da poca.

    S com o alegre jogo de palavras de Lacan que,finalmente, Freud se tornou palatvel para os sutis intelectosgauleses. Enfim, uma psicanalise francesa! exclamarEdouard Pichon. E o que aconteceu foi que essaPsicanalise Francesa direcionou-se para teoria e analisetextual, em vez de priorizar a prtica clnica. Contra obiologismo de Freud, surge ento Lacanismo, filosfico eliterrio, muito mais prximo da tradio intelectual francesa.Alm disso, o movimento lacaniano vai herdar do meiointelectual parisiense, fortemente impregnado de marxismo, ozelo doutrinrio, a impacincia com pensamentos divergentese uma auto confiana injustificvel.

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    Por um outro lado, curioso o interesse por Jungno Brasil, onde, pelo menos em tese, a averso

    introspeco profunda seria um trao culturaldominante. Pode-se supor que haja um terrvel mal-entendido na fonte, pois esta introspeco profunda, nasua vertente germnica, uma busca frentica ealucinada do eu interior, uma procura obsessiva daprpria identidade, com mpetos destrutivos, moda deNietzsche e no de acordo com a nossa vertente

    melanclica e jansenista. Os textos de Jung estoimpregnados dos sentimentos da sua classeconservadora, com citaes profusas de autoresclssicos gregos, alm do inevitvel "Fausto" deGoethe1, conhecimentos comuns s pessoas de suaeducao no mundo cultural germnico de ento.Plato, Kant, Schoppenhauer e Nietzsche soinfluncias importantes na sua obra que , sob certosaspectos, uma resposta a Nietzsche. Mesmo assim, preciso lembrar que informaes importantes sobreJung foram por muito tempo omitidas, como as vriassesses medinicas das quais ele participou entre 1920e 1923 e o que teria sido o seu maior sonho (ou transe)em que ele se sentiu transformado no deus Mitras, fatoss divulgados aps 1980. Essas histrias geraramacusaes posteriores de que ele estaria tentandofundar um culto.

    1. Johann W. Goethe (17491832), o grande gnio da literatura alem.

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    Alm da arqueologia e da mitologia, temos umainfluncia da contracultura da poca em Jung, o que no

    ocorre com Freud. um pouco difcil definir asdimenses exatas dessas influncias, mas o ocultismo eas ideias de um retorno a uma religio anterior aocristianismo certamente esto presentes nas divagaesda chamada volkisch kultur, a cultura popular germnicada poca.

    A onda orientalista, que surgiu a partir do

    movimento hippie dos anos 60, foi um movimentodifuso, populista, liberal, no hierarquizado, repleto decores, danas e incensos. Mas a onda orientalistaesotrica que varreu a Europa dos meados do sculoXIX ao incio do sculo XX teosofia, antroposofia eoutros teve um carter diferente, dual. Mas foi,principalmente, um orientalismo conservador, elitista ehermtico.

    Algumas formas, contudo, atingiram um pblico noconvencional e passaram a integrar o circuito decontracultura de Schwabing-Ascona, de 1880 at 1920,que foi o equivalente do movimento hippie dos anos 60do sculo XX. Schwabing era o bairro bomio deMunique e Ascona, na Sua, o ponto de encontro dos

    jovens adeptos do amor livre, das drogas e dos cultos natureza, para o que naturalmente ajudava muito que apolcia sua fosse mais tolerante que a alem.

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    Jung, certamente, esteve em contato com algunsdesses elementos, diramos hoje, alternativos, porquemuitos acabavam internados, provavelmente porconsumo excessivo de drogas, no hospital psiquitricode Burghlzli, onde ele clinicava como psiquiatra.

    Essa contracultura teve uma estranha combinaode elementos: o orientalismo, o culto natureza e aosolo da ptria, o povo como entidade mtica, a

    mitologia germnica como fonte de inspirao, apaixo pelos acampamentos ao ar livre e cnticos emtorno de fogueiras, elementos que o nazismo soubemuito bem explorar.

    Como a mitologia germnica ficou fora de modapor causa da sua adoo pelo nazismo, hoje em dianossos esotricos apelam para a mitologia cltica, que

    no tem essa vinculao, embora aparentada econtinuam as danas sob o cu estrelado, as tnicasbrancas, o culto Lua. Sai Wotan, entram os druidas.

    Em todo caso, no convm alimentar iluses.Filhos de sua poca, tanto Jung quanto Freud, erampoliticamente conservadores e adeptos de soluesautoritrias, sem nenhuma simpatia com posies de

    esquerda. Ambos mantiveram suas vidas, pelo menosoficialmente, dentro dos padres da respeitabilidadeburguesa vigente.

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    Em que sentido, ento, poderiam ser consideradosrevolucionrios? Na realidade, esses presumveisherdeiros do iluminismo eram portadores de uma visohumanista e liberal restrita ao campo do comportamento

    individual.Estavam em oposio, apenas, a uma posturaautoritria que pretendia impor um controle rgido doscomportamentos e dos modos de pensar individuais,uma caracterstica marcante da era Vitoriana. Em umaanlise sociopoltica, deveramos considerar que osurgimento da psicologia profunda caracteriza, a rigor,

    apenas uma revolta liberal e no uma revoluo nosentido mais amplo. Isso talvez explique porquetentativas posteriores de achar uma conexo entre apsicanlise e os movimentos de reforma da sociedade(como tentaram Wilhem Reich, Herbert Marcuse, JeanPaul Sartre e Norman Brown) nunca foram bemsucedidas. Parecia tentador ligar a libertao doindivduo libertao das massas, mas isto acabou serevelando um projeto utpico.

    Deve-se registrar tambm que Jung foi acusado desimpatia pelo nazismo, pois em alguns de seus escritosnota-se alguma velada admirao pelo mesmo,essencialmente pelas foras mticas desencadeadas,postura que ele abandonou a partir de 1938, horrorizadocom os rumos que as coisas tomaram. Mas a sombraficou, pelo menos pelas estranhas companhias, umavez que os crculos de hermetismo e a extrema direitasempre tiveram uma certa afinidade entre si, comodocumentado no livro de Miguel Serrano, Hesse e Jung

    histria de duas amizades.

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    A modernidade fez surgir na terra de ningum entreo recuo da Igreja e o avano da Cincia, dezenas denovos sistemas de pensamento, a maioria deles

    baseada em racionalizaes parcialmente cientficas, arigor misturas de ideologia e cincia, com a tpica eenervante tendncia militncia. Criados de um modoextremamente personalista, abusivamente abrangentes,muito marcados pelo contexto especfico de uma poca,a modernidade, e de uma cultura eurocntrica,utilizaram mtodos de divulgao e converso

    semelhantes a movimentos polticos ou seitas.Freud tinha percebido claramente o perigo de serconsiderado apenas mais um ponto de vista e escreveuum longo texto negando que a psicanlise fosse ummodo especfico de ver o mundo e que, na realidade,ela deveria fazer parte da viso cientfica geral. Ele usouo termo alemo weltanschauung, literalmente

    cosmoviso, mas o seu raciocnio parece bastanteingnuo para os tempos de hoje, em que as grandesnarrativas perderam seu brilho e tm que dividir oespao democraticamente com uma infinidade de novasopes.

    Os defensores atuais da psicanlise preferem umaatitude mais elstica, jogando em trs posies

    simultaneamente. Assim, a psicanlise seria umacincia, um processo teraputico e um mtodo deinterpretao e investigao, querendo dizer com issoque se trata de um sistema triplamente qualificado.

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    A questo, porm, se na realidade no se tratade uma combinao incompleta de um pouco de cadauma dessas coisas. No modo pragmtico e imediatista

    atual, as pessoas esto mais preocupadas comsolues do que com interpretaes e, portanto, sotempos de crise para a psicologia profunda.

    Esta crise no deriva de que a psicanlise estejacerta ou errada, mas da incapacidade de uma frmula,to vinculada modernidade, se manter dominante emum mundo ps-moderno, no qual o contexto no lhe absolutamente favorvel. A psicologia analtica s nofoi to atingida porque inclui elementos que soespecialmente caros ao pensamento contemporneo,como a questo espiritualista, da qual James Hillmantentou, sem sucesso, se libertar.

    Andrew Samuels distingue, com fina ironia, quatrotipos de analistas junguianos: o fundamentalista, que seorienta rigorosamente pela vida e obra de Jung; oclssico, ligado s ideias pessoais de Jung, mas comuma viso crtica. O desenvolvimentista, que associa apsicologia analtica com os estudos freudianos sobre odesenvolvimento da criana e do adolescente.Finalmente, o chamado psicanaliticamente orientado,que valoriza a transferncia como o problema maior e,

    neste caso, a diferena entre esse modelo e apsicanlise ortodoxa freudiana cai quase a zero.

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    CAPTULO 6

    ESPIRITUALIDADE JUNGUIANA

    O pai de Jung, Paul Jung, era um pastor

    protestante que parece ter perdido progressivamente asua f, ficando bastante deprimido em consequncia,situao que o jovem Jung acompanhou angustiado eque o influenciou muito, tanto que ele atribuiu a morteprecoce do pai ao fato de a religio no ter sido capazde lhe dar uma vida espiritual de intensidade esperada.Para sempre carregaria uma desconfiana pelo

    cristianismo e um desejo inconsciente de reform-lo.A me de Jung, Emilie Preiswerk, como tambmvrios parentes do ramo materno, tinham donsmedinicos. O pai de Emilie, Samuel Preiswerk, quetambm era pastor, conversava com sua falecidaprimeira mulher e costumava pedir sua segundamulher que ficasse atrs dele enquanto fazia sermes,

    para afastar os maus espritos que ele sentia perto de si.

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    Helene Preiswerk, prima de Jung, tambm tinhaestranhos poderes e foi o tema da dissertao doutoralde Jung: "Sobre a Psicopatologia dos FenmenosDitos Ocultos". No trabalho ela citada com um

    pseudnimo, mas como Basilia era uma cidadepequena, todos acabaram por identific-la. Ela,provavelmente por causa disto, jamais conseguiucasar-se. Na poca, tais dons eram interpretadoscomo o chamado sangue fraco, meio caminho andadopara a loucura, destino provavelmente temido porJung. Talvez, por isso, ele quisesse tanto tornar

    cientficas as observaes sobre fenmenosparanormais, justificando essas tendncias, retirando asua ligao com a chamada fraqueza da mente e evidente que nesse caso ele advogava em causaprpria. Os fatos relatados acima explicam porque aposio de Jung em relao espiritualidade foi toinfluenciada por fatores familiares.

    Quando lhe perguntaram se acreditava em Deus,Jung respondeu: "Eu no acredito (...) eu sei!" Areligio para ele, portanto, no era nem uma crenaracional, nem f em uma revelao transmitida. Seriauma vivncia interna, intensa e individual, como paraos grandes msticos, cuja experincia de Deus pareciabem pouco ligada estrutura oficial das religies

    organizadas. De fato ele afirmava que a religioorganizada a melhor maneira de matar a experinciaespiritual. Esta espiritualidade selvagem, que elepropunha, no teria realmente como agradar scorrentes religiosas mais conservadoras.

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    Esta a distino fundamental que ele fazia: ofenmeno religioso era uma realidade para a psique,

    mas nada se poderia dizer sobre a existncia da coisa-em-si. Nisso ele pretendeu seguir a filosofia de Kant1

    ,mas os filsofos profissionais consideram que elemanipulou esses conceitos, apenas para evitar definir-se sobre a realidade ltima das coisas espirituais. Jos telogos negam que a religio possa se basear naanlise de experincias e observaes psicolgicas,uma vez que seu poder deriva da verdade revelada,portanto, fora do alcance da pesquisa emprica. Essafoi a posio do padre dominicano ingls Victor White,que passou trs meses discutindo com Jung, a convitedo mesmo, sem que eles chegassem a umentendimento comum. Pouco tempo aps a morte dopadre Victor White, Jung escreveu para seus amigos,lamentando essa perda e declarando que gostaria queo mesmo tivesse sido seu sucessor. Estranhaspalavras para quem sempre insistia que seu sistemano era uma religio. Se Jung pretendeu recriar umculto pago, direcionado a Mitras ou Dionsio conformesuposio precariamente formulada por seus crticosmais radicais, ou simplesmente propor uma reforma docristianismo, tornando-o mais mstico, como afirmam

    outros, uma questo aberta a debates, mas deinteresse apenas histrico.

    1. Immanuel Kant (1724 1804), filsofo alemo.

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    Embora nenhuma religio d a sua aprovaooficial, na prtica os contatos so intensos epermanentes. Existem, no momento, vrios padrescatlicos e pastores protestantes que so analistas

    junguianos, sem que o grande pblico se d conta.

    No "Guild of Pastoral Psychology" analistasjunguianos e padres da igreja anglicana se renemsemanalmente em Londres, h cinquenta anos. Devemser lembrados tambm os interessantes debates com o

    reverendo Vincent Cox, de confisso anglicana, queconstam da obra de Jung "Vida Simblica.A partir de 1980 o pensamento junguiano foi sendo

    redescoberto pelo grande pblico, coincidentementecom a falncia do modelo materialista, mecanicista ereducionista da cincia e com o surgimento gradual deuma nova espiritualidade. Esta nova espiritualidade, ou

    espiritualidade da Nova Era ou onda de esoterismo,como popularmente conhecida, parece ser umfenmeno catico, principalmente se observarmos oecletismo das chamadas lojas de artigos esotricos. Seprestarmos ateno, contudo, veremos que algumasideias do uma certa unidade a esse conjunto demovimentos, como a ideia de que a religiosidade muito mais uma experincia pessoal do que asubmisso a uma verdade revelada. Podemos observartambm a aceitao da expresso multicultural, ou seja,a ideia de que a liturgia e os textos sagrados so visesculturalmente diferenciadas dos mesmos fenmenosespirituais bsicos.

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    Ainda outra ideia a do carter sagrado do mundoem que vivemos, uma certa viso pantesta. Tudo isso

    encontra apoio direto nos escritos de Jung, que enxergao ser humano como conectado a uma Alma do Mundo,referida tambm como Anima Mundi ou Unus Mundus.

    No de se estranhar, portanto, que Jung tenha setransformado em um guru da nova era, embora isso levea uma viso limitada de sua obra. Os que se fascinampelos aspectos mgicos da vida de Jung provavelmente,

    se decepcionaro com seus seguidores atuais. Hsempre uma distncia entre o criador de uma obra e ainstituio por ele legada e a psicologia analtica atualtornou-se, gradualmente, um movimento psicoterpicoquase convencional, embora com um interesse incomumpor questes de religio e espiritualidade.

    O desejo humano por transcendncia encontra ecoem Jung, mas no em Freud. Seria de se esperar que asreligies organizadas tivessem se interessado por aquele,devido sua abertura para o fenmeno religioso. Aconcepo junguiana, contudo, insinua o que os lderesreligiosos mais temem: que a diferena entre as religiesseja pouco relevante, sendo a experincia direta dadivindade possvel atravs de qualquer uma delas oumesmo sem elas e, portanto, o interesse por Jung surgemais da periferia do poder eclesistico do que do seucentro.

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    Tambm no poderia conquistar muita simpatia aopinio dele de que as religies organizadas tradicionaisseriam como conchas abandonadas de moluscos,

    estruturas ocas, das quais a verdadeira vivnciareligiosa j teria partido h muito tempo.

    Alguns estudiosos pretenderam achar semelhanasentre o pensamento de Jung e o budismo. umacomparao difcil de ser feita, pois existem vriasformas de budismo e a terminologia utilizada no temequivalente exata no pensamento dito ocidental. Sempre

    possvel achar analogias, mas no caso o mais correto admitir que haja alguns pontos de semelhana, talvezapenas com a tradio budista da linha Teravada. Anossa tendncia de colocar os sistemas de pensamentoem categorias rigorosamente definidas pode ser a razodas nossas dificuldades de entendimento, uma vez queno mundo budista e hindusta no existe uma fronteira

    definida entre psicologia, filosofia e religio.Curiosamente, o pensamento de Jung partilha destemesmo problema, pois transgrede as mesmas fronteiras.Para muitos psiclogos no seria verdadeiramente umapsicologia por causa da sua vertente espiritualista; paraos telogos no tinha nada a ver com religio por causado seu empirismo e para os filsofos era um sistema

    insuficientemente estruturado.

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    CAPITULO 7

    AS QUATRO FACES DE DEUS

    Um tema recorrente em Jung a significaomgica do nmero quatro. Ele considerava que na

    Trindade crist faltava uma pessoa e escreveu um longoartigo de elogios ao dogma da Assuno de NossaSenhora promulgada por Pio XII. Finalmente, afirmava,temos a quarta pessoa, o personagem feminino quefaltava. Podemos imaginar a consternao que esteelogio deva ter produzido no Vaticano, naquela poca.

    Jung sugeria, com notrio exagero e falta total de

    senso poltico, que tambm no se podia excluir o ladomau de Deus e que o diabo tambm deveria sercontemplado, levando o reverendo Vincent Cox aindagar, exasperado: "Afinal, o senhor quer quatro oucinco pessoas divinas?", para o que Jung no forneceuqualquer resposta satisfatria.

    Estas incurses de Jung pelo campo teolgico

    sempre foram recebidas com reservas, principalmente oseu livro "Resposta a J", com consideraes sobre ochamado problema do mal.

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    Neste trabalho ele mostra o Deus do AntigoTestamento como arrogante e prepotente com J. Afinal,

    jogar todas as desgraas do mundo sobre o pobre homem

    s para ver se ele era realmente fiel, est bastante distantede um Deus infinitamente bom e justo. Jung mostra um Jmoralmente superior, que leva Deus a querer seaperfeioar, levando-O sua deciso de se encarnar comohomem. Essa concepo, digna de um Jos Saramago ,no mnimo, uma bela criao literria. Para os telogos, aposio a mesma de sempre: Jung est fora do seu

    campo, no deveria tratar de teologia.Mas qual a razo de Jung tocar nesse assunto?Simplesmente porque o Deus que aparece nos sonhos deseus pacientes e nos dele prprio, um Deus com umaface cruel, que inspira temor. De acordo com Jung, se oinconsciente revela um Deus to terrvel, esta impressodeve decorrer de um fator psquico inconsciente queconhece a essncia ambivalente da divindade, de fato oSenhor do Bem e do Mal. Jung mostra que apenas ocristianismo insiste na bondade absoluta de Deus,embora com a exceo do calvinismo, que aponta Deuscomo justo, mas se recusa a defini-lo como infinitamentebom. Para a maioria das outras religies a divindadesuprema seria tanto criadora como destruidora.

    A obra de Jung suscita grandes objees por partedos setores cristos mais conservadores. A "CoalizoAmericana dos Cristos Conservadores" chega aconsiderar, com grande exagero, Jung como a maiorameaa ao cristianismo nos tempos atuais.

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    Este temor deriva da grande penetrao dopensamento junguiano junto s bases da maioria dasdenominaes crists. Para esses conservadoresJung um caminho para o neopaganismo, um fatorprincipal do movimento Nova Era corrente. Nopodemos nos esquecer, contudo, da origem calvinistada maior parte do cristianismo americano, com todasas implicaes em termos de suspeita, excluso edesprezo aos considerados no eleitos. Alavancadaspelo seu grande poderio financeiro, as organizaes

    crists conservadoras americanas esto apoiandotodo e qualquer ataque a Jung, como o tendenciosolivro de Richard Noll, "O Culto a Jung", exemploacabado do que a crtica literria chama hoje depatografia, ou seja, uma biografia que vasculha todosos aspectos negativos que se possa encontrar sobrealgum, concentrando-se sobre eles e dando-lhes a

    pior interpretao possvel.Andrew Samuels argumenta que perda de

    tempo simplesmente defender a pessoa de Jung. Ou omovimento junguiano gerou um sistema coerente deideias que funcionam e atuam positivamente e seliberta da venerao ao seu fundador, ou ficamarcando passo, na defesa de uma pessoa em vez de

    ideias; o que inoperante, pois quase todos osgrandes homens tiveram alguns pontos fracosindiscutveis, indecises, fraquezas e posies dbias.

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    J a reao a Jung entre os catlicos varia muito,vai da posio extremada de incompatvel com o

    cristianismo de acordo com o padre Raymond Hostie,passando pela admirao lcida do telogo LeonardoBoff at, no outro extremo, a posio do padre JohnDourley de que a psicologia analtica deveriasimplesmente absorver o cristianismo.

    Cabe aqui uma observao: o encontro de umaespiritualidade em aparente declnio com uma psicologia

    em expanso teria de ser traumtico. Porm, as grandesreligies se movem lentamente, pois da sua essnciaagir pensando em sculos e no em meses ou anos.Qualquer um que queira pensar no futuro do cristianismodeveria levar em conta o fator Jung. As mudanas,maiores ou menores, tm uma grande probabilidade deocorrer nessa direo.

    O telogo James Heisig, que estudou a fundo aquesto, definiu o dilogo entre a psicologia analtica e ocristianismo como "(...) absolutamente catico (...) apesarde quatro dcadas de discusses (...)". As opinies deJung sobre religio continuam a gerar polmicas, como aideia de que a psique humana e sempre ser ativadapor quatro faces de Deus: o Criador Severo e Irado, aGrande Me Compassiva, o Filho Salvador Heroico e oEsprito de Sabedoria. A quaternidade de Jung pode noser correta teologicamente, mas parece refletir umaprofunda sabedoria do inconsciente coletivo, ou umafaceta desconhecida da psicologia da alma.

  • 7/22/2019 Caminho de Jung

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    CAPTULO 8

    GNOSE E ALQUIMIA

    Jung recuperou os estudos sobre a alquimiarevelando que na estrutura do seu discurso seesconde uma discusso sobre a alma e o seu

    desenvolvimento espiritual. Estabeleceu uma ligaodesses estudos ao antigo gnosticismo e da, paratempos mais recuados, s religies pags, como omitrasmo e a religio do antigo Egito. Sua fascinaopelo gnosticismo era tanta que ele assinou com opseudnimo de Basilides

    1

    o seu famoso "Sete Sermesaos Mortos". Essa corrente espiritual, emboracondenada como heresia, teria seguido paralela aocristianismo, como uma sombra atravs dos sculos.Talvez seja o lado esotrico, complementar, nuncaadmitido publicamente.

    a fascinao de Jung por essas ideias que gera,em tese, a acusao de paganismo, embora ele vissemuito alm disso, propondo uma ligao entre todas

    as formas de religio e os conhecimentos esotricos.lgico que uma maneira to peculiar de encarar areligiosidade teria uma reao bastante controvertida.

    1. Basilides, gnstico do sculo II d.C.

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    Seria complicado definir, em poucas linhas, ognosticismo, mesmo porque o mesmo se constituiu devrias tendncias com diferenas importantes entre si.Mas alguns princpios bsicos so comuns: a ideia de queo mundo foi criado por um deus inferior, o demiurgo,sendo que o Deus supremo est acima desta criaoimperfeita. Portanto, o mundo carrega o estigma do erro,mas cada pessoa possui em si mesma a centelha divina,que se libertando deste mundo de trevas, poder alcanara divindade suprema. Tal experincia s seria possvelatravs de um conhecimento secreto, que a gnose, ouconhecimento esotrico, que permitiria ao discpulosuperar essa priso do mundo, embora apenas poucos oconseguiriam.

    Jung afirmava que a religio estava ligada histriacultural de um povo. Nunca recomendou que as pessoasabandonassem o cristianismo. Ao contrrio, afirmava queseria intil as pessoas do mundo ocidental se dedicarem,por exemplo, s exticas religies orientais. O substratocultural do ocidental jamais absorveria todo o contextoinerente quelas formas de religiosidade. Seria perda detempo um ocidental posar de budista. Ficaria no mximouma caricatura, na sua opinio. Lembrava que emborahouvesse no Japo, h alguns sculos, comunidades de

    japoneses cristos, os seus descendentes continuavam ater sonhos com motivos budistas.

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    Apesar de seu enorme interesse por religiesorientais, jamais advogou que as pessoas setornassem budistas ou hindustas, abandonando o

    cristianismo, ao contrrio do que muitos possampensar.

    O que adiantaria, ele perguntava, as pessoasaprenderem ioga, que surgiu numa cultura de fugada realidade, enquanto continuassem altamenteagressivas e competitivas dentro da sociedadeocidental? A retomada da religiosidade individual

    passaria pela religio ligada cultura em que aspessoas foram criadas.

    Sempre criticou o protestantismo tradicional porter perdido seu sentido de liturgia, por sua rejeio domisticismo e pela perda da emoo religiosa maisprofunda. Apesar disso, ele jamais abandonouformalmente a Igreja Reformada Sua, de origem

    calvinista, embora matizada por influncias luteranas,da qual seu pai tinha sido pastor.Jung via o catolicismo como muito mais

    saudvel psiquicamente, devido ao seu altocontedo emocional. O que ele rejeitava de negativono catolicismo era o centralismo e o autoritarismo,com o que ele declarou claramente jamais poder

    concordar, em seu artigo "Porque no sou catlico".Jung escreveu os prefcios de dois livros deRichard Wilhem, o "Livro das Mutaes", um estudosobre o I Ching, e o livro "O Segredo da Flor deOuro", sobre alquimia chinesa.

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    Seus estudos do I Ching e da alquimia chinesarelacionavam-se questo da universalidade dosarqutipos e do substrato universal comum doinconsciente coletivo, no sendo uma simplesvalidao dos processos ali descritos.

    O mesmo vale para suas observaes sobre otar e a astrologia. Trata-se, em todos esses casos, dovislumbre de uma estrutura psicolgica comum a todosesses temas e no, como erradamente se pensa, deacreditar que esses processos teriam uma validade

    total, um processo divinatrio que realmentefuncionasse em qualquer circunstncia. Seja como for,Jung costumava fazer mapas astrais de seus clientes esua filha Gret Baumann-Jung tornou-se a mais famosaastrloga de Zurique.

    verdade que sob certas situaes especiais,poder-se-ia ter muito mais que um acerto aleatrio,

    atravs do fenmeno de sincronicidade quando, Jungacreditava, poderia ocorrer uma manifestao dearqutipos, contendo mensagens de significadoespecfico e real. Por exemplo, o nascimento de umapessoa predestinada a ser famosa estar associado aoaparecimento de uma estrela nova no cu, fato queevidentemente no poderia ser explicado pelas leis da

    fsica.A sincronicidade seria a ocorrncia decoincidncias significativas, sem nenhuma conexocausal, porm interligadas por um sentido simblico.

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    Essas manifestaes no estariam, contudo, sobcontrole da vontade, advindo da as suas divergnciascom Rhine

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    a respeito das pesquisas parapsicolgicas.No se tratariam de poderes, mas, sim, deocorrncias. Evidentemente, estamos falando de umdos pontos mais controversos das ideias de Jung.Aqui, estamos pisando em terreno realmente frgil. Asincronicidade no , contudo, um ponto essencial dopensamento junguiano.

    Quanto astrologia, o significativo seria acoincidncia dos movimentos dos astros com as

    estruturas psicolgicas. Os astrlogos, atravs desculos de estudos, teriam projetado naqueles corposcelestes e nos seus movimentos, as percepes que

    jaziam no inconsciente coletivo. O que significa que seestamos lendo o que est escrito nas estrelas,estamos lendo, at certo ponto, o que a humanidademesmo escreveu, porque ao atribuir smbolos e

    significados aos astros e seus movimentos, usando aintuio, o ser humano simplesmente parece tertransferido a sabedoria do inconsciente coletivo paraum suporte especfico.

    importante destacar, como fez o filsofo eprofessor Renato Janine Ribeiro, que Jung deu umnovo sentido astrologia que, se antes era vista como

    uma maneira de detectar infortnios ou lances desorte, passa a ser mais uma anlise das possveisinfluncias positivas e negativas atuando sobre a vidadas pessoas, dando uma oportunidade ao ser humanode compreender a sua prpria vida.

    2. John B. Rhine (18951980) parapsiclogo americano.

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    Alguns autores atuais, mesmo influenciados porJung, preferem cit-lo apenas como uma refernciadistante, seja para evitar conexes com suas atitudes

    mais polmicas, seja pela necessidade de pareceremoriginais. o caso dos criadores da psicologiatranspessoal e tambm do filsofo americano KenWilber que, curiosamente, reivindica ter sido o primeiroa estabelecer uma conexo entre psicologia e religiooriental.

    Ele tece algumas crticas muito interessantes,

    como o pouco reconhecimento da importncia dasestruturas intersubjetivas (linguagem, cultura, tica,sistemas sociais) tanto por parte de Jung quanto deFreud e qualificando entre o que ele chama de falciasprtrans o fato de Jung no distinguir entre oscomponentes espirituais prracionais, ou seja, infantise primrios, e os transpessoais, ou seja, produtos de

    uma evoluo espiritual.Ken Wilber falha, contudo, ao ficar preso ao

    paradigma do espiritualismo evolucionista, comogrande parte dos pensadores alternativos e,especialmente, os pseudobudistas da Califrnia e doColorado. H um otimismo ingnuo nessa postura,fruto de uma sociedade que acha que tudo se

    resolver e da melhor maneira possvel, apenas levartempo. No h o sentido do trgico, no hpassionalidade em Ken Wilber.

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    CAPTULO 9

    JUNG E A ARTE

    Jung sempre incentivou os seus pacientes adesenhar ou pintar as imagens que apareciam emseus sonhos. Para ele, a forma era significativa e noapenas o contedo que pudesse ser extrado dessasrepresentaes. Ele achava importante que aspessoas desenhassem e pintassem regularmente, demodo livre, possibilitando a expresso dos contedosinconscientes. Sua ligao com a arte no encontraparalelo em Freud, que a considerava uma sublimaoneurtica. Esta posio foi criticada por Jung comosendo o equivalente a considerar a obra de arte comouma doena. Afinal, considerar que as neuroses deum artista influenciaram a sua arte, no explica oapelo que a grande obra exerce sobre tantas pessoas.Para Jung, a Grande Arte apresenta-se como umamensagem do inconsciente coletivo para toda ahumanidade. Trata-se, portanto, de canalizao e node sublimao.

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    Devido ao excesso de energia psquica consumidapor to grande tarefa, esse processo pode provocar umdesequilbrio da personalidade. Assim, para Jung, aatividade artstica, em seu nvel mais alto, pode alterar amente do artista, levando-o a neurose, se seu psiquismono estiver forte o bastante. Para Freud, ao contrrio,so as neuroses que explicam a obra de arte.

    interessante comparar a anlise da obra deLeonardo da Vinci, "A Virgem, Santana e o MeninoJesus", sobre a qual tanto Freud, quanto Jung,escreveram. Fica claramente demonstrado oposicionamento diferente dos dois. Enquanto Freuddesdobra-se sobre os provveis problemas sexuais deDa Vinci, a anlise de Jung pergunta por que essa obranos fascina e conclui que ali est representado oarqutipo da dupla maternidade, que nos remete ao mitodo duplo nascimento, o fsico e o espiritual, que seria ofator que nos comove profundamente.

    A influncia de Jung muito marcante nas artes,por seu entendimento de que a criatividade uma forapositiva nica e especial. Jung alertou para a fora dasimagens e a tremenda carga psquica de que podemestar possudas, influenciando nesse sentido at mesmoa psicanlise, apesar da mesma tradicionalmente tervalorizado a palavra em detrimento da imagem. Comovimos, ele tinha um grande sentido visual das coisas econsiderava que a criatividade artstica tenderia a ativare expor o material inconsciente, levando a umaharmonizao da psique.

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    Grandes cineastas como Ingmar Bergman,Frederico Fellini e Akira Kurosawa, foram diretamenteinfluenciados por ele. Kurosawa tem uma fraseinteressante, com um tom muito junguiano: "o homem um gnio enquanto sonha".

    Jung foi um grande incentivador da arte comoterapia, insistindo que a realizao e a contemplaodessas expresses plsticas tinham um efeitoteraputico importante. Considerava que uma imagem

    possua um valor simblico, portanto, no redutvel auma simples descrio racional. Em uma passagembreve, mas curiosa, chegou a especular que a danapoderia tambm ter efeito teraputico, o que para apoca era uma ideia incomum.

    A mandala (que significa crculo em snscrito),figura muito utilizada para meditao no budismo

    tntrico tibetano, foi identificada por Jung como osmbolo da totalidade psquica. Segundo ele, estemotivo aparece frequentemente nos sonhos daspessoas na crise inicial que precede o processo deindividuao. Surge ocasionalmente tambm emdesenhos de psicticos. E aparece como smbolo deuso comum em pocas de crise em muitas culturas.

    A mandala formada por uma srie de figuras emotivos ao redor de um ponto central, rodeado decrculos ou de formas quadradas e est geralmentedividida em quatro, oito ou doze sees, apresentandocores variadas, alm do seu desenho complexo.

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    Jung localizou figuras similares em quase todas asculturas e valorizava muito seu sentido universal. Eletambm pintou uma srie de mandalas e algumas dessas

    figuras esto representadas na sua obra "Os Arqutipos eo Inconsciente Coletivo". Desenhar ou pintar mandalas,segundo ele, teria um grande e importante efeitoteraputico.

    Os vitrais de rosceas das catedrais gticas seriamum exemplo do uso religioso das mandalas. Ironicamente,h muitas vezes mais mandalas que cruzes nas igrejas.

    Formas circulares tm tradicionalmente uma conotaode totalidade e na forma de uma serpente mordendo orabo, representavam a eternidade para os antigosegpcios, do mesmo modo que a serpente uroboros dosalquimistas. Muitos crticos acharam exagerada aobsesso de Jung por mandalas, mas para ele auniversalidade de um smbolo como a mandala era umargumento muito forte para a teoria do inconscientecoletivo, da sua importncia.

    Jung irritou muitos uflogos ao sugerir na sua obra"Um Mito Moderno" que as vises de discos voadoresseriam alucinaes compensatrias, vises de mandalas,provocadas pela angstia da sociedade moderna emrelao a uma possvel guerra nuclear.

    Jung deparou-se com a enorme quantidade dematerial mitolgico contido nas alucinaes dospsicticos internados no Hospital psiquitrico deBurghlzli, material para o qual ningum antes tinhaprestado ateno.

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    Ele percebeu que, muito alm de ser apenas umsintoma, essas vises poderiam estar sinalizando umatentativa de cura da prpria mente. Ele tinha uma

    enorme capacidade de intuio, surpreendendo muitasvezes seus pacientes ao adivinhar situaes que osmesmos tinham vivido antes de eles mesmos ascontarem.

    Nise da Silveira, brilhante psiquiatra brasileira,utilizou muito a arteterapia com os internos do hospitaldo Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.

    Entusiasmada com as ideias de Jung, encontrou-se comele em Zurique. Depois de uma longa conversa, Niseperguntou: "Meus pacientes pintam, mas aquilo no fazsentido". Jung fez uma longa pausa. E, fitando-a nosolhos, respondeu: "Estude mitologia".

    Nise passou a ver com novos olhos os trabalhos deseus pacientes. Sim, ali estavam os deuses e demnios,

    seus enigmas, rituais e celebraes e as estranhasvises que provocavam, tudo colocado nessas obrashoje famosas e que so exibidas no Museu doInconsciente. Esta atitude frente aos delrios acabou sedisseminando por vrias instituies psiquitricas, tendocomo exemplo mais famoso o caso de Artur Bispo doRosrio, embora o mesmo no estivesse ligado

    diretamente a Nise da Silveira.Artur Bispo do Rosrio, negro, pobre, louco, gnio,

    hoje tema de artigos e livros, um fenmeno cultural,exposto na Bienal de Veneza e eternizado no campodas artes.

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    O seu "Manto para Encontrar com Deus" umaobra que emociona, arte em estado puro, absoluto, o

    ponto mximo de um processo de resignificao daloucura, de redeno daqueles que no tiveram voz,mas mantiveram a chama do contato direto com aessncia divina.

    O grande pintor Van Gogh, em carta a Gauguin,lembra que a arte deve ser procurada no maisprofundo de nossa alma, como um diamante

    escondido no interior da terra. Essa posio muitosemelhante de Jung. A arte aqui no sublimao,fuga, mas, sim, encontro, descoberta. Nesse caminhopara dentro, a primeira camada encontrada semelhante ao inconsciente proposto por Freud, ouseja, um depsito de sentimentos negativosrecalcados. quando se consegue passar para almdesse ponto e continuar a viagem que se chega aoreino da arte, do sublime, da espiritualidade e datranscendncia, da unidade com o cosmos. Apsicanlise freudiana, por se basear no materialismoabsoluto, no consegue reconhecer, nem lidar, comesta dimenso extra.

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    CAPTULO 10

    CONFLITO DE GNIOS

    O pensamento de Freud oscilou muito durante osanos em que ele trabalhou. Apesar de ter feito uma

    opo materialista, rejeitando qualquer vertenteespiritualista na psicanlise, no fim da sua vidadeclarou que se pudesse recomear, dedicaria maistempo ao estudo dos fenmenos paranormais. Emboratenha se dedicado ao estudo de uma dinmica damente na qual os problemas psquicos surgiriamatravs de processos mentais, previu, nos seusescritos finais, que com o passar do tempo seriamdescobertos remdios que poderiam atuar nosdistrbios mentais e, ento, a psicanlise, cara edemorada, poderia retirar-se de cena. Por que essasdeclaraes so to pouco conhecidas? Porque o jcitado Ernest Jones se encarregou de classificar essescomentrios finais como sendo escritos especulativose no doutrinrios e, dada a sua influncia nomovimento psicanaltico, a sua colocao acabouprevalecendo. Como sempre acontece, quem controlaa interpretao, controla a doutrina.

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    O momento crucial da disputa entre Jung e Freudfoi a publicao, em 1912, do livro "Smbolos e

    Transformaes da Libido"

    1

    , por Jung, em especial ocaptulo "O Sacrifcio", que apresenta uma viso mticado tema do incesto tratado como uma representao deuma regresso da libido em direo a um estgioanterior pr-natal, tendo apenas secundariamente umaconotao sexual.

    Esta verso da libido como uma fora vital ampla

    e geral, cuja expresso como sexualidaderepresentaria um estgio particular, contrariava orgido enfoque freudiano de que a sexualidade fosse afora bsica e primitiva. Freud apresentou,posteriormente, sua resposta no livro "Totem e Tabu",com a verso de que toda a civilizao baseia-se naproibio do incesto, originada da culpa relativa aoassassinato do Grande Pai da horda primeva, a tribooriginal da qual todos ns descenderamos. A ideia dahorda primeva de Darwin, do qual Freud era umgrande admirador. Os estudos modernos sobrecomportamento dos animais, especialmente sobrenossos parentes prximos, os primatas, no apoiamessa teoria. Instintivamente, os animais superiores, emestado selvagem e em condies ecolgicas normais,tendem a cruzar fora do seu grupo familiar original. Aseleo natural teria favorecido comportamentos quecriassem maior diversidade gentica, um fato que noera conhecido na poca de Freud.

    1. Esse livro foi revisto vrias vezes por Jung, tendo a ltima edio recebida o ttulo de"Smbolos da Transformao" (Obras Completas vol. 5).

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    Falta uma boa explicao de como este sentimentode culpa se transmitiria ao longo de um perodo que a

    moderna antropologia considera que poderia terchegado a trezentos mil anos. Tambm no fica definidaqual a situao das mulheres no caso, uma vez queesta teoria do crime primitivo faz referncia apenas culpa de homens, que teriam matado o Grande Paiporque o mesmo monopolizava as mulheres.

    Uma teoria, portanto, com fundamentos precrios.O que no impede que "Totem e Tabu" seja o livro decabeceira para muitos freudianos lacanianos, adeptosde uma flexibilizao interpretativa que libera docompromisso com a realidade literal. De fato,argumentam, a hiptese do crime primitivo se adaptato bem teoria geral freudiana, que no importa que amesma no seja verdadeira, mas, sim, que a construodesse mito atenda necessidade da psique humana.

    Mas o que isto, seno literatura!O que importa seria a eficcia do saber construdo,

    no sendo relevante que seja verdade ou no.Poderamos, contudo, dizer a mesma coisa da histriade Pinquio ou da Branca de Neve, porque a estamosmuito mais prximos da criao literria do que qualquer

    coisa que possa ser chamada cincia. A hiptese docrime primitivo, cuja culpa carregaramos at hoje, podeser considerada, ento, como apenas uma posturasolitria e bizarra de Freud.

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    Durante muito tempo, Freud acreditou no hipnotismocomo terapia para, depois, abandon-lo. Em 1884comeou a advogar o uso da cocana para melhorar oestado de esprito das pessoas, tendo inclusive orecomendado sua futura esposa Martha Bernays e aalguns amigos. S se deu conta do seu erro mais tarde,quando seu amigo FischerMaxlow, a quem tinha receitadococana, comeou a apresentar alucinaes, vendopequenas cobras subindo por sua pele.

    O abandono da Teoria da Seduo por Freud tambmfoi feito com muita hesitao, numa ao cheia de dvidas.Com tantas idas e vindas, no teria sido possvel somar asposies de Jung s suas? Por razes no muito claras eleresolve, no momento do conflito com Jung, definir umaortodoxia severa em torno da origem sexual das neuroses.Logo ele, que tinha sido to revolucionrio e to aberto aideias novas.

    A sua fantstica flexibilidade, que lhe tinha permitido

    ir to longe, deu lugar a uma ferrenha obstinao. Jungalertou-o de que sua obsesso era neurtica e causariaproblemas futuros para a psicanlise, que poderia ficarrgida e limitada, previso que muitos consideramconfirmada.

    Freud no viu nenhum futuro na religiosidade, queatravessava um perodo de descrdito muito grande. Ele

    optou por um sistema rgido, materialista e reducionista.E, no mdio prazo, a escolha deu certa, pois atendeu aoesprito da poca. Estranhamente, contudo, uma parcelasignificativa dos textos de Freud trata de temas ligados religio.

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    De fato Freud pertence ao brilhante grupo decientistas e intelectuais judeus que surgiu na Europa dosculo XIX e incio do sculo XX, perodo no qual as

    restries aos judeus foram sendo retiradas na maioriados pases da Europa, at o surgimento do nazismo,quando a situao voltou a se deteriorar, atingindo ohorror inimaginvel.

    Durante o sculo XIX, abriram-se as portas daintegrao para esses jovens intelectuais vidos dereconhecimento e ascenso social, mas o preo a pagar

    seria alto: o abandono das tradies judaicas e, emparticular, do judasmo como religio. Muitos deles vooptar, portanto, por um humanismo secular, peloatesmo ou, no mximo, por um vago desmo. O sistemafreudiano ficar, assim, marcado por esta falta deespiritualidade.

    No lugar de Deus, ausente, a fora obscura doinconsciente, tambm invisvel e tambm portador deordens autoritrias, com o qual o ser humano pode nomximo alcanar um armistcio duvidoso. Um destinotriste e solitrio, que se reflete na impresso demelancolia na obra de Freud.

    Jung, em contraste, prope um mundo mgico,

    exuberante e irracional. Ele no est se afastando, massim procurando, as suas imaginrias razes religiosas,estranhas e perigosas, perdidas nas brumas do tempo

    Acordar os deuses adormecidos pode ser umgrande problema, talvez o que Freud temesse...

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    Para alguns estudiosos, portanto, Jung nodeveria ser considerado um discpulo de Freud, poissua abordagem, desde o incio, j traria uma direofrontalmente diferente.

    Freud encarna o esprito modernista, tomado porum individualismo radical, secularismo absoluto e umatendncia criao de ideologias puras e totalizantes.Jung, em contraste, revela algumas caractersticassurpreendentemente ps-modernas, como sua atuao

    multidisciplinar, sua aceitao da indeterminao, suasconcepes de entidades coletivas.

    Isto torna as anlises sobre ele prejudicadasquando se originam de um certo olhar modernista. Porexemplo, a crtica de que o pensamento de Jung uma mistura indevida de cincia e religio, sem levarem conta que, a rigor, ele estava criando uma conexo

    entre cincia e religio. O horror modernista aohibridismo fica a evidente. A crtica que pode ser feita que ele no assumiu o real sentido do que estavapropondo. Fazer isto, contudo, traria uma perda decredibilidade para a poca em que trabalhou e limitariasua atuao como psiquiatra. A questo seriaresolvida com a definio atual ampla do que a

    cincia, que inclui no apenas os conhecimentosadquiridos pela aplicao rigorosa do mtodocientfico, mas tambm certos tipos de conhecimentorecebidos atravs da tradio ou pela intuio, ou pelaexperimentao no racional.

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    CAPTULO 11

    RESIGNIFICAO

    O grande triunfo de Jung foi perceber na loucura, na arte,na religio, no misticismo e nos sonhos, um fio condutorcomum: a presena de material mitolgico. De diferentesmaneiras essas situaes remetem ao inconscientecoletivo, em que toda a humanidade se conecta.Poderamos ver, simplificadamente, a psicologia analticade Jung como uma fuso da psicanlise com os estudosde mitologia, como tambm poderamos ver o movimento

    lacaniano como uma fuso da psicanlise com alingustica, mais uma cobertura de filosofia e uma pitadade dadasmo. Roland Cahen, em uma clebre boutade,coisa to cara aos franceses, declarou que os junguianoscom seus arqutipos e os lacanianos com seussignificantes, haviam criado primos irmos da confuso.Claro que como amigo de Lacan ele podia se permitir tal

    brincadeira, tendo ele at mesmo intermediado umencontro entre Lacan e Jung, o qual contudo no resultouem nada.

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    Alm da resignificao da loucura, a resignificaomais importante a do sentido da morte, de fim ou de

    destruio, para transformao. a que a posturaespiritualista marca sua maior diferena. Jungacreditava em outra vida, embora no a definisseexatamente. Ele constatava que os sonhos e asexperincias de quase morte apontavam para estarembutido no nosso inconsciente o conhecimento de umps vida. Fiel ao seu mtodo de no ir alm da

    realidade psquica, no quis especular sobre o que istopoderia ser realmente. Segundo Jung, ningum dameia-idade para frente, apresenta boa sade psquicase no resolveu seu dilema religioso. Por isso, muitasvezes, atendendo a pacientes catlicos ou protestantes,ele os mandava procurar um padre ou pastor.Definitivamente no se v sinais de que ele estivesse

    fundando um culto oficial separado das religiesexistentes. O seu trabalho parece ter sido no sentido deorientar a resignificao da religio da qual a pessoa jestivesse participando, ou pelo menos tivesse ali assuas razes culturais.

    Durante muito tempo Jung foi principalmente umpensador para pensadores, de influncia claramente

    discernvel em determinados meios intelectuais.Paradoxalmente, foi sua adoo pelo pblico amplo, ditoda Nova Era, que popularizou sua figura nas quatroltimas dcadas, embora isto levasse a uma visosimplificada de sua obra.

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    Freud, ao analisar que a vida uma longacaminhada para a morte, deduziu o conceito de pulso

    de morte, em oposio pulso de vida. Para Jung,simplesmente no h pulso de morte. A prpria libidoaponta na direo do sentido de transformao e aolongo da vida, a etapa final que podemos vislumbrarcomo a morte seria como uma etapa de um processomaior, ou seja, a morte passa a significar renascimento.Jung concebe, portanto, a vida como uma caminhada

    na qual o ser humano se eleva cada vez mais emdireo ao seu destino final.

    A partir da meia-idade que o processo deindividuao vai tomando forma. J no sistemafreudiano, no h muito que dizer sobre a velhice, quese apresenta apenas como uma etapa de decadncia.Costumava-se dizer, em tom de brincadeira, que Freud

    seria para pessoas at trinta e cinco anos e que Jungseria para maiores dessa idade.

    Atualmente, a frmula freudiana d sinais decansao e a reanimao que est sendo tentada custa de altas doses de Lacan tem os seus limites.Principalmente porque, em seus escritos, Lacan lutacom ideias e teorias, pouco com casos clnicos. Suas

    percepes, por mais instigantes que sejam em umnvel intelectual mais elevado, podem nocorresponder a expectativa da pratica clinica.

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    Cada vez mais abstrato e terico, voltado para um pblicointelectualizado, o freudismo lacaniano, com sua linguagem

    hermtica e tautolgica se aproxima perigosamente daliteratura e da filosofia, tornando-se uma metafsica dapalavra, segundo o filsofo Jacques Derrida. Com forte visestruturalista, fascinou intelectuais e literatos, ao desenfatizara sexualidade e por permitir longos e sofisticados textos comdivagaes sobre temas lingusticos, filosficos, literrios ecientficos. No se conseguiu, preciso notar, encantar do

    mesmo modo os pacientes/analisandos mas no se pode tertudo. Freud foi acusado de exagerar a sexualidade, Jung dedesvios espiritualistas e para Lacan sobra a critica de hiperintelectualizar a psicanalise, carregando-a com temasabstratos da lingustica e da filosofia. Contra a sexualidadecrua, precoce e indomvel proposta por Freud, e contra osfantasmas/espritos/arqutipos de Jung, Lacan prope que

    somos atormentados pelos significantes mestres, palavrascom poder, que surgem na cultura humana e que noscolocam, pobres seres imersos e perdidos na linguagem, amerc das mesmas, com seu significado deslizante. MasLacan, segundo Malcom Bowie, tinha a fraqueza fataldaqueles que tem uma paixo pela criao elaborada desistemas, nas chamadas cincias sociais. Sistemas quefascinam, a principio, pela engenhosidade mas tendem asucumbir diante da complexidade do fenmeno humano, queno se deixa reduzir a esquemas.

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    Estes sistemas tendem a ter um alto grau de elaboraointerna, mas baixa interao significativa com o ambienteexterno, tornando-se auto suficientes e isolados, como omundo dos jogadores de xadrez, fascinante e complexo, masexclusivo para os aficionados. O pensamento lacaniano temdificuldades em conviver em condies de igualdade comoutras formas de viso de mundo, com o agravante de seconsiderar o ponto central do conjunto de formas de pensar ohumano, posio que a maioria dos pensadores atuais se

    recusa a aceitar. Mas h, por exemplo, o filosofo eslovenoSlavoj iek que declara : o ncleo central da minha obra atarefa de usar Lacan como ferramenta intelectual previlegiadapara reatualizar o Idealismo Alemo. Pode-se perceberporque voc com seus pequenos problemas, ningum gostade voc, sua vida no d certo, vai de repente receber ofamoso corte seco lacaniano (sua conversa est ficando

    chata! A sesso acabou aqui!) do seu analista idem. Comovamos com nossas chatices e misrias competir em interessecom a Reatualizao do Idealismo Alemo?

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    Personalista, exclusivista e reducionista, o movimentolacaniano tem pelo menos, garantida sua influencia na critica

    literria e na filosofia. Mesmo Lacan sendo considerado umgrande pensador critico da psicanalise, o movimentolacaniano, que se seguiu, no manteve nem de longe o brilhodo mestre, perdendo-se em uma linguagem opaca e cifrada,pernstica e claustrofbica.

    Deve-se, contudo, reconhecer a Lacan ter sido mais claroe coerente do que seus adversrios admitem, ou de que seusseguidores consigam exercitar. Sua postura de provocadordentro da psicanalise incomodou a ortodoxia reinante, esempre h algo de bom a dizer sobre quem se ope ao statusquo. Sua oposio chamada psicologia do ego, a varianteda psicanalise que domina o cenrio americano, tem umalucidez extraordinria, ao apontar que na maioria dasneuroses o ego j est exageradamente ativado, sendo entointil e contraproducente fortalece-lo.

    Este descentramento do ego tem ressonncias com opensamento de Jung, que postulou o ego como umcomponente a ser integrado com a produo inconsciente,atravs de um novo centro da psique, o Self.

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    Um terapeuta experiente relatou que o que encontrou na suprtica, em realidade, foram pacientes freudianos, kleinianojunguianos, lacanianos ou adlerianos. Talvez cada grande mestrtenha apenas percebido um lado da questo. Poderamos dizeem uma viso extremamente pragmtica, que cada formalternativa notabilizou-se por ser aplicvel com sucesso em umquadro restrito de sintomas e anseios. Neste sentido qu

    destacamos a importncia do pensamento junguiano para asituaes em que h um forte componente de espiritualidadpresente. Atuando como psicologia da experincia religiosa, psicologia analtica tem uma grande capacidade para mediar integrao do indivduo ao seu ambiente espiritual natural. Emmuitos casos, contudo, este ambiente no ser o das religieorganizadas, mas algo como o fenmeno ps-moderno tpico dreligio individual, o uso fragmentado de crenas e praticadiversificadas ou a procura de uma transcendncia humanista.

    CAPITULO 12

    O CAMINHO

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    No seu livro "O homem Descoberta da sua Alma"Jung j havia advertido sobre a grande perda d

    modernidade. Durante dezenas de milhares de anos, humanidade viveu acreditando estar rodeada de espritosque davam proteo e identidade, numa relao mgica coma natureza e agora acha que pode dispensar tudo isto. Ohomem moderno, de certo modo, perdeu sua alma e, em vede entrar em pnico, sequer se d conta disso, dopado robotizado, imerso na sociedade de consumo. Muit

    diferente dos antigos aborgines australianos que vigiavamconstantemente sua sombra, pois acreditavam que sesumio representaria o da sua alma. Jung lidou durantmuito tempo com psicticos de todas as classes e semprdefendeu a sua experincia contrastando-a com a de Freudque jamais tratou de doentes mentais internados e cujopacientes eram, na maioria, neurticos das classe mdia

    alta.

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    Do hospital psiquitrico de Burghlzli, onde Jungtrabalhou, no se podia avistar o lago de Zurique, emboraele estivesse to prximo. O asilo havia sido construdo

    propositadamente assim, pois acreditava-se, na poca,que a viso de grandes volumes de gua desencadeavaos ataques dos psicticos. na beira desse lago, perto deZurique, em Bolligen, que Jung resolve construir a suacasa de campo, estranha residncia, com uma arquiteturaditada pelos seus sonhos e cujas paredes internas encheude pinturas msticas.

    Era nesta casa que Jung se isolava, preparando suaprpria comida, na cozinha circular da torre. No difcilimagin-lo a preparar seus pratos complicados enquanto aluz crepuscular, passando pelas pequenas janelas,projetava nas paredes a sombra de um velho alquimista.Raras pessoas eram convidadas a ir l; a maioria dos seusconhecidos e amigos era apenas recebida na sua

    residncia oficial de Kussnacht. Em Bolligen, Jung dizia,"aqui eu posso ser eu mesmo".

    s vezes, no outono, as brumas apareciamtrazendo as vozes dos antepassados e, ento, porinstantes mgicos, o futuro, o presente e o passadomisturavam-se e o murmrio das pequenas ondas dolago falava da eternidade. Os deuses egpcios traziam

    seus presentes e Wotan passava ao largo, conduzindoseus guerreiros de faces plidas.

  • 7/22/2019 Caminho de Jung

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    Ali em Bolligen atuava a personalidade nmero dois deJung, o Grande Mago do Inconsciente. Quando retornava aKussnacht, contudo, ele readquiria sua personalidadenmero um, o respeitado e famoso psiquiatra suo,atendendo ao grande nmero de pacientes que vinham domundo inteiro. Jung no foi um asceta, de modo algum.Certa vez, em um dia particularmente bonito, largou seuconsultrio e foi velejar, abandonando seus pacientes quehaviam sido previamente marcados. Talvez a grande lio

    da sua vida tenha sido o modo de evitar o desequilbrio,distribuindo sua energia psquica de modo a atender svrias demandas do psiquismo. Estaria a um dos segredosdo processo de individuao que, segundo Jung, deverialevar a uma maior integrao com o mundo, em todos ossentidos. A individuao no leva ningum a se tornar umsanto, mas, sim, a integrar os aspectos positivos e negativos

    de sua personalidade. Assinalemos que isto bem diferen